REVISTA
DEDIREITO
EECONOMIA
ISSUE 1-2·1ST JANUARY–31TH DECEMBER·FASCÍCULO 1-2·1 DE JANEIRO–31 DE DEZEMBRO 2022
VOLUME XXIII
e-ISSN 2184-1845
OPEN ACCESS · LIVRE ACESSO
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA
VOLUME XXIII · Issue 1-2 · 1st January–31st December 2022
Semiannual Publication. Scientic Journal of the Ratio Legis–Centro de Investigação e De-
senvolvimento em Ciências Jurídicas from the Universidade Autónoma de Lisboa–Luís de
Camões.
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Repositório Cientíco de Acesso Aberto de Portugal (RCAAP).
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Repositório Institucional da Universidade Autónoma de Lisboa (Camões).
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA
VOLUME XXIII · Fascículo 1-2 · 1 de janeiro–31 de dezembro 2022
Publicação semestral. Revista Cientíca do Ratio Legis–Centro de Investigação e Desenvolvi-
mento em Ciências Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa–Luís de Camões.
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E -ISSN 2184 -1845
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Brasil santin@uenp.edu.br
Vasco Branco Guimarães ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa,
Portugal vbrguimaraes@net.sapo.pt
Índice Index
7 EditorialEditorial
MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE
11 Pacifismo e constitucionalismo globalPacifism and global constitutionalism
LUIGI FERRAJOLI
23 Franco cordero e le dottrine delprocessopenaleFranco cordero and the doctrines of the criminal
process
RENZO ORLANDI
39 Efeitos extraprocessuais do estado de inocência limites aos juízos paralelos
condenatóriosExtraprocedural eects of the presumption of innocence – limits to condemnatory
parallel judgments
NEREU JOSÉ GIACOMOLLI, ROGER MACHADO
63 Aquisição de provas criminais eletrônicas no Brasil à luz da Convenção de Budapeste, do Cloud Act
dos Estados Unidos da América edoDireito da União EuropeiaAcquisition of electronic criminal
evidence in Brazil in the light of the Budapest Convention, the Cloud Act of the United States of
America and European Union Law
WILSON ANTONIO PAESE SEGUNDO
81 A Perda Alargada e a sua (in)constitucionalidadeExtended forfeiture and its (un)constitutionality
JOÃO JAIME CARDEIRA JORGE
93 O impacto da (in)gestão do planeamento doterritório nas metrópolesThe impact of the (non)
management of the territory planning inmetropolises
MARIA JOÃO GUIA
107 Implementação da Lei de Proteção do Clima Implementation of the Climate Protection Act
ANJA BOTHE
RECENSÕES
REVIEWS
124 Brazilian Politics on Trial: Corruption & Reform Under Democracy by Luciano da Ros and Matthew
M. Taylor (Reinner, 281 pp., 2022)
BRUCE ZAGARIS
5
GALILEU · e-ISSN 2184-1845 · Volume XXIII · Issue Fascículo 1-2 · 1st January Janeiro – 31st December Dezembro 2022 · pp. 7-9 7
Editorial Editorial
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXIII · 1st January Janeiro–31ST December Dezembro 2022 · pp.7‑9
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXIII.1/2.1.1
A Galileu-Revista de Direito e Economia apresenta-se ao público com os dois números de
2022, procedendo-se a uma atualização editorial necessária de modo a garantir uma efe-
tiva periocidade científica. Este volume XXIII (n.os 1 e 2), 2022, demonstra a armação da
internacionalização da revista, que se vai desenhando com o decorrer do tempo, e assu-
me-se como um espaço de publicação de estudos dos alunos de mestrado em Direito da
Universidade Autónoma de Lisboa, integrados nos projetos de I&D do Ratio Legis – Centro
de Investigação em Ciências Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa.
Este volume conta com dois blocos de estudos: um organizado por Bruna Capparelli,
com artigos de Luigi Ferrajoli, Renzo Orlandi, Nereu Giacomolli e Roger Machado, a par
de uma recensão crítica de Bruce Zagaris; outro organizado pelo signatário com textos de
Wilson Antonio Paese Segundo, João Jorge, Maria João Guia e Anja Bothe e Danila Gon-
çalves de Almeida. Deixamos, aqui, expresso um agradecimento à Bruna Capparelli pelo
trabalho na organização dos artigos e da recensão que se publicam neste Volume XXIII.
O artigo de Luigi Ferrajoli, sobre «Pacifismo e Constitucionalismo Global» apela ao
princípio da humanidade, a um discurso político-jurídico de humanidade, e, face ao perigo
de uma guerra nuclear por força da guerra da Rússia à Ucrânia, aos líderes que se sentem
à mesa de negociação, por meio do Conselho de Segurança da ONU, e construam a paz
por meio da aprovação de uma Constituição da Terra como património comum de todos
os viventes no planeta terra. É um tema de elevada importância para todas as ciências,
em especial o Direito e a Política, que Luigi Ferrajoli tem estudado e tratado como ficou
patente na sua participação no SIECO II – Seminário Internacional de Criminalidade
Organizada Transnacional, que decorreu na Universidade Autónoma de Lisboa, a 23 e 24
de novembro de 2022, no âmbito do Projeto de I&D: «Corpus Delicti – Estudos de Crimi-
nalidade Organizada Transnacional», sediado no Ratio Legis.
Renzo Orlandi apresenta-nos um estudo sobre «Franco Cordero e a doutrina do pro-
cesso pena, homenageando um jurista, historiador, filósofo, romancista, polemista, um
intelectual de grande valor e, acima de tudo, uma pessoa cuja humanidade soube utilizar
para marcar a ciência jurídica, em especial o processo penal, cujo profundo e amplo ras-
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tro se fazem sentir em toda a sua obra e nos estudos que jus processualistas penais têm
desenvolvido no espaço europeu e internacional. É um artigo que nos convoca olhar para
a obra de um professor, reflexo do que foi como pessoa, desde a década de 60 do século XX,
marcou e marca a ciência jurídico-processual.
Nereu Giacomolli e Roger Machado trazem-nos um estudo sobre o estado de inocên-
cia enquanto exigência constitucional e convencional na dimensão extraprocessual, que se
aplica a todos, incluindo aos meios de comunicação social. Propõem uma análise da publici-
dade processual a partir da presunção de inocência, definindo e idnetificando juízos para-
lelos condenatórios face ao inevitável confronto entre a liberdade de expressão e o estado
de inocência. Convocam as disposições legais do ordenamento jurídico penal do Brasil que
tentam responder às violações drias ao estado de inocência, com maior incidência na Lei
13.869/2019 (abuso de autoridade), uma vez que trata, em parte, da dimensão extraprocessual
da tutela penal do estado de inocência. Os autores entendem que existe compatabilidade
entre a publicidade do caso criminal e o estado de inocência se os juízos prévios condenató-
rios não forem emitidos ou se a forma e conteúdo da comunicação puderem induzir à forma-
ção e compreensão do caso concreto e não à sua distorção e précondenação no espaço público.
