GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXIV · Issue Fascículo 1‑2 · 1st January Janeiro – 31st December Dezembro 2023 · pp. 209‑234 209
O sistema europeu de supervisão nanceira
– algumas questões de governance numa
redepoliárquica” de decisão
The European system of nancial supervision – some
governance issues in a “polyarchical network” of
decision‑making
LUÍS GUILHERME CATARINO1
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXIV · 1st January Janeiro–31ST December Dezembro 2023 · pp.209‑234
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXIV.1/2.12
Submitted on August 24th, 2023 · Accepted on October 31st, 2023
Submetido em 24 de Agosto, 2023 · Aceite a 31 de Outubro, 2023
RESUMO: O presente artigo analisa algumas das questões que têm vindo a ser colocadas ao
nível da experimental governance do Sistema Europeu de Supervisão Financeira criado em
2009. As suas caraterísticas e a profunda inovação do procedimento de decision e de rule-
making – funcionamento “em rede” num sistema multinível que abrange as instituições
da União e dos Estados-membros –, tornam a governance deste sistema social um case
study da nova arquitetura institucional europeia. A sua autonomia conjuga-se com
uma “condenação à cooperação” com outros entes do sistema, mas de nível nacional. A
atribuição dinâmica de competências às autoridades que o compõem, a plasticidade da sua
conduta, a aproximação aos sistemas poliárquicos de deliberação – com procedimentos
híbridos de decisão unilateral típicos de uma “quase-hierarquia” –, caraterizam um
experimentalismo que, mimetizado de outros domínios sociais, é aplicado ao direito da
regulação. Salientamos aqui alguns aspetos da governação experimental “responsiva”
decorrente da tentativa, revisão e aprendizagem, baseada em instrumento híbridos como
a “cripto-legislação” aceite pelo TJUE.
PAL AVR ACHAVE: governance; sistema multinível; cooperação; regulação;
1 Doutor em Direito, Professor Convidado ISCTE-IUL, Assessor Jurídico CMVM. As opiniões e juízos formulados
são naturalmente pessoais e apenas imputáveis ao autor. O texto corresponde à intervenção no Congresso sobre
Governance, Ethics and Compliance, da Universidade Autónoma de Lisboa em cooperação com European University Viadrina
Frankfurt.
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O sistema europeu de supervisão financeira – algumas questões de governance numa “redepoliárquica” de decisão
The European system of financial supervision – some governance issues in a “polyarchical network” of decision‑making
LUÍS GUILHERME CATARINO
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXII · Issue Fascículo 2 · 1st July Julho – 31st December Dezembro 2021 · pp. 209‑234
ABSTRACT: This article analyses some of the issues that have been raised regarding the
experimental governance of the European System of Financial Supervision created in
2009. Its characteristics and the profound innovation of the decision-making and rule-
making procedure – functioning “in a network” in a multi-level system that encompasses
the institutions of the Union and the Member States – make the governance of this
social system a case study of the new European institutional architecture. Its autonomy
is combined with a “condemnation to cooperation” with other entities of the system, but
at national level. The dynamic attribution of powers to the authorities that comprise it,
the plasticity of its conduct, the approximation to polyarchic systems of deliberation –
with hybrid procedures of unilateral decision-making typical of a “quasi-hierarchy” –
characterise an experimentalism that, imitated from other social domains, is applied to
regulatory law. We highlight here some aspects of “responsive” experimental governance
resulting from trial, review and learning, based on hybrid instruments such as “crypto-
legislation” accepted by the CJEU.
KEYWORDS: governance; multi-level system; cooperation; regulatory law.
Governance is not a choice between centralisation and decentralisation. It is about regulating
relationships in complex systems2
1. Introdução
Revisitamos nesta apresentação algumas questões sobre o modelo de organização ou
de governance institucional criado em 2009 na União Europeia (UE) para a supervisão
do sistema financeiro, uma área que embora não sendo competência própria cometida à
UE pelo Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE) implica uma “condenação
à cooperação” entre a administração nacional de supervisão financeira e a novel
administração europeia de supervisão financeira3.
2 Roderick Rhodes, 1994, Understanding Governance – Policy Networks, Governance, Reflexibility and Accountability,
acessível em: Open University Press: https://www.researchgate.net/publication/233870082_Understanding_
Governance_Policy_Networks_Governance_Reflexivity_and_Accountability, p.151
3 No domínio do sistema europeu de supervisão financeira debruçámo-nos em anterior artigo sobre a governance
experimental interna das autoridades europeias de supervisão, as suas atribuições e o exercício de competências
próprias e “partilhadas” com as autoridades nacionais, sendo algumas das atuais questões controvertidas aí
tratadas similares às que resultam do sistema de governance experimental que caraterizam o próprio sistema em
que elas se integram. Cfr. o nosso artigo “A cooperação na supervisão financeira da União do Mercado de Capitais
– entre o experimentalismo e a governance”, Revista da Concorrência e Regulação, n.º 45, Jan/Mar 2021, pp.15-63,
acessível online in CR_4502_PT.pdf (concorrencia.pt).
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O atual sistema de governance europeia é necessário à integração dos mercados
financeiros nacionais no caminho para um mercado único global (regional). Sem
que se tenha assistido a uma revolução institucional a evolução é feita por estádios,
temporalmente sucessivos, mas materialmente sobrepostos. A atual governance do
Sistema Europeu de Supervisão Financeiro (doravante, SESF) demanda por uma alise
do tipo de relações que se foram construindo neste sistema administrativo que não é
centralizado e assente na hierarquia com primazia da administração supranacional, mas
numa administração “híbrida”. E falamos numa administração “híbrida” (que atua com
meios jurídicos “híbridos”), porque assenta na coordenação entre a administração de
supervisão financeira nacional e a administração de supervisão financeira da União, com
as diferentes entidades numa rede poliárquica de participação, em que entidades de nível
inferior podem influenciar as escolhas das entidades no topo da cadeia.
Esta governancehíbrida” convoca várias questões que não podemos tratar, como
saber que campos ou matérias são partilhadas ou exclusivas da União Europeia (EU) em
matéria de policy making; se existe uma centralização de competências na UE através de
verdadeira “delegação” ou antes de uma “atribuição”; se tal movimento implica um bypass
aos poderes das autoridades nacionais competentes (doravante, ANCs) na mesma área de
supervisão; se, em alternativa, se mantém uma descentralização de poderes mas com
um sistema multinível que conjuga no processo de decisão a administração nacional
e a administração europeia; se o atual mecanismo de “cooperação concertada” entre as
diferentes administrações implica uma hierarquia na governance institucional supervisora
ao nível da União; como resolver diferendos ou impasses na “rede” regulatória…
Tal como sucede no domínio judicial, em que, segundo a politics da União, os tribunais
nacionais seriam parte de um sistema judicial europeu4, na governance do SESF também
existem níveis de administração – e local e transnacional –, em que as autoridades de
supervisão europeia serão o driver da supervio5.
Nos tempos de globalização em que (ainda) vivemos, a matéria da governance ou da
governação institucional internacional de setores económicos como o financeiro é
caraterizada pela imposição de padrões e de medidas concretas aplicáveis globalmente –
no acesso ao mercado, na sua regulação e supervisão, na implementação e monitorização
ou avaliação e enforcement. Ao nível internacional, e a par de verdadeiras Organizações
4 Na realidade, as decisões do TJUE relativamente às competências dos tribunais nacionais e seu funcionamento
dono domínio do poder judicial parecem demonstrar uma tendência hodierna é de centralização de competências
no TJUE –entre outros, vide o Acórdão de 20 de fevereiro de 2018, Reino da Bélgica vs Comissão, C-16/16P,
EU:C:2018:79.
5 Jonathan Zeitlin (ed.), 2015, “Extending Experimentalist Governance?”, The European Union and Transnational
Regulation. Oxford: Oxford University Press, 107–36.
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Internacionais, têm vindo a ser criadas entidades de cariz associativo e âmbito
supranacional dedicadas à regulação de setores da economia específicos. É nesta
dimica que se enquadram as autoridades europeias de supervisão financeira (doravante
Autoridades ou ESAs, do inglês European Supervisory Authorities) que têm vindo a assumir
novas competências numa dinâmica própria ou “por experimentação”.
2. Um sistema institucional europeu de experimental governance.
No âmbito do SESF, e num sentido mais funcional do que estrutural, o movimento a que
assistimos é designado por vários Autores de “institucional governance experimentalism”,
que traduzimos por governação institucional experimental ou por experimentação. Por
governance ou governação experimental ou por experimentação entende-se a existência
de um sistema orgânico e funcional institucionalizado em que a intervenção se carateriza
por um aperfeiçoamento e adaptação constantes, decorrente da existência inexorável de
relações fluidas e multidirecionais entre várias entidades de supervisão financeira e outros
interessados (stakeholders), públicos e privados, nacionais e supranacionais. Conjugam-se
para objetivos comuns mas provisórios porque necessitam de constante adaptação. No
funcionamento em “rede” (regulation networking) as diversas entidades trocam informação,
decidem e resolvem problemas bottom-up, tomam medidas regulatórias ou realizam ações
de supervisão conjuntas em campos exclusivos, mas parcelares6.
A existência de um sistema adaptativo perante campos exclusivos e parcelares (como
o nacional), é também essencial quando se opera em setores de forte risco e incerteza, e
num meio técnico altamente complexo, onde não funcionam mecanismos top-down e
de command and control. O conceito de experimentalismo na governance encontra-se por
isso indissociavelmente ligado à denominada responsive regulation (numa tradução literal,
regulação “responsiva”), que se traduz numa forma de regular que flui de modo sensível ao
contexto visado, ou que se reduz a um processo fluido de desenvolvimento da regulação, de
uma forma interativa face às necessidades concretas e às possibilidades de alteração ou de
mudança, de objetivos e/ou de orientações. Esta forma de regulação tem vindo a prevalecer
na União Europeia (UE) em detrimento da tradicional forma de regulação hard (command
6 Usualmente considerada mais como um procedimento, “institutionalized transnational process of participatory
multilevel problem solving, in which particular problems (and the means to adderessing them) are framed in an
open-emded way, and subject to periodic revision by various forms of peer review in light of locally knowledge,
Gráinne de Búrca, Fobert Kehoane & Charles Sabel, 2014. “Global Experimentalist Governance”.British Journal of Political
Science,vol. 44, n.º 3, pp. 477-486. acessível in http://www.jstor.org/stable/43821630 , p.477
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and control), convocando as diversas instituições e agentes e interessados nacionais para
o processo normativo e decisório, com alguma flexibilidade e muita discricionariedade7.
