GALILEU · e-ISSN 2184-1845 · Volume XXIII · Issue Fascículo 1-2 · 1st January Janeiro – 31st December Dezembro 2022 · pp. 39-62 39
Efeitos extraprocessuais do estado de inocência
– limites aos juízos paralelos condenarios
Extraprocedural eects of the presumption of innocence – limits
to condemnatory parallel judgments
NEREU JOSÉ GIACOMOLLI1
nereu@giacomolli.com
ROGER MACHADO
roger_rm@globo.com
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXII · 1st January Janeiro–31ST December Dezembro 2022 · pp.3962
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXIII.1/2.3
Submitted on June 5th, 2022 · Accepted on June 29th, 2022
Submetido em 21 de Junho, 2022 · Aceite a 29 de Junho, 2022
RESUMO O artigo objetiva avaliar o reconhecimento do estado de inocência como
exigência constitucional e convencional de tratamento, em sua dimensão extraprocessual,
para além das autoridades públicas, aplicando-se aos particulares, inclusive aos meios de
comunicação. Propõe-se uma alise da publicidade processual a partir da presunção de
inocência, definindo o que entende por juízos paralelos condenatórios, com abordagem
a partir do confronto entre liberdade de expressão e estado de inocência. Com utilização
do método hermenêutico-dialético, parte da hipótese de possível compatibilização da
publicidade dos casos penais com o estado de inocência, problemática suscitada. Apresenta
disposições legais do ordenamento jurídico penal brasileiro para enfrentar o problema
das violações cotidianas ao estado de inocência, com foco na Lei 13.869/2019 (abuso de
autoridade), a qual contempla, mesmo que parcialmente, a dimensão extraprocessual,
na perspectiva da tutela penal do estado de inocência. A publicidade do caso criminal
compatibiliza-se dom o estado de inocência quando não são emitidos juízos prévios
1 Doutor em Direito pela Universidad Complutense de Madrid. Pesquisador e professor no Mestrado e Doutorado
em Ciências Criminais da PUCRS, Brasil. Investigador integrado do Ratio Legis – Centro de Investigação em Ciên-
cias Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa, Projeto de I&D: «Corpus Delicti – Estudos de Criminalidade
Organizada Transnacional». Advogado e consultor jurídico. E-mail: nereu@giacomolli.com. Orcid: https://orcid.
org/0000-0003-1753-0334.
2 Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela UNISINOS,
Brasil. Assessor no Ministério Público Federal do Brasil. E-mail: roger_rm@globo.com. ORCID: https://orcid.
org/0000-0002-7530-0249
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Extraprocedural eects of the presumption of innocence – limits to condemnatory parallel judgments
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condenatórios ou quando a forma e conteúdo da comunicação induzem à formação e
compreensão de que o suspeito, investigado ou processado seja culpado.
PALAVR AS-CHAVE Estado de inocência. Exigência de tratamento. Juízos Paralelos. Abuso
de Autoridade. Tutela penal.
ABSTRACT The article aims to assess the recognition of the presumption of innocence as
a constitutional and conventional form of treatment, in its extra procedural dimension,
beyond public authorities, applying to privates agencies, including the media. It proposes
an analysis of procedural publicity from the presumption of innocence, defining whats
meant by condemnatory parallel judgments, with an approach based on a compatibility
between freedom of expression and presumption of innocence. Using the hermeneutic
dialectic method, it starts from the hypothesis of a possible compatibility of publicity
in criminal cases with the presumption of innocence, a problem raised. It presents legal
provisions of the Brazilian criminal legal system to address the problem of daily violations
of the innocence, focusing on Law 13.869/2019 (authority abuses), which includes, even
partially, the extra-procedural dimension, from the perspective of criminal protection
the presumption of innocence. The publicity of the criminal cases is adequate to the
presumption of innocence when there aren’t previous judgments or when the form and
content or the communication there aren’t induces the formation an understanding that a
suspect investigated or prosecuted is guilty.
KEYWORDS Presumption of innocence. Treatment form. Parallel judgments. Authority
Abuse. Criminal protection.
I. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A inocência em seu contexto jurídico-processual, essencialmente como veto à antecipa-
ção de juízos incriminatórios contra suspeitos e acusados, e aqui enfocada pela noção de
exigência constitucional e convencional de tratamento, gera uma gama de problemas. A
abordagem delimita-se a seguinte problemática: o estado de inocência3 é compatível com
as liberdades de expressão e de imprensa? Informação, publicidade, opinião e juízos pré-
vios ao processamento criminal ofendem a presunção de inocência? A abordagem, a partir
dessa problemática, tem por escopo evidenciar a dimensão extraprocessual da presunção
de inocência, de modo a fornecer subsídios à solução da problemática proposta.
3 Utilizamos a expressão “estado de inocência” por representar o conteúdo material e processual da expressão “pre-
sunção de inocência”.
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O articulado parte da hipótese prévia da existência de juízos midiáticos paralelos que
agridem o princípio-garantia constitucional e convencional da presunção de inocência.
Ademais, apresenta-se a hipótese extraprocessual da presunção de culpa e não da presun-
ção de inocência, desconsiderando-se o princípio-garantia. O objetivo é enfrentar o tema
da presunção de inocência em sua vertente extraprocessual, circunscrevendo o ponto
específico dos juízos paralelos condenatórios. Ademais, ingressa no tema problemático
da relação entre inocência e liberdades de expressão, demonstrando como a incompatibili-
dade entre esses direitos é aparente e mobilizada por interesses diversos, nem tanto pelos
empecilhos teórico-práticos e normativos.
Utilizando de revisão bibliogfica e da hermenêutica constitucional e convencional
(Cases da Corte IDH e do TEDH) num primeiro momento, o artigo aborda a presunção de
inocência como exigência de tratamento para, num segundo apartado adentrar na compa-
tibilidade ou não da publicidade dos casos criminais com o princípio-garantia da presun-
ção de inocência. Por fim, são enfocados os juízos condenatórios midiáticos prévios, em
face da presunção de inocência, enfocando-se, inclusive, o art. 38 da Lei 13.689/2019 (abuso
de autoridade), bem como diversas disposições da tutela penal da presunção de inocência,
encerrando-se o articulado com as considerações finais, com retomada do problema e das
hipóteses e do que o artigo se propõe.
1. O estado de inocência como exigência de tratamento
A exigência constitucional4 e convencional5 de tratamento, em seu caráter exógeno, extra-
pola os limites patrimoniais e de liberdade, abarcando uma projeção a refletir na honra e
na dignidade humanas, bem como no devido processo penal. Engloba direitos cujo res-
peito traduz uma necessária preservação da condição de inocente6. Esta não veda um grau
de suspeita, mas proíbe juízos antecipados de culpa, emitidos por autoridades públicas na
investigação, no processamento, bem como os pronunciados pelos demais agentes estatais
(projeção vertical). Igualmente, abarca os meios de comunicação quando não observarem
4 Art. 5.º, LVII, CF – Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória
5 Art. 8.2, CADH – Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se compro-
ve legalmente sua culpa. Art. 14. § 2.º, PIDCP – Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua
inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. VEGAS TORRES, Jaime. Presunción de inocência y prueba
en el processo penal. Madri: La Ley, 1993, p. 15 e ss. uma análise da presunção de inocência na Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, em diversos diplomas internacionais e textos internacionais.
6 Em GIACOMOLLI, Nereu José. “Art. 5.º, LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de
sentença penal condenatória”, em GOMES CANOTILHO,J.J. MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W. e STRECK,
Lênio. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina e IDP, 2018, p. 477, a abrangência do âmbito
de proteção da presunção de inocência.
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a presunção de inocência (projeção horizontal). A própria Corte IDH revela projetar-se o
tratamento como inocente, inclusive na vedação aos (pré)juízos antecipados de culpa: a
abrangência do dever de tratamento como respeito ao status de inocente, para além das
implicações na seara das medidas privativas de liberdade7, respalda a proibição de juízos
prematuros sobre a responsabilidade criminal do investigado ou processado8. Essa ofensa
se dá, mormente na abordagem, divulgação e juízo prévio acerca do caso criminal (“jul-
gamento”), verdadeiras condenações informais. Esses juízos midiáticos, segundo Puente
configuram um “enjuiciamento publico de conductas socialmente reprobables” à margem do
exclusivo poder jurisdicional do Estado9, na publicidade abusiva e na estigmatização pre-
coce pelo processo penal10. Uma das hipóteses a essa desconsideração poderá ser a limita-
ção da presunção de inocência ao aspecto interno do procedimento criminal.