Seguem-se dois trabalhos de alunos de mestrado em Direito [Ciências Jurídico-Policiais
e Ciências Jurídico-Criminais], desenvolvidos no âmbito do projeto de I&D: Corpus Delicti –
Estudos de Criminalidade Organizada Transnacional. Wilson Paese apresenta um trabalho,
que, ancorado na fase oficial da investigação preliminar de crimes de competência das auto-
ridades brasileiras, procura indagar se a obtenção de metadados e de conteúdo eletrônico
diretamente com o ente privado, que os armazena, tem respaldo nas disposições da Con-
venção de Budapeste, na legislação da União Europeia e no Cloud Act dos Estados Unidos da
América. O debate que o artigo nos traz é de extrema relevância por a descoberta da autoria
de grande parte das infrações criminais comuns poder ser celeremente obtida com recurso
aos meios de obtenção de prova eletrónicos, quantas vezes armazenadas em território físico
e digital estrangeiro, factualidade conflituante com os instrumentos de cooperação mútua
tradicionais que parecem estar desajustados ao problema da obtenção da prova. João Jorge
trata de um tema da atualidade jurídico-criminal, em especial do Direito penal económico,
que se prende com o regime jurídico vigente da perda alargada de bens e o debate cientí-
co-jurídico sobre a (in)constitucionalidade do mesmo, procedendo a uma alise crítica do
texto-norma, da doutrina e da jurisprudência do Tribunal Constitucional, que já fora convo-
cado a pronunciar-se e a decidir sobre a conformidade constitucional deste regime jurídico
de perda alargada de bens. O autor, alertando para os perigos de a eficácia se sobrepor ao pró-
prio sentido de Direito, acompanha a posição defendida pela maioria da doutrina e afasta-se
da pronúncia e decisão jurisprudencial proferidas pelo Tribunal Constitucional.
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Na parte final temos dois artigos de duas professoras da Universidade Autónoma
de Lisboa, Maria João Guia e Anja Bothe, aqui acompanhada por Danila Gonçalves de
Almeida, sobre temas muito atuais para reflexão jurídica e política. Maria João Guia, numa
perspetiva criminológica, estuda o problema da inexistência de planeamento urbano nas
grandes cidades e os consequentes problemas socioeconómicos que colocam em confronto
a liberdade e a segurança, o que se agrava e tem agravado com os fluxos migratórios e
a edificação de enclaves urbanos que, aos poucos, se instalam sem a devida e adequada
prevenção da violação da legislação do urbanismo. Esta realidade germina focos de vio-
lência, de marginalidade e delinquência, e, por conseguinte, um inevitável e claro atropelo
aos direitos fundamentais. Como se retira do artigo existe legislação, a questão é a sua
aplicação concreta para prevenir ou resolver as questões inerentes ao desordenamento
do território e assumir-se o urbanismo como espaço de afirmação de direitos fundamen-
tais pessoais, sociais, culturais, económicos e políticos. Anja Bothe e Danila Gonçalves de
Almeida apresentam um estudo sobre uma decisão do Tribunal Federal Constitucional
da Alemanha que declarou parcialmente inconstitucional a Lei da Proteção do Clima por
a insuficiente limitação das emissões de gases com efeito de estufa até 2030 e a falta de
estipulações legais mínimas a partir de 2030 comprometerem, no futuro, as liberdades
fundamentais dos cidadãos. Está-se perante uma decisão de inconstitucionalidade por
existir um prejuízo futuro e se violar o princípio da equidade intergeracional e o princípio
da proteção objetiva e das gerações futuras que são credoras e dignas de tutela jurídico-
-constitucional. Poder-se-á dizer que a decisão convoca-nos para saber se o Direito tem de
assumir uma função preventiva de possíveis prejuízos e lesões de bens ou valores funda-
mentais – direitos fundamentais pessoais como é o direito à qualidade de vida e bem-estar
das gerações futuras – e se exigir um edifício jurídico que garanta a efetividade dos direi-
tos e liberdades fundamentais.
Por fim, Bruce Zagaris traz-nos uma recensão crítica do livro «Brazilian Politics on
Trial: Corruption & Reform under Democracy» escrito por Luciano da Ros e Matthew M.
Taylor, publicado pela Reinner, em 2022, com 281 páginas. O livro trata de um tema real
candente e debatido nos últimos tempos e convida-nos, a partir da democracia brasileira
e dos eu processo histórico de construção e consolidação, a refletir sobre o fenómeno da
corrupção e as necessárias ou consequentes reformas dos sistemas políticos e os perigos
que essas reformas acarretam para toda a sociedade.
O Diretor da Galileu
Manuel Monteiro Guedes Valente
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Pacismo e constitucionalismo global
Pacism and global constitutionalism
LUIGI FERRAJOLI1
luigi.ferrajoli@uniroma3.it
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXII · 1st January Janeiro–31ST December Dezembro 2022 · pp.11‑19
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXIII.1/2.1
Submitted on April 24th, 2022 · Accepted on May 2nd, 2022
Submetido em 24 de Abril, 2022 · Aceite a 2 de Maio, 2022
SUMÁRIO 1. O dever de negociar2 – 2. A necessidade de coenvolver nas tratativas os países
da OTAN. O papel que deveriam desempenhar os órgãos da ONU, convocados em sessão
permanente – 3. Duas visões do futuro do mundo – 4. Por uma Constituição da Terra.
RESUMO A humanidade, a causa do prolongamento da agressão da Rússia à Ucnia,
nunca esteve tao próxima a um conflito nuclear. Diante a este perigo, o Autor propõe
que as negociações de paz se realizem no Conselho de Segurança da ONU, convocando
em o Conselho Permanente até que se restabeleça a paz, e, em perspetiva, a aprovação de
uma Constituição da Terra que elimine as armas e os exércitos nacionais, institua um
património planetário dos bens comuns e introduza adequadas garantias globais dos
direitos fundamentais de todos os seres humanos.
PALAVR ASCHAVE perigo nuclear – paz – Constituição da Terra
1. O dever de negociar
Nos 77 anos que nos separam de Hiroshima e Nagasaki, o perigo de um conflito nuclear
nunca foi assim tão grave e iminente como aquele em curso durante a guerra criminosa
desencadeada pela Rússia contra a Ucnia. Por isso, o comportamento das potências da
OTAN diante desse perigo foi, desde o início, irresponsável. O fato mesmo de que Putin,
1 Professor emérito de Filosofia do Direito, Università di Roma Tre – Italia.
2 [N.T.] No original: trattare, palavra que pode ser traduzida para tratar, negociar ou acordar. Optou-se por nego-
ciar, por ser de uso frequente em português, preservando a palavra tratativa para traduzir o termo trattativa, por
seramplamente utilizada. Traduzido por Luiz Eduardo Cani cani@disroot.org e revisado por Bruna Capparelli
bruna.capparelli2@unibo.it
12
Pacifismo e constitucionalismo global
Pacifism and global constitutionalism
LUIGI FERRAJOLI
GALILEU · e-ISSN 2184-1845 · Volume XXIII · Issue Fascículo 1-2 · 1st January Janeiro – 31st December Dezembro 2022 · pp. 11-19
segundo o coro unânime dos meios de comunicação e de todos os governantes ocidentais,
é um déspota feroz, deveria aconselhar a levar a sério a sua ameaça, formulada desde 13 de
março, de uma “reação sequer imaginável”. Como este déspota já mostrou o que é capaz de
fazer, está munido de armas nucleares, como quis outras vezes recordar, e é, portanto, bem
possível, se crescer a tensão, que faça uso dessas. A única coisa séria a fazer deveria ser,
portanto, o empenho de todos para pôr fim à guerra e contribuir para o reestabelecimento
da paz.
É esta, de resto, a regra válida em todas as comunidades civis para fazer frente às
ações criminosas em andamento. Quando um bandido ameaça disparar e, depois, dispara
sobre uma multidão, se não forem acolhidos os seus pedidos, o dever de quantos tinham
o poder de fazê-lo – neste caso, a comunidade internacional – é aquele de negociar,
negociar, negociar a cessação do massacre. Pouco importa se o bandido é considerado um
criminoso, ou um louco ou, ainda, um líder político irresponsável que não viu acolherem
as suas justas raes e reivindicações. A única coisa que importa é a cessação da agressão
e do massacre dos inocentes. Tanto mais porque, neste caso, a continuação da guerra pode
deflagrar uma guerra nuclear. Mesmo os mais fervorosos críticos de Putin não deveriam
esquecer, repito, que nos encontramos diante de um autocrata munido de mais de seis mil
ogivas nucleares, e que a insensatez desta guerra, também do ponto de vista dos interesses
da Rússia, não permite excluir mais aventuras apocalípticas sem sentido.