A criação do SESF é a aceitação da evolução pela União, do mecanismo administrativo
multinível pré-existente, de conexão entre diferentes níveis da administração pública
nacional – no caso financeiro, descentralizada –, e da administração europeia –
tendencialmente centralizada. O SESF não é protótipo de um federalismo administrativo
em que existe uma separação de poderes vertical e os Estados-membros aparecem num
nível de quem, como regra, recebe e executa a legislação criada ao nível europeu8. Como
veremos, a sua atividade traduz-se em procedimentos administrativos compósitos, de
difícil sindicância (vg judicial)9, afastada da visão tradicional de centralismo e separação
de poderes. Na realidade, a implementação de normas (ou objetivos) da UE pode escapar
aos Estados-membros e competir também à própria União, seja através de atos delegados
ou de execução, seja através de uma administração indireta de execução (a soft law10).
Os sistemas de governação experimental (a mais das vezes autopoiéticos), tem
caraterísticas (e depende de condições) muito próprias11:
i) são caraterizados pela elevada incerteza e risco do meio em que atuam e por uma
dimica de mudança que impede os decisores de fixar previamente objetivos
rígidos (ou normas comportamentais muito precisas), de forma a avaliá-los e ao
seu cumprimento alterando-os se necessário;
ii) assentam na necessidade de traçar um percurso baseado na fixação ex ante de
objetivos que se sabe serem provisórios e que necessitarão de avaliação e adaptação
(processo de problem-solving), acomodando-o face à diferença e diversidade e assim
aprendendo;
7 Phedon Nicolaides & Nadir Preziosi, Discretion and Accountability: The ESMA Judgment and the Meroni Doctrine (2014),
acessível em SSRN: Bruges European Economic Research Papers (BEER)
8 DUBEY, 2002: 98.
9 Acerca desta problemática e do fenómeno multinível, Sarah Tas, 2018, The control of actions taken by agencies
through composite procedures: a case- study of operations coordinated by Frontex, Universidade do Luxembur-
go, acessível in (99+) The control of actions taken by agencies through composite procedures: a case- study of
operations coordinated by Frontex | Sarah Tas – Academia.edu
10 Embora em casos devidamente especificados e sempre sob prévia definição das “regras e princípios gerais
relativos aos mecanismos de controlo” dos Estados-membros na execução pela Comissão (art. 291.º , n.º 3 TFUE).
11 Jonathan Zeitlin, 2023 “Hierarchy, polyarchy, and experimentalism in EU banking regulation: the Single
Supervisory Mechanism in action, in Journal of European Integration, Vol. 45, acessível in Journal of European
Integration | Taylor & Francis Online (tandfonline.com ), pp. 79-101; Bernardo Rangoni &Jonathan Zeitlin,2021.
“Is Experimentalist Governance Self-Limiting or Self-Reinforcing? Strategic Uncertainty and Recursive
Rulemaking in European Union Electricity Regulation,Regulation & Governance15 (3):822–839, acessível in Is
experimentalist governance self-limiting or self-reinforcing? Strategic uncertainty and recursive rulemaking in
European Union electricity regulation (wiley.com)
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iii) são compostos por diversos atores (no caso, nacionais e transnacionais) por quem
são distribuídos poderes regulatórios que obrigam à concertação e afastam a
possibilidade de relação hierárquica e direção por um único (“sistema polrquico”);
iv) os seus procedimentos e decisões dependem da participação de todos os atores
obtendo, pelo dlogo, normas ou decisões que permitam concertar a diversidade
dos setores e realidades que cada um representa;
v) a interdependência é necessária – vg pela possibilidade de cada ator local prever
o impacto de externalidades negativas –, o que obriga a uma coordenação ou
concertação para atingir um resultado ou resolver um problema (que é comum ou
que a todos pode afetar negativamente)12.
Em anterior escrito sintetiramos o percurso de sedimentação na União Europeia
da supervisão financeira, onde assistimos num estádio inicial a um movimento baseado
numa troca de informação, assistência e entreajuda administrativa entre as ANCs, a que se
seguiu um estádio de cooperação e de coordenação em que o poder de rulemaking incorporou
autoridades da UE e membros das ANCs – os Comités e o movimento de “comitologia”. No
estádio atual os comités foram institucionalizados e dotados de poder de decision-making
num sistema que caminha para a concentração e centralização em corpos administrativos da
UE (estádio de “agencificação” ou “europeização”) 13.
A afirmação e projeção desta governação experimental ou por experimentação não
é despida de problemas de legitimidade, de tensões políticas entre instituições da UE e
destas face aos Estados-membros, e de paradoxos na relação entre a administração da UE e
as administrações nacionais e no controlo judicial – visaremos algumas destas questões.
12 Conforme referem os autores citados, esta procura de soluções comuns não é tão premente que afaste também
algum experimentalismo ao nível da concretização pelos reguladores, pois entendem que a principal motivação
para aceitar uma decisão ou enforcement centralizados, de modo similar ao de um procedimento hierárquico,
são as externalidades negativas previstas para cada um – Bernardo Rangoni, & Jonathan Zeitlin, 2021,
“Is Experimentalist Governance Self-Limiting or Self-Reinforcing? Strategic Uncertainty and Recursive
Rulemaking in European Union Electricity Regulation.”Regulation & Governance15 (3):822–839.
13 Acerca da passagem dos estádios de mera informação e entreajuda à concertação e integração administrativa, o
nosso trabalho “O devir do procedimento de cooperação no Sistema Europeu de Supervisão Financeira, AAVV.
coord. Prof. Doutor António Menezes Cordeiro, Direito dos Valores Mobiliários e dos Mercados de Capitais – Angola,
Brasil e Portugal, Almedina, 2019, pp. 405-443.
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3. Supervisão financeira europeia (SESF) e sistemas institucionais
multinível.
No plano de integração regional europeia do final do século XX e na sequência da
Estratégia de Lisboa de 2000, a Comissão Europeia fixara como objetivo para 2010 que
o mercado da UE fosse superior ao dos EUA: mais competitivo, sustentável, socialmente
integrador e coeso, baseado na inovação e novas tecnologias para o pleno emprego14.
A necessidade de resposta à integração dos mercados – a nível europeu e
global – implicava uma integração institucional e uma maior convergência re-
gulatória com a interpretação e aplicação uniformes do direito da União (um
level playing field). No âmbito do Financial Services Action Plan15, e apenas no domí-
nio financeiro sob o denominado procedimento Lamfalussy (infra), entre 1999 e
2004 seriam aprovadas 39 Diretivas. No entanto, a governance institucional da
União continuava a assentar num movimento de mera troca de informação, de
assistência e de entreajuda administrativa entre as autoridades competentes para
a supervisão16.
Apesar de ser enorme o adquirido legal no domínio financeiro (o “acquis
communautaire”), o sistema de regulação e de supervisão dos mercados assentava numa
governance institucional policêntrica: autoridades nacionais administrativas com a mesma
natureza (independência funcional e técnica) e com atribuições e competências comuns
(poderes similares para uma cooperação mútua). Os sistemas de governance regulatória
nacional miméticos também pretendiam dar eficácia aos princípios de liberdade de
circulação de capitais, pessoas e bens, de prestação de serviços e de estabelecimento de
empresas – o denominado “passaporte comunitário”. Este “passaporte” é necessário ao
desenvolvimento e integração e assenta numa relação entre Estados-membros “de origem”
e Estados-membros “de acolhimento”; era condição e pressuposto a existência de uma
14 Gráinne de Búrca, 2003, “The Constitutional Challenge of New Governance in the European Union, European
Law Review, Vol. 28, acessível in The Constitutional Challenge of New Governance in the European Union (iilj.
org)
15 O Financial Services Action Plan (FSAP) decorria das pretensões da Comissão Europeia expressas na sua comunicação
de 28 de Outubro de 1998 denominada de Financial Services: Building a Framework for Action e demais atos posteriores
de implementação da CEE, https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=LEGISSUM%3Al24210
16 Francesca Bignami,1999, “The Democratic Deficit in European Community Rulemaking: A Call for Notice and
Comment in Comitology”, Harvard International Law Review; 30, pp. 451-515.
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regulação material comum e de uma tool box de competências uniforme. Só assim um
Estado-membro aceita a jurisdição “do outro”17.
A integração dos mercados implica a necessidade de integração institucional.
Foram criados corpos administrativos da União, dotados de poder de intervenção no
procedimento de rulemaking – os Comités – que definiriam o movimento que hoje
se designa de “comitologia” (procedimento comitológico). Implicaram uma maior
convergência regulatória e uma coordenação da Comissão com os Estados-Membros que nos
termos dos Tratados implementavam a regulamentação e fiscalizavam (supervisionavam)
a sua aplicação. A implementação de um processo comitológico legiferante decorreu do
denominado Relatório Lamfalussy de 2001, resultado do labor de um “Comité de Sábios”
mandatado para a criação de uma arquitetura institucional ambiciosa, multinível, que
reforçasse a cooperação entre Estados-membros e a harmonização da regulação financeira
na criação de um level playing field18.
Este mecanismo apostou (i) na harmonização regulatória das ordens jurídicas
nacionais, (ii) no funcionamento “em rede” dos reguladores financeiros nacionais
(networking), (iii) na criação de Comités compostos de representantes nacionais das ANC
que aconselhavam a Comissão Europeia na nova regulação financeira ou na sua revisão,
garantindo ao nível nacional uniformidade interpretativa e de aplicação19. Não existia
verdadeira autonomia da Comissão pois apesar de esta ter o poder de desenvolvimento
de atos provindos do processo legislativo ordirio e de criar a soft law, os Comités eram
integrados por peritos nacionais que propunham tais atos de implementação e de soft law
necessários à harmonização no espaço europeu. O centro de gravidade não se alteraria:
o âmbito técnico e político da implementação e execução ainda estavam nos Estados
(através das ANC), mas é a Comissão que implementa e avalia a interpretação e aplicação
uniforme do Direito da União20. É ainda uma refração de intergovernamentabilidade dada
17 A este propósito é sobejamente conhecida a teoria dos atos administrativos transnacionais que, na nossa opinião,
se reduzem a atos administrativos nacionais juridicamente reconhecidos por outros Estados-membros (sobre o
tema, i.a., Benedict Kingsbury & Nico Krisch, 2006, “Introduction: Global Governance and Global Administrative
Law in the International Legal Order”, European Journal of International Law, vol. 17, n.º 1.
