GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXIII · Issue Fascículo 1‑2 · 1st January Janeiro – 31st December Dezembro 2022 · pp. 81‑91 81
A Perda Alargada e a sua (in)
constitucionalidade1
Extended forfeiture and its (un)constitutionality
JOÃO JAIME CARDEIRA JORGE
joaocardeirajorge@gmail.com
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · e‑ISSN 2184‑1845
Volume XXII · 1st January Janeiro–31ST December Dezembro 2022 · pp.8191
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXIII.1/2.5
Submitted on September 13th, 2022 · Accepted on September 25th, 2022
Submetido em 13 de Setembro, 2022 · Aceite a 23 de Setembro, 2022
RESUMO A criminalidade organizada é um maleficio que os Estados não podem ignorar
ou menosprezar, sendo imperioso assumir a necessidade de novas medidas dotadas de
eficácia para o combate a um fenómeno criminógeno que alastra e mina os próprios
alicerces sociais, colocando em causa as instituições e mesmo os fundamentos do contrato
social. Porém, tais medidas devem ser precedidas de reflexão, não só quanto à sua real
eficiência como também quanto à sua validade e respeito aos valores basilares de um
Estado de Direito democrático, prevenindo um dano irremediável à legitimidade do ius
imperium. A perda alargada assume-se como o maior símbolo da problemática, sendo
inevitável procurar resposta a duas questões. Fomos longe demais? Até onde estamos
dispostos a ir?
PALAVRAS-CHAVE Confisco, Perda Alargada, Constitucional, Criminalidade Organizada,
Cooperação Judiciária Internacional
ABSTRACT Organized crime is an evil that States cannot ignore or underestimate,
making it imperative to acknowledge the necessity for new measures equipped with
efficacy to combat a criminogenic phenomenon, which spreads and undermines the very
foundations of society, placing in jeopardy its institutions and even the bedrock of the
social contract. However, such measures must be preceded by reflection, not only as to its
real efficiency but also as to its validity and respect for the basis of values of a democratic
1 Este artigo corresponde ao trabalho apresentado na Unidade Curricular de «Seminário de Investigação: Direito
penal Económico», ministrada pelo Professor Doutor Manuel Monteiro Guedes Valente, no âmbito do Mestrado
em Direito – Ciências Jurídico-Criminais. O estudo foi desenvolvido no âmbito do Projeto de I&D: Corpus Delicti
– Estudos de Criminalidade Organizada Transnacional, sediado no Ratio Legis – Centro de Investigação e Desen-
volvimento em Ciências Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa.
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state of law, preventing an irreparable damage to the legitimacy of its ius imperium. The
extended forfeiture represents this problematic’s biggest symbol, being inevitable not to
seek the answer to two questions. Have we gone too far? How far are we willing to go?
KEYWORDS Confiscation, Extended Forfeiture, Constitutional, Organized Crime,
International Judiciary Cooperation
SUMÁRIO Introdução; 1. Vexata quaestio; 2. Auctoritas, non veritas facit legem; 3. Exitus acta
probat; Concluo.
Introdução
A inovação chegou. Os terrores foram esquecidos, os abusos ficaram nas páginas dos
empoeirados livros de história, as palavras na Constituição dão-nos respaldo e tran-
quilidade. O cidadão vive num eterno estado de ultraje manufaturado, potenciado pela
«media», pelos «especialistas» entrevistados, mestres no argumentum ad captandum, diri-
gido à impunidade do «outro», do criminoso, do inimigo.
«Nós» nunca cometeríamos um crime. Além disso, o selvagem poder estadual está
hodiernamente, numa idade iluminada como a nossa, cerceado. Afinal temos os famosos
«checks & balances» e os nossos direitos, os dos cidadãos «de bem», estão a salvo. O confisco,
onde “os abusos, os arbítrios, as prepotências do poder absoluto” não poderão existir, entra
em conflito com o sistema político-constitucional vigente, pois estamos “num Estado de
Direito democrático, onde os diferentes poderes se controlam mutuamente”, tendo-se este
transformado num “mecanismo essencial à defesa da manutenção do próprio Estado”2.