Negociar é o que querem milhões de manifestantes em todo o mundo quando pedem
um “cessar fogo”: para pôr fim à tragédia dos massacres, das devastações e da fuga de
milhões de deslocados ucranianos. No início de abril, como nos informa a Agência da ONU
para refugiados, eram 4 milhões os refugiados ucranianos nos países vizinhos e cerca de
7milhões os deslocados internos, em grande parte mulheres e crianças. Os horrores, os
estupros e os massacres civis cometidos pelo exército russo impõem com força, pela sua
atrocidade, o empenho de todos para que se ponha fim, o quanto antes possível, a esta
tragédia. Não importa que atrocidades similares tenham sido cometidas em tantas outras
guerras, algumas das quais desencadeadas pelo Ocidente. O que importa é que se advirta
como intoleráveis as violências contra pessoas indefesas, que se faça de tudo para fazê-las
cessar e que essas valem para abrir os olhos para os horrores inevitavelmente ligados a
qualquer guerra.
São essas as condições de qualquer pacifismo digno desse nome: em primeiro lugar,
estar ao lado dos agredidos contra os agressores; em segundo lugar, apoiar as razões deles
na tratativa direta para fazer cessar o quanto antes a agressão e as suas atrocidades.
13
Pacifismo e constitucionalismo global
Pacifism and global constitutionalism
LUIGI FERRAJOLI
GALILEU · e-ISSN 2184-1845 · Volume XXIII · Issue Fascículo 1-2 · 1st January Janeiro – 31st December Dezembro 2022 · pp. 11-19
2. A necessidade de coenvolver nas tratativas os países da OTAN.
Opapelque deveriam desempenhar os órgãos da ONU, convocados
emsessão permanente
Mas de que modo se apoiam as razões dos agredidos nas negociações de paz? Quem tem
o poder e, acrescentarei, o dever de oferecer esse apoio? Há uma grande hipocrisia na base
da política dos governos europeus e do debate público sobre a guerra. Todos sabem, mas
todos fingem que não sabem, que por ts dessa guerra, da qual a Ucrânia é somente uma
vítima, o verdadeiro embate é entre a Rússia de Putin e os países da OTAN. São, portanto,
os Estados Unidos e as potências europeias que deveriam tratar a paz, apoiando a Ucrânia
nas tratativas ao invés de deixá-la negociar sozinha o com seu agressor.
Seria esse o verdadeiro ato de solidariedade do Ocidente nos confrontos do povo ucra-
niano. A verdadeira ajuda à população ucraniana, bombardeada e massacrada desde 23
de fevereiro, seria a participação na tratativa, ao lado da Ucrânia, dos países membros da
OTAN, a começar pelos Estados Unidos, dotados de bem outra força e de bem maior capa-
cidade de pressão, a fim de obter, com o mínimo custo para o agredido, a imediata cessação
da agressão. Uma similar assunção de responsabilidade pelas maiores potências – Estados
Unidos e União Europeia – valeria não apenas para pôr fim à guerra, mas também para
acabar com o perigo do seu alargamento descontrolado.
Por isso, a sede apropriada para as negociações, como já tive a oportunidade de sus-
tentar, deveria ser não mais somente a desconhecida localidade da Bielorrússia onde se
encontram, com cada vez menor capacidade de acordo, as delegações da Rússia e da Ucrâ-
nia, mas também a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança da ONU. Por duas razões.
Em primeiro lugar, porque as Nações Unidas são a organização cuja finalidade institucio-
nal, como diz o art. 1.º do seu Estatuto, é manter a paz e conseguir, com meios pacíficos, a
solução das controvérsias internacionais. Em segundo lugar, porque no Conselho de Segu-
rança sentam, como membros permanentes, todos dotados de armamentos nucleares,
exatamente as potências que têm a força e o poder para negociar a paz: a Rússia, a China
e os principais membros da OTAN, isto é, os Estados Unidos, o Reino Unido e a França.
Atratativa se desenvolveria, assim, sob os olhos da humanidade inteira, no interior de uma
instituição que tem por razão social a consecução da paz. Sabemos bem que a ONU é cada
vez mais débil, ao ponto que foi declarada sua inutilidade. Mas essa é uma razão a mais
porque se encontra, diante desta guerra, a sua função institucional e a sua razão de ser.
A alternativa é a escalada da guerra, com o risco cada vez maios da sua degeneração
em uma guerra nuclear. Mas também, além dessa aterrorizante perspectiva, a continua-
ção desta guerra, além de produzir outros massacres e devastações na pobre Ucrânia, só
poderá fazer crescer e, por assim dizer, institucionalizar a lógica bélica do amigo/inimigo.
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Pacifismo e constitucionalismo global
Pacifism and global constitutionalism
LUIGI FERRAJOLI
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A decisão do nosso Parlamento de aumentar em mais de 50% as despesas militares, a ter-
rível decisão alemã de financiar com 100 bilhões de euros o próprio rearmamento, a opção
de Biden para o reforço militar da OTAN em vez do confronto diplomático, a complacência
geral pela compacidade do Ocidente nas armas, alcançou, nessa lógica de guerra, o cresci-
mento do ódio ao povo russo e a informação gritada e secria são todos sinais e passos de
uma corrida louca para a catástrofe. É o triunfo da demagogia e da irresponsabilidade, cujo
custo é pago hoje pelo povo ucraniano e amanhã, se a corrida não parar, pela humanidade
inteira e, em particular, pela Europa.
Existe, em suma, uma responsabilidade institucional da ONU e o dever da comuni-
dade internacional de fazer tudo o que for possível a fim de obter a paz. E o que a ONU
pode fazer, e, portanto, deve fazer, é não deixar sozinha a Ucrânia na mesa de negociação,
mas oferecer os seus órgãos institucionais, a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança,
como os lugares e os sujeitos da tratativa, que bem poderiam ser convocados em seção
pública e permanente até que não consigam ter sucesso em pôr termo à guerra. Seria uma
iniciativa excepcional, sem precedentes, dotada de um enorme valor político e simbólico,
que valeria para sinalizar a gravidade dos perigos que pairam sobre a humanidade, para
relançar o papel da ONU e engajar todos os Estados em uma reflexão sobre o futuro do
mundo e levar a sério o princípio da paz estabelecido no Estatuto da instituição da qual
são membros.
3. Duas visões do futuro do mundo
É precisamente o futuro do mundo no pós-guerra que deveria estar no centro do debate
político e de políticas externas responsáveis. No caso de perigo nuclear que escapa, os êxi-
tos possíveis dessa guerra serão, de fato, dois, entre si opostos: o rearmamento ou o desar-
mamento, a corrida para maiores armamentos, a pendência da próxima guerra e, de novo,
do risco nuclear, ou um despertar da razão e da reflexão comum sobre possíveis repetições
do perigo atômico e, portanto, sobre a necessidade, no interesse de todos, de um progres-
sivo desarmamento, até a desnuclearização do planeta inteiro.
A primeira hipótese, infelizmente a mais míope e a mais provável, se manifesta no
aumento das despesas militares dos Estados ocidentais e em uma militarização das nos-
sas democracias: do rearmamento da Alemanha ao aumento das despesas militares até
2% do PIB decidido pela Itália e por outros Estados europeus. «Loucos», os chamou o Papa
Francisco, declarando estar por eles «envergonhado». É a hipótese expressa pela disputa
de insultos nos confrontos de Putin na qual competem os leader ocidentais, a começar pelo
presidente Biden – «açougueiro», «criminoso de guerr, «esse homem não pode ficar no
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Pacifismo e constitucionalismo global
Pacifism and global constitutionalism
LUIGI FERRAJOLI
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poder!» –, que têm o único efeito de minar, ou, pelo menos, de tornar mais difícil as nego-
ciações, ou, pior, sendo dirigidos a um autocrata irresponsável, de provocá-lo e induzi-lo
a alargar o conflito até fazê-lo precipitar em uma terceira guerra mundial. São invectivas
que sinalizam uma intenção inquietante: a vontade que a guerra prossiga para obter a
derrota da Rússia, o, pelo menos, a sua humilhação no pântano de uma guerra falida, para
consolidar a subordinação da Europa à política de potência dos Estados Unidos e, também,
talvez, para arrecadar alguns votos nas eleições americanas de mid-term. Esta guerra se
torna, assim, a ocasião, para os Estados Unidos e para o aparato político-midiático implan-
tado em seu apoio, para um relançamento eticamente conotado do choque de civilidade
entre democracia e autocracia, entre mundo livre e mundo incivil, a fim de obter a vitória
sobre o Mal, também ao custo de manter em risco a segurança do mundo do possível holo-
causto nuclear.