O estado de inocência se constitui em vetor de controle, de proteção externa do sus-
peito, acusado ou condenado, cuja publicidade abusiva incrementa a estigmatização pelo
procedimento, pela condição de investigado, preso ou processado. O fato de pender inves-
tigação ou processo penal não retira do sujeito a integralidade do status que lhe confere o
estado de inocência, motivo por que há de ser afastada qualquer estigmatização em face
da imputação (tratamento externo), de uma sentença sem o tnsito em julgado ou mesmo
de uma sentença absolutória ou de extinção de punibilidade.
A presunção de inocência, além de vedar que o julgador, desde o início do processo,
aja condicionado e com um pré-juízo (aspecto interno), também veda, em uma dimensão
mais elástica ao procedimento (aspecto externo) manifestações de juízos incriminatórios
por meio de canais de comunicação ou, de modo geral, por meios de divulgação e propa-
gação de informações, ou seja, a exigência de que o Estado não condene informalmente
um sujeito ou emita um juízo perante a sociedade, contribuindo à formação da opinião
pública, enquanto não tenha uma comprovação da culpa11. Declarações públicas ou infor-
mações acerca de suspeitas ou sobre um caso criminal (direito à informação à cidadania)
7 ILLUMINATI, GIULIO. La presunzione d’innocenza dell’imputato. Bolonha: Zanicheli, 1984, p. 31 e ss., uma aborda-
gem acerca do tratamento do acusado, informado pela presunção de inocência, mormente no que tange à prisão
preventiva.
8 Vid. Caso Ruano Torres y Otros v. El Salvador, § 127 (2015) – Corte IDH ; Caso Lori Berenson Mejía v. Perú, § 160 (2004)
– Corte IDH.
9 Em OVEJERO PUENTE, Ana Maria. Presunción de inocencia y juicios paralelos en derecho comparado. Madrid: Tirant Lo
Blanch, 2017, p. 11. Nas p. 12 e 13 afirma que, diversamente da perspectiva de limitação da presunção de inocência,
pela Revolução Francesa, às barreiras de atuação do Estado, na contemporaneidade, a violência ao devido proces-
so se dá também por agentes privados.
10 Em GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José
da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2015, p. 106. V. também, LOPES JR, Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva
Educação, 2019. E-book. Disponível em: https://app.saraivadigital.com.br/leitor/ebook:646824. Consulta em base
de dados mediante assinatura.
11 Vid. Caso J. v. Peru, §§ 246 e 247 (2013), da Corte IDH.
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diferenciam-se de emissão de juízos de culpa antes de uma sentença definitiva com tn-
sito em julgado, em face da exigência da preservação da presunção de inocência (art. 5,
LVII, CF)12.
Assim, o campo de aplicação da presunção de inocência não se limita ao âmbito do
Poder Judiciário e às autoridades que venham a decidir sobre a culpabilidade do acusado.
A liberdade de expressão assegura, tanto o direito de receber como o de comunicar infor-
mações, mas respeitada a presunção de inocência13. O que importa, efetivamente, é o sen-
tido real das declarações14, o relato das circunstâncias particulares com as quais foram
formuladas, bem como a ideia será percebida pelos comunicados e neles incutida. Insuflar
a opinião pública, criar uma imagem ou opinião negativa15 por uma mera suspeita, trans-
mitindo uma concepção prévia de culpa revela o estágio patológico e desmaterializador da
informão16. Decisões ou declarações que refletem um sentimento de culpabilidade, um
pré-julgamento17 sobre o suspeito diferenciam-se daquelas que se limitam a descrever um
estado de suspeita18.
Além de marcadores procedimentais objetivos como o arquivamento de inquérito poli-
cial, rejeição da denúncia, absolvição sumária, sentença e acórdãos (primeiro elemento),
12 Vid. Caso Allenet de Ribemont v. France, §§ 36/41 (1995), do TEDH.
13 Vid. Caso Svetlana Zhuk v. Bielorússia, do Comitê de Direitos Humanos da ONU (Comunicação n.º 1910/2009), An-
drei Zhuk, ainda quando suspeito foi exposto pelos meios de informação estatais, inclusive pelo principal canal
de televisão, sendo chamado de criminoso desde o começo da investigação. Em entrevista, o Ministro do Interior
referiu-se a Andrei e aos corréus como criminosos antes de que fossem declarados culpados. O Comitê reconhe-
ceu afronta à presunção de inocência, diante da precipitação de juízos por parte de agentes estatais.
14 Vid. Caso Saidova v. Tajiquistão (2004) do Comitê de Direitos Humanos da ONU. O ex-esposo da comunicante,
Sr. Saidov, foi preso, acusado e condenado à morte por diversos crimes (bandoleirismo, associação criminal,
usurpação de poder mediante recurso à violência, incitação à quebra da ordem constitucional, aquisição e posse
ilegal de armas e munições, terrorismo e assassinato). Dentre as várias irregularidades mencionadas na denún-
cia (tortura, maus tratos, confissão forçada), apontava-se que durante a investigação se difundiu e publicou,
constantemente, nos meios de comunicação nacionais, controlados pelo Estado, informação em que se tratava
o Sr. Saidov e a outros acusados de “criminales, amotinados, etc” contribuindo desta maneira a criar uma opinião
pública negativa. Diante da falta de manifestação do Estado quanto a isso, o Comitê considerou relevantes as
alegações da parte requerente e advertiu que o comportamento estatal atinente à ampla cobertura midiática
contra o Sr. Saidov violou a presunção de inocência prevista no art. 14. 2, PIDCP.
15 Vid. Caso Gridin v. Rússia (1997) do Comitê de Direitos Humanos da ONU. Em 25/11/1989, suspeito foi preso por
ser suspeito de abuso e de assassinato de uma mulher. Depois da prisão, outras seis acusações lhe foram feitas.
No período entre 26 a 30 de novembro de 1989, foi apresentado em emissoras de rádio e em periódicos como el
temible asesino de los ascensores que había violado a varias muchachas, dando muerte a tres de ellas”. Em 09/12/89, o chefe
de polícia anunciou que estava convicto de que Gridin era o assassino, o que foi difundido pela televisão. O in-
vestigador afirmou a culpabilidade em diversas oportunidades públicas, prévias à audiência judicial, insuflando
a opinião pública contra o suspeito, o que resultou, inclusive, num comportamento hostil de parte do público
presente no dia do julgamento. V. Comunicação n.º 770/1997 do Comitê de Direitos Humanos da ONU, o qual
concluiu que houve violação ao art. 14. 2, PIDCP, pois as autoridades estatais não atuaram com o comedimento
exigido pela presunção de inocência e assinalado na Observação Geral n.º 13/84.
16 Vid. Caso Gutsanovi v. Bulgarie, § 192 a 197 (2014), do TEDH.
17 Vid. Observação-Geral n.º 13 de 1984 e Observação Geral n.º 32 de 2007, do Comitê de Direitos Humanos da ONU.
18 Vid. Observação Geral n.º. 32 do Comitê de Direitos Humanos da ONU.
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mesmo um juízo condenatório definitivo, com trânsito em julgado, não retroage para
prejudicar os juízos emitidos antes da situação processual ter sido pacificada (segundo
elemento) no âmbito do devido processo penal (terceiro elemento). Um quarto aspecto diz
respeito à vedação de as autoridades emitirem juízos prévios de culpa, sejam elas públicas
ou privadas (órgãos de imprensa e congêneres), na perspectiva objetiva e como reflexo da
eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
2. Estado de inocência e publicidade
A publicidade dos atos processuais é regra constitucional (arts. 5, XL e 93, IX, CF), assim
como, em geral, o dever de publicidade dos atos da administração pública (art. 37, caput,
CF). Na normatividade ordiria, a publicidade processual foi inserida em vários disposi-
tivos: art. 792 do CPP; art. 189 do CPC; art. 387 do CPPM; art. 2, parágrafo único, V, da Lei
n.º 9.784/99. A garantia consta também na convencionalidade a que o Brasil aderiu, como o
art. 8. 5, da CADH e o art. 14.1, do PIDCP. Na esfera interna ou restrita, a publicidade afasta
a possibilidade de expedientes secretos e inacessíveis às partes e aos respectivos advoga-
dos. Essa dimensão admite, excepcionalmente, alguma restrição, normalmente atrelada a
diligências investigatórias em andamento ou na iminência de serem realizadas e que, por
sua natureza, seriam prejudicadas caso houvesse divulgação. É o que ocorre com as inter-
ceptações telefônicas, gravação ambiental, quebra de sigilo de dados bancários, fiscais,
telemáticos, por exemplo19. Ao que a presunção de inocência mais afeta, cinge-se à publi-
cidade externa, a que é acessível à cidadania20. Restringe-se o acesso e conhecimento ao
público em geral, à comunidade jurídica em particular, de informações acerca do investi-
gado, das provas e dos julgamentos. Essa restrição submete-se à reserva legal e jurisdicio-
nal, em razão da tutela da privacidade (art. 5.º, X, CF)21. Há permissivos de restrição, tanto
na proteção da intimidade, quanto de ordem pública (art. 5.º, XL, CF), o que também pode
ser inferido do art. 14.1 do PIDCP e do art. 8.5 da CADH (preservar os interesses da Justiça).