18 Final Report on the Regulation of the European Securities Markets de 15 de fevereiro de 2001, de Alexandre Lamfalussy,
acessível in https://www.esma.europa.eu/document/lamfalussy-report
19 Acerca deste procedimento regulatório em quatro níveis, desde a formulação de um quadro legislativo geral,
à intervenção de comités de consulta com membros do Estado para criação de normas mais detalhadas. ao
exercício por uma rede transnacional de atores na implementação do direito traduzida na proliferação de soft
law de harmonização na aplicação nacional, e à avaliação do seu enforcement, Paulo Câmara,2018, Manual de
Direito dos Valores Mobiliários, Coimbra, Almedina.
20 Na realidade, a maioria das decisões sobre a governance da União ainda se mantém na Comissão, embora o
seu poder de fixar as agendas tenha sido alterado após as alterações decorrentes da crise. Para uma apreciação
do grau de intergovernamentalidade no domínio da governance, Michael Bauer & Stefan Becker, 2014, “The
Unexpected Winner of the Crisis: The European Commissions Strengthened Role in Economic Governance”,
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a participação no decison-making process de atores sociais estaduais menores (funcionários
ou agentes públicos e peritos nacionais, ou representantes de grupos de interesses), em
que o processo decisório ainda se mantém dentro de comunidades epistemológicas,
fortemente dependentes da socialização e da argumentação dos atores21.
O mecanismo produziria bons resultados embora criticado vg pela opacida-
de, corporativismo e falta de participação pública e política (o Parlamento Euro-
peu e os Estados-membros estiveram muitas vezes relutantes na aprovação de
legislação delegada ou na concessão de discricionariedade, face ao poder da Co-
missão e dos Comités). As críticas principais decorriam de a regulação assentar
em Diretivas fundadas em princípios (principle based regulation) que permitiam
às ANCs interpretações diversas e de acordo com agendas nacionais. A proposta
de Diretivas de harmonização máxima levava igualmente a queixas pelos regu-
lados de excesso de detalhe e de peso excessivo na regulamentação.
A crise de 2008 demonstrou que a arbitragem ou fórum shopping era perniciosa e
havia necessidade de um upgrade no sistema de governance institucional. A arquitetura
comitológica e o procedimento de interregulação estadual e de convergência regulatória
atingira os limites da uniformização interpretativa e era necessária concertação também
na supervisão. O fosso entre a contínua globalização dos mercados e as insuficiências da
sua regulação era real e permitira falhas de mercado decorrentes de lacunas de regulação
e de uma décalage entre esta e a supervisão – tal ficou visível face à dimensão dos grupos
financeiros transnacionais e de empresas com risco sistémico, e menor concertação no
objetivo da estabilidade financeira e da integridade dos mercados. O setor bancário seria
o mais rapidamente regulado e objeto de criação das estruturas de governance europeias
mais importantes desde a arquitetura saída de Maastricht em 199222.
Journal of European Integration, vol. 36, n.º 3, acessível in The Unexpected Winner of the Crisis: The European
Commissions Strengthened Role in Economic Governance-Web of Science Core Collection
21 Mark Thatcher, 2007, The Third Force? Independent Regulatory Agencies and Elected Politicians in Europe, 18 Governance,
pp. 347-366.
22 Assistiu-se à criação de novas estruturas de governance e centralização de competências para evitar lacunas
nacionais, supervisionar grupos financeiros e sobretudo as empresas com efeito sistémico – caso do Mecanismo
Único de Supervisão ou MUS –, suprir as falhas dos stress tests levados a cabo pela EBA, quebrar as relações
demasiado estreitas entre instituições de crédito e bancos centrais e Executivos nacionais que levaram a uma
relação perniciosa com a dívida soberana. Acerca desta matéria e da vasta regulação bancária que se seguiu à
crise de 2008, Manuela Peixe & Luís Catarino, 2014, “A nova regulamentação dos mercados financeiros – um
Tsunami regulatório?”, Partes I e II, AAVV, Direito dos Valores Mobiliários, vol. XIV, Lisboa, (disponível online no
website do Instituto dos Valores Mobiliários e também no ebook Direito dos Valores Mobiliários. Também, Karel
Lamoo & Jean-Pierre Casey, 2005, “EU Financial Regulation and Supervision beyond 2005”, CEPS Task Force
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A Comissão Europeia visou também um aprofundamento da eficncia dos mercados e o fim
do sistema multinível de decio tentando o seu predomínio sobre as demais instituições da União
e sobre os Estados-membros. Como? Através da concentração de poderes de regulamentação
e de supervisão em novos entes administrativos transnacionais dotados de poderes
reforçados de decision-making (na supervisão e enforcement), da criação de single rulebooks e
de uma cultura regulatória e de supervisão comuns.
Com base nas recomendações do Relatório de Larosière, de 25 de fevereiro de 200923
e num (difícil) equibrio entre a independência de novas Autoridades e as atribuições
constitucionais da Comissão e demais instituições da UE, foi reforçada a “rede” europeia
de supervisão e o seu funcionamento “em linha” com as Autoridades europeias dotadas
de fortes poderes de decision e rule-making, sobre ANCs, mercados e agentes nacionais24.
4. A governação pelo SESF num ambiente social poliárquico
O SESF entrou em vigor em 1 de janeiro de 201025, composto por um órgão com funções de
supervisão macro-prudencial sem personalidade jurídica, e supervisão micro-prudencial
cometida a uma rede de autoridades europeias de supervisão (ESAs) competentes em
razão de cada um dos setores do sistema financeiro, um Comité Conjunto de coordenação
e resolução de conflitos de competências (Joint Committee)26, e as autoridades nacionais
competentes (ANCs). Mitigando o anterior princípio de central regulation & local supervision
temos uma forte interação administrativa (não política) das ESAs com as ANCS e grupos
de stakeholders.
Cada uma das ESAs foi dotada de personalidade e capacidade jurídica, auto-
nomia administrativa e (crescente) autonomia financeira. Como principais ór-
Report 54, Centre for European Policy Studies, Bruxelas, janeiro, 51, acessível in EU Financial Regulation and
Supervision beyond 2005 – CEPS
23 Relatório do High Level Group on Financial Supervision in the EU presidido por Jacques de Larosière,
24 Federica Cacciatore, 2019, “Patterns of Networked Enforcement in the European System of Financial Supervi-
sion: What is the New Role for the National Competent Authorities”, European Journal of Risk Regulation, Vol.
10, n.º 3 ed. especial do Symposium on Institutional Innovations in the Enforcement of EU Law and Policies,
Cambridge University Press.
25 Foram publicados cinco Regulamentos de estrutura sistemática e normativa análoga (Regulamentos UE 1092 a
1096/2010, de 15 de dezembro de 2010, que constam do JOCE L331) que constituem o Estatuto ou “Regulamento
de base” de cada autoridade europeia de supervisão (AES ou ESA),
26 A par de um órgão com funções de supervisão macro-prudencial – o Comité Europeu do Risco Sistémico
(European Systemic Risk Board, ESRB ou CERS), e de uma rede de Autoridades de supervisão micro-prudencial
em matéria bancária, dos seguros, dos mercados de instrumentos financeiros – a EBA, a EIOPA e a ESMA–, o
Comité Conjunto (Joint Committee) visa a coordenação e cooperação intersectorial sendo dotado de poderes para
dirimir conflitos de competências entre as ANCs.
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O sistema europeu de supervisão financeira – algumas questões de governance numa “redepoliárquica” de decisão
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gãos decisórios temos i) o Presidente do Conselho de Reguladores (Chairperson),
nomeado por 5 anos num processo meritocrático e participado pela Comissão
e pelo Conselho, que decide após confirmação pelo Parlamento Europeu, in-
dependente de órgãos ou instituições da União ou dos Estados-Membros; ii) o
Conselho de Supervisores (Board of Supervisors ou BoS), órgão onde são toma-
das as principais deliberações e apenas têm direito de voto os presidentes das
ANC (ou seus alternates); iii) o Conselho de Administração, que é composto por
um Presidente e seis representantes dos Estados-membros (Management Board)
eleitos pelo BoS. Ambos os órgãos colegiais exercem a sua atividade de forma
independente e no interesse próprio da União, interesse que deve ser prosse-
guido também pelos representantes das ANCs que nelas têm assento – a génese
intergovernamental é mitigada27 e cumprem as melhores práticas de governance
dos reguladores públicos28.
O movimento de verticalização de competência da governação institucional europeia
do sistema financeiro não foi paralelo ao ocorrido ao nível da União Bancária. Neste
último existe fundamento constitucional para a criação de uma governance de supervisão
típica da integração regional da UEM – referimo-nos à matéria prudencial em que o MUS
assenta nos artigos 282.º , 127.º , n.º 6 e 132.º TFUE, porque o MUR tem apenas como base
o artigo 114.º TFUE. Lançaram-se também os alicerces para uma União do Mercado de
Capitais (UMC ou acrónimo inglês de CMU, de Capital Markets Union) e uma market based
finance paralela à bank based finance 29. Apesar dos fortes constrangimentos constitucionais,
legais e políticos (infra), e da inexistência de a vontade política de todos os 28 Estados-
27 Cada autoridade tem um órgão de consulta composto por stakeholders do respetivo sector supervisionado, a par
de um órgão misto independente e imparcial, denominado de Câmara de Recurso (Board of Appeal) que decide de
forma vinculativa os recursos de decisões das Autoridades.
28 Para uma visão das denominadas boas práticas de corporate governance dos reguladores públicos, vd orientações
OCDE acessíveis in The Governance of Regulators | en | OECD. Relativas a matérias de independência e
imparcialidade, princípio da competência e da legalidade, transparência e accountability, conflitos de interesses,
impedimentos a priori e a posteriori (cooling o periods), existência de órgãos de aconselhamento e de fiscalização.