A segunda hipótese é aquela pacista, aqui prospectada, do empenho da comunidade
internacional de parar imediatamente a guerra a qualquer razoável custo: da garantia que
a Ucrânia não entrará na OTAN à autonomia das pequenas regiões separatistas da Ucrâ-
nia oriental, russófonos e russófilos, com base no voto popular no exercício do direito dos
povos à autodeterminação; em força do qual, diz o art. 1.º de ambos os Pactos internacio-
nais sobre direitos humanos de 16 de dezembro de 1966, «todos os povos... decidem livre-
mente sobre seu estatuto político». Do clima de paz gerado pela tratativa poderia emergir
não somente o fim da agressão à Ucrânia, mas também uma séria reflexão sobre o perigo,
nunca assim grave, do conflito nuclear que está corrente o gênero humano. Poderia emer-
gir a consciência comum da necessidade de uma refundação, mediante a introdução de
idôneas garantias em matéria de limitação da soberania dos Estados, do pacto de convi-
vência pacifista estipulado com a criação da ONU. O perigo nuclear que estamos correndo
poderia, também, induzir os países que ainda não o fizeram para aderir ao Tratado sobre
o desarmamento nuclear de 7 de julho de 2017, já subscrito por 122 países, ou seja, de mais
de dois terços dos membros da ONU. Poderia, sobretudo, convencer os Estados Unidos
a anular a retirada deles, decidido em 2 de agosto de 2019 pelo presidente Trump, do tra-
tado de 1987 sobre o desarmamento nuclear, e induzir todos os Estados dotados de tais
armamentos a retomar esse gradual processo até o total desarmamento. Hoje, no mundo,
existem 13.440 ogivas nucleares (eram 69.940 antes do tratado sobre o desarmamento de
1987), em posse de nove países: 6.375 na Rússia, 5.800 nos Estados Unidos, 320 na China,
290 na França, 215 no Reino Unido, 160 no Paquistão, 150 na Índia, 90 em Israel e 40 na
Coreia do Norte. Foi calculado que bastam 50 destas bombas para destruir a humanidade.
Isso significa que com esses armamentos o gênero humano pode ser varrido da face da
Terra por 270 vezes.
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Pacifismo e constitucionalismo global
Pacifism and global constitutionalism
LUIGI FERRAJOLI
GALILEU · e-ISSN 2184-1845 · Volume XXIII · Issue Fascículo 1-2 · 1st January Janeiro – 31st December Dezembro 2022 · pp. 11-19
Na discussão sobre essas duas hipóteses não está, portanto, nenhum contributo ao
debate público, que está desenvolvendo-se em um clima envenenado por contraposições
radicais. Não é um debate baseado no diálogo, no confronto racional e no respeito das
opiniões alheias, mas um confronto fundado na oposição amigo/inimigo, na suspeita da
má-fé dos interlocutores e na desqualificação moral deles, ou como putinianos ou como
belicistas. Completamente ausentes estão a atitude problemática, a incerteza, a dúvida, o
interesse pelas ideias diversas das nossas, a consciência da complexidade e da ambivalên-
cia das questões, que sempre deveriam informar a discussão pública.
As questões sobre as quais o debate político tem estado mais aceso e entre surdos são
duas: a do envio de armas à Ucrânia e aquela do aumento da despesa militar até 2% do
PIB. São questões diversas, que a alternativa entre as duas hipóteses supra ilustradas per-
mite, talvez, enfrentar com previsão. A primeira é um dilema moral entre a solidariedade
justamente devida ao povo ucraniano, cujos expoentes pediram outras vezes o envio de
armas, e o prolongamento que se seguiria do conflito e dos massacres. Tratando-se de um
autêntico dilema moral, não tem sentido as acusações que se trocam os apoiadores das
duas opções. Existem válidos argumentos a apoiar ambos.
Na minha opinião, o maior argumento contra o envio das armas consiste, além do
risco que isso possa ser entendido como cobeligerância em um conito destinado a durar
e a produzir outros massacres, na sua decisão junto àquela de um aumento das despesas
militares. Essa segunda decisão é claramente em apoio da lógica da guerra, se não por
outro motivo, porque tal aumento já aconteceu, ininterruptamente, há mais de vinte anos.
Em comparação com 2019, o aumento, em 2020, foi de 2,6% a nível global e de 7,5% na Itália.
A despesa total no mundo soma quase 2.000 bilhões de dólares anuais, dos quais 39% (776
bilhões, contra os 252 da China e os 62 da Rússia) gastos apenas pelos Estados Unidos,
que encheram o planeta com 800 bases militares. Para que serve, perguntamo-nos, acu-
mular mais armamentos inúteis, se não para alimentar o clima de guerra e, obviamente,
para satisfazer os interesses do complexo militar-industrial? Ambas as opções, o envio de
armas à resistência ucraniana e o aumento das despesas militares estão, portanto, unidos
por uma opção militarista: da ideia suicida das armas como única solução estratégica das
controvérsias internacionais, em literal contraste com o art. 1.º da Carta da ONU, com
o art. 11 da Constituição italiana e, de modo mais geral, com os princípios da paz e da
igualdade de todos os seres humanos nos direitos fundamentais. Uma igualdade, deve-
mos acrescentar, que continuamos a proclamar como um valor do Ocidente agredido e, ao
mesmo tempo, a violar nos confrontos dos quatro quintos da humanidade.
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Pacifismo e constitucionalismo global
Pacifism and global constitutionalism
LUIGI FERRAJOLI
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4. Por uma Constituição da Terra
É neste último ponto que quero me focar. Não podemos continuar a falar decentemente
de defesa da democracia, dos princípios da igualdade e dignidade da pessoa e de
universalismo dos direitos humanos ameaçados pelas autocracias, até quando estes
princípios permanecerem um privilégio dos nossos países – não mais de um bilhão de
pessoas sobre quase oito bilhões de seres humanos – enquanto para o resto do mundo não
há outra coisa que retórica vazia. Não podemos continuar a declamá-los como “valores
do Ocidente”, enquanto aqueles princípios, proclamados como universais por todas as
cartas dos direitos, não são garantidos a todos os seres humanos, mas somente a uma
exígua minoria deles. Uma vez que aqueles valores ou são universais, ou não são. Hoje
as nossas democracias estão em declínio, submetidas à dupla ameaça da onipotência da
maioria política desenraizada de suas bases sociais e dos poderes dos mercados globais.
Mas, sobretudo, os direitos humanos e os princípios de igualdade e dignidade das pessoas,
proclamados em tantas cartas constitucionais e internacionais, são promessas não manti-
das: implementadas, além de tudo mal, em poucos países privilegiados e flagrantemente e
sistematicamente violadas para o resto da humanidade, também por causa da política de
roubo, de exploração e exclusão praticada pelo Ocidente civilizado. A conclamada inviola-
bilidade deles, como a sua indivisibilidade e universalidade não são nada além de palavras,
contraditas pelas suas violações sistemáticas e pela sua falta de implementação, pela falta
de garantias, em grande parte do mundo. Na ausência de uma esfera pública mundial,
capaz de garanti-las, as desigualdades estão destinadas a crescer, os poderes globais, tanto
políticos como econômicos, só podem desenvolver-se em formas selvagens e destrutivas,
as violações maciças dos direitos humanos só podem se espalhar e todos os problemas
globais só podem agravar-se.