Acima de tudo é necessário agir num esforço de cooperação internacional. A política
criminal está num processo de “desnacionalização” estando em curso uma “regionaliza-
ção político-criminal”, pois os “sistemas penais, individualmente considerados, são inope-
rantes”3 no ‘combate’ à «besta diabólica», a omnipresente criminalidade transnacional,
emergente nesta sociedade globalizada.
Porém, esta ameaça global aparece ligada a uma crise quanto aos “limites funcionais
tradicionais do Direito Penal”, com uma ligação umbilical a um “plano de legitimidade e
eficácia supranacional das soluções penais”4. Vozes levantam-se alertando como a “sis-
temática filosófico-política-constitucional e matemática jurídica” da União Europeia se
2 CORREIA, João Conde – Balanço do Projecto e Perspectivas de Evolução. Recuperação de Activos; Projecto Fenix. Lis-
boa: Procuradoria-Geral da República. 2012. p. 403.
3 RODRIGUES, Anabela Miranda – Política criminal: novos desafios, velhos rumos. Lusíada Direito. N.º 3 (2005).
p.27.
4 PALMA, Maria Fernanda – Sessão de Abertura; Internacionalização do Direito Penal. In: Direito Penal Internacional,
TPI e a Perspetiva da África de Língua Oficial Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 2015. p. 27.
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revela pró-securitária5, com “carácter “prioritariamente repressivo”, colocando a segu-
rança acima da liberdade6.
A perda alargada de bens, prevista na Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, é terreno fértil
para o escrutínio à validade destes alertas e quanto à dicotomia eficácia-direitos funda-
mentais. Estará esta lei ferida de inconstitucionalidade material, ofendendo o princípio
da presunção da inocência e operando ao mesmo tempo uma inaceitável inversão do ónus
da prova? Ou “continuamos (apaticamente) presos a conceções anquilosadas, que só uma
verdadeira rotura cultural poderá superar”7?
Que os jogos comecem!
1. Vexata Quaestio
A Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 3 de abril de 2014 foi trans-
posta para o ordenamento jurídico nacional pela Lei n.º 30/2017, de 30 de maio, alterando
esta, designadamente, a Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, objeto do nosso estudo, que estabe-
lece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira. Alterada, também,
foi a Lei n.º 45/2011, de 24 de junho, referente ao Gabinete de Recuperação de Ativos.
O artigo 7.º, n.º 1 da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, consagra uma presunção, ilidível,
de que em caso de condenação por um crime, previsto no catálogo constante do artigo
1.º, já transitada em julgado, considera-se “constituir vantagem de atividade criminosa a
diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu
rendimento lícito”, no espaço de 5 anos a contar desde a data da sua constituição como
arguido, ex vi do n.º 2 do mesmo artigo. Será ónus do arguido ilidir a presunção, juris tan-
tum, ex vi do art.º 350.º, n.º 2 do CC, provando a licitude da proveniência do seu património,
como estabelece o art.º 9.º, também da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro.
O princípio da presunção da inocência encontra-se plasmado no n.º 2 do art.º 32.º da
CRP e no art.º 6.º, n.º 2 da CEDH – “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito
em julgado da sentença de condenação” –, sendo configurável que tal imperativo consti-
tucional colida com uma presunção «automática» de que o património incongruente do
arguido tem origem na prática de um ou mais crimes, os quais não são, nem precisam de
ser, sequer determinados pelo MP, muito menos provados.
5 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Da Perda de Bens e de Direitos no Direito Penal e Processual Penal em
Portugal: As Controvérsias de um Regime em “Apuração”. In TEIXEIRA, Adriano (org.); Et al. – Perda das Vantagens
do Crime no Direito Penal: Confisco Alargado e Confisco Sem Condenação. São Paulo, SP: Marcial Pons. 2020. p. 41.
6 RODRIGUES, Anabela Miranda – Política criminal: novos desafios… Lusíada Direito. p. 29.
7 CORREIA, João Conde; RODRIGUES, Hélio Rigor – Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de
01-12-2014, proferido no processo 218/11.0GACBC.G1 (pedido de indemnização e confisco). Julgar Online. 2015. p. 07.
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Germano Marques da Silva dá nota do valor de reação deste princípio “contra os abusos
do passado mais ou menos próximo”, tendo reflexos, não num instituto em particular, mas
sim tendo “consequências para toda a estrutura do processo penal”. Todo o acusado terá o
direito de exigir prova da sua culpabilidade8.
Ao ilidir a presunção, o arguido terá inevitavelmente de produzir prova da licitude
da origem do património, sugerindo-se a existência de uma possível inversão do ónus da
prova. Este colocará sob pressão o direito ao silêncio do arguido, consagrado no art.º 32.º,
n.º 1 da CRP e plasmado na alínea d) do n.º 1 do art.º 61.º do CPP, ameaçando o princípio
nemo tenetur se ipsum accusare e cobrindo de dúvida a anuência à matriz da estrutura acusa-
tória do processo penal, consagrada na lex fundamentalis no art.º 32, n.º 5.
No espectro oposto, caso o arguido não se disponha a provar essa licitude, sendo que a
perda alargada se inicia com um arresto preventivo, do património incongruente, nos ter-
mos do art.º 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, que se pode iniciar “a todo o tempo logo
que apurado o montante da incongruência” e que, em regra e para evitar a delapidação, será
decretado antes do início do julgamento do processo penal referente a um dos crimes presen-
tes no suprarreferido catálogo, podendo até acontecer antes sequer da liquidação em casos
de periculum in mora, parece credível que essa inabilidade ou impossibilidade possa, ou tenha
o potencial de macular a sua presunção de inocência no processo em curso. Não obstante
esse «silêncio» não provar a ilicitude e que seja abjeto que o silêncio do arguido o prejudique
num Estado de Direito material, ex vi do art.º 343.º, n.º 1 e 345, n.º 1, ambos do CPP, os dois
processos correm lado a lado, em respeito ao princípio da suficiência, art.º 7, n.º 1 do CPP,
sendo o arresto enxertado no processo penal e, no fim de tudo, o julgador um ser humano.
2. Auctoritas, non veritas facit legem
A espada que corta este nó górdio será a natureza jurídica do instituto da perda alargada.
Não sendo “levada em conta a gravidade do facto nem a culpa nem a perigosidade pessoal
do agente” sendo a sua ratio o “restabelecimento da ordem jurídica violada através da pro-
moção de uma ordenação dos bens adequada ao Direito”, não se lhe inserindo qualquer
uma das finalidades da pena ou punição ao agente, nem sendo dirigido a apurar qualquer
responsabilidade penal deste, para Duarte Rodrigues Nunes, o confisco alargado “consti-
tui uma medida administrativa sui generis”9.
8 SILVA, Germano Marques da – Curso de Processo Penal, Vol. I. 4ª Edição. Lisboa/São Paulo: Verbo 2000. p. 82.
9 NUNES, Duarte Rodrigues – A incongruência do património no confisco “alargado” de vantagens provenientes
da prática de crimes. In CORREIA, João Conde; Et al.Recuperação de Ativos. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários.
2021. p. 21.
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Pedro Caeiro afasta, igualmente, o confisco alargado de uma “reacção penal” em vir-
tude de não carecer da alise da culpa nem ter como causa “um facto (típico, ilícito e
culposo) punível, mas sim um património incongruente acoplado a indícios da prática de
certos crimes”. Há, para este autor “ausência de um facto” para além de que sendo vista
como uma reação sancionatória “extra-processo” a um comportamento criminoso, estar-
-se-ia na perda alargada a “violar clamorosamente a presunção de inocência”10.
O mesmo entendimento partilha o Tribunal Constitucional nos acórdãos n.º 101/2015,
n.º 392/2015 e n.º 476/2015, onde se pronunciou pela constitucionalidade dos “artigos 7.º, 8.º
e 9.º da Lei n.º 5/2002, interpretados com o sentido de impor a um cidadão o ónus de provar
a origem lícita do seu património”.
Debruçamo-nos sobre o acórdão n.º 392/2015, o mais complexo e ao mesmo tempo
esclarecedor. Novamente, considera-se que “não está em causa a imputação ao arguido da
prática de qualquer crime e o consequente sancionamento” mesmo que a perda alargada
seja enxertada no processo penal. Na determinação da incongruência e na perda não há
como base “um concreto juízo de censura ou de culpabilidade em termos ético-jurídicos”
nem sequer um “concreto perigo daqueles ganhos servirem para a prática de futuros cri-
mes”.