Também o estudo da OCDE Institutions Supérieurs de Contôle des Finances Publiques et Bonnes Guvernance Supervision.
Analyse et Perspective, Institutions-superieures-controle-finances-publiques-bonne-gouvernance.pdf (oecd.org).
No que respeita especificamente aos reguladores dos mercados de capitais, também a International Organization
of Securities Commissions (IOSCO), criou a “Methodology for assessing implementation of the IOSO objectives
and principles of securities regulation” acessível in Methodology for Assessing Implementation of the IOSCO
Objectives and Principles of Securities Regulation
29 Cfr. o Five Presidents’ Completing Europe’s Economic and Monetary Union, de junho de 2015, https://ec.europa.eu/
commission/sites/beta-political/files/5-presidents-report_en.pdf
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membros na criação de um regulador único, o lançamento do projeto de uma UMC teria
necessárias implicações na estrutura institucional de supervisão30.
Em 2015 foi elaborado um Relatório sobre o funcionamento das ESAs e do
SESF e a Comissão foi exortada a uma análise, até 2018, dos mercados de capitais
e seus obstáculos e a formular propostas legislativas31. Este movimento decor-
reu apesar das resistências das instituições da União e dos Estados-membros
face à governance do SESF e ao reforço dos seus poderes de decision e rule-making,
onde se salientou: i) o alegado excesso de propostas de atos delegados de execu-
ção e de implementação dos Regulamentos UE de nível 132; ii) a necessidade de
aqueles se conterem nos limites destes último; iii) o excesso de ativismo regula-
tório vg da profusão de Orientações e Recomendações33, iv) a necessidade de a
adoção de instrumentos de soft law resultar, de forma clara, dos atos legislativos
de Nível 134.
Este terceiro estádio de governance institucional não se traduziu numa verdadeira
centralização e hierarquia supranacional, mas numa paulatina concentração de poderes,
de forma empírica e interativa, com uma natureza funcional, multinível e poliárquica
(todos participam no processo decisório sem que uma instituição ou um órgão possa ser
dominante). No órgão principal das ESAs (BoS) não existe parcialidade de decisão (embora
30 Em 8 de Agosto 2014 a Comissão Europeia apresenta um Relatório sobre a avaliação do funcionamento das ESAs
e do SESF, COM (2014) 509 final http://ec.europa.eu/transparency/regdoc/rep/1/2014/PT/1-2014-509-PT-F1-1.Pdf
(consultado em 18 de novembro 2018.
31 No procedimento legiferante, sem prejuízo dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, foi
salientada a necessidade de “qualquer legislação adicional, incluindo os atos delegados e de execução, seja objeto
de uma avaliação de impacto e uma análise de custo benefício” (ponto 69. da Resolução do Parlamento Europeu
de 9 de Julho de 2015, sobre a construção de uma União dos Mercados de Capitais (2015/2634(RSP)) http://www.
europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//NONSGML+TA+P8-TA-2015-0268+0+DOC+PDF+V0//PT).
32 O Relatório com orientações do Parlamento Europeu sobre balanço e desafios da regulamentação da UE em
matéria de serviços financeiros: impacto e a via a seguir rumo a um quadro mais eficiente e eficaz da UE para
a regulamentação financeira e uma União dos Mercados de Capitais (2015/2106(INI) de 9 de Dezembro de 2015
seria aprovado por Resolução do Parlamento Europeu de Janeiro de 2016 http://www.europarl.europa.eu/sides/
getDoc.do?pubRef=-//EP//NONSGML+REPORT+A8-2015-0360+0+DOC+PDF+V0//PT
33 Como veremos, a profícua criação de medidas de soft law transforma-se numa forma de legiferação de segundo
grau tendo a reforma da governance em 2019 o especial cuidado de garantir um procedimento colaborativo e
transparente em que, para além do relacionamento com as ANCs e os intervenientes nos mercados, é garantido
que o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão não ficam à margem da sua criação (as instituições da
União são informadas no Relatório anual da ESA de atividades dos instrumentos quase-normativos formulados
com especificação das ANC que lhes não deram cumprimento ou sequência.
34 Cfr a Resolução do Parlamento Europeu de 19 de Janeiro de 2016, Stocktaking and challenges of the EU Financial
Services Regulation: impact and the way forward towards a more ecient and eective EU framework for Financial
Regulation and a Capital Markets Union (2015/2016(INI) http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?type=TA
&language=EN&reference=P8-TA-2016-0006
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nenhum presidente de uma ANC deixe de pesar o interesse nacional na hora de deliberar).
As ESAs estão “condenadas a cooperar” com as ANC: nas metodologias de trabalho, na
redação de propostas normativas, nas ações de supervisão on site – mesmo a definição da
policies pelas ESAs repousa no trabalho de Standing Committees, Task Forces, Working Groups,
Joint Teams compostos também por colaboradores das ANCs.
Mantêm-se as caraterísticas da governance experimental pois as ESAs assumem no
processo decisório a necessidade funcional de, passo a passo, considerar a diversidade
e idiossincrasias dos mercados nacionais, o que dá origem a um processo deliberativo
de aprendizagem mútua. Zeitlin e Sabel designam-no expressivamente por directly-
deliberative polyarchy (DDP): “It is deliberative because it uses argument to disentrench
settled practices and open for reconsideration the definitions of group, institutional, and
even national interest associated with them. It is directly deliberative because it uses the
concrete experience of actors’ differing reactions to current problems to generate novel
possibilities for consideration rather than buffering decision-makers in Madisonian
fashion from experience of the world the better to elicit their principled, disinterested
response to abstractly posed problems. It is polyarchic because it is a system in which the
local units learn from, discipline, and set goals for each other”35.
5. Um sistema deliberativo poliárquico e “responsivo”
Armámos que no domínio da regulação e da supervisão se assistiu no atual e terceiro
estádio de cooperação a um reforço dos poderes de rule-making nas ESAs e ao acrescento de
poderes de decision-making ainda baseados na concertação e aprendizagem na diversidade.
Em áreas concretas a União subiria o grau da centralização tecnocrática num movimento
de devolução às ESAs de competências que se encontravam a nível local (a denominada
“verticalização” de competências). Nestes casos altera-se o centro de gravidade a favor
da União, sendo exemplo típico a regulação das sociedades de notação de risco e dos
repositórios de informação de transações de derivados36.
35 Assim, Charles Sabel & Jonathan Zeitlin, 2007, “Learning from Difference: The New Architecture of
Experimentalist Governance in the European Union, La Follette School of Public Aairs, Wisconsin-Madison,
Working Paper 2007-020, acessível in Microsoft Word – EU governance paper revised 050707.doc (wisconsin.
edu), p.8.
36 Após a atribuição da supervisão direta de agências de rating, seguiram-se os Trade Repositories, Securitisation
Repositories, Contrapartes Centrais (CCPs terceiras à União Europeia), administradores de índices de referência
(benchmarks) utilizados na União em contratos financeiros e bancários, críticos (p.e. EURIBOR, EONIA, STIBOR),
e extra-União quando reconhecidos pela ESMA (Regulamento UE 2016/1011, do PE e do Conselho, de 8 de junho
de 2016 (BMR). No domínio das finanças sustentáveis também na emissão de obrigações verdes europeias
(EuGB ou Euro Green Bonds) se verificará esta centralização sobre os “verificadores externos” das emissões e
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Ao nível político-legislativo, assistiu-se ao afastamento das Diretivas em favor dos
Regulamentos e dos atos delegados vinculativos, o que se traduziu no empowerment
das ESAs na atribuição de assegurar uma aplicação coerente, eficiente e eficaz dos atos
normativos na União conforme ao artigo 2.º dos respetivos estatutos (a citação de artigos
sem fonte respeita aos estatutos, todos alogos, das ESAS)37. Compete-lhes, inter alia,
propor projetos de normas técnicas de regulamentação e de execução com base nos atos da
União previstos no referido artigo 1.º , n.º 2, elaborar orientações, recomendações, evitando
atos de arbitragem que as ESAs podem submeter a uma avaliação entre pares (peer reviews),
mediando e resolvendo os diferendos entre ANCs e adotando medidas concretas vg em
casos de emergência (infra).
Ao nível político-legislativo, releva o afastamento das Diretivas enquanto
fonte de direito, em favor do Regulamento, e o poder-dever nas ESAs da iniciativa
e responsabilidade de criar e propor projetos de “normas técnicas de regulamenta-
ção” (regulatory technical standards, artigos 10.º -14.º e 34.º dos estatutos, e artigo
290.º TFUE) e de “normas técnicas de execução” (Implementing technical standards,
artigo. 15.º dos estatutos e artigo 291.º TFUE). Os futuros atos delegados dos atos
normativos de Nível 1.
Num quadro regulatório materialmente aberto (artigo 1.º estatutos), as carate-
rísticas de interatividade permitem adaptar o processo de iniciativa aos objetivos
e problemas a enfrentar, sendo que o sistema multinível não esquece os interes-
ses nacionais – embora as ANCs devam responder ao SESF pela sua “conforma-
ção à norma.
O due process legiferante é transparente, público e participado (impõe audição do
SMSG e stakeholders, a apresentação à Comissão Europeia dos projetos, conhecimento ao
Parlamento Europeu e ao Conselho, artigos 1.º , 8.º , 10.º , 15.º , 16.º ). Como contrapartida
desta autonomia é esperado que sejam tomados em conta os resultados da participação e
monitorizadas periodicamente as medidas tomadas, para eventual correção38.
da sua finalidade – cfr a Proposta de Regulamento em European green bond standard (europa.eu), sobre os
prestadores de serviços de financiamento colaborativo no domínio financeiro (por empréstimo e de capital),
Regulamento EU 2020/1503, do Parlamento Europeu e da Comissão, de 7 de outubro de 2020, https://www.esma.
europa.eu/esmas-activities/investors-and-issuers/benchmark-administrators
37 Niamh Moloney, 2016, Institutional governance and Capital Markets Union: Incrementalism or a “big bang?, acessível in
SSRN: http://eprints.lse.ac.uk/65178/7/Moloney_Institutional%20governance.pdf, 378-421
38 A reforma do SESF de 2019 estatuiu normas de transparência e de cooperação interinstitucional como o envio
simultâneo dos projetos de atos delegados à Comissão e ao Conselho e ao Parlamento Europeu (na versão
original o conhecimento apenas decorria dos casos em que a Comissão não aceitasse os drafts que lhe eram
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Também aqui se pretende uma possibilidade de adaptação constante, uma atuação
proporcional e “responsiva” (responsiveness que tende a afastar a aplicação rígida de regras
jurídicas subordinadas a princípios como de one size fits all), uma aproximação tentativa e
erro (erro que pode ser resolúvel nas interações e ainda no procedimento), ou ação-revisão
vg através de posteriores instrumento de quase-direito (soft law).