Existe, portanto, uma questão de fundo que esta guerra impõe enfrentar. A guerra, e
antes ainda a pandemia, nos mostraram toda a dramaticidade delas a inadequação das
instituições internacionais existentes e, sobretudo, o perigo representado pelo vácuo de
garantias nos confrontos dos poderes selvagens dos Estados soberanos e dos mercados
globais. As duas tragédias – pandemia e guerra – são, por muitos aspectos, opostas. A
pandemia, com os seus 6 milhões de mortos, mostrou a interdependência e a comum
fragilidade da humanidade, a insensatez das fronteiras e dos confrontos identitários e
a disponibilidade à solidariedade das opiniões públicas e também da política. A guerra,
com seus milhares de mortos, as cidades devastadas e mais de 10 milhões de deslocados,
está gerando, ao contrário, ódio entre povos, lógicas políticas de amigo/inimigo, lacera-
ções entre nacionalidade que não serão fáceis de curar. Ambas as tragédias são, todavia,
uma dramática confirmação da insensatez e da periculosidade do estado atual do mundo e
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Pacifismo e constitucionalismo global
Pacifism and global constitutionalism
LUIGI FERRAJOLI
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sinalizam a necessidade e a urgência de uma refundação da ONU baseada em sua Consti-
tuição da Terra em seu auge. É este o projeto do movimento “Terra Constituinte” formado
em Roma na assembleia de 21 de fevereiro de 2020 e por mim ilustrado no livro Para uma
Constituição da Terra, publicado neste ano por Feltrinelli.
Além da guerra e das pandemias, são muitos outros os desafios e os perigos que amea-
çam o futuro da humanidade e que somente um constitucionalismo global pode enfren-
tar. Antes de tudo, a emergência ecológica, que a guerra está agravando e juntamente
removendo do horizonte da política, mas que continua a ser uma ameaça, talvez mais
grave, para o futuro da humanidade. Pela primeira vez na história, o gênero humano, por
causa do aquecimento climático, arrisca a extinção para a progressiva inabitabilidade de
partes crescentes do nosso planeta. Por muitas décadas, a concentração no ar de dióxido
de carbono cresce de maneira progressiva: cada ano, constantemente, é liberada na atmos-
fera uma quantidade de CO2 maior do que aquela liberada no ano precedente. É claro que
enquanto esse processo não for invertido, quererá dizer que estamos caminhando para a
ruina.
Há, então, os direitos de emergência. A globalização, com o poder das grandes empre-
sas de deslocar a atividade produtiva delas nos países nos quais é possível a exploração
ilimitada dos trabalhadores, desvalorizou o trabalho a nível global, cancelando, nos países
avançados, as garantias conquistadas em um século de lutas e reduzindo o trabalho, nos
países pobres, à formas e a condições para-escravagistas. Por causa da miséria crescente,
além de tudo, morrem, cada ano, oito milhões de pessoas por falta de alimentação básica e
tantas outras por falta de tratamento médico e medicamentos que salvam vidas, vítimas
do mercado, além das doenças, já que os fármacos que podem salvá-los não estão disponí-
veis nos seus países pobres, ou porque são patenteados e, portanto, muito custosos, ou por-
que não mais produzidos por falta de demanda dado que relacionados a doenças – infec-
ções respiratórias, tuberculose, AIDS, maria – erradicadas e desaparecidas nos países
ricos. Daí o drama de dezenas de milhares de migrantes, cada um dos quais tem por trás
uma dessas tragédias. Daí o ódio pelo Ocidente, o descrédito dos seus valores políticos, o
desenvolvimento da violência, dos racismos, dos fundamentalismos e dos terrorismos.
É claro que desafios globais dessa magnitude requerem respostas globais: o progressivo
desarmamento, não somente nuclear, de todos os Estados e a proibição de todas as armas
como bens ilícitos; a superação dos exércitos nacionais esperada há mais de dois séculos
desde Kant e a realização, como garantia da paz e da segurança, do monopólio da força
para a ONU e as polícias locais; a instituição de uma propriedade estatal planetária que
retira os bens comuns e vitais – o ar, a água potável, as grandes florestas e as grandes
geleiras – das apropriações privadas, das mercantilizações e das devastações por obra do
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Pacifismo e constitucionalismo global
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mercado; a introdução de proibições, finalmente sancionadas, das emissões de gases com
efeito estufa e da produção de resíduos em todo caso venenosos; a igualdade nos direitos
e na dignidade de todos os seres humanos através da criação de instituições globais de
garantia de todos os direitos fundamentais, dos direitos de liberdade aos direitos sociais à
saúde, à educação, à alimentação e à subsistência, como um serviço sanitário e um sistema
de educação mundial com hospitais, farmácias, vacinas, escolas e universidades em todo
o mundo; a unificação do direito do trabalho e a globalização das garantias dos direitos
dos trabalhadores, capazes de assegurá-los a igualdade e a dignidade contra a hodierna
exploração ilimitada; a instituição de uma Corte constitucional supraestatal, com o poder
de invalidar todas as fontes normativas que violam direitos humanos, e a transformação,
de voluntária em obrigatória, da competência da Corte de justiça e da Corte penal interna-
cional; a introdução, enfim, de um adequado sistema tributário global progressivo, capaz
de financiar as instituições globais de garantia e de impedir as atuais concentrações ili-
mitadas da riqueza.
Medidas desse gênero, é evidente, podem ser impostas somente por uma refundação
da Carta da ONU por obra de uma Constituição da Terra rigidamente supraordenada às
fontes estatais e aos mercados globais. Só uma Constituição da Terra que introduza as
funções e as instituições globais de garantia dos direitos proclamados em tantas cartas
e convenções pode tornar crível o princípio da igualdade e o universalismo dos direitos
humanos. Só uma Constituição mundial, que alargue além dos Estados o paradigma do
constitucionalismo rígido experimentado nas nossas democracias pode transformar pro-
messas e compromissos políticos, como aqueles feitos em matéria de meio ambiente pelo
G20 em Roma e depois em Glasgow, em limites e em obrigações jurídicas efetivamente
vinculantes.
Não se trata de uma utopia. Se trata, em vez disso, da única resposta racional e realís-
tica ao mesmo dilema que foi enfrentado faz quatro séculos por Thomas Hobbes: a insegu-
rança geral determinada pela liberdade selvagem dos mais fortes, ou o pacto racional de
sobrevivência e de convivência pacífica baseado na proibição da guerra e na garantia da
vida. Com uma diferença de fundo, que torna o dilema hodierno enormemente mais dra-
mático: a sociedade natural do homo homini lupus, hipotetizada por Hobbes, foi substituída
por uma sociedade de lobos não mais naturais, mas artificiais – os Estados e os mercados
– dotados de uma força destrutiva incomparavelmente maior do que qualquer armamento
do passado. Diversamente de todos os horrores do século passado – mesmo das guerras
mundiais e dos totalitarismos – a catástrofe ecológica e aquela nuclear são irreversíveis:
há, de fato, o perigo, pela primeira vez na história, que se tome consciência da necessidade
de mudar de caminho quando for tarde demais.