A imputação de um dos crimes presentes no catálogo da Lei é apenas um “pressuposto
indiciador” da possibilidade da existência de um património decorrente de atividade
ilícita, demonstrado ainda pela incongruência com os rendimentos lícitos do arguido.
Aperda alargada não se refere especificamente a produtos e/ou vantagens destes crimes
do catálogo. Dirige-se sim ao património incongruente, presumivelmente oriundo de ilí-
citos, cuja identificação por parte do MP não é necessária, aproximando-se de uma ficção
jurídica.
Entende-se, em suma, que “a presunção de proveniência ilícita de determinados bens
e a sua eventual perda em favor do Estado não é uma reação pelo facto de o arguido ter
cometido um qualquer ato criminoso”. Como tal, neste procedimento de perda alargada
não se aplicam as garantias constitucionais: v. g., o princípio da presunção da inocência ou
o direito ao silêncio do arguido.
Quanto ao processo criminal por um dos crimes do catálogo, estas garantias mantêm-
-se não vendo o Tribunal Constitucional como “exista um perigo real daquela presunção
(…) contaminar a produção de prova” relativamente a este, sendo também impossível des-
10 CAEIRO, Pedro – Sentido e função do instituto da perda de vantagens relacionadas com o crime no confronto
com outros meios de prevenção da criminalidade reditícia (em especial, os procedimentos de confisco in rem e
a criminalização do enriquecimento ‘ilícito’). Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Ano 21, N.º 2. (abr.-jun. 2011),
pp. 310-311.
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cortinar como ao provar a origem lícita do património o arguido se possa autoincriminar
em relação ao ilícito criminal que lhe foi imputado.
A presunção de inocência continua a ser escrupulosamente respeitada no processo
penal, sendo necessário produzir a prova do thema probandum para assegurar a condena-
ção, conditio sine qua non para a perda alargada. De tudo isto resulta a manutenção da estru-
tura acusatória do processo.
Nega-se a existência de um “ónus excessivo para o condenado”, pois este poderá subs-
tituir a prova da licitude do património pela prova de que os bens incongruentes estavam
na sua posse há mais do que 5 anos desde a sua constituição como arguido. Além disso,
sendo o processo enxertado no processo criminal terá a possibilidade de “utilizar qualquer
meio de prova válido em processo penal, não estando sujeito às limitações probatórias que
existem, por exemplo, no processo civil ou administrativo” tendo o tribunal em atenção
toda a prova produzida no processo criminal “donde possa resultar ilidida a presunção”.
Adianta, ainda, o Tribunal Constitucional que é o arguido que se encontra na melhor
posição para “investigar, explicar e provar” a origem dos bens, como acontece nas presun-
ções legais em que a prova se apresenta “particularmente gravosa ou difícil para uma das
partes”11. O arguido passa ou tem de passar a ser um colaborador da investigação e carrear
para o processo as provas da licitude ou da integração do património há mais de 5 anos dos
bens arrestados.
Acrescentando Duarte Rodrigues Nunes que colocando o ónus da prova no MP este
tornar-se-ia numa “diabolica probatio” além de que exigir qualquer “prova da relação entre
o crime pressuposto e o património do arguido” foi exatamente o que se pretendeu afastar
com este regime legal.
O princípio in dúbio pro reo estipula que, em situações em que os “limites do conhe-
cimento humano” tornem impossível ultrapassar a dúvida, o non liquet deve “ser sempre
valorado a favor do arguido”, pois o contrário seria colocar o ónus da prova no arguido,
baseado na prévia admissão da sua responsabilidade, ou seja, o princípio contrário ao da
presunção de inocência”12. Infeliciter exigir tal pressuposto seria, para o autor, “obstáculos
praticamente intransponíveis” ao confisco alargado, colocando em grave perigo a resposta
à criminalidade organizada e económico-financeira13.
11 MARIANO, João Cura Relat. – Acórdão do Tribunal Constitucional com o n.º 392/2015, de 12 de agosto de 2015.
12 SILVA, Germano Marques da – Curso de Processo…. 4ª Edição. 2000. Vol. I. pp. 84-84.
13 NUNES, Duarte Rodrigues – A incongruência do património… 2021. pp. 27-28.
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3. Exitus acta probat
O Direito Penal encontra-se numa encruzilhada, ou, atrevendo-nos a adiantar, à beira do
precipício. É claro o desafio que a criminalidade organizada e económico-financeira coloca
ao Direito Penal. Revestida de um caráter transnacional, para a combater a “justiça não
pode ser a única entidade com fronteiras”, o que obriga a uma cooperação entre os vários
ordenamentos jurídicos na guerra a uma delinquência que “ameaça pôr em causa o pró-
prio Estado de direito”14.
A própria sociedade global clama por segurança e exige medidas. Os Estados, a juris-
prudência e (alguma) doutrina respondem com a combinação de “instrumentos e crité-
rios repressivos” e “instrumentos e critérios inovadores e modernos” criando um “direito
penal “de colarinho branco”, tecnocrático, de orientação pelos fins”15.
Privilegia-se a eficácia – o imediato, o resultado do momento e mediático –, a evolução
e apelida-se os detratores de «velhos do restelo», acusando a “praxis quotidiana” e juris-
prudência de olhar “para a norma com os olhos viciados do passado”16, elogiando o acervo
de legislação; mas o seu uso “claramente insuficiente, devendo essa falha envergonhar-
-nos a todos sem exceção”17. Pede-se uma mudança, uma formação que altere a cultura
no sentido de “intensificar o confisco e administrar os ativos recuperados segundo uma
lógica económica”18, permitindo “o maior confisco admissível no quadro de um Estado de
Direito”19, esgotando “toda a extensa margem de disponibilidade constitucional que nesta
matéria específica ainda existe”, ao mesmo tempo que se apresentam “propostas inovado-
ras”, as “non-conviction based confiscations, como a actio in rem, desvalorizando a “repulsa
instintiva20. Esta será “mais emotiva do que racional”21 e aponta-se como através desta
ação de caráter civil ou administrativo as garantias constitucionais-penais como os prin-
cípios ne bis in idem, nemo tenetur se ipsum accusare, in dubio pro reo, e nulla poena sine culpa não
serão aplicadas, estando ausentes também “os agressivos meios probatórios processuais
penais”, sendo o processo-crime “célere, simples e eficaz” e “uma forma hábil de ultrapas-
14 CORREIA, João Conde – Reflexos da diretiva 2014/42/eu (do parlamento europeu e do conselho, de 3 de abril
de 2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na união europeia) no direito
português vigente. In CORREIA, João Conde; Et al. – Recuperação de Ativos. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários.
2021. pp. 65-66.
15 RODRIGUES, Anabela Miranda – Política criminal: novos desafios… Lusíada Direito. p. 19.
16 CORREIA, João Conde – «Non-conviction based confiscations» no Direito penal português vigente: quem tem medo
do lobo mau?. Revista Julgar. N.º 32. (ago. 2017). pp. 87-88.
17 CORREIA, João Conde – Reflexos da diretiva 2014/42/eu… Recuperação de Ativos, p. 68.
18 CORREIA, João Conde – Balanço do Projecto... Recuperação de Activos; Projecto Fenix, p. 403.
19 CORREIA, João Conde – Anotação ao Acordão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de outubro de 2014 (o arresto
preventivo dos instrumentos e dos produtos do crime).. Julgar Online. 2014. p. 15.
20 CORREIA, João Conde – «Non-conviction based confiscations»… Revista Julgar. pp. 71-72.
21 CORREIA, João Conde – Reflexos da diretiva 2014/42/eu… Recuperação de Ativos. p. 78.
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sar os constrangimentos do excesso de garantismo penal”22. Propaga-se a celeridade e a
eficácia do mediático e não se preservam os pilares de um Estado de direito democrático
assente na dignidade da pessoa humana e da vontade do povo que mais não é do que a
vontade – autodeterminação, autoafirmação e auto conformação – de cada cidadão.
Mas “a segurança não é infinita e os direitos, liberdades e garantias também não(!)”.
Guedes Valente sustenta que na prevenção e repressão desta criminalidade se colocaram
em campo “padrões de comportamentos e modelos padronizados” que obliteram, “negam
e niilificam” as garantias, a segurança, a coesão social e o equibrio na ordem jurídica de
um Estado democrático ancorado numa Constituição material. A pressão sobre os direitos
fundamentais do cidadão é efetuada numa ótica de eficácia, “assente no securativismo e
no justicialismo do sistema jurídico-criminal”23.
Anabela Miranda Rodrigues faz eco deste “conflito garantia-eficácia”, dizendo que
nesta sociedade de risco, pós-moderna, onde floresce esta criminalidade transnacional,
económica, “duas forças contraditórias” estão em jogo, pedindo-se um paradoxo ao Direito
penal: que seja um “ordenamento de liberdade” e um “ordenamento de segurança”, que
limite o poder do Estado sobre os direitos do cidadão ao mesmo tempo que o amplia para
melhor proteção desses mesmos direitos24.
Se esse objetivo foi atingido na perda alargada, é, no mínimo, digno de debate. Para
Jorge Godinho, todavia, a resposta é definitivamente não, pois o «confisco “alargado” com
base em presunções e com inversão do ónus da prova incorre numa série de violações
do princípio da presunção de inocência: presume a existência dos pressupostos de que
depende a sua aplicação; distribui o ónus da prova ao arguido; suprime o direito ao silên-
cio; e resolve o non liquet contra o arguido»25.
Conclusão
Estamos perante um feito de «engenharia jurídica» digno de elogio quanto à astúcia,
mas de repúdio quanto à deslealdade e ofensa constitucional. Uma construção dogmá-
tica, pejada de «remendos», subterfúgios e uma hipocrisia base, num «faz-de-conta» que
22 CORREIA, João Conde – «Non-conviction based confiscations»… Revista Julgar. p. 78.
23 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Processual Penal; Da Sociedade Internético-Personocêntrica. Lisboa.:
Manuel Monteiro Guedes Valente. 2020. pp. 10-11.
24 RODRIGUES, Anabela Miranda – Política criminal: novos desafios… Lusíada Direito. p. 30.
25 GODINHO, Jorge – Brandos costumes? O confisco penal com base na inversão do ónus da prova (Lei n.º 5/2002,
de 11 de Janeiro, artigos 1.º e 7.º a 12.º) In Almeida, Sebastião; Et al. – Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias.
Coimbra: Coimbra Editora. 2003. p. 1359.
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almeja perpetuar um inexistente respeito à lex fundamentalis e justificar uma inversão do
ónus probatório injustificável.
Não se creia que os riscos que Montesquieu, Beccaria e Jeremy Bentham denunciavam
já não existem: o “confisco num Estado absoluto, que não conhece quaisquer limites, é
muito diferente do confisco num Estado de Direito democrático”26. Os temores são exage-
rados, dizem, enquanto as fundações do Estado de Direito e o Direito penal e processual
penal como travões ao ius puniendi são desgastadas, como uma erosão hídrica, lenta e sem
se dar conta.
Lembremos Kafka e K. que, ao ver os agentes da autoridade, após o acusarem de um
crime, recusando-se, porém, a informá-lo de que crime era suspeito, a examinarem os seus
pertences, dizendo-lhe que guardariam a sua roupa, mas “lha restituiriam se o seu caso
viesse a ter um desfeito feliz, se interrogava: anal “K. vivia num Estado que assentava no
Direito. A paz reinava por todo o lado! Todas as leis estavam em vigor; quem eram, pois, os
intrusos que ousavam cair-lhe em cima no seu próprio domicílio?27.
Timeo Danaos et dona ferentes.
FONTES PRIMÁRIAS
AMARAL, Maria Lúcia Relat. – Acórdão do Tribunal Constitucional, com o n.º 101/2015, de 11 de fevereiro
de 2015. [Em Linha]. [Consult. em 01-02-2023]. Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/
tc/acordaos/20150101.html
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A Perda Alargada e a sua (in)constitucionalidade
Extended forfeiture and its (un)constitutionality
JOÃO JAIME CARDEIRA JORGE
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXIII · Issue Fascículo 1‑2 · 1st January Janeiro – 31st December Dezembro 2022 · pp. 81‑91
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