Os atos legislativos aprovados conforme os artigos 289.º ou 290.º do TFUE têm
conferido às ESAs vastos poderes de iniciativa para a sua execução e implementação, mas
têm resultando em tensões relativas ao equibrio institucional de poderes acrescidos pela
proliferação de soft law (infra). Sendo mecanismos de adaptação a fenómenos de incerteza e
risco regional (local) e mundial (global), em ambientes de mutação constante, a autonomia
e independência das ESAs resultam em accountability acrescida. O equibrio é difícil39:
assegurar um tratamento proporcional e equitativo de instituições e investidores dos
diferentes espaços da União impõe a remoção de barreiras e uma atuação interativa e
insensitive (responsive regulation40), mas tal não pode prejudicar a implementação de um level
playing field.
6. A fuga do direito para a soft law da União
As ESAs têm o poder de tomar medidas informais ou de emitir instrumentos de
“quase-direito” (soft law), quer em momentos preparatórios de decisões, quer a posteriori
na execução de atos legislativos. Os respetivos estatutos referem as orientações e as
recomendações, mas existem imensos atos atípicos como comunicações, códigos de
conduta, alertas, pareceres, declarações, resoluções, livros verdes, opiniões, Q&A. Têm
como objetivo definir práticas coerentes, eficientes e eficazes quer para as ANCs quer
para os seus stakeholders, tidas como necessárias à prossecução das suas atribuições de
propostos, ou, no caso de “homologação” pela Comissão, na fase seguinte), e o mesmo sucede no domínio da
criação de Orientações e de Recomendações. As normas “técnicas” contidas em atos normativos decorrentes da
iniciativa das ESAs são aprovadas segundo os artigos 290.º e 291.º TFUE, e não são formalmente atos legislativos
sendo qualificados de “atos delegados”.
39 A accountability vai além da mera responsabilidade civil, atuando ex ante (na criação das entidade) e ex posto
(perante a sua atividade) – sobre os diversos instrumentos típicos de acountability, o nosso trabalho, “Governar
com a Administração Independente: Quis custodiet ipsos custodes?, in Revista da Concorrência e da Regulação,
Ano V, n.º 17, Jan/Mar, 2014, disponível online in Revista da Concorrência e Regulação — 17 | Autoridade da
Concorrência (concorrencia.pt). Também, Carmine Di Noia& Matteo Gargantini, 2017, “The European Securities
and Markets Authority: accountability towards EU institutions and stakeholders”, Building Responsive and
Responsible Regulation in the Aftermath of the Global Financial Crisis, Cambridge University Press.
40 Vide as inúmeras obras e aplicações da responsive regulation a diversos setores regulados da vida social por Ian
Ayres & John Braithwaite (i.a. a sua obra de 1992, Responsive Regulation,- Transcending the Deregulation Debate,
Oxford University Press, NY).
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convergência e de harmonização. Também visam interpretar legislação priria de molde
a proteger o consumidor de serviços e produtos financeiros e o mercado (artigos 8.º e 16.º ).
As caraterísticas da crescente “cripto-legislação” da União Europeia tem particular
destaque na institucionalização da soft law, que se coaduna perfeitamente com uma
governance experimental visando estatuir as “melhores práticas”, que a mais das vezes
contêm normas de conduta que visam conformar o comportamento das instituições
financeiras nacionais – as suas verdadeiras destinatárias. Quando estas, enquanto
destinatário médio e razoável, consideram que as obrigações nelas contidas são
vinculativas e não podem ser para ignorar vg face ao seu enforcement, estamos ante a
produção de efeitos jurídicos – e mesmo que a ANC não se pronuncie sobre as mesmas41.
Quando a ANC se pronuncia comunicando à ESA aceitar e fazer cumprir a soft law, aquela
passa a ser o seu executor nacional e os (verdadeiros) destinatários estão vinculados ao
cumprimento, adequando a sua conduta à norma. Nestes casos, mesmo que, de jure, não
haja ato normativo de transposição para o ordenamento nacional, o efeito é jurídico e
vinculativo.
As ESAs defendem que na sua génese as orientações e as recomendações são
verdadeiros instrumentos de soft law, mas perante as ANCs o procedimento legal confere-
lhe alguns efeitos “duros” (o que designámos por hoft law42), pois: i) as ANC (e os agentes
de mercado) têm o dever de desenvolver “todos os esforços para dar cumprimento a
orientações e recomendações” (artigo 16.º , n.º 3); ii) o Tratado da União Europeia (TUE)
obriga os Estados-membros a um dever de leal cooperação devendo tomar todas as medidas
necessárias à execução do direito da União Europeia (artigo 4.º , n.º 3 TUE); iii) as ANCs
comunicam à Autoridade se tencionam (ou não) cumprir; iv) o não cumprimento deve ser
objeto de comunicação fundamentada (comply or explain43); v) o não cumprimento destes
deveres jurídicos – e a falta de resposta parece valer como aquiescência (artigo 16.º , n.º 1,
41 No entanto, no Acórdão de 15 de julho de 2021, Féderation Bancaire Française vs Autorité de Contrôle Prudentiel et de
Résolution, Proc. C-911/19 ECLI:EU:C:2021:599, o TJUE considera que “não se pode considerar que as orientações
emitidas pela EBA produzam, enquanto tais, efeitos vinculativos para as instituições europeias, nas medidas em
que o artigo 16.º n.º 3 (…) dispõe que estas apenas devem apresentar relatórios claros e detalhados indicando se
cumprem ou não estas orientações”.
42 Soft law com efeitos hard, Thomas MÖllers, 2010, “Sources of Law in European Securities Regulation – Eective
Regulation, Soft Law and Legal Taxonomy from Lamfalussy to de Larosière”, European Business Organization Law Review,
vol 11, pp. 379-407; Luís Guilherme Catarino, 2012, “A Nova Regulação Europeia dos Mercados: a Hoft Law no
Balancing Powers da União., in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor J.J. Gomes Canotilho, vol. IV, SJ, Coimbra
Ed., 145-177.
43 O artigo 288.º , n.º 5 do TFUE estatui a não vinculatividade das recomendações, mas a necessidade de justificação
do seu não acatamento fora afirmada pelo Tribunal no acórdão Salvatore Grimaldi vs Fonds des Maladies
Professionnelles (proc. C-322/88), sem que daí resultem direitos para os particulares (proc. C-188/91, Deutsche Shell
AG vs Hauptzollamt Hamburg-Hargurg).
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a contrario) –, é divulgado publicamente colocando os não cumpridores “no fundo da Liga”
(sanção soft de naming and shaming que traduz uma coercibilidade indireta)44.
A profusão de instrumentos de soft law típica de um sistema “responsivo”, e a natureza
e efeitos jurídicos de algumas das normas neles contidas têm um profundo impacto
normativo e jurisdicional na União e nos Estados-membros45. Na realidade, para além de
terem impacto na lei (que por vezes antecedem) e na interpretação da lei (que aplicam), com
eventuais efeitos jurídicos vinculativos (i.e., como second best ao direito), o TJUE aceitou a
necessidade de verificar em concreto se uma medida de soft law é “genuína”46.
Mantêm-se assim atuais as n/considerações ex professo sobre o tema da informal law e
da transferência do seu papel de “assistência qualificada” e de “modelação” de condutas
dos supervisionados para a criação de um verdadeiro “direito programador” setorial,
não esquecendo que a sua qualificação como informal law nunca é neutra para o direito.
Salientamos alguns aspetos mais em que a “diferença de qualificação não é despicienda:
i) só às normas jurídicas se aplica o princípio iura novit Curia; ii) só estas têm um período
de vacatio legis; iii) só aos actos normativos se aplica o princípio ignorantia legis non excusat;
44 Aos atos que se verifique conterem decisões ou normas conformadoras de condutas, quer das ANCs quer dos
destinatários, a par da produção de efeitos jurídicos poderemos acrescentar a sanção/coercibilidade indireta,
o que lhes confere vinculatividade podendo requerer-se a sua anulabilidade (artigo 263.º do TFUE). Acerca
deste mecanismo e seus efeitos de forma mais desenvolvida, Luís Guilherme Catarino, 2012, “A “agencificação”
administrativa na regulação financeira da UE: Novo meio de regulação?”, Revista de Concorrência e Regulação,
Ano III, n.º 9, Jan/Mar, pp. 147-203, e AA citados. Sobre o movimento europeu e a administrativização no
amplo movimento de governo da União, Hussein. Kassim, 2003, “The European Administration: Between
Europeanization and Domestication, AAVV, Jack Hayward & Anand Menon (eds), Governing Europe,
Oxford,Oxford University Press, p,139. Sobre o movimento de networking de 1990 à atual agencificação, i.a.
David Levi-Faur, 2011, “Regulatory networks and regulatory agencification: towards a Single European
Regulatory Space”, Journal of European Public Policy, vol. 18, n.º 6,p. 810acessível in Regulatory networks and
regulatory agencification: towards a Single European Regulatory Space: Journal of European Public Policy: Vol
18, No 6 (tandfonline.com)
45 O Advogado-Geral Michael Bobek destaca nas suas Conclusões de 12 de novembro de 2017 ao Proc. 16/16P,
Reino da Bélgica contra a Comissão, a par da pretensão de conformação de condutas pela soft law, três tipos de
efeitos jurídicos: “i) confiança e expetativas legítimas; ii) o seu papel interpretativo; e iii) a possibilidade de as
recomendações gerarem conjuntos paralelos de regras que se substituem ao processo legislativo e, como tal,
afetam o equilíbrio institucional” (ECLI:EU:C:2017:959, a p.17). Na realidade, para além de, com a interpretação
a soft law preencher conceitos legais que também as autoridades administrativas e os tribunais seguirão (sob
pena de terem de fundamentar interpretação contrária), também no plano legislativo a falta de competência ou
de norma de habilitação com a soft law ultrapassa-se o procedimento legislativo e a competência dos respetivos
órgãos, funcionando como “second best”.
46 O próprio TJUE tem afirmado que deve ser aferido perante cada caso concreto e independentemente do nomem
juris quando estamos perante uma medida genuína de soft law ou perante uma “falsa” medida para efeitos de
sindicabilidade judicial … exceto no caso das Recomendações, onde existe uma prevalência da forma sobre
a substância expressa no artigo 263.º TFUE, Acórdão Bélgica vs Comissão cit, n.º s 29-32), como é o caso das
medidas de que resultam deveres jurídico obrigatórios (acerca da aplicação do “critério AETR” de aferição da
sindicabilidade dos atos atípicos, o Acórdão de 31 de março de 1972, Proc. 22/70, EU:C:1972:32).
226
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The European system of financial supervision – some governance issues in a “polyarchical network” of decision‑making
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iv) as normas civis de interpretação não se aplicam a estes actos administrativos; v) só os
actos normativos podem determinar a ilegalidade de actos que o contrariem”47.
Sendo colocada a necessidade de aferir da sua sindicabilidade judicial, o TJUE declarou
i) a sua competência para a apreciação a título prejudicial das questões de validade ou
interpretação de todas os atos jurídicos da União (artigo 267.º TFUE), mesmo que não
vinculativos – Acórdão Grimaldi48, e que ii) os Estados-membros estão obrigados a
submeter-lhe questões de interpretação de tais atos, vinculativos ou não49. Já quanto
à sua anulão o artigo 263.º TFUE afasta expressamente do recurso de anulação as
Recomendações cuja substância corresponda à forma, sendo que nos demais atos de
soft law a orientação do TJUE é mais difusa, não sendo possível armar que existe um
princípio de interpretação judicial de prevalência da substância sobre a forma50).
Temos assim uma aporia pois o TJUE declara-se competente para interpretar e
apreciar a validade de um ato jurídico, mas não para declarar a sua invalidade, o que
também contraria a sua pretensão de um sistema de controlo da legalidade sem lacunas
do ordenamento jurídico da União51.
O Parlamento Europeu e a Comissão Europeia armaram a sua preocupação com a
“sobrelotação de soft law” (vd a profusão de Recomendações, Orientações, Relatórios,
Q&A, em matéria de Green Finance), com as áreas da sua prolação (vg no domínio de
direitos fundamentais como da aferição da idoneidade de agentes que pretendem entrar
em mercados financeiros52), e com a legitimidade da sua criação em áreas onde os atos
47 Catarino, 2009, Regulação e Supervisão dos Mercados de Instrumentos Financeiros – Fundamento e Limites do Governo e
Jurisdição das Autoridades Independentes, Coimbra, Almedina, pp. 360 ss e 420 ss.
48 Cfr o Acórdão de 20 de fevereiro de 2018, Reino da Bélgica vs Comissão, C-16/16P, EU:C:2018:79.
49 Acórdão de 22 de outubro de 1987, Foto Frost Ammersbeck e outro, 314/85, EU:C:1987:452, e como sequela desta
exigência o Acórdão de 22 de junho de 2010, Melki e Abdeli C-188/10 e C-189/10 EU:C:2010:363 relativamente aa
necessidade de um órgão jurisdicional nacional dever dar ao TJUE a oportunidade de se pronunciar quando é
submetida à apreciação do órgão nacional a validade de uma medida nacional de execução de atos da União
sempre que os elementos subjudice corresponderem aos elementos da medida original do direito da União
– o que parece contrário à orientação de que os órgãos nacionais devem ser considerados parte da própria
organização judiciária da União.
50 Acerca das posições tomadas, não uniformes ainda, relativamente à matéria de prevalência da substância sobre
a forma e da pretensão de um controlo de legalidade sem lacunas, vd Acórdão de 8 de abril de 1992, Wagner, Proc
C.94791, EU:C:1992:181; Acórdão de 11 de maio de 2006, Friesland Coberco Dairy Foods C-11/05 EU:C:2006:312; o
Acórdão de 25 de março de 2021, Balgarska Narodna Banka, C-501/18. EU:C:2021:249, em que o TJUE declarou a
invalidade de uma recomendação, não vinculativa, da EBA no âmbito do artigo do 267.º TFUE (interpretação) e
não do artigo 263.º (anulação).
51 Ao declarar que a apreciação judicial de todos os atos, sem exceção, para efeitos de validade e de interpretação,
é da competência do TJUE nos termos do reenvio prejudicial, parece que a sua apreciação para efeitos de
anulação está vedada aos Tribunais dos Estados-membros, o que coloca a questão de saber a quem é conferida a
competência de anulação de atos jurídicos formalmente não vinculativos, mas com efeitos jurídicos vinculantes
“de facto”.
52 Acerca da necessidade da concordância prática entre o dever de defesa do mercado face a direitos e garantias
fundamentais, o nosso artigo “Fit and proper: o controlo administrativo da idoneidade no sector financeiros”, in
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legislativos de nível 1 não preveem norma habilitante (i.e., as ESAs bastam-se com a norma
genérica de atribuição de competência para qualquer matéria). Perante as alegações de
que assim se pode criar um circuito legislativo paralelo (inominado) que atenta contra o
equilíbrio de poderes institucionais definido pelos tratados (infra), o TJUE aceitou na sua
decisão sobre o cit caso “Féderation Bancaire Française vs Autorité de Contrôle Prudentiel
et de Résolution”, a criação de soft law – mesmo que com efeitos vinculativos – em domínios
regulados por ato legislativo que não confere especificamente tais poderes53. O TFUE
estatui no artigo 296.º que os atos jurídicos da União são necessariamente fundamentados
e fazem referência às propostas, iniciativas, recomendações, pedidos ou pareceres
previstos nos Tratados, estabelecendo deveres de fundamentação, de proporcionalidade
e de obediência ao procedural due process que pode convocar questões constitucionais de
habilitão legal (infra).
Apesar dos poderes de controlo da Comissão e do TJUE sobre a sua legitimidade, a
natureza jurídica e os seus efeitos jurídicos54 (artigos 17.º TUE), mantêm-se algumas
questões no que respeita ao direito à tutela judicial efetiva dos destinatários de soft law55.
7. Um sistema na “penumbra da quase-hierarquia” transnacional.
A “boa governação” e a “boa administração” transnacional pressupõem uma ferramenta
essencial: a existência de mecanismos de revisão das decisões ou a possibilidade do seu
controlo judicial. Sabendo da dificuldade da questão num sistema internacional, onde
proliferam corpos e de normas de natureza híbrida e estruturas de comunicação informais
Revista da Concorrência e Regulação, 23-24, Jul/Dez 2015, acessível online CR23-24_-_Luis_Guilherme_Catarino.pdf
(concorrencia.pt) pp. 29-101.
53 No Acórdão de 15 de julho de 2021, Féderation Bancaire Française vs Autorité de Contrôle Prudentiel et
de Résolution, Proc. C-911/19, o TJUE reafirma que as orientações e recomendações estão subordinadas “à
condição de as mesmas se inscreverem no âmbito de aplicação de pelo menos um dos atos referidos no
artigo 1.º , n.º 2 do Regulamento EU 1093/2010” (94.) No entanto, também refere que o exercício deste poder
no caso concreto é abrangido pelas competências da EBA previstas nos artigos 8.º , n.os 1 e 2 e artigo 16.º do
seu estatuto, de implementação “de práticas de supervisão coerentes, eficientes e eficazes”, de “reforçar a
proteção dos consumidores e assegurar a estabilidade, a eficácia e a integridade dos mercados financeiros, e
“executam diretamente os princípios definidos na posição Comum das Autoridades Europeias de Supervisão
sobre a governação e monitorização de produtos pelos criadores (JC-2013-77)” adotada pelas ESAs (126. A 130.),
ECLI:EU:C:2021:599
54 Linda Senden, 2004, Soft Law in European Community Law, Hart P. Oxford.
55 Para além das questões de completude sistémica ante a interpretação judicial da apreciação da validade e
da declaração e invalidade pelo TJUE, a declaração de invalidade pode ser solicitada no âmbito dos tribunais
judiciais? E quando são objeto de transposição, como as Diretivas, para fonte nacional, os tribunais judicial
podem ou devem remeter para o TJUE, ou decidir ao nível nacional? Em caso afirmativo, como compatibilizar
com o objetivo de uniformidade e completude do ordenamento jurídico da União?
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e não hierarquizadas, criaram-se de estruturas de controlo de resolução extra-judiciais de
diferendos que “dizem” o direito da União (vd artigos 17.º -20.º , 58.º , 60.º -61.º ).
A possibilidade de avaliação da conduta de uma ou mais ANCs “entre pares” (peer
reviews, artigo 21.º ) é um meio de governação por experimentação com convergência na
supervisão, nas interpretação e também na criação de normas. Com procedimentos de
cooperação, aprendizagem e adaptação, os peer reviews tanto pretendem controlar e avaliar
a atividade das ANCs pelos seus “pares” quanto estimular à adoção das “melhores práticas”
através da formulação de recomendações: uma fonte de quase-direito da União.
Desempenhando um papel fundamental nas caraterísticas atuais da governance, não é
claro se, no futuro, o instrumento tenderá à imposição de uma policy de ‘one-size-fits-all’.
Por ora, permite um fine-tune dos procedimentos de supervisão ao nível supranacional,
devendo ter em atenção os diferentes modelos de risco e de negócio e tratar igual as
instituições similares e diversamente as instituições diferentes. Os peer reviews são um
importante instrumento da governação por experimentação porque permite i) uma cross
fertilization entre diferentes ANCS (vg através da contínua e intensa comparação), e ii) as
ESAs aprendizagem através de métodos de “learning from differences” e de “learning by
doing” (mesmo as joint teams juntam colaboradores das ESAs e colaboradores das ANCs).