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Pacifismo e constitucionalismo global
Pacifism and global constitutionalism
LUIGI FERRAJOLI
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Tampouco se trata de uma invenção, nem de uma mudança do atual paradigma cons-
titucional. Se trata, ao contrário, de um seu cumprimento, isto é, de uma implantação do
princípio da paz e do universalismo dos direitos humanos como direitos de todos já con-
sagrados na Carta da ONU e em tantas cartas constitucionais e internacionais. A lógica
intrínseca do constitucionalismo, com os seus princípios de paz e de igualdade nos direi-
tos humanos, não é nacional, mas universal. Os Estados nacionais e as suas constituições
são, por outro lado, impotentes diante dos desafios globais, os quais requerem respostas e
garantias jurídicas, por sua vez, globais. E o pacto de convivência pacífica estipulado com
a Carta da ONU e com as tantas cartas internacionais dos direitos humanos fracassou por
duas raes: porque contradito pela persistente soberania dos Estados e pelas suas cida-
danias desiguais, e porque não foram instituídas as necessárias garantias globais, sem as
quais os direitos e os princípios de justiça, ainda que solenemente proclamados, se redu-
zem a enganosa ideologia.
Nessa perspectiva vem contraposta, em nome do realismo político, a ideia do seu
caráter utópico e irrealizável. Eu penso que devemos distinguir dois tipos opostos de rea-
lismo: o realismo vulgar da quem naturaliza a realidade social e política com a tese “não
há alternativas a quanto de fato acontece”, e o realismo racionalista, segundo o qual as
alternativas existem, depende da política adotá-las e a verdadeira utopia, a hipótese mais
irrealista, é a ideia que a realidade possa permanecer por muito tempo como está: que
podemos continuar a basear as nossas democracias e os nossos despreocupados padrões
de vida com fome e a miséria do resto do mundo, com a força das armas e o desenvolvi-
mento ecologicamente insustentável das nossas economias. Tudo isso não pode durar. É o
mesmo preâmbulo da Declaração dos direitos de 1948 que estabelece, realisticamente, um
nexo de implicação recíproca, como só uma Constituição da Terra e as suas instituições
de garantia podem assegurar, entre paz e direito, entre segurança e igualdade e, devemos
acrescentar hoje, entre salvação da natureza e salvação da humanidade.
Por outro lado, a humanidade forma já um único povo. Faz sessenta anos, eu lembro,
éramos, no planeta, dois bilhões de pessoas, mas o que sucedia na outra parte do mundo
não nos preocupava. Hoje a população mundial chegou a 8 bilhões, mas estamos todos
interconectados, submetidos ao governo global da economia e expostos às mesmas emer-
gências e catástrofes planetárias. Somos, portanto, um único povo, mestiço e heterogêneo,
mas unificado pelos mesmos interesses na sobrevivência, na saúde, na igualdade e na paz,
que só a miopia dos poderes políticos não é capaz de ver e que, assim, se esconde com a
defesa das fronteiras. A lógica schmittiana do amigo/inimigo é uma construção propa-
gandística em apoio dos populismos e dos regimes autoritários que está hoje contagiando,
infelizmente, também as nossas democracias. Se os máximos governantes do planeta, ao
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Pacifism and global constitutionalism
LUIGI FERRAJOLI
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invés de se empenharem na base dessa lógica nas suas míopes e miseráveis políticas de
potência, fossem capazes de tirar lições da história, esta terrível guerra na Ucnia seria
uma fonte inexaurível de ensinamentos. Ensinaria – contra a insensatez das guerras, das
armas, das fronteiras, dos nacionalismos e dos conflitos identitários – o valor racional,
nos interesses de todos, da paz universal e da igualdade de todos os seres humanos em
dignidade e direitos e a necessidade das garantias necessárias para assegurá-las.
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Franco cordero e le dottrine
delprocessopenale
Franco cordero and the doctrines of the criminal process
RENZO ORLANDI1
renzo.orlandi@unibo.it
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXII · 1st January Janeiro–31ST December Dezembro 2022 · pp.23‑38
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXIII.1/2.2
Submitted on April 21st, 2022 · Accepted on April 26th, 2022
Submetido em 21 de Abril, 2022 · Aceite a 26 de Abril, 2022
SOMMARIO 1. Premessa. – 2. Le situazioni soggettive nel processo penale. – 3. L’incontro
con Carnelutti e l’impegno per la riforma del processo penale. – 4. I tre studi sulle prove
penali. – 5. Il manuale di Procedura penale. – 6. Altre sfide. – 7. Cosa ci resta?
ABSTRACTINITALIANO Lo scritto illustra la figura di un intellettuale di grande valore,
un umanista dei nostri tempi che ha saputo spendere il proprio talento in molteplici
direzioni. È stato giurista, storico, filosofo, romanziere, polemista. Larticolo si concentra
in particolare la sua produzione nel campo della Procedura penale, con studi che hanno
lasciato una traccia vasta e profonda. Il suo impegno nel ristretto ambito delle dottrine
processualistiche si allenta a partire dagli anni ’60 del secolo scorso, per ragioni che il
presente scritto tenta di individuare.
PAROLECHIAVE dottrine; giurista; umanista.
ABSTRACT The paper illustrates the figure of an intellectual of great value, a humanist
of our times who has been able to spend his talent in many directions. He was a jurist,
historian, philosopher, novelist, polemicist. The article focuses its production in particular
in the field of Criminal Procedure, with studies that have left a vast and profound trace.
His commitment to the restricted area of procedural doctrines is loosened since the 1960s,
for reasons that this paper attempts to identify.
KEYWORDS doctrine; jurist; humanist.
1 Professor Catedrádico de Direito Processual Penal da Universidade de Bolonha.
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Franco cordero e le dottrine del processo penale
Franco cordero and the doctrines of the criminal process
RENZO ORLANDI
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1. Premessa. Una singolare figura di giurista-umanista della contemporaneità: questo è
stato, a mio avviso, Franco Cordero. Autore prolifico e coltissimo, ha spinto in molte dire-
zioni il suo sguardo in un arco temporale durato circa settant’anni. Si è occupato di diritto
penale, di procedura penale, di filosofia del diritto; ha coltivato studi storici, ha scritto
romanzi e, da ultimo, dopo essersi congedato dall’insegnamento universitario, ha vestito
i panni del polemista, scagliandosi contro la decadenza dei costumi italiani e contro la
degenerazione morale delle classi dirigenti. Tante opere diverse, ma, al fondo, un solo
impegno intellettuale: lotta a ogni sorta di dispotismo, agli stereotipi, alle ortodossie che
umiliano la libertà di pensiero. In questo suo impegno civile Cordero davvero ricorda gli
umanisti rinascimentali in odore di eresia, come Lorenzo Valla, Paolo Sarpi, Tommaso
Campanella, che seppero sfidare il pensiero dominante del loro tempo consapevoli dei
rischi che correvano.
Ripercorrere le tappe della lunga e affascinante avventura intellettuale di Cordero è
compito che supera le mie forze e non può qui essere intrapreso se non a grandi linee. In
questa sede prenderò principalmente in considerazione gli scritti che, a mio avviso, hanno
contributo in misura significativa allo sviluppo della dottrina processualpenalistica ita-
liana, lasciando sullo sfondo o citando solo occasionalmente scritti appartenenti ad altri
ambiti.
L’influenza di Franco Cordero nel settore della procedura penale è stata intensa e pro-
fonda sin dai primi studi.
Biograa singolare, la sua. Ambiva a diventare medico, ma qualcuno che lo sente
parlare in un pubblico dibattito, quand’è ancora liceale, lo convince a seguire la carriera
forense: l’oratoria fluida ed erudita ne farà certamente un grande avvocato. Si iscrive
all’Università di Torino, dove si laurea in diritto romano all’inizio degli anni Cinquanta
del secolo scorso, sotto la supervisione di Giuseppe Grosso, personalità di notevole rilievo
intellettuale, al quale resterà molto legato2.
Cresciuto per qualche anno alla Scuola di Francesco Antolisei, verso la metà degli anni
Cinquanta si sposta a Milano, nello studio di Enrico Allorio (allievo di Francesco Carne-
lutti, già in rotta col maestro) per avviarsi alla carriera forense. Lì nasce la sua passione per
lo studio e per l’insegnamento accademico.
Persona schiva e poco incline a circondarsi di interlocutori, non ha avuto una Scuola,
non ha generato allievi in senso stretto, se il termine è inteso nel senso tradizionale pro-
prio del gergo accademico. Bisogna però riconoscere che tutti (ma proprio tutti) coloro che,
2 Al punto da dedicargli una delle sue opere più significative (Riti e sapienza del diritto Laterza, Bari, 1981): un «ina-
bissamento nella cultura giuridica», che sarebbe piaciuto alla sua (di Giuseppe Grosso) «adunca fantasia specu-
lativa».
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in Italia a partire dagli anni ’60 del secolo scorso, si sono occupati di procedura penale si
sono dovuti misurare con le sue riflessioni sulle fondamentali categorie concettuali del
diritto processuale, sul diritto probatorio, sulla riforma della giustizia penale. Sotto que-
sto profilo, ogni cultore contemporaneo del diritto processuale penale italiano ha visto in
lui un maestro e si può quindi considerare suo allievo.
Gli scritti fondamentali (per quanto qui interessa) appaiono nel corso di un decennio,
dal 1956 al 1966. Si tratta di un periodo cruciale per la dottrina processuale penale che, fino
agli inizi degli anni ’60, non aveva ancora raggiunto, in Italia, una vera autonomia didat-
tica. Quasi in tutte le Università, il relativo insegnamento era assegnato, per affidamento,
a professori di diritto penale che dedicavano ai principi fondamentali del processo qualche
rapido cenno a fine corso. Lo ricorda lo stesso Cordero in una sua recente confessione auto-
biografica: “Ancora nel secolo scorso (la procedura penale) era disciplina da poco, utile in trucchi
legulei. I cultori della clinica penalistica la sdegnavano, puntando alla disputa nel merito. Correva
l’anno 1950 quando andavo al terz’ultimo esame torinese: sulla carta la insegna Francesco Antolisei,
insigne penalista, ma non vi apre bocca3. La manualistica era costruita sulle categorie con-
cettuali elaborate dai cultori del diritto processuale civile, prevalentemente ancorate alla
sistematica chiovendiana del “rapporto giuridico-processuale”. Questa era la situazione
dottrinale quando Cordero si affacciava alla vita accademica.
2. Le situazioni soggettive nel processo penale. – Dopo alcuni anni di apprendistato presso la
cattedra torinese di Diritto penale, Franco Cordero pubblica (nel 1956 a soli 28 anni) una
monografia di notevole impegno e spessore teorico. Il titolo, “Le situazioni soggettive nel
processo penale”, evoca volutamente il volume pubblicato circa trentanni prima da James
Goldschmidt (Der Prozess als Rechtslage. Kritik des prozessualen Denkens, 1925).
Il giurista tedesco, perseguitato dal nazismo e costretto ad abbandonare la Germania
per la sua origine ebraica, era stato quasi dimenticato. Qualcuno in Italia aveva cercato di
valorizzare la sua rivoluzionaria visione del fenomeno processuale: Giuseppe Guarneri,
ad esempio, che, nel 1939, tentava di rifondare la scienza processualistica in un’opera di
notevole interesse (Sulla teoria generale del processo penale, Milano, Giuffrè) ed Enrico Allo-
rio, che, nel suo Diritto processuale tributario (Torino, Utet, 1942), dimostrava di tener conto
di alcune riflessioni goldschmidtiane, pur non accettando l’idea di sostituire la categoria
del “rapporto giuridico processuale” con quella di “situazione giuridica”4.
3 Rutulia, Roma, Quodlibet, 2016, p. 237.
4 Anche Piero Calamandrei, a un certo punto, dimostra di apprezzare, se non di condividere, la costruzione teorica
di Goldschmidt: v. Il processo come giuoco, in Scritti giuridici in onore di F. Carnelutti, vol. II, Padova, Cedam, 1950, p. 31
ss., nonché nel saggio dedicato al processualista tedesco nel decennio della sua scomparsa: Un maestro di liberali-
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Franco cordero e le dottrine del processo penale
Franco cordero and the doctrines of the criminal process
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Per parte sua, Cordero vaglia criticamente il pensiero di Goldschmidt: non accetta l’i-
dea di “situazione giuridica” per le intromissioni metagiuridiche che la connotano5, ma
ripudia anche la categoria del “rapporto giuridico processuale”, inadeguato a suo avviso a
fornire una rappresentazione giuridicamente pregnante del nugolo di relazioni nei quali
si risolve il fenomeno processuale6. Ritiene di trovare la chiave di volta nel concetto di
“situazione soggettiva”, inteso in senso rigorosamente formale come riferito alle figure
del “potere”, del “dovere”, dell’”onere”, secondo i postulati della dottrina kelseniana. Più che
ai maestri della Procedura civile, guarda agli studiosi del diritto amministrativo (Benve-
nuti; Guarino; Sandulli) che in quegli anni stavano analizzando il procedimento (ammi-
nistrativo) avvalendosi a loro volta dei concetti elementari di “situazione soggettiva” e di
“fattispecie giuridica”7. In questa prima opera monografica, Cordero si mantiene – come
detto – sul piano di un rigoroso formalismo, distante da teleologismi o psicologismi che,
a suo avviso, inquinerebbero l’analisi delle elementari “situazioni soggettive” nelle quali è
scomporre il fenomeno processuale.
Egli si sente distante anche dagli autori che includono il “fine” della norma nell’analisi
del fenomeno giuridico-processuale: «alcune note classificazioni della dottrina germa-
nica nelle quali ogni aspetto di autentico rilievo giuridico si dissolve in un quadro descrit-
tivo vagamente funzionale e finalistico, rivelano, a prima vista un vizio metodologico da
cui risulta alquanto compromesso il loro rigore scientifico»8.
La distanza rispetto all’impostazione di Goldschmidt era ancora più marcata, per via
della coloritura sociologizzante che il fenomeno processuale assumeva nella visione del
giurista tedesco. Goldschmidt proiettava la sua “situazione giuridica” sullo sfondo rea-
smo processuale, in Riv. dir. proc. 1951, I, p. 1 ss. Tutto questo circa un quarto di secolo dopo aver stroncato il Prozess
als Rechtslage in una recensione dai toni piuttosto drastici: Il processo come situazione giuridica, in Riv. dir. proc. civ.
1927, p. 219 ss.
Più tardi, G. Foschini, nel suo Sistema del diritto processuale penale, Milano, 1965, vol, 1.º, p. 16 e p. 27, propone di su-
perare la dogmatica del “rapporto giuridico processuale, imperniando la sua visione del fenomeno processuale
su una concezione (assai personale) di “situazione giuridica. Foschini cita e conosce Goldschmidt, ma non ne
sfrutta appieno la visione realistica: per lui sono situazioni giuridiche “l’essere giudice”, “l’essere imputato”, “l’es-
sere accusato” (ibidem, p. 28) e arriva persino a qualificarla come “statica, mentre per Goldschmidt la Rechtslage
è elemento per definizione dinamico, ricco di tensioni esistenziali (le aspettative di un risultato favorevole, la
minaccia di uno sfavorevole, il desiderio di affermare le proprie ragioni) che animano lo svolgimento processuale
e danno un senso al suo obiettivo finale (la sentenza).
5 Le situazioni soggettive, cit., p. 19 ss. e p. 224.
6 Le situazioni soggettive, cit., p. 19.
7 Nozione, questa, comune pressoché a tutti gli ambiti dell’esperienza giuridica e che può pertanto fungere da
“mattoncino teorico” anche per costruire con nuovi materiali l’”edificio processuale”. L’importanza del concetto di
fattispecie per la dottrina processualistica era stata già segnalata G. C     I 
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8 Le situazioni soggettive, cit., p. 14. A questo attacco reagirà – sentendosene coinvolto – F. C N 
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Franco cordero e le dottrine del processo penale
Franco cordero and the doctrines of the criminal process
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listico dei sentimenti che animano i contendenti: aspettative di riuscita, rischio della
perdita di talune chances, incertezza dello svolgimento procedurale e del risultato finale.