A intimidade referida no dispositivo constitucional não enseja maiores discussões,
embora uma lei que a regule há de definir casos em que a proteção deva sobrepor-se à
19 Vid. GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José
da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2015, p. 359 e ss.
20 Vid. BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 73 e ss.
21 Em SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 252 e ss.;
COPETTI, André, em: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang;
STRECK, Lênio Luiz. (coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina/IDP, 2013, p. 450;
GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da
Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2015, p. 360.
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publicidade, fornecendo parâmetros de resolução de casos criminais e de conflitos. A pro-
pósito do tema, merece relevo o fato de que o art. 189, III, do CPC, prevê a hipótese do
segredo de justiça quanto a processos que contenham dados referentes a direitos protegi-
dos pela intimidade22. Também é de ser admitida a restrição à publicidade quando neces-
sária a proteção de outros direitos fundamentais relevantes, como o direito à honra, à ima-
gem, à vida privada, à intimidade, ou sigilo de correspondências e comunicações em geral,
sendo indispensável uma compatibilidade entre os direitos envolvidos.
Como pontuado, em hipótese de colisão entre liberdade de expressão e o direito a um
julgamento justo, pode ser que a restrição à publicidade traduza uma das formas mais
eficazes de arrefecer eventual campanha da mídia em prol de condenação criminal23.
Defender a publicidade externa não é vinculá-la aos interesses midiáticos de exploração
da miséria das vítimas e de seus familiares e nem às finalidades econômicas e de manu-
tenção da permanência do grande auditório24. Há de ser evitada e minimizada a funcio-
nalidade negativa e estigmatizante da publicidade ao imputado, com a publicização de
atos processuais, inclusive de audiências, com divulgação da situação de réu, processado,
cuja compreensão pelo senso comum já é a de culpado. Por isso, a restrição à publicidade
externa é assecuratória do estado de inocência. O que importa ao Estado de Direito é que
a infração criminal está sendo apurada, que o Estado está cumprindo suas funções, mas
não a exposição da imagem, do nome completo, do endereço, trabalho e laços familiares.
Ademais, publicizar o acontecer judicial não é transformar as audiências e os julgamentos
em um reality show judicial para a mídia angariar dividendos em suas diversas perspecti-
vas (comercial, ideológica, política, v. g.)25.
Contudo, o princípio da publicidade não é absoluto e muito menos escudo a práticas
ilícitas. Há de ser matizado, “pois há momentos em que o sigilo é imprescindível para não
comprometer diversas liberdades públicas, como a honra, a imagem, a intimidade, a vida
privada, etc”26. A publicidade, segundo a Corte IDH, é uma garantia judicial estabelecida
em favor das partes envolvidas, mas também do público. Trata-se de um elemento essen-
22 Em SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 252.
Por sua vez, COPETTI, André, em: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo
Wolfgang; STRECK, Lênio Luiz. (coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina/IDP,
2013, p. 450, afirma que as previsões mais genéricas de restrição à publicidade previstas na CF alinham-se com
o art. 5.º, X, CF
23 Em SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 255.
24 Em GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José
da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2015, p. 360.
25 Em LUZ, Denise; GIACOMOLLI, Nereu José. “Vinculação dos órgãos da imprensa ao estado de inocência”. Novos
Estudos Jurídicos, Itajaí/SC, v. 23, n.º 1, jan./abr. 2018, p. 6-34 Disponível em: https://siaiap32.univali.br/seer/index.
php/nej/article/view/12783. Acesso em 24 dez. 2020.
26 Em BULOS, Uadi. Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 684.
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cial do modelo processual penal acusatório em um Estado Democrático de Direito, garan-
tido pela realização de uma etapa oral na qual o acusado mantém contato direto com o juiz
e com as provas, facilitando-se o acesso ao público. Assim, fica proscrita a administração de
justiça secreta, submetendo-a ao escrutínio das partes e do público, relacionando-se com
a transparência e com a imparcialidade. Configura um meio de fomentar a confiança das
pessoas no sistema de justiça27. E a publicidade no processo penal, segundo a Corte IDH é
a regra, admitindo, nos termos do art. 8.5, CADH, que, excepcionalmente, seja restringida
a fim de preservar os interesses da justiça. Mas nesses casos caberá ao Estado justificar
a medida de restrição, demonstrando a necessidade e a proporcionalidade da limitação28.
O Brasil assumiu o compromisso internacional29, também em matéria de publicidade
das audiências e, em geral, dos processos criminais, embora se possa admitir, por algu-
mas razões, a restrição da publicidade, inclusive contra meios de comunicação30. Dentre as
razões que podem legitimar a restrição estão a proteção da vida privada da pessoa ou a pre-
servação dos interesses da justiça. Por ser o processo o locus adequado à imposição da pena
é que se reveste de uma série de garantias fundamentais. A dimensão extraprocessual da
presunção de inocência, no entanto, extrapola dos limites processuais para se impor con-
tra atitudes e comportamentos que pretendem, numa arena quase ilimitada (redes sociais
e meios de comunicação), atingir a condição de inocentes de pessoas investigadas e acu-
sadas. Se faz necessário atentar a todas as dimensões da presunção de inocência, devendo
abarcar também a extraprocessual31.
A vedação à antecipação de juízos acerca da culpa de um suspeito ou acusado, não
implica, necessariamente, interferência na publicidade processual. Em se tratando de
devido processo penal, aos sujeitos estatais são outorgados espaços e momentos adequa-
dos a suas intervenções, especialmente quanto ao mérito do caso criminal. As manifes-
tações públicas para que juízos prévios sejam incorporados não traduzem, em hipótese
alguma, cumprimento de dever legal dos agentes públicos, mas violações explícitas de um
direito fundamental que orienta e fundamenta a própria existência do processo penal, ou
seja, da presunção de inocência32.
27 Vid. Caso Palamara Iribarne v. Chile, §§ 167-168 (2005), da Corte IDH; J. v. Peru (2013), da Corte IDH.
28 V. Caso J. v. Peru (2013) da Corte IDH.
29 Vid. art. 14.1, do PIDCP.
30 Vid. Observação Geral n.º 32 do Comitê de Direitos Humanos da ONU.
31 Em OVEJERO PUENTE, Ana Maria. Presunción de inocencia y juicios paralelos en derecho comparado. Madrid: Tirant
Lo Blanch, 2017, p. 11 e ss.
32 Em VEGAS TORRES, Jaime. Presunción de inocência y prueba en el processo penal. Madri: La Ley, 1993, p. 13 e ss. a
previsão internacional do que denomina de “direito fundamental à presunção de inocência.
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Efeitos extraprocessuais do estado de inocência – limites aos juízos paralelos condenatórios
Extraprocedural eects of the presumption of innocence – limits to condemnatory parallel judgments
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Isso nos conduz a um segundo aspecto: o vazamento de informações não se constitui
em publicidade. Esta, enquanto princípio constitucional da Administração Pública, há de
ser compreendida como uma prática administrativa revestida de legalidade e dos demais
princípios norteadores da atividade estatal, como a impessoalidade e a imparcialidade que,
dentre tantas outras consequências, são incompatíveis com o fornecimento seletivo de
informações de determinados casos criminais aos meios de comunicação. A única publi-
cidade legítima é a que se operacionaliza pelos meios legais e por formas transparentes
de concretização. Nesse contexto, os filtros seletivos realizados por agentes estatais para
fornecimento de informações sobre investigações e processos a canais de comunicação e
a jornalistas específicos configuram prejulgamentos dissimulados33. Essa espécie de com-
portamento induz à formação de uma opinião pública(da) aderente a versões incrimina-
tórias prévias ao devido processo penal, com todas as suas decorrências convencionais,
constitucional e de legislação ordinária. Um dos perigos é a possibilidade de as decisões
judiciais serem influenciadas, mesmo que implicitamente, por exigências populares e
midiáticas.
Mesmo quando seja possível ao órgão de comunicação acessar os autos de determi-
nada investigação ou de processo judicial, há informações, dados, que estão acobertados
por sigilo legal ou constitucional, razão pela qual limitam o direito à informação e à publi-
cidade. O art. 93, IX, CF sinaliza na direção de uma preponderância do interesse público
na informação, mesmo quando em jogo a intimidade do sujeito. Contudo, o art. 5, LX, CF
reconhece que a intimidade ou o interesse social são aptos a restringir a publicidade dos
atos processuais. O art. 792 do CPP corresponde, segundo Badaró, ao comando constitu-
cional do art. 5.º, LX, CF34. De fato, o preceito ordinário prevê a publicidade como regra,
mas admite exceções para resguardar os sujeitos processuais. Mesmo naqueles casos em
que for sedutora a tese da preponderância da informação em detrimento da intimidade,
há que ser considerada a presunção de inocência. Isso para vedar juízos prévios, gerados
pela publicização, com potencialidade de condicionar a formação de juízos condenatórios.
Apublicidade processual não se cumpre por expedientes que violem direitos.
3. O estado de inocência como limite aos juízos midiáticos condenatórios
A banalização da violência pode ser constatada nos diversos programas televisivos, os
quais montam seus quadros de notícias intercalando uma história de tragédia seguida das
33 Em BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulações. Lisboa: Relógio D’Água, 1991, p. 09, onde dissimular é fingir não
ter o que se tem.
34 EmBADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 75.
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informações meteorológicas, que, por sua vez, precedem o noticiário esportivo, do qual
se volta às histórias policiais com incvel rapidez e naturalidade. Notícias e reportagens
sobre casos criminais são diárias e incessantes, em face da audiência crescente que pro-
porcionam. Num amplo mercado de notícias, a concorrência pela audiência popular pos-
sibilita aos meios de comunicação a adoção de estratégias de conquista de leitores, espec-
tadores e ouvintes, forjando-se, num segmento comercial livre de quase todos os limites,
práticas jornasticas orientadas não tanto por princípios éticos, mas por interesses econô-
micos e pela preservação da “saúde financeira” da empresa jornalística.
Num mundo altamente conectado e em rede, com milhares de pessoas ávidas por notí-
cias e diante de uma capacidade frenética de exposição massiva de pessoas e de trans-
missão de informações, um passo inicial ao “sucesso” empresarial jornalístico está em
noticiar antes que qualquer outro concorrente35. A credibilidade da informação vai pau-
latinamente cedendo espaço à velocidade e sendo confundida com a atualidade com que
disponibilizada36. Surge com isso o denominado jornalismo de checagem. Além do mais,
a própria ideia de credibilidade da informação passa por critérios questionáveis, como o
número de visualizações e curtidas, por exemplo. Nesse itinerário instala-se um vale-tudo
informativo que não hesita em recorrer aos casos criminais por meio de uma abordagem
que já não se contenta com uma ferramenta informativa, mas aposta em estratégias inten-
samente afetivas, que intencionalmente buscam prosperar mediante apelos emocionais37.
O uso da imagem, nesse contexto, é altamente efetivo, ao proporcionar reportagens
impregnadas de fotos e vídeos. A seriedade de um fato penal, um homicídio, por exemplo,
é ignorada para que se possa criar, no lugar da tragédia, um foco de entretenimento. Ao
invés de respeito ao luto pela perda de um ente, é comum ver jornalistas e repórteres dis-
putando espaço para conseguir a primeira pergunta a um familiar de uma pessoa assas-
sinada e a primeira publicação de matéria sobre tragédias cotidianas. Logo se instaura
um quadro de enaltecimento da vítima e de suas virtudes, acompanhado de efeitos sono-
ros e comportamentos do repórter em demonstração de um “profundo pesar”; filmam-se
familiares, mostra-se o local do crime, chama-se a atenção para a barbárie do que ocorreu,
passa-se em revista a vida do suspeito, local de residência e de trabalho, busca-se alguma
passagem ou ocorrência policial para sugerir uma pessoa perigosa. Alguns programas, no
entanto, sobretudo quando não são drios, utilizam um outro expediente comum para
chamar a atenção: as “informações com exclusividade” (“chafurdar na lama”, armou um
35 Em MORETZSOHN, Sylvia. Jornalismo em tempo real: o fetiche da velocidade. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 12 e ss.
36 Em RAMONET, Ignacio. A tirania da comunicação. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 44 e 74.
37 Em GOMES, Marcus Alan. Mídia e sistema penal: As distorções da criminalização nos meios de comunicação. Rio de
Janeiro: Revan, 2015, p. 81 e ss.
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ex-ministro do STF). Esse tipo de reportagem aposta na “hiperemoção” causada ao receptor
da mensagem, com o recurso sistemático a aspectos de simplificação e redução da com-
plexidade da informação a níveis emocionais que possam transmitir, por uma espécie de
equação informacional, a ideia de que se a emoção ao ver o telejornal é verdadeira, a infor-
mação também o é38.
Com a possibilidade da imagem, o modelo sensacionalista ganhou espaço e, para aten-
der seus interesses financeiros, os grandes conglomerados não hesitaram em ampliar a
programação dedicada à exploração da miséria humana, principalmente nos casos cri-
minais. O apelo ao emocional se constitui em componente relevante à dramatização jor-
nastica, com aposta na hipervalorização de elementos fúteis, superficiais, isoladamente
irrelevantes, a fim de fomentar conjunturas de reduzida complexidade e paralisar o nível
crítico na recepção da informação39. Os meios de comunicação de massa acentuam o com-
ponente emocional que estimula a empatia ou a antipatia para com os personagens do
drama noticiado. Oferta-se um catálogo de notícias pleno de representações do inespe-
rado, rompendo com a rotina, que “parece reproduzir instantaneamente as desgraças do
mundo”, que “subverte as regras morais e sociais de comportamento”40.
Trata-se de uma simbiose entre uma anemia sociológica e uma hiperbolia sensaciona-
lista em que meios de comunicação capturam audiência mediante reportagens criminais
revestidas de escassez de informações altamente relevantes conjugada com forte compo-
nente moralista.
Nesse contexto, as coberturas dos casos criminais tendem a potencializar “um certo
tipo de interesse mórbido, com características fortemente moralistas” que abusam da
exposição de detalhes pessoais dos afetados e envolvidos pelo episódio, resultando numa
concentração de esforços em situações particulares insuficientes para compreender o
crime41. Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, “esta demasia no que tange aos aspectos par-
ticulares coexiste com uma espécie de anemia informacional relativa à complexa cadeia
de eventos traumáticos que, de uma forma ou outra, explicam ou justificam a ocorrência
do fato ilícito”, ou seja, circunstâncias como vulnerabilidade e risco são suprimidas da
narrativa sensacionalista, apresentando o comportamento individual como uma variável
independente da realidade social42.
38 Em RAMONET, Ignacio. A tirania da comunicação. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 22/23.
39 Em GOMES, Marcus Alan. Mídia e sistema penal: As distorções da criminalização nos meios de comunicação. Rio de
Janeiro: Revan, 2015, p. 81 e ss.
40 Em GOMES, Marcus Alan. Mídia e sistema penal: As distorções da criminalização nos meios de comunicação. Rio de
Janeiro: Revan, 2015, p. 81 e ss.
41 Em CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 421/424.
42 Em CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 423 e 424.
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Um estilo sensacionalista de narrativa que opta pelo discurso de autor “invariavel-
mente prepondera o silêncio no que diz respeito às circunstâncias político-econômicas e
socioculturais que revelam a forma de inserção destes sujeitos no mundo”. O resultado é
um conteúdo normalmente “direcionado à supervalorização de alguns aspectos mórbidos
ou bizarros dos protagonistas e dos coadjuvantes do evento problemático”, formatando
hipóteses de “verdade” nitidamente marcadas por uma perspectiva moral. Esse cenário
contribui para uma visão narcotizada do fenômeno criminal, marcada por um discurso
cujo conteúdo busca a estigmatização de tipos específicos de criminosos e a legitimação
de atuações estatais, sobretudo em intervenções policiais, assentando-se em alguns pres-
supostos, quais sejam o do crime como um dano irreparável e do criminoso como um bár-
baro incapaz de adaptar-se ao meio social, além de recorrer ao puro maniqueísmo do tipo
“nós, os bons, contra eles, os maus” e potencializar a sensação de medo e insegurança que
grassa por todo lugar43. Essa conjuntura reforçada pela pauta diária imposta pela expres-
siva maioria dos meios de comunicação reforça e edifica um sistema jurídico-penal e cri-
minológico de caráter ortodoxo, funcionalmente orientado pelo aforismo “do bem e do
mal” que consolida um discurso moralizador robustecido “por marcadores publicitários
como a impunidade dos crimes e a periculosidade dos criminosos”44.
Observa-se a insistência com que os órgãos de imprensa abordam, de forma abusiva,
aspectos de um caso criminal, oprimindo pessoas e condicionando a opinião de ampla
parcela da cidadania a esta ou aquela perspectiva, em geral, prejudicial ao suspeito, inves-
tigado ou processado. Reivindicando prerrogativas superpostas a qualquer controle,
meios de comunicação em geral utilizam justificativas como liberdade de imprensa, de
opinião e de manifestação, para expor suas próprias convicções sobre o mundo e, em par-
ticular, sobre o valor “justiça” (o que se esconde sob o manto do sigilo da fonte?). O cunho
ideológico, alinhado à ideia de defesa social, explica a adesão nefasta da mídia a um perl
de desprestígio às garantias individuais, razão pela qual a presunção de inocência é hos-
tilizada. Uma característica comum dos programas jornasticos desse viés é polarizar a
atuação da justiça penal e o comportamento desviante como fator de intervenção social.
Há uma inclinação a criticar, de forma simplificada, o funcionamento do sistema judi-
cial criminal, o qual seria inoperante, ineficaz e letárgico, suprimindo-se, com frequência,
referências às garantias fundamentais das pessoas implicadas45. Como adverte Batista,
43 Em CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 424 e e ss.
44 Em CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 429.
45 Em HERNÁNDEZ GARCÍA, Javier. ‘Juicios paralelos y proceso penal: razones para una necesaria inter-
vención legislativa. Revista Aranzadi de derecho y proceso penal, Navarra, n. 3, p. 117-131, 2000. Disponível em:
http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=59685. Acesso em: 19 nov. 2020.
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uma das consequências da fé na equação penal “se houver delito tem que haver pena” está
no “incômodo gerado pelos procedimentos legais que intervêm para a atestação judicial
de que o delito efetivamente ocorreu e de que o infrator deve ser responsabilizado por seu
cometimento”46.
Costuma-se salientar o êxito de medidas policiais de “combate”47 ao crime, normal-
mente mais eficazes do que o sistema judicial. A polarização entre o modelo policial e o
judicial e a distinção entre o delinquente irrecuperável e o bom cidadão potencializa o
sistema primário de segurança, em detrimento do modelo secundário da justiça penal48.
Com isso agiganta-se a discrepância entre o tempo midiático, político e o jurídico-proces-
sual, com notório desdém à garantia da presunção de inocência. Anal, o percurso do pro-
cesso penal é “demasiadamente longo” para que se possa aguardar o julgamento, a não ser
que, em casos específicos, a própria cobertura do processo penal granjeie interesse público
e assegure níveis palatáveis e rentáveis de audiência. No lugar do “letárgico” julgamento
penal, coloca-se então o juízo célere, intempestivo e definitivo dos meios de comunicação.
Assim, veem-se muitos profissionais da mídia e mesmo juristas de plantão que “compõe
a vasta fauna dos juízes paralelos que são todos aqueles que se julgam capazes de decidir
sobre as condutas alheias com o mesmo vigor de uma sentença transitada em julgado”,
fazendo coro a expedições punitivas como “apóstolos da suspeita temerária” e da “presun-
ção de culpa”.49
Esses juízos paralelos se constituem em julgamento público de condutas socialmente
reprováveis ocorrentes à margem do exclusivo e excludente poder jurisdicional do Estado.
Apesar de reproduzirem, mesmo que parcialmente um ritual similar ao processo judicial,
com manifestação de defensores, detratores, testemunhas, provas documentais e peri-
ciais, confissões, vítimas, etc, não são observadas as mesmas regras nem as limitações
e garantias exigíveis num juízo estatal regular50. O juízo paralelo, “por su propria esencia,
tiene escasso agrado por lo jurídico, y supone la confluência de um buen número de intereses que no
entroncan, por más que se quiera, con el fundamento de lo labor jurisdicional en um Estado de Dere-
46 Em BATISTA, Nilo. “Mídia e sistema penal no capitalismo tardio”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Pau-
lo, v. 42, p. 245, jan-mar. 2003. Disponível em: Envio | Revista dos Tribunais (mpf.mp.br). Consulta em base de
Dados da RT on line mediante assinatura. Acesso em 15 fev. 2021.
47 Expressão reveladora da aposta na luta, na guerra, na violência, tudo a fomentar o Market System midiático.
48 Em HERNÁNDEZ GARCÍA, Javier. “Juicios paralelos y proceso penal: razones para una necesaria inter-
vención legislativa. Revista Aranzadi de derecho y proceso penal, Navarra, n. 3, p. 117-131, 2000. Disponível em:
http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=59685. Acesso em: 19 nov. 2020.
49 Em DOTTI, René Ariel. “Os direitos humanos do preso e as pragas do sistema criminal”, em: PIOVESAN, Flávia;
GARCIA, Maria. (org). Doutrinas Essenciais. Direitos Humanos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, v. 2, p. 1008.
50 Em OVEJERO PUENTE, Ana Maria. Presunción de inocencia y juicios paralelos en derecho comparado. Madrid: Tirant
Lo Blanch, 2017, p. 11.
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cho”51. Há um simulacro de processo, de defesa e contraditório, representados por algumas
gotas de palavras no oceano acusatório.
Em pelo menos dois planos críticos de intervenção, segundo Herndez García identi-
ficam-se zonas patológicas de influência da imprensa sobre processos que aguardam jul-
gamento52. Em primeiro lugar, a incursão ilimitada nos fatos do processo, gerando versões
acusatórias próprias, baseadas na pressão sobre fontes de prova, na utilização indevida de
provas ilícitas, e no exercício de juízos próprios e paralelos para confirmar as hipóteses
adiantadas e geradoras de expectativas a serem atendidas. A segunda patologia diz res-
peito à transformação dos tribunais e juízes em órgãos suspeitos à opinião pública, sobre-
tudo porque, a partir da emissão de juízos paralelos condenatórios, as possibilidades de
solução do caso ficam reduzidas às hipóteses já antecipadas pelos meios de comunicação.
É possível que uma informação seja devidamente divulgada sem violar a presunção
de inocência, mas os múltiplos fatores que podem influenciar uma fabricação, edição e
publicação de notícia ou de uma opinião, tendem a perturbar esse ambiente que no plano
abstrato parece pacífico. O primeiro problema é identificar se, quando e onde houve a
agressão à presunção de inocência. Só após é que a polêmica acerca de um suposto conflito
ou uma colisão de princípios assume relevância. A violação à presunção de inocência é
diagnosticável mesmo nos casos em que se decida que a matéria pode ser veiculada ou a
publicação deva ser mantida. Se a compreensão da presunção de inocência como exigência
constitucional e convencional de tratamento, em sua dimensão extraprocessual, for sólida
o suficiente, então não é a providência de reparação ou prevenção que a legitima como
lida. A rigor, os mecanismos de defesa, sob esse aspecto, como o são eventuais medidas
preventivas ou as repressivas, a reparação, o direito de resposta, adquirem características
próprias das garantias manuseáveis em nome da proteção de um direito ou de formas de
tutela repressiva. Ainda que a constatação de uma violação à presunção de inocência e a
adoção de providência seja suplantada em nome de uma “momentânea paralisia à inviola-
bilidade de outros direitos fundamentais”, isso não quer dizer que o direito à presunção de
inocência não exista e que não possa em outro cenário doutririo e jurisprudencial vir a
ser alterada a forma de tutela.
Afrontas à presunção de inocência podem ocorrer de diversas formas. Nos casos mais
visíveis se identificam nos comportamentos de apresentadores de programas policiales-
51 Em CORTÉS BECHIARELLI, Emilio. “Juicios paralelos y derechos fundamentales del justiciable”, em: Ann. Fac.
Der. U. Extremadura, v. 21, p. 123, 2003, p. 126.
52 Em HERNÁNDEZ GARCÍA, Javier. “Juicios paralelos y proceso penal: razones para una necesaria interven-
ción legislativa, em: Revista Aranzadi de derecho y proceso penal, Navarra, n. 3, p. 117-131, 2000. Disponível em:
http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=59685. Acesso em: 19 nov. 2020
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cos em que se acumulam reportagens frequentes em que se relatam, como definitivas,
versões de fatos criminais e dos respectivos autores, ainda que muitas vezes (a rigor, na
maior parte delas) as notícias sejam produzidas em meio aos estágios muito embrionários
das apurações policiais ou, no máximo, tão logo concluída a investigação oficial. Nessas
circunstâncias, diante de informações ainda precárias e obtidas unilateralmente, apresen-
tadores, repórteres, comentaristas, muitas vezes não tomam a cautela de noticiar o fato e
relatar as suspeitas tais como elas são (apenas suspeitas), cujo respaldo exsurge da inves-
tigação com elementos de autoria e materialidade, insuficientes a esses juízos assertivos
que frequentemente pululam, acompanhados de adjetivações extremamente severas e de
forte apelo moral(ista)53. Exemplo paradigmático é o da “Escola Base de São Paulo”54.
Merece destaque a manifestação da Ministra Nancy Andrighi em seu voto-vista no
julgamento do REsp 1.215.294/SP, que tratou de um dos processos em busca de indenização
no caso Escola Base: a ministra distingue o comportamento da imprensa e do delegado.
Aquela efetivamente não mentiu, embora tenha sido descuidado ao veicular matérias ade-
rentes à hipótese da autoridade policial, de modo que em sua perspectiva, a atitude dos
meios de comunicação parecia atenuada em razão da credibilidade de que goza a informa-
ção oriunda do agente público. Em nossa perspectiva essa distinção não atenua a respon-
sabilidade do órgão de imprensa. Se a presunção de inocência é um direito fundamental
com eficácia inclusive contra particulares, é responsabilidade dos órgãos de comunicação
respeitá-la de forma a não dar à publicidade das investigações um caráter altamente opres-
53 Vid. Operação Spoofing; Caso “Lava-Jato” ou “Vaza-Jato”.
54 Vid. Documentário Escola Base – 20 anos depois (Caminhos da Reportagem, TV Brasil), publicado por TV Brasil,
07 nov. 2014 (50:39). Disponível em: https://tvbrasil.ebc.com.br/caminhosdareportagem/episodio/escola-base-
-20-anos-depois. Acesso em 13 jan. 2021. Em março de 1994 um casal proprietário de uma escola infantil localiza-
da no bairro da Aclimação em São Paulo/SP e um casal de funcionários foram acusados por duas mães de crian-
ças de prática de abuso sexual contra os infantes – uma mãe e um pai também foram acusados. A sequência da
investigação apoiou-se num laudo médico que apontara alguma fissura ou laceração anal em uma das crianças
supostamente vítimas de abuso, nos depoimentos das crianças e desdobrou-se na prisão dos suspeitos, na oca-
sião já tratados como culpados definitivos, e com uma ampla exposição midiática intencionalmente promovida
pela autoridade policial e por vários canais de comunicação que absorveram as informações e as divulgaram de
forma acrítica. A escola foi invadida e destruída por pessoas da comunidade. A fachada foi pichada com ofensas
aos suspeitos (Mauricio estuprador, Paula “sapatão”, etc...). Uma das suspeitas na época, Paula, funcionária da
escola, diz em documentário produzido pela EBC que seu nome e endereço residencial foram expostos em rede
de TV e minutos após sua casa foi invadida e depredada. Foi um “prejulgamento”, um “massacre moral”, disse à
EBC. As acusações eram graves, orgias sexuais, uso de drogas com as crianças, estupro para produção de con-
teúdo pornográfico. Uma das manchetes de jornal destacava: “Kombi era motel de escolhinha do sexo”. Ouvidos
para o documentário, os jornalistas Florestan Fernandes Jr, Regina Ferraz e Chico Verani, na época dos fatos vin-
culados à TV Cultura, esclareceram que foram procurados pelos acusados durante as investigações e só então as
vítimas conseguiram apresentar uma versão concorrente com a hipótese publicamente ventilada pela autorida-
de policial. O desfecho é conhecido. As acusações eram infundadas e carentes de qualquer respaldo probatório.
O inquérito foi arquivado, as vidas das vítimas profundamente afetadas ou destruídas. Alguns, posteriormente,
obtiveram indenizações judiciais em processos movidos contra canais de comunicação.
54
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sivo como fez no caso da Escola Base, abdicando de qualquer garantia em favor dos suspei-
tos e proporcionando reportagens que levaram o público ao extremo de atos de violência
contra as efetivas vítimas.
Mais do que isso, sequer alegações de que a presunção de inocência estaria circuns-
crita ao ambiente da investigação policial e às autoridades públicas amenizaria o papel da
imprensa. Pois se assim fosse, num caso tão evidentemente ofensivo à garantia quanto o
da Escola Base, era da responsabilidade dos periódicos constranger a própria autoridade
policial e não dar vazão às suas intenções publicitárias em nome daquela função e do ideal
iluminista de imprensa como órgão controlador e fiscalizador dos agentes públicos a que
tão frequentemente jornalistas recorrem para fundamentar seus excessos sob o agasa-
lho da liberdade de imprensa. Esse descompasso, als, entre as funções ideais de uma
imprensa livre e o papel de fiscalização e de constrangimento dos agentes públicos inclina-
dos às práticas ilegais quiçá tenha chegado ao ápice durante a operação Lava Jato, quando a
cobertura diária e incessante das investigações, prisões, processos, condenações, era abas-
tecida com vazamentos de informações sigilosas e, portanto, por meio de possíveis crimes
cometidos por agentes públicos, uma estratégia de cumplicidade (órgãos estatais/mídia)55.
Liberdade de imprensa, direito a dar e receber informação são compatíveis com a pre-
sunção de inocência. Mais do que alguma dificuldade insuperável em casos concretos, o
dique entre esses direitos tem se dado por conta de razões diversas, sejam interesses ou
posições editoriais, comerciais e empresariais, desconhecimento ou desprezo de direitos,
apego à velocidade da informação na busca do “furo de reportagem”, aderência acrítica a
hipóteses acusatórias estatais, manipulações e distorções de fatos, etc. É indispensável
reconhecer o papel fundamental que a imprensa (idealmente democrática) tem a exercer
nas sociedades democráticas, não só noticiando e dando publicidade aos atos de governo
e de atores estatais em geral, contribuindo para uma fiscalização pública daqueles que
atuam em nome do povo, mas colaborando igualmente na consolidação de um regime
democrático por meio da divulgação, da informação, da formação e da prática institucio-
nal de respeito aos direitos e de respeito ao estatuto constitucional da cidadania.
Antes de uma violência implícita ou explícita de forma deliberada a um direito-garan-
tia humano e fundamental à manutenção e preservação de um regime democrático e de
um sistema de persecução minimamente digno, é também um dever da imprensa contri-
buir à dinamização e concretização da presunção de inocência por meio de informações
que levem aos leitores, espectadores, ouvintes, elementos suficientes para compreender
55 É comum a imprensa receber informações de operações sigilosas e acompanhar as diligências, transmitindo ins-
tantaneamente. Aos defensores são criadas uma série de empecilhos ao acesso aos próprios autos do processo.
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a garantia e a razão de sua existência. Sob esse aspecto, não é possível acreditar que a
imprensa livre possa exercer seu papel se for alçada a um patamar superior de onde não se
submeta a qualquer tipo de limite, fazendo tábula rasa de quaisquer outros direitos funda-
mentais. Não podem ser desconsideradas as provas históricas que insistem em confirmar
uma advertência tão antiga como a de que um poder tende sempre à dominação, seja legal,
carismática ou pela tradição (Weber), bem como ao abuso (Ferrajoli), sendo o poder de
julgar, o mais terrível dos poderes (Montesquieu), seja o julgamento oficial ou o da mídia.
Este último, mais terrível de todos, por ser ilegítimo e disfuncional.
Os perigos em matéria de liberdade de imprensa decorrem de comportamentos esta-
tais porque todo regime autoritário nutre uma predisposição a restringir a liberdade de
expressão, mas também não se pode olvidar os perigos recíprocos da falta de qualquer
limite sobre o espaço privado dos meios de comunicação, principalmente em razão dos
grandes conglomerados de comunicação e a tendência à concentração das propriedades
dos meios de comunicação. Claro que ilegítima qualquer intervenção capaz de sufocar
ideias, ao modelo de uma polícia Orwelliana, mas é preciso reconhecer que a exclusiva
autorregulação pouco ou nada pode fazer em termos de limitação dos abusos cotidianos
perpetrados em órgãos de imprensa e em mídias sociais.
Tendo o quadro aqui desenhado, a presunção de inocência como dimensão extrapro-
cessual exige um tratamento adequado também por parte de órgãos de imprensa, reivin-
dicando o direito que toda pessoa tem de ser tratada em notícias, reportagens, manifes-
tações de opinião, como inocente, desde que, claro, esta seja sua condição em relação ao
fato objeto da matéria publicada. Na linha da observação de “o investigado ou acusado
não tem o direito de impedir que seu caso seja reportado pela imprensa”, mas a presunção
de inocência veda que a pessoa seja submetida a “tratamento humilhante ou exposição
indevida pelos meios de comunicação”56. O problema, acrescenta a autora, não é o interesse
da imprensa na ocorrência de um crime, mas sim na lógica jornalística que permeia esse
interesse e a forma como as pessoas e os fatos são retratados. Sob esse enfoque, a pre-
sunção de inocência transmite juridicamente pelo menos duas incumbências ao órgão de
imprensa. Em primeiro lugar, tratar toda e qualquer pessoa como inocente quando ainda
não condenada criminalmente de forma definitiva, evitando prejulgamentos em forma
de quaisquer abordagens de conteúdo que impliquem na armação de culpa ou que refli-
tam de forma dissimulada uma inclinação tendente a condicionar a opinião pública nesse
sentido. Segundo, não ser conivente com práticas de agentes estatais que busquem, por
meio da cumplicidade de meios de comunicação, introduzir versões acusatórias contra
56 Em SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 210.
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pessoas no espaço público das ideias, mediante a seletiva liberação de informações preju-
diciais a suspeitos e/ou acusados ou pela emissão definitiva de prejulgamentos. O papel
da imprensa livre deve ser refratário à cumplicidade na prática de ilicitudes por agentes
estatais, assim como também precisa resistir à tentação de funcionar como mero órgão de
publicação das opiniões de investigações, acusadores e mesmo julgadores. O jornalismo
exige investigação e postura crítica em relação ao ambiente no qual se insere.
4. Enfrentamento aos juízos paralelos condenatórios – abuso de
autoridade e outras formas de tutela penal do estado de inocência
As dimensões subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais colocam em cena, concomi-
tantemente, posições jurídicas subjetivas, mas também vinculam o Estado a uma agenda
de proteção da presunção de inocência numa esfera institucional e procedimental, propi-
ciando a adoção de medidas certificatórias de maior proteção e concretização à presunção
de inocência, nas várias frentes em que ele se projeta. As determinações de tutela57 tam-
bém se extraem do sistema interamericano de direitos humanos e das obrigações assu-
midas Brasil ao aderir a um conjunto de normas de caráter supranacional, dentre as quais
a presunção de inocência. Mais do que uma adesão formal, exige-se também respeito ao
conteúdo eficacial e às interpretações dadas pelas cortes internacionais58 notadamente a
Corte IDH59.
Ademais da natureza jurídica de princípio-garantia fundamental atribuível ao art. 5.º
LVII, CF, também se potencializa a obrigação de que o aparato estatal seja capaz de prote-
ger a presunção de inocência, em razão da aplicabilidade imediata que a norma contém,
revelando mais uma zona de possíveis fricções com outros direitos. Embora parte con-
siderável da equação entre os juízos paralelos condenatórios e a presunção de inocência
possa depender da intermediação legislativa, a admitir a observação do Ministro Gilmar
Mendes60 no sentido de que a melhor equalização possível à eficácia de direitos funda-
mentais entre particulares há de ser promovida pelo legislador, é premente a necessidade
de providências que possam dar concretude ao princípio-garantia, mesmo diante da apa-
rente escassez de remédios jurídicos específicos e aptos a tanto.
57 Em MONTAÑÉS PARDO, Miguel Angel. La presunción de inocência. Madri: Aranzadi, 1999, p. 339 e ss., formas
de tutela da presunção de inocência no ordenamento jurídico espanhol, em todas as instâncias jurisdicionais,
inclusive no recurso de amparo e no de cassação.
58 Em MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Controle Jurisdicional da convencionalidade das leis. Rio de Janeiro: Forense,
2018. E-book. Disponível em: https://ler.amazon.com.br/?asin=B07GBGMYYK. Acesso em 18 fev. 2021.
59 Vid. Caso Cabrera García y Montiel Flores v. México, § 225 (2010), da Corte IDH.
60 Vid. ADPF 130/2009.
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A inovação legislativa introduzida no art. 38 da Lei n.º 13.869/2019 (abuso de autori-
dade), prevendo como crime antecipar o responsável pelas investigações, por meio de
comunicação, inclusive rede social, atribuição de culpa, antes de concluídas as apurações e
formalizada a acusação. Trata-se de erigir a inocência em verdadeiro bem jurídico penal61
ainda que a proteção, tendencialmente dispensada pelo artigo, possa se revelar insufi-
ciente. A tipificação é um reconhecimento de que a matéria merece maior problematização
e ultrapassa o campo interno do processo penal, avançando a perspectiva de tratamento,
mormente pelos meios de comunicação e redes sociais.
Mantida a redação atual, pelo menos dois pontos são criticáveis. Primeiramente,
quanto ao marco temporal fixado, restringindo a possibilidade de consumação do crime
às investigações, posto que após a formalização da acusação as violências à presunção de
inocência tornam-se, do ponto de vista penal, atípicas. No entanto, a presunção de inocên-
cia estende seus efeitos até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória e não
até a formalização da acusação62. Ademais, a moldura típica em forma de uma infração
penal de autoria própria restringe a abrangência da norma incriminadora, deixando de
alcançar a generalidade dos agentes públicos, circunscrevendo-se ao “responsável pelas
investigações”. Mas mesmo aí a redação é precária e insuficiente. Será apenas o delegado
de polícia encarregado da investigação? O membro do Ministério Público também será
afetado? Todos os agentes envolvidos na investigação são igualmente submetidos à legis-
lação, ainda que não presidam o inquérito (art. 2.º, Lei n.º 12.830/13) ou o procedimento
investigatório criminal (arts. 26 da Lei n.º 8.625/93, 8.º da LC 75/93 e art. 1.º da Resolução
n.º 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público)? O espectro de abrangência da
dimensão extraprocessual da presunção de inocência é mais amplo do que sugere o tipo
do art. 38 da Lei n.º 13.869/2019. O movimento legislativo foi tímido e o incremento de
ajustes para reparar os dois pontos aqui destacados teria o êxito de conciliar a dimensão
extraprocessual da presunção de inocência com a forma de tutela penal pretendida pela
Lei n.º 13.869/2019 (Abuso de Autoridade).
Por sua vez, o vazamento de informações sigilosas pressupõe o envolvimento de
algum agente, em regra público, que teve acesso permitido aos autos da investigação ou do
processo. Não se afirma aqui que todo e qualquer vazamento de informação sigilosa tenha
o intuito de prejudicar a condição de inocente do investigado ou processado, mas que em
determinados casos esse filtro da informação pode ser direcionado a minar a presunção de
61 Em STRECK, Lênio e LORENZONI, Pietro Cardia. Comentários à nova lei de abuso de autoridade. São Paulo: Tirant
lo Blanch, 2020, p. 189.
62 Em GREVI, Vittorio. Alla ricerca di un processo penale “giusto”. Milão: Giufrè, 2000, p. 103, acerca da inadmissibilida-
de da execução provisória da sentença penal condenatória.
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inocência perante a opinião pública. Por isso, as várias previsões legais que resguardam o
sigilo de informações, oriundas de investigação ou processo penal, são compatíveis com a
presunção de inocência e podem colaborar na sua preservação. Uma das formas de coibir
a quebra indevida de sigilo está prevista no caput do art. 325 do CP, em forma de violação
de sigilo funcional. Em se tratando de agentes públicos atuantes em casos cobertos por
segredo de justiça, por exemplo, não se vê como não possam ser, em regra, submetidos a
essa cláusula geral de penalização da quebra do sigilo profissional. Pense-se no caso de
investigação sigilosa com previsão de cumprimento de mandados de prisão ou de busca e
apreensão. A revelação a meios de comunicação do dia e hora em que serão cumpridas as
diligências poderiam enquadrar-se na figura do fato sigiloso que chega ao conhecimento
de um agente público em razão da atividade funcional e do envolvimento com a investi-
gação. O agente não poderia transpor o limite desse sigilo profissional imposto por lei. A
preservação do sigilo nesse tipo de operação poderia garantir o cumprimento de outros
dois dispositivos legais correlacionados ao tema: o art. 41, VIII, da Lei 7.210/84 (Execução
Penal), que garante ao preso, inclusive provisório, a proteção contra qualquer forma de
sensacionalismo; o art. 13, I, da Lei n.º 13.869/2019 (Abuso de Autoridade), que veda cons-
tranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capaci-
dade de resistência a exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública.
No âmbito das proibições de quebra de sigilo, o art. 30 da Lei n.º 13.869/2019 prevê
como crime, divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se
pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a ima-
gem do investigado ou do acusado. Já o art. 8.º da Lei n.º 9.296/96 (interceptações tele-
nicas) prevê como sigiloso o procedimento em que se dará a interceptação de suspeito,
preservando-se em segredo as diligências, gravações e transcrições, além de criminalizar
no art. 10 a conduta de quem quebra o segredo de justiça sem autorização judicial ou com
objetivos não autorizados em lei (para fins de investigação ou instrução processual penal).
Outra situação problemática diz respeito à divulgação indevida de conteúdo de acordos de
colaboração premiada, apesar de legalmente estarem acobertados por sigilo, como pres-
creve o art. 7.º, 3.º, da Lei n.º 12.850/13. Em especial, porque nesse momento as revelações
tendem a afetar pessoas que foram delatadas por interesse do delator, sem que tenham
podido conhecer e refutar as acusações.
O CP ainda oferece outros tipos penais voltados, indiretamente, à tutela da inocência,
como o art. 138 do CP, pois a calúnia pode ocorrer pelos meios de comunicação, bem como
o art. 339 do CP, pois a falsa comunicação de ocorrência atinge diretamente a presunção
de inocência. O art. 27 da Lei n.º 13.869/2019 coíbe os transtornos ao inocente. Incrimina a
conduta de quem requisita instauração ou instaura procedimento investigatório de infra-
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ção penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática
de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa. A mesma prática, se com fina-
lidade eleitoral, adequa-se ao art. 326-A, do Código Eleitoral. Ainda no que se refere à proi-
bição de vazamentos de informações de caráter sigiloso merecem destaque previsões mais
específicas atinentes a determinados agentes públicos. No âmbito do Ministério Público
da União, por exemplo, é dever de todo membro guardar segredo sobre assunto de caráter
sigiloso que conheça em razão do cargo ou função (art. 236, II, LC 75/93). Ademais, o art.
7.º, § 2.º, da mesma Lei atribui ao membro do parquet o dever de preservar o caráter sigi-
loso de informação, do registro, do dado ou documento que lhe tenha chegado ao conhe-
cimento em razão de suas atividades funcionais. Já a Lei Orgânica do Ministério Público
(Lei n.º 8.625/93) prevê no art. 26, § 2.º, a responsabilidade de quem faça uso indevido de
informação de caráter sigiloso. Soma-se a tudo isso a previsão inserta no art. 15, § único,
IV, da Resolução CNMP n.º 181/2017, impondo a obserncia da presunção de inocência
na prestação de informações de procedimentos investigatórios criminais no âmbito do
Ministério Público.
Diante de evidente publicidade opressiva, cogita-se o uso de medidas que não necessa-
riamente afetem a liberdade de expressão, tais como o desaforamento, a possibilidade de
postergação de julgamento, a proibição de introdução no processo de matérias que, apesar
de lícitas, tenham caráter nitidamente prejudicial ao réu, fruto da “verdade midiática”63.
Entre as medidas que não afetam a liberdade de expressão, há que se colocar, também, o
direito de resposta ou de retificação (art. 5, X, CF, Lei n.º 13.188/15) porque amplia a pos-
sibilidade de manifestação do pensamento, criando espaços para que o afetado apresente
sua perspectiva a respeito do fato em causa.
O direito de resposta pode se mostrar relevante, mormente nas situações em que a abor-
dagem midiática leva à audiência a falsa ideia de que o suspeito ou réu já está condenado
ou a condenação é uma questão de tempo. Nessa hipótese, a apresentação de uma versão
contrária pode evidenciar a informação de que o meio de comunicação veiculou matéria
com conteúdo falso ou duvidoso, apesar do problema do leitor diverso entre a reportagem e
o direito de resposta. Em todo caso, propicia-se o necessário constrangimento. Ademais, o
direito de resposta pode contribuir para que esse transplante temporário do contraditório
à imprensa fomente um necessário debate sobre direitos e garantias individuais, inclu-
sive os processuais, que deveriam aproveitar a todos e não apenas a uma pequena parcela
63 Em SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 390/391.
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da população64. A revelação do conteúdo das provas ilícitas também há de ser vedado65,
bem como a veiculação de determinadas matérias que estão sob julgamento, evitando-se
campanhas midiáticas pela condenação do réu, com potencial risco ao julgamento impar-
cial66. Os critérios de dever geral de cuidado, dever geral de veracidade e dever geral de
pertinência, como medidas de aferição do abuso do direito de informar, podem auxiliar no
reconhecimento de posturas ofensivas à presunção de inocência.
II. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A abordagem enfrentou a seguinte problemática: a presunção de inocência é compatível
com as liberdades de expressão e de imprensa? Informação, publicidade, opinião e juízos
prévios ao processamento criminal ofendem a presunção de inocência? No decorrer da
pesquisa, verificou-se ser possível compatibilizar a liberdade de expressão e a publicidade,
desde que respeitados os princípios-garantia insculpidos na Carta Magna e nos diplo-
mas internacionais subscritos pelo Brasil, no caso abordado, a presunção de inocência.
A publicidade do caso criminal adequa-se à presunção de inocência quando não são emi-
tidos juízos prévios condenatórios ou quando a forma e conteúdo da comunicação induz
à formação e compreensão de que suspeito, investigado ou processado seja culpado. É o
trânsito em julgado de um veredicto penal condenatório jurisdicional que afasta o estado
de inocência; até então, todo sujeito há de ser considerado como inocente, inclusive na
dimensão extraprocessual.
Atingiu-se o objetivo de evidenciar a dimensão extraprocessual da presunção de ino-
cência, aplicável aos sujeitos oficiais (Polícias, Ministério Público, Defensores e Magistra-
dos) e particulares (Imprensa, por exemplo), de modo que os juízos paralelos condenató-
rios soterram a presunção de inocência. Apurou-se, também, no decorrer da investigação,
haver uma tutela penal da presunção de inocência (art. 138, 325 e 339 do CP; art. 326-A, do
Código Eleitoral), inclusive na Lei de Abuso de Autoridade (art. 38 da Lei n.º 13.869/2019).
Podemos identificar, ao lado dos poderes constituídos (Executivo, Legislativo e Judi-
ciário), outros poderes, os denominados “poderes de fato” tanto em instituições (Polí-
cia, Ministério Público) quanto na sociedade (corporações midiáticas, blogues, redes
sociais,v.g.).
64 Em SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 394.
65 Conforme SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.
400/401 e NICOLITT 2016, E-book)
66 Em SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 402/403.
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Igualmente, se verifica que há poderes que atuam à margem da lei, como o das milícias
formadas por agentes do estado, por associações e organizações criminosas, nacionais e
internacionais. A dominação não se dá somente pela lei ou pela tradição, mas também pelo
carisma (Weber), na medida em que a dominação pode se justificar pelo apoio popular, na
força de atrair esse apoio, principalmente pelo senso comum (maioria). Sujeitos e veículos
carismáticos tendem a agira lateredas garantias penais e processuais, por pensarem que o
apoio da massa justifica a sua conduta. Isso não passa de um retorno à fundamentação da
punição pelo oráculo e à vontade divina, com sacralização da tradição sem sujeição à lei.
O veículo de comunicação, ao emitir e publicar um juízo paralelo condenatório ou
induzir a que haja formação deste, ofende, ademais da presunção de inocência, o dever de
cuidado de veracidade e de pertinência. Medidas efetivas de concretização e tutela da pre-
sunção de inocência, também em sua dimensão extraprocessual, configuram obrigações
a que o Estado brasileiro está submetido, não só por se tratar de um princípio-garantia
fundamental de aplicabilidade imediata em sua dupla perspectiva, mas também porque o
próprio art. 25.1 da Convenção Americana dos Direitos Humanos (CADH), ratificada pelo
Brasil, obriga os Estados a disponibilizarem aos cidadãos um recurso efetivo para viabili-
zar o controle de atos que violem direitos humanos fundamentais. A isso se soma o art. 5.º,
LXV, da CF. Disposições legais atuais tutelam a presunção de inocência, com demarcação
temporal clara: trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
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