Os peer reviews não se focam apenas nas práticas de supervisão, mas também em
temas estruturais como dos recursos das ANCs, seus mecanismos de governação, a sua
independência face a instituições nacionais ou da União, à política e aos partidos políticos
e regulados. A sensibilidade destes temas e o facto de a orgânica interna das ESAs ainda
ter na génese a intergovernamentalidade não têm tornado este tema um driver das
avaliações (cfr. art. 30.º , n.º 3, anea a). Os peer reviews são excelente meio de controlo
do funcionamento do sistema multinível e de aferição do cumprimento pelas ANCs do
direito da União, podendo resultar em decisões e/ou recomendações às ANCs.
Conforme referimos, estamos ainda aqui no vasto movimento de criação de “quase-
direito” através da interpretação jurídica e aplicação através do controlo. Desde 2019
existe um acesso direto de pessoas singulares e coletivas às ESAS para apresentação de
queixas e de denúncias (artigo 17.º -a) consagrando-se um regime similar ao regime geral
de whistleblower por violação do direito da União56. As ESAs podem decidir, de forma
vinculativa, da violação ou não aplicação pelos Estados das normas da União, a par de outros
mecanismos de resolução alternativa de litígios típicos da responsive regulation. O TJUE
aceitou os meios alternativos de resolução de conflitos dentro do sistema de governação
56 Diretiva2019/1937 UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019, relativa à proteção das
pessoas que denunciam violações do direito da União, relativa ao acesso à atividade das instituições.
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institucional de um setor, quando não prejudiciais do direito à tutela judicial efetiva, ou à
competência da Comissão Europeia57 de iniciar procedimento contra os Estados-membros
por incumprimento do direito da União (art. 258.º TFUE). Face a estes novos meios o
exercício deste poder pela Comissão, atualmente mais limitado e seletivo pela falta de
recursos próprios, deverá ser utilizado nos casos mais graves ou em que o incumprimento
ou violação sejam reiterados (artigo 17.º TUE)58.
Na resolução de diferendos e ante o fracasso da negociação ou da conciliação entre
as partes promovida pelas ESAs, estas dirigem-se às ANCs para que adotem as medidas
que considera necessárias para cumprir o direito ou uma decisão arbitral e em caso de
inação ou recusa de acatamento podem dirigir-se diretamente aos intervenientes nos
mercados financeiros com medidas concretas a adotar (art. 17.º e 19.º ). As ESAs têm
também poderes extraordinários de intervenção unilateral que embora utilizados de
forma muito parcimoniosa devido aos riscos políticos e jurídicos que comporta, proíbe ou
restringe temporariamente uma atividade financeira ou comercialização de um produto,
prevenindo uma ameaça ao funcionamento ordenado, à integridade dos mercados ou à
estabilidade de parte ou da totalidade do sistema financeiro, ou proteção de investidores
(artigos 9.º , n.º 5, 17.º -18.º 59).
No caso de omissão ou de errada ou incompleta decisão ou implementação pelas ANCs,
as ESAs substituem-se na “rede” à entidade que no sistema multinível é originariamente
competente, assumindo uma decisão própria60 em substituição administrativa perante
os agentes de um mercado nacional. Estes ficam diretamente sujeitos à sua potestas e ao
controlo do seu cumprimento (em última insncia o cumprimento poderá ser avaliado e
decidido pela Comissão e/ou pelo Tribunal).
57 Cfr. caso Sogelma vs EAR, Società generale lavori manutenzioni appalti Srl vs European Agency for Reconstruction, Ac.
de 8 de Outubro de 2008) onde o TJUE entendeu conforme com os Tratados a estatuição de procedimentos
alternativos ao processo judicial (pensamos na Câmara de Recurso) desde que sejam expressos e quando
obrigatórios não impeçam o direito à tutela judicial efetiva.
58 Acerca deste self-restraint da Comissão na última década, Daniel Kelemen &TommasoPavone, 2021,Where Have
the Guardians Gone? Law Enforcement and the Politics of Supranational Forbearance in the European Union, acessível in
SSRN:https://ssrn.com/abstract=3994918.
59 Numa “situação de emergência”, as medidas podem ser suscitadas junto do Conselho que, em consulta com a
Comissão e o ESRB, determina se a ESMA dirige a injunção a uma ou mais entidades nacionais (art. 18.º ). Se os
reguladores a não cumprirem, e dentro das Framework directives que regem os reguladores nacionais (art. 1.º , n.º
2), dirige aos intervenientes no mercado uma decisão individual para tomar as medidas necessárias.
60 Cfr. Regulamento UE 263/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de março de 2012, relativo às vendas
a descoberto e a certos aspetos dos swaps de risco de incumprimento, e o Regulamento 600/2014 do Parlamento
Europeu e do Conselho, de 15Mai2014, relativo ao mercado de instrumentos financeiros.
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Alguns Autores denominam estes mecanismos de intervenção última como uma
“shadow of hierarchy61 (intervenção na “penumbra de uma relação de hierarquia”), i.e., uma
“quase-hierarquia” criada para que os sistemas caraterizados por “redes” de interessados
e de entidades que decidem de forma poliárquica não sejam paralisados na sua ação. De
forma similar ao sistema centralizado e hierarquizado, nos casos em que a government
democrática (assente no Poder Legislativo e no Poder Executivo) foi dispersa pela governance
setorial (territorial ou supranacional) e em que intervêm múltiplos agentes, pretende-se
evitar bloqueios e obter de forma tempestiva e eficaz as decisões necessárias e/ou urgentes
para uma efetiva supervisão dos mercados financeiros e o necessário enforcement.
8. Tensões políticas e constitucionais dos procedimentos
einstrumentoshíbridos
Desde 2011 que as ESAs têm utilizado os seus poderes com cada vez menos parcimónia
firmando uma governance institucional internacional que tende a sobrepor-se à nacional.
Esta tendência crescente de transferência vertical de poderes das ANCs independentemente
de opções políticas suportadas pelo Tratado de Lisboa, suporta a teoria da experimental
governance. Em escrito anterior abordámos alguns dos limites colocados a este movimento
que tem gerado acrimónia política e tensões de equilíbrio institucional com os Estados-
membros, mas também com as instituições da União, tanto mais que persistem dúvidas
legais e constitucionais sobre a sua existência62.
Vimos como ao nível de rule-making foram concedidos poderes de iniciativa no
procedimento de adoção de Regulamentos delegados, e num momento em que os
Regulamentos têm sido o instrumento jurídico mais utilizado no campo financeiro, eles
carecem de “implementação” ao nível nacional. Sendo a implementação ou execução
da legislação da União uma tarefa originariamente cominada aos Estados-membros a
61 Adrienne Héritier, e Dick Lehmkuhl, 2008. “Introduction: The Shadow of Hierarchy and New Modes of
Goverance.”Journal of Public Policyvol 28, n.º 1, pp1–17 acessível in The Shadow of Hierarchy and New Modes of
Governance | Journal of Public Policy | Cambridge Core.; Tania Börzel,2010. “European Governance: Negotiation
and Competition in the Shadow of Hierarchy.”JCMS: Journal of Common Market Studiesvol 48 , n.º 2, acessível in
European Governance: Negotiation and Competition in the Shadow of Hierarchy – BÖRZEL – 2010 – JCMS:
Journal of Common Market Studies – Wiley Online Library
62 Herwig Hofmann & Alessandro Morini, Constitutional Aspects of the Pluralisation of the EU Executive through
Agencification’”, (janeiro 20120) acessível em: Law Working Paper Series, https://papers.ssrn.com/sol3/papers.
cfm?abstract_id=2031499; Luís Guilherme Catarino, 2020, “Limites legais e políticos à nova administração
europeia dos valores mobiliários”, obra coletiva, coord. Professora Doutora Carla Amado Gomes, Garantia de
Direitos e Regulação: Perspectivas de Direito Administrativo, Lisboa, AAFDL.
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realidade é da sua delegação legislativa à Comissão (art. 290.º ) e/ou atribuição dos poderes
de execução pelos Estados-membros à Comissão (art. 291.º ).
Conforme referido, a par desta europeização de poderes também no domínio da soft law
e dos atos jurídicos atípicos com efeito vinculativo (artigo 289.º TFUE) o TJUE foi chamada
a aferir da sua natureza e legitimidade. O TJUE aceitou desde cedo a sua preceptividade
pois apesar de ser uma fonte de direito não vinculativo (artigo 288.º do TFUE), foi criada
por ato secundário da União a necessidade de justificação do seu não acatamento63. Uma
boa governance implica a possibilidade do controlo do seu cumprimento, a par do controlo
da legalidade ou da possibilidade de revisão das decisões.
O TJUE fez um caminho de avaliação da legalidade de atos de soft law com efeitos
jurídicos, desde logo quanto à possibilidade do seu controlo judicial64. Também aqui, o
TJUE aceitou a possibilidade do recurso de atos jurídicos atípicos (i.e., que vão além do
artigo 288.º do TFUE), com efeitos externos, mesmo que não vinculativos, praticados por
instituições ou por entes administrativos no exercício de poderes próprios (mesmo que
a sua atribuição seja de legitimidade duvidosa). Impõe-no a necessidade de um controlo
judicial sem lacunas face ao princípio da legalidade que rege a União (por interpretação
extensiva do ex-art. 230.º , hoje 263.º TFUE65).
A questão teria sido aparentemente pacificada com a norma vertida no atual artigo
263.º , n.º 5 TFUE pelo Tratado de Lisboa, se não fosse, como referimos supra, terem
surgido as questões respeitantes à legalidade e sindicabilidade judicial de atos de soft law
que produzem efeitos jurídicos vinculativos (de jure ou de facto).
A igualdade, perante a lei e entre todos os cidadãos, é requisito de sistemas democráticos
sujeitos a princípios de representatividade e um procedimento legislativo transparente e
participado. A União Europeia tem dado passos no sentido de adoção de princípios e de
garantias típicas de formas democráticas de organização e de controlo, e aqui a influência
do TJUE não necessita demonstração. Por maioria de razão o controlo é essencial quanto
estamos perante a aprovação de atos jurídicos atípicos segundo regimes de deliberação
poliárquica e que funcionam dentro de sistemas autorreflexivos. A revisão do SESF em
2019 e a possibilidade de acesso direito dos cidadãos às ESAs vg perante atos “ultra vires”,
e de resolução extrajudicial de diferendos, engloba a necessária interpretação da soft
63 Cfr, o caso Salvatore Grimaldi vs Fonds des Maladies Professionelles, Proc. C-322/88, de 13Dez1989
64 Cfr. o caso Parti Écologiste “Les Verts” vs Parlamento Europeu e o Acórdão de 23Abr1986 (Proc. 294/83), ante o
pedido de declaração de nulidade de uma decisão do Parlamento Europeu ao abrigo do art. 173.º do Tratado da
Comunidade Económica europeia.
65 Cfr. o caso Solgema, Società generale lavori manutenzioni appalti Srl vs European Agency for Reconstruction, e o Acórdão
de 8 de outubro de 2008 (Proc. T-441/06).
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law com efeitos vinculativos, sendo por isso “remédios” importantes no controlo desta
governão híbrida66.
A nível da estrutura institucional existem algumas debilidades constitucio-
nais que o TJUE tem também vindo também a cobrir67. Estas Autoridades nasce-
ram sob o que denominámos de “pecado original” de inexistir norma de habili-
tação (ou de atribuição) nos Tratados que permita a sua criação ou a delegação de
poderes funcionais conferidos às instituições neles previstas68. A “delegação” de
competências nunca foi um conceito vertido nos três Tratados constitutivos da
CEE pois os poderes atribuídos a cada instituição foram-no em exclusivo – com
a ressalva da implementação necessária pelos Estados-membros e Comissão Eu-
ropeia mediante expressa delegação pelo Conselho. A distribuição dos poderes
das instituições da União vertida nos Tratados permite esta dinâmica de des-
centralização a prosseguir pelo Conselho no processo co-legislativo, enquanto
“medida de aproximação das legislações” nacionais (artigo 114.º TFUE).
A nova arquitetura que molda “de facto” a governance da União convoca questões de
legitimidade face à letra dos Tratados e à distribuição institucional de competências
aí vertida, mas a turbulência daí decorrente e do seu afastamento de Parlamentos (e
de partidos políticos) e Executivos (da União e dos Estados-membros) preserva-as da
inuência política (nacional e supranacional).
O TJUE decidiu há muito ser possível a criação, por ato legislativo derivado, de órgãos
ou entidades dotadas de personalidade jurídica e com fortes poderes próprios69, mas
manifestou fortes reservas no que respeita à legitimidade de lhes ser atribuído um poder
discricionário ou com uma margem de amplitude que possibilite a tomada de decisões
de verdadeira politics. O TJUE parece ter aceitado a atribuição de uma “discricionariedade
limitada” no caso ESMA short-selling em que fora esgrimido pelo Reino Unido, inter alia,
o argumento da necessidade da manutenção do equibrio de poderes (balancing powers)
66 Jonathan Zeitlin 2016, “EU Experimentalist governance in times of crisis”, West European Politics, vol. 39, n.º 5, pp.
1073-1094, acessível em http://dx.doi.org/10.1080/01402382.2016.1181873
67 Herwig Hoffman & Alessandro Morini, 2012, Constitutional Aspects of the Pluralisation of the EU Executive through
Agencification, (janeiro 2012). Acessível em: Law Working Paper Series, https://papers.ssrn.com/sol3/papers.
cfm?abstract_id=2031499
68 No caso ESMA short-selling o próprio Advogado-Geral alegou a invalidade da criação da autoridade por ter como
com base legal o artigo 114.º , ao invés de se legitimar no artigo 352.º TFUE – não aceite pelo TJUE
69 Cfr. o caso Meroni & Co Industrie Metallurgiche SpA vs Alta Autoridade do Tratado CECA, Proc.s. 9 e 10/56, 1957, JOC133.
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frente à discricionariedade dos novos entes70. Esta matéria ainda não está pacificada
dependendo da jurisprudência de futuros casos concretos71.
9. Algumas conclues.
A regulação experimental sempre existiu e tem sido utilizada no âmbito sociológico,
jurídico, económico, e tem a ver com equilíbrio (entre forças ou elementos), mediante
estabelecimento de normas. A estabilidade, nas teorias dos sistemas, designa um
processo pelo qual uma grandeza física (velocidade, pressão, temperatura), sujeita a
descontinuidades, é controlada e mantida a determinado valor prescritivo, independente
de perturbações externas, processo realizado mediante um grau de comando tendente
para o equilíbrio.
O conceito de poliarquia utilizado no domínio da ciência política desde 1956 e crismado
por Robert Dahl como meio de descrever formas de exercício do poder de forma participada
e por plúrimos atores sem o predomínio de um sobre o “outro”72, tem sido profusamente
glosado e utilizado sobretudo enquanto medida normativa de procedimentos mínimos,
na democracia e nos regimes democráticos. O tema tem especial pertinência e atualidade
da União Europeia em domínios como o político, dado o retrocesso dos princípios de
democracia que fundaram a União e o desrespeito pela legalidade e independência do
Poder Judicial (pelo Estado de Direito) em alguns Estados-membros como a Hungria e a
Polónia73. Está a ser reavivado e transplantado para outros domínios sociais de que nos
interessa o da governance institucional da própria União, considerada quanto aos diferentes
meios e procedimentos de tomada de decisão e de enforcement e resolão de diferendos, em
diferentes organizações, territórios ou sistemas sociais (no nosso caso, num sistema social
70 Com efeito, no caso ESMA-Short Selling o TJUE afirmou, em abstrato, a possibilidade de delegação de poderes
discricionários “limitados – cfr. o caso ESMA short-selling, Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte contra
Parlamento Europeu e Conselho da União Europeia e o Acórdão de 22 de janeiro de 2014, Proc. C-270/12.
71 Mira Scholten & Marloes van Rijsbergen, The ESMA-Short Selling Case: Erecting a New Delegation Doctrine in the EU
upon The Meroni-Romano Remnants (2014). Acessível em SSRN: https://dspace.library.uu.nl/handle/1874/320874
(consultado a 7 de Novembro de 2018), 389-405. Cfr. o Acórdão de 14 de maio de 1981, Giuseppe Romano v. Institut
National d’Insurrance Maladie-Invalidité (Romano), Proc. C-98/90, ECLI:EU:C:1981:104.
72 Dahl, R. A. (1971).Polyarchy: Participation and opposition, Yale University Press; LINDSETH, Peter, 1999, “Democratic
Legitimacy and the Administrative Character of Supranationalism: The Example of the European Community”,
Columbia Law Review, 99, (1999). Acessível em http://digitalcommons.uconn.edu/law_papers/357
73 O retrocesso ou deterioração da democracia pode ser associado a outros indicadores, como a grave corrupção que
alegadamente carateriza Estados-membros como a Roménia, Hungria e Bulgária – GORA, Anna & de WILDE,
Pieter, 2022, “The essence of democratic backsliding in theEuropean Union: deliberation and rule of law”, Journal
of European Public Policy, Vol. 29, n.º 3, pp. 342–362, acessível in https://doi.org/10.1080/13501763.2020.1855465 .
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O sistema europeu de supervisão financeira – algumas questões de governance numa “redepoliárquica” de decisão
The European system of financial supervision – some governance issues in a “polyarchical network” of decision‑making
LUÍS GUILHERME CATARINO
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXII · Issue Fascículo 2 · 1st July Julho – 31st December Dezembro 2021 · pp. 209‑234
reflexivo e bem delimitado74). Tem virtualidades explicativas e preditivas em sistemas e
processos de interação necessária, de diferentes normas de conduta na sua legitimidade
e natureza, e nas diferentes formas de exercício de poder (jurídico e financeiro) em que
nenhum dos atores detém, por si só, o poder decisório porque este consiste no poder
de argumentação. Tal não significa, como vimos, que haja resultados democráticos
automáticos sem meios novos de accountability.
No domínio do sistema financeiro e a propósito da criação do Mecanismo Único de
Supervisão (MUS ou SSM, do inglês Single Supervisory Mechanism) e das suas reclações
com as ANCs. Zeitlin reutiliza o conceito separando-o das formas típicas de organização
hierárquica (centralizada e que impõe as regras e princípios top-down, como sucede na União
Bancária). Mas em termos de governance do SESF a realidade assenta numa organização
poliárquica, centralizada mas assente numa cooperação intensa entre diversos atores,
experimental porque assente na plasticidade das normas e dos procedimentos adotados
numa relação de adaptação permanente face às diversidades nacionais – e nessa medida
é bottom-up, implicando instituições concretas de cariz internacional, transnacional
e nacional – e messa medida o sistema é multinível –, e baseada em de mecanismos de
aprendizagem e adaptação – learning by dierences – e de avaliação entre atores e por todos
os atores – em peer reviews75.
Não podemos falar já, neste momento, num sistema descentralizado, mas um
caminho de centralização federalizante e de afastamento da intergovernamentalidade –
mesmo a representação nacional na governance do SESF repousa em pessoas e entidades
independentes dos Executivos nacionais76–, mas tendo sempre como limite os princípios
da subsidiariedade e de proporcionalidade que regem a União (artigo 5.º do TUE).
O caminho é prosseguido através de procedimentos de decisão e de normação híbridos
– porque assentes num processo de tentativa e experimentação –, por instrumentos
híbridos – como são os atos atípicos e a soft law –, num procedimento flexível e
tendencialmente integrador que tem um defensor assumido no TJUE – uma instituição
que desde a criação da Comunidade Económica Europeia tem sido essencial no caminho
da integração europeia77.
74 Ulrich BECK, Anthony GIDDENS, e S. LASH, 1994, Reflexive Modernization: Politics, Tradition and Aesthetics in the
Modern Social Order, Stanford, Stanford University Press, 59
75 Jonathan Zeitlin, 2023, “Hierarchy, polyarchy, and experimentalism in EU banking regulation: the Single
Supervisory Mechanism in action”, in Journal of European Integration, Volume 45, acessível in Journal of European
Integration | Taylor & Francis Online (tandfonline.com), pp. 79-101
76 CATARINO, 2021: 52 ss (supra nota 3.)
77 Cfr a ratio decidendi favorável aos poderes de emissão de soft law pela EBA, Acórdão de 15 de julho de 2021,
Féderation Bancaire Française vs Autorité de Contrôle Prudentiel et de Résolution, Proc. C-911/19 ECLI:EU:C:2021:599.