Il processo giudiziario concepito come agone, con importanti ripercussioni sul modo di
intendere il diritto processuale anche nei suoi rapporti con la politica, giacché spetta a
quest’ultima fornire gli schemi normativi dei ruoli e delle funzioni che i singoli soggetti
sono chiamati a interpretare. Non da un metasico “rapporto giuridico-processuale”,
cadenzato sulla struttura di un rapporto negoziale, bensì da consapevoli scelte politi-
co-legislative discendono – secondo Goldschmidt – le situazioni di dovere e di potere che
innervano il processo. L’organizzazione della giustizia (specialmente quella penale) e la
regolamentazione delle funzioni processuali ricapitolano i rapporti di potere interni alla
società.
Pur diffidando del concetto goldschmidtiano di “situazione giuridica”, Cordero è
attratto da questo approccio, del quale condivide la potente carica iconoclasta rispetto al
tradizionale schema concettuale del “rapporto giuridico processuale”, tipico del tecnici-
smo giuridico di origine pandettistica, patrocinato in Italia dalla scuola di Giuseppe Chio-
venda.
Mettere “le situazioni soggettive” al centro del discorso rendeva più facile condurre
una critica politica dell’assetto normativo esistente. Lo si noterà negli sviluppi successivi
del pensiero di Cordero. Anche qui verrà in soccorso Goldschmidt e, in particolare, quel
passaggio della prefazione al Prozess als Rechtslage dove riconosceva che “la critica del pen-
siero processuale mi si è quasi inavvertitamente trasformata in una critica del pensiero
politico”9; per trarne poi traeva la conclusione che “il diritto processuale cresce sul ter-
reno del liberalismo o non è tale”10. In quanto meccanismo volto a creare – con le sentenze
– norme singolari e concrete, il processo giudiziario deve essere regolato in maniera da
assicurare l’eguaglianza e la democratica partecipazione fra le parti. Esso attua un ordina-
mento parallelo e solo tendenzialmente coerente con quello legislativo, volto alla produ-
zione di norme generali e astratte.
Cordero non accetta fino in fondo questa apertura alla creatività giurisprudenziale,
ma recepisce da Goldschmidt l’idea che il processo giudiziario devessere politicamente
orientato in senso liberale e democratico. Altrimenti è uso arbitrario del potere sotto false
sembianze giudiziarie.
9 So ist unter der Hand die Kritik des prozessualen Denkens zu einer Kritik des politischen Denkens geworden, in Vorwort a
Prozess als Rechtslage, p. V.
10 Das Prozessrecht kann nur auf dem Boden des Liberalismus oder es kann gar nicht gedeihen, in Vorwort, cit. p. V. Pur criti-
candola (dal suo punto vista ancora ispirato a un rigido formalismo), C    
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Come molte opere redatte in vista di un concorso accademico, la monograa su Le
situazioni soggettive non sortisce effetti immediati nel dibattito dottrinale. Della sua
importanza ci si renderà conto negli anni successivi, quando Franco Cordero, liberandosi
dal rigido approccio formalistico (eppur innovativo) della sua monografia giovanile, pren-
derà posizione sui punti più delicati della procedura penale italiana, servendosi con mag-
gior realismo delle categorie concettuali messe a punto in quell’impegnativo lavoro.
3. L’incontro con Carnelutti e l’impegno per la riforma del processo penale. – Loccasione per
cimentarsi con i temi e le questioni più controversi e dibattuti di quel periodo si offrì a
Cordero all’inizio degli anni Sessanta, quando Francesco Carnelutti lo chiamò a far parte
della commissione ministeriale da lui presideduta e istituita col compito di progettare la
riforma del processo penale11. L’incontro con il vecchio professore (ultraottantenne), avvo-
cato celebratissimo, devessere stato galvanizzante per il giovane Franco Cordero, poco
più che trentenne e all’epoca pressoché sconosciuto, approdato nel 1960 alla cattedra di
Procedura penale dell’Università Cattolica di Milano.
Lo si capisce dalla convinzione con la quale il giovane studioso difenderà il “progetto
Carnelutti” in due dibattiti rimasti celebri e tuttora molto citati nella letteratura proces-
sualpenalistica: alludo ai convegni svoltisi entrambi nel 1964, uno nel Sud Italia (Lecce) e
l’altro al Nord (Bellagio). In quelle due occasioni, in perfetta sintonia con la radicalità della
proposta carneluttiana, Cordero diede davvero il meglio di sé, sostenendo con ottimi argo-
menti la necessità di superare il processo di impronta inquisitoria allora vigente in Italia12.
La proposta di Carnelutti prevedeva l’abolizione del giudice istruttore, la conseguente
soppressione della fase istruttoria e la sua sostituzione con una “inchiesta di parte” con-
dotta dal pubblico ministero. Tale fase iniziale del processo era finalizzata non più “all’ac-
certamento della verità”, bensì, più modestamente, alla individuazione e al reperimento
di mezzi di prova da formare e acquisire davanti al giudice del dibattimento, volutamente
tenuto all’oscuro delle conoscenze acquisite dalla polizia e dal pubblico ministero. Negli
interventi ai citati convegni Cordero immagina e analizza minuziosamente tutti i pro-
blemi che l’attuazione di quel rivoluzionario progetto avrebbe comportato. È impressio-
nante constatare oggi, a molti anni dalla riforma processuale del 1988, quanto fossero
azzeccate quelle previsioni. Vi troviamo lucidamente espressi, ad esempio, il timore che il
11 Le vicende della Commissione Carnelutti e l’importanza dei suoi esiti sono illustrati in R. O D
    I   D N – M P D   
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12 Gli interventi di questi importanti convegni sono pubblicati nel volume Criteri direttivi per una riforma del pro-
cesso penale, Milano, Giuffrè, 1965, poi confluiti nel volume Ideologie del processo penale, Milano, Giuffrè 1966,
p.151ss.
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pubblico ministero incaricato dell’inchiesta di parte assuma funzioni istruttorie simili a
quelle del giudice istruttore; il timore che l’uso di dichiarazioni verbalizzate dalla polizia
o dal pubblico ministero possano trasformarsi in prove se utilizzate a fini di contesta-
zione nell’esame testimoniale; la proposta di introdurre l’incidente probatorio (una “oasi
giurisdizionale”) per superare il problema delle prove che rischiano di andar disperse
nel corso della fase investigativa; e ancora, la proposta di contrastare le possibili inerzie
del pubblico ministero attribuendo alla persona offesa la facoltà di opporsi alla richiesta
di archiviazione. Chi ha una conoscenza anche approssimativa delle vicende che hanno
accompagnato l’applicazione del codice vigente è in grado di apprezzare la fondatezza di
quei timori e la sensatezza di quelle proposte espressi con un quarto di secolo d’anticipo
sulla riforma processuale.
4. I tre studi sulle prove penali. – Grande impatto sulla dottrina processuale penale italiana
hanno avuto le riflessioni di Franco Cordero in tema di diritto probatorio. Alludo in parti-
colare ad alcuni scritti comparsi su varie riviste fra il 1961 e il 1963 e raccolti nel volume dal
titolo Tre studi sulle prove penali (Milano, Giuffrè, 1963) e nel successivo Ideologie del processo
penale (Milano, Giuffré, 1965).
Nel primo dei due volumi, la prova è analizzata come atto complesso (procedimento)
scomposto nei tre movimenti della ammissione/acquisizione, formazione e valutazione.
Ispirandosi al noto saggio di Carnelutti sulla Prova civile (Roma, Athenaeum, 1915), Cordero
offre in quel corposo saggio una breve trattazione generale della prova penale.
Si avverte anche qui l’influsso di Goldschmidt. Cordero accetta la tesi del processuali-
sta tedesco che postula l’autonomia del diritto processuale rispetto al diritