GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXIII · Issue Fascículo 1‑2 · 1st January Janeiro – 31st December Dezembro 2022 · pp. 11‑21 11
Pacismo e constitucionalismo global
Pacism and global constitutionalism
LUIGI FERRAJOLI1
luigi.ferrajoli@uniroma3.it
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXII · 1st January Janeiro–31ST December Dezembro 2022 · pp.11‑21
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXIII.1/2.1
Submitted on April 24th, 2022 · Accepted on May 2nd, 2022
Submetido em 24 de Abril, 2022 · Aceite a 2 de Maio, 2022
SUMÁRIO 1. O dever de negociar2 – 2. A necessidade de coenvolver nas tratativas os países
da OTAN. O papel que deveriam desempenhar os órgãos da ONU, convocados em sessão
permanente – 3. Duas visões do futuro do mundo – 4. Por uma Constituição da Terra.
RESUMO A humanidade, a causa do prolongamento da agressão da Rússia à Ucrânia,
nunca esteve tao próxima a um conflito nuclear. Diante a este perigo, o Autor propõe
que as negociações de paz se realizem no Conselho de Segurança da ONU, convocando
em o Conselho Permanente até que se restabeleça a paz, e, em perspetiva, a aprovação de
uma Constituição da Terra que elimine as armas e os exércitos nacionais, institua um
património planetário dos bens comuns e introduza adequadas garantias globais dos
direitos fundamentais de todos os seres humanos.
PALAVR AS-CHAVE perigo nuclear – paz – Constituição da Terra
1. O dever de negociar
Nos 77 anos que nos separam de Hiroshima e Nagasaki, o perigo de um conito nuclear
nunca foi assim tão grave e iminente como aquele em curso durante a guerra criminosa
desencadeada pela Rússia contra a Ucnia. Por isso, o comportamento das potências da
OTAN diante desse perigo foi, desde o início, irresponsável. O fato mesmo de que Putin,
1 Professor emérito de Filosofia do Direito, Università di Roma Tre – Italia.
2 [N.T.] No original: trattare, palavra que pode ser traduzida para tratar, negociar ou acordar. Optou-se por nego-
ciar, por ser de uso frequente em português, preservando a palavra tratativa para traduzir o termo trattativa, por
seramplamente utilizada. Traduzido por Luiz Eduardo Cani cani@disroot.org e revisado por Bruna Capparelli
bruna.capparelli2@unibo.it
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Pacifismo e constitucionalismo global
Pacifism and global constitutionalism
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segundo o coro unânime dos meios de comunicação e de todos os governantes ocidentais,
é um déspota feroz, deveria aconselhar a levar a sério a sua ameaça, formulada desde 13 de
março, de uma “reação sequer imaginável”. Como este déspota já mostrou o que é capaz de
fazer, está munido de armas nucleares, como quis outras vezes recordar, e é, portanto, bem
possível, se crescer a tensão, que faça uso dessas. A única coisa séria a fazer deveria ser,
portanto, o empenho de todos para pôr fim à guerra e contribuir para o reestabelecimento
da paz.
É esta, de resto, a regra válida em todas as comunidades civis para fazer frente às
ações criminosas em andamento. Quando um bandido ameaça disparar e, depois, dispara
sobre uma multidão, se não forem acolhidos os seus pedidos, o dever de quantos tinham
o poder de fazê-lo – neste caso, a comunidade internacional – é aquele de negociar,
negociar, negociar a cessação do massacre. Pouco importa se o bandido é considerado um
criminoso, ou um louco ou, ainda, um líder político irresponsável que não viu acolherem
as suas justas raes e reivindicações. A única coisa que importa é a cessação da agressão
e do massacre dos inocentes. Tanto mais porque, neste caso, a continuação da guerra pode
deflagrar uma guerra nuclear. Mesmo os mais fervorosos críticos de Putin não deveriam
esquecer, repito, que nos encontramos diante de um autocrata munido de mais de seis mil
ogivas nucleares, e que a insensatez desta guerra, também do ponto de vista dos interesses
da Rússia, não permite excluir mais aventuras apocalípticas sem sentido.
Negociar é o que querem milhões de manifestantes em todo o mundo quando pedem
um “cessar fogo”: para pôr fim à tragédia dos massacres, das devastações e da fuga de
milhões de deslocados ucranianos. No início de abril, como nos informa a Agência da ONU
para refugiados, eram 4 milhões os refugiados ucranianos nos países vizinhos e cerca de
7milhões os deslocados internos, em grande parte mulheres e crianças. Os horrores, os
estupros e os massacres civis cometidos pelo exército russo impõem com força, pela sua
atrocidade, o empenho de todos para que se ponha fim, o quanto antes possível, a esta
tragédia. Não importa que atrocidades similares tenham sido cometidas em tantas outras
guerras, algumas das quais desencadeadas pelo Ocidente. O que importa é que se advirta
como intoleráveis as violências contra pessoas indefesas, que se faça de tudo para fazê-las
cessar e que essas valem para abrir os olhos para os horrores inevitavelmente ligados a
qualquer guerra.
São essas as condições de qualquer pacifismo digno desse nome: em primeiro lugar,
estar ao lado dos agredidos contra os agressores; em segundo lugar, apoiar as razões deles
na tratativa direta para fazer cessar o quanto antes a agressão e as suas atrocidades.
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2. A necessidade de coenvolver nas tratativas os países da OTAN.
Opapelque deveriam desempenhar os órgãos da ONU, convocados
emsessão permanente
Mas de que modo se apoiam as razões dos agredidos nas negociações de paz? Quem tem
o poder e, acrescentarei, o dever de oferecer esse apoio? Há uma grande hipocrisia na base
da política dos governos europeus e do debate público sobre a guerra. Todos sabem, mas
todos fingem que não sabem, que por ts dessa guerra, da qual a Ucrânia é somente uma
vítima, o verdadeiro embate é entre a Rússia de Putin e os países da OTAN. São, portanto,
os Estados Unidos e as potências europeias que deveriam tratar a paz, apoiando a Ucrânia
nas tratativas ao invés de deixá-la negociar sozinha o com seu agressor.
Seria esse o verdadeiro ato de solidariedade do Ocidente nos confrontos do povo ucra-
niano. A verdadeira ajuda à população ucraniana, bombardeada e massacrada desde 23
de fevereiro, seria a participação na tratativa, ao lado da Ucrânia, dos países membros da
OTAN, a começar pelos Estados Unidos, dotados de bem outra força e de bem maior capa-
cidade de pressão, a fim de obter, com o mínimo custo para o agredido, a imediata cessação
da agressão. Uma similar assunção de responsabilidade pelas maiores potências – Estados
Unidos e União Europeia – valeria não apenas para pôr fim à guerra, mas também para
acabar com o perigo do seu alargamento descontrolado.
Por isso, a sede apropriada para as negociações, como já tive a oportunidade de sus-
tentar, deveria ser não mais somente a desconhecida localidade da Bielorrússia onde se
encontram, com cada vez menor capacidade de acordo, as delegações da Rússia e da Ucrâ-
nia, mas também a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança da ONU. Por duas razões.
Em primeiro lugar, porque as Nações Unidas são a organização cuja finalidade institucio-
nal, como diz o art. 1.º do seu Estatuto, é manter a paz e conseguir, com meios pacíficos, a
solução das controvérsias internacionais. Em segundo lugar, porque no Conselho de Segu-
rança sentam, como membros permanentes, todos dotados de armamentos nucleares,
exatamente as potências que têm a força e o poder para negociar a paz: a Rússia, a China
e os principais membros da OTAN, isto é, os Estados Unidos, o Reino Unido e a França.
Atratativa se desenvolveria, assim, sob os olhos da humanidade inteira, no interior de uma
instituição que tem por razão social a consecução da paz. Sabemos bem que a ONU é cada
vez mais débil, ao ponto que foi declarada sua inutilidade. Mas essa é uma razão a mais
porque se encontra, diante desta guerra, a sua função institucional e a sua razão de ser.
A alternativa é a escalada da guerra, com o risco cada vez maios da sua degeneração
em uma guerra nuclear. Mas também, além dessa aterrorizante perspectiva, a continua-
ção desta guerra, além de produzir outros massacres e devastações na pobre Ucrânia, só
poderá fazer crescer e, por assim dizer, institucionalizar a lógica bélica do amigo/inimigo.
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A decisão do nosso Parlamento de aumentar em mais de 50% as despesas militares, a ter-
rível decisão alemã de financiar com 100 bilhões de euros o próprio rearmamento, a opção
de Biden para o reforço militar da OTAN em vez do confronto diplomático, a complacência
geral pela compacidade do Ocidente nas armas, alcançou, nessa lógica de guerra, o cresci-
mento do ódio ao povo russo e a informação gritada e secria são todos sinais e passos de
uma corrida louca para a catástrofe. É o triunfo da demagogia e da irresponsabilidade, cujo
custo é pago hoje pelo povo ucraniano e amanhã, se a corrida não parar, pela humanidade
inteira e, em particular, pela Europa.
Existe, em suma, uma responsabilidade institucional da ONU e o dever da comuni-
dade internacional de fazer tudo o que for possível a fim de obter a paz. E o que a ONU
pode fazer, e, portanto, deve fazer, é não deixar sozinha a Ucrânia na mesa de negociação,
mas oferecer os seus órgãos institucionais, a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança,
como os lugares e os sujeitos da tratativa, que bem poderiam ser convocados em seção
pública e permanente até que não consigam ter sucesso em pôr termo à guerra. Seria uma
iniciativa excepcional, sem precedentes, dotada de um enorme valor político e simbólico,
que valeria para sinalizar a gravidade dos perigos que pairam sobre a humanidade, para
relançar o papel da ONU e engajar todos os Estados em uma reflexão sobre o futuro do
mundo e levar a sério o princípio da paz estabelecido no Estatuto da instituição da qual
são membros.
3. Duas visões do futuro do mundo
É precisamente o futuro do mundo no pós-guerra que deveria estar no centro do debate
político e de políticas externas responsáveis. No caso de perigo nuclear que escapa, os êxi-
tos possíveis dessa guerra serão, de fato, dois, entre si opostos: o rearmamento ou o desar-
mamento, a corrida para maiores armamentos, a pendência da próxima guerra e, de novo,
do risco nuclear, ou um despertar da razão e da reflexão comum sobre possíveis repetições
do perigo atômico e, portanto, sobre a necessidade, no interesse de todos, de um progres-
sivo desarmamento, até a desnuclearização do planeta inteiro.
A primeira hipótese, infelizmente a mais míope e a mais provável, se manifesta no
aumento das despesas militares dos Estados ocidentais e em uma militarização das nos-
sas democracias: do rearmamento da Alemanha ao aumento das despesas militares até
2% do PIB decidido pela Itália e por outros Estados europeus. «Loucos», os chamou o Papa
Francisco, declarando estar por eles «envergonhado». É a hipótese expressa pela disputa
de insultos nos confrontos de Putin na qual competem os leader ocidentais, a começar pelo
presidente Biden – «açougueiro», «criminoso de guerr, «esse homem não pode ficar no
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poder!» –, que têm o único efeito de minar, ou, pelo menos, de tornar mais difícil as nego-
ciações, ou, pior, sendo dirigidos a um autocrata irresponsável, de provocá-lo e induzi-lo
a alargar o conflito até fazê-lo precipitar em uma terceira guerra mundial. São invectivas
que sinalizam uma intenção inquietante: a vontade que a guerra prossiga para obter a
derrota da Rússia, o, pelo menos, a sua humilhação no pântano de uma guerra falida, para
consolidar a subordinação da Europa à política de potência dos Estados Unidos e, também,
talvez, para arrecadar alguns votos nas eleições americanas de mid-term. Esta guerra se
torna, assim, a ocasião, para os Estados Unidos e para o aparato político-midiático implan-
tado em seu apoio, para um relançamento eticamente conotado do choque de civilidade
entre democracia e autocracia, entre mundo livre e mundo incivil, a fim de obter a vitória
sobre o Mal, também ao custo de manter em risco a segurança do mundo do possível holo-
causto nuclear.
A segunda hipótese é aquela pacifista, aqui prospectada, do empenho da comunidade
internacional de parar imediatamente a guerra a qualquer razoável custo: da garantia que
a Ucrânia não entrará na OTAN à autonomia das pequenas regiões separatistas da Ucrâ-
nia oriental, russófonos e russófilos, com base no voto popular no exercício do direito dos
povos à autodeterminação; em força do qual, diz o art. 1.º de ambos os Pactos internacio-
nais sobre direitos humanos de 16 de dezembro de 1966, «todos os povos... decidem livre-
mente sobre seu estatuto político». Do clima de paz gerado pela tratativa poderia emergir
não somente o fim da agressão à Ucrânia, mas também uma séria reflexão sobre o perigo,
nunca assim grave, do conflito nuclear que está corrente o gênero humano. Poderia emer-
gir a consciência comum da necessidade de uma refundação, mediante a introdução de
idôneas garantias em matéria de limitação da soberania dos Estados, do pacto de convi-
vência pacifista estipulado com a criação da ONU. O perigo nuclear que estamos correndo
poderia, também, induzir os países que ainda não o fizeram para aderir ao Tratado sobre
o desarmamento nuclear de 7 de julho de 2017, já subscrito por 122 países, ou seja, de mais
de dois terços dos membros da ONU. Poderia, sobretudo, convencer os Estados Unidos
a anular a retirada deles, decidido em 2 de agosto de 2019 pelo presidente Trump, do tra-
tado de 1987 sobre o desarmamento nuclear, e induzir todos os Estados dotados de tais
armamentos a retomar esse gradual processo até o total desarmamento. Hoje, no mundo,
existem 13.440 ogivas nucleares (eram 69.940 antes do tratado sobre o desarmamento de
1987), em posse de nove países: 6.375 na Rússia, 5.800 nos Estados Unidos, 320 na China,
290 na França, 215 no Reino Unido, 160 no Paquistão, 150 na Índia, 90 em Israel e 40 na
Coreia do Norte. Foi calculado que bastam 50 destas bombas para destruir a humanidade.
Isso significa que com esses armamentos o gênero humano pode ser varrido da face da
Terra por 270 vezes.
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Na discussão sobre essas duas hipóteses não está, portanto, nenhum contributo ao
debate público, que está desenvolvendo-se em um clima envenenado por contraposições
radicais. Não é um debate baseado no diálogo, no confronto racional e no respeito das
opiniões alheias, mas um confronto fundado na oposição amigo/inimigo, na suspeita da
má-fé dos interlocutores e na desqualificação moral deles, ou como putinianos ou como
belicistas. Completamente ausentes estão a atitude problemática, a incerteza, a dúvida, o
interesse pelas ideias diversas das nossas, a consciência da complexidade e da ambivalên-
cia das questões, que sempre deveriam informar a discussão pública.
As questões sobre as quais o debate político tem estado mais aceso e entre surdos são
duas: a do envio de armas à Ucrânia e aquela do aumento da despesa militar até 2% do
PIB. São questões diversas, que a alternativa entre as duas hipóteses supra ilustradas per-
mite, talvez, enfrentar com previsão. A primeira é um dilema moral entre a solidariedade
justamente devida ao povo ucraniano, cujos expoentes pediram outras vezes o envio de
armas, e o prolongamento que se seguiria do conflito e dos massacres. Tratando-se de um
autêntico dilema moral, não tem sentido as acusações que se trocam os apoiadores das
duas opções. Existem válidos argumentos a apoiar ambos.
Na minha opinião, o maior argumento contra o envio das armas consiste, além do
risco que isso possa ser entendido como cobeligerância em um conito destinado a durar
e a produzir outros massacres, na sua decisão junto àquela de um aumento das despesas
militares. Essa segunda decisão é claramente em apoio da lógica da guerra, se não por
outro motivo, porque tal aumento já aconteceu, ininterruptamente, há mais de vinte anos.
Em comparação com 2019, o aumento, em 2020, foi de 2,6% a nível global e de 7,5% na Itália.
A despesa total no mundo soma quase 2.000 bilhões de dólares anuais, dos quais 39% (776
bilhões, contra os 252 da China e os 62 da Rússia) gastos apenas pelos Estados Unidos,
que encheram o planeta com 800 bases militares. Para que serve, perguntamo-nos, acu-
mular mais armamentos inúteis, se não para alimentar o clima de guerra e, obviamente,
para satisfazer os interesses do complexo militar-industrial? Ambas as opções, o envio de
armas à resistência ucraniana e o aumento das despesas militares estão, portanto, unidos
por uma opção militarista: da ideia suicida das armas como única solução estratégica das
controvérsias internacionais, em literal contraste com o art. 1.º da Carta da ONU, com
o art. 11 da Constituição italiana e, de modo mais geral, com os princípios da paz e da
igualdade de todos os seres humanos nos direitos fundamentais. Uma igualdade, deve-
mos acrescentar, que continuamos a proclamar como um valor do Ocidente agredido e, ao
mesmo tempo, a violar nos confrontos dos quatro quintos da humanidade.
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4. Por uma Constituição da Terra
É neste último ponto que quero me focar. Não podemos continuar a falar decentemente
de defesa da democracia, dos princípios da igualdade e dignidade da pessoa e de
universalismo dos direitos humanos ameaçados pelas autocracias, até quando estes
princípios permanecerem um privilégio dos nossos países – não mais de um bilhão de
pessoas sobre quase oito bilhões de seres humanos – enquanto para o resto do mundo não
há outra coisa que retórica vazia. Não podemos continuar a declamá-los como “valores
do Ocidente”, enquanto aqueles princípios, proclamados como universais por todas as
cartas dos direitos, não são garantidos a todos os seres humanos, mas somente a uma
exígua minoria deles. Uma vez que aqueles valores ou são universais, ou não são. Hoje
as nossas democracias estão em declínio, submetidas à dupla ameaça da onipotência da
maioria política desenraizada de suas bases sociais e dos poderes dos mercados globais.
Mas, sobretudo, os direitos humanos e os princípios de igualdade e dignidade das pessoas,
proclamados em tantas cartas constitucionais e internacionais, são promessas não manti-
das: implementadas, além de tudo mal, em poucos países privilegiados e flagrantemente e
sistematicamente violadas para o resto da humanidade, também por causa da política de
roubo, de exploração e exclusão praticada pelo Ocidente civilizado. A conclamada inviola-
bilidade deles, como a sua indivisibilidade e universalidade não são nada além de palavras,
contraditas pelas suas violações sistemáticas e pela sua falta de implementação, pela falta
de garantias, em grande parte do mundo. Na ausência de uma esfera pública mundial,
capaz de garanti-las, as desigualdades estão destinadas a crescer, os poderes globais, tanto
políticos como econômicos, só podem desenvolver-se em formas selvagens e destrutivas,
as violações maciças dos direitos humanos só podem se espalhar e todos os problemas
globais só podem agravar-se.
Existe, portanto, uma questão de fundo que esta guerra impõe enfrentar. A guerra, e
antes ainda a pandemia, nos mostraram toda a dramaticidade delas a inadequação das
instituições internacionais existentes e, sobretudo, o perigo representado pelo vácuo de
garantias nos confrontos dos poderes selvagens dos Estados soberanos e dos mercados
globais. As duas tragédias – pandemia e guerra – são, por muitos aspectos, opostas. A
pandemia, com os seus 6 milhões de mortos, mostrou a interdependência e a comum
fragilidade da humanidade, a insensatez das fronteiras e dos confrontos identitários e
a disponibilidade à solidariedade das opiniões públicas e também da política. A guerra,
com seus milhares de mortos, as cidades devastadas e mais de 10 milhões de deslocados,
está gerando, ao contrário, ódio entre povos, lógicas políticas de amigo/inimigo, lacera-
ções entre nacionalidade que não serão fáceis de curar. Ambas as tragédias são, todavia,
uma dramática confirmação da insensatez e da periculosidade do estado atual do mundo e
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sinalizam a necessidade e a urgência de uma refundação da ONU baseada em sua Consti-
tuição da Terra em seu auge. É este o projeto do movimento “Terra Constituinte” formado
em Roma na assembleia de 21 de fevereiro de 2020 e por mim ilustrado no livro Para uma
Constituição da Terra, publicado neste ano por Feltrinelli.
Além da guerra e das pandemias, são muitos outros os desafios e os perigos que amea-
çam o futuro da humanidade e que somente um constitucionalismo global pode enfren-
tar. Antes de tudo, a emergência ecológica, que a guerra está agravando e juntamente
removendo do horizonte da política, mas que continua a ser uma ameaça, talvez mais
grave, para o futuro da humanidade. Pela primeira vez na história, o gênero humano, por
causa do aquecimento climático, arrisca a extinção para a progressiva inabitabilidade de
partes crescentes do nosso planeta. Por muitas décadas, a concentração no ar de dióxido
de carbono cresce de maneira progressiva: cada ano, constantemente, é liberada na atmos-
fera uma quantidade de CO2 maior do que aquela liberada no ano precedente. É claro que
enquanto esse processo não for invertido, quererá dizer que estamos caminhando para a
ruina.
Há, então, os direitos de emergência. A globalização, com o poder das grandes empre-
sas de deslocar a atividade produtiva delas nos países nos quais é possível a exploração
ilimitada dos trabalhadores, desvalorizou o trabalho a nível global, cancelando, nos países
avançados, as garantias conquistadas em um século de lutas e reduzindo o trabalho, nos
países pobres, à formas e a condições para-escravagistas. Por causa da miséria crescente,
além de tudo, morrem, cada ano, oito milhões de pessoas por falta de alimentação básica e
tantas outras por falta de tratamento médico e medicamentos que salvam vidas, vítimas
do mercado, além das doenças, já que os fármacos que podem salvá-los não estão disponí-
veis nos seus países pobres, ou porque são patenteados e, portanto, muito custosos, ou por-
que não mais produzidos por falta de demanda dado que relacionados a doenças – infec-
ções respiratórias, tuberculose, AIDS, malária – erradicadas e desaparecidas nos países
ricos. Daí o drama de dezenas de milhares de migrantes, cada um dos quais tem por trás
uma dessas tragédias. Daí o ódio pelo Ocidente, o descrédito dos seus valores políticos, o
desenvolvimento da violência, dos racismos, dos fundamentalismos e dos terrorismos.
É claro que desafios globais dessa magnitude requerem respostas globais: o progressivo
desarmamento, não somente nuclear, de todos os Estados e a proibição de todas as armas
como bens ilícitos; a superação dos exércitos nacionais esperada há mais de dois séculos
desde Kant e a realização, como garantia da paz e da segurança, do monopólio da força
para a ONU e as polícias locais; a instituição de uma propriedade estatal planetária que
retira os bens comuns e vitais – o ar, a água potável, as grandes florestas e as grandes
geleiras – das apropriações privadas, das mercantilizações e das devastações por obra do
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mercado; a introdução de proibições, finalmente sancionadas, das emissões de gases com
efeito estufa e da produção de resíduos em todo caso venenosos; a igualdade nos direitos
e na dignidade de todos os seres humanos através da criação de instituições globais de
garantia de todos os direitos fundamentais, dos direitos de liberdade aos direitos sociais à
saúde, à educação, à alimentação e à subsistência, como um serviço sanitário e um sistema
de educação mundial com hospitais, farmácias, vacinas, escolas e universidades em todo
o mundo; a unificação do direito do trabalho e a globalização das garantias dos direitos
dos trabalhadores, capazes de assegurá-los a igualdade e a dignidade contra a hodierna
exploração ilimitada; a instituição de uma Corte constitucional supraestatal, com o poder
de invalidar todas as fontes normativas que violam direitos humanos, e a transformação,
de voluntária em obrigatória, da competência da Corte de justiça e da Corte penal interna-
cional; a introdução, enfim, de um adequado sistema tributário global progressivo, capaz
de financiar as instituições globais de garantia e de impedir as atuais concentrações ili-
mitadas da riqueza.
Medidas desse gênero, é evidente, podem ser impostas somente por uma refundação
da Carta da ONU por obra de uma Constituição da Terra rigidamente supraordenada às
fontes estatais e aos mercados globais. Só uma Constituição da Terra que introduza as
funções e as instituições globais de garantia dos direitos proclamados em tantas cartas
e convenções pode tornar crível o princípio da igualdade e o universalismo dos direitos
humanos. Só uma Constituição mundial, que alargue além dos Estados o paradigma do
constitucionalismo rígido experimentado nas nossas democracias pode transformar pro-
messas e compromissos políticos, como aqueles feitos em matéria de meio ambiente pelo
G20 em Roma e depois em Glasgow, em limites e em obrigações jurídicas efetivamente
vinculantes.
Não se trata de uma utopia. Se trata, em vez disso, da única resposta racional e realís-
tica ao mesmo dilema que foi enfrentado faz quatro séculos por Thomas Hobbes: a insegu-
rança geral determinada pela liberdade selvagem dos mais fortes, ou o pacto racional de
sobrevivência e de convivência pacífica baseado na proibição da guerra e na garantia da
vida. Com uma diferença de fundo, que torna o dilema hodierno enormemente mais dra-
mático: a sociedade natural do homo homini lupus, hipotetizada por Hobbes, foi substituída
por uma sociedade de lobos não mais naturais, mas artificiais – os Estados e os mercados
– dotados de uma força destrutiva incomparavelmente maior do que qualquer armamento
do passado. Diversamente de todos os horrores do século passado – mesmo das guerras
mundiais e dos totalitarismos – a catástrofe ecológica e aquela nuclear são irreversíveis:
há, de fato, o perigo, pela primeira vez na história, que se tome consciência da necessidade
de mudar de caminho quando for tarde demais.
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Tampouco se trata de uma invenção, nem de uma mudança do atual paradigma cons-
titucional. Se trata, ao contrário, de um seu cumprimento, isto é, de uma implantação do
princípio da paz e do universalismo dos direitos humanos como direitos de todos já con-
sagrados na Carta da ONU e em tantas cartas constitucionais e internacionais. A lógica
intrínseca do constitucionalismo, com os seus princípios de paz e de igualdade nos direi-
tos humanos, não é nacional, mas universal. Os Estados nacionais e as suas constituições
são, por outro lado, impotentes diante dos desafios globais, os quais requerem respostas e
garantias jurídicas, por sua vez, globais. E o pacto de convivência pacífica estipulado com
a Carta da ONU e com as tantas cartas internacionais dos direitos humanos fracassou por
duas raes: porque contradito pela persistente soberania dos Estados e pelas suas cida-
danias desiguais, e porque não foram instituídas as necessárias garantias globais, sem as
quais os direitos e os princípios de justiça, ainda que solenemente proclamados, se redu-
zem a enganosa ideologia.
Nessa perspectiva vem contraposta, em nome do realismo político, a ideia do seu
caráter utópico e irrealizável. Eu penso que devemos distinguir dois tipos opostos de rea-
lismo: o realismo vulgar da quem naturaliza a realidade social e política com a tese “não
há alternativas a quanto de fato acontece”, e o realismo racionalista, segundo o qual as
alternativas existem, depende da política adotá-las e a verdadeira utopia, a hipótese mais
irrealista, é a ideia que a realidade possa permanecer por muito tempo como está: que
podemos continuar a basear as nossas democracias e os nossos despreocupados padrões
de vida com fome e a miséria do resto do mundo, com a força das armas e o desenvolvi-
mento ecologicamente insustentável das nossas economias. Tudo isso não pode durar. É o
mesmo preâmbulo da Declaração dos direitos de 1948 que estabelece, realisticamente, um
nexo de implicação recíproca, como só uma Constituição da Terra e as suas instituições
de garantia podem assegurar, entre paz e direito, entre segurança e igualdade e, devemos
acrescentar hoje, entre salvação da natureza e salvação da humanidade.
Por outro lado, a humanidade forma já um único povo. Faz sessenta anos, eu lembro,
éramos, no planeta, dois bilhões de pessoas, mas o que sucedia na outra parte do mundo
não nos preocupava. Hoje a população mundial chegou a 8 bilhões, mas estamos todos
interconectados, submetidos ao governo global da economia e expostos às mesmas emer-
gências e catástrofes planetárias. Somos, portanto, um único povo, mestiço e heterogêneo,
mas unificado pelos mesmos interesses na sobrevivência, na saúde, na igualdade e na paz,
que só a miopia dos poderes políticos não é capaz de ver e que, assim, se esconde com a
defesa das fronteiras. A lógica schmittiana do amigo/inimigo é uma construção propa-
gandística em apoio dos populismos e dos regimes autoritários que está hoje contagiando,
infelizmente, também as nossas democracias. Se os máximos governantes do planeta, ao
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Pacifismo e constitucionalismo global
Pacifism and global constitutionalism
LUIGI FERRAJOLI
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXIII · Issue Fascículo 1‑2 · 1st January Janeiro – 31st December Dezembro 2022 · pp. 11‑21
invés de se empenharem na base dessa lógica nas suas míopes e miseráveis políticas de
potência, fossem capazes de tirar lições da história, esta terrível guerra na Ucrânia seria
uma fonte inexaurível de ensinamentos. Ensinaria – contra a insensatez das guerras, das
armas, das fronteiras, dos nacionalismos e dos conflitos identitários – o valor racional,
nos interesses de todos, da paz universal e da igualdade de todos os seres humanos em
dignidade e direitos e a necessidade das garantias necessárias para assegurá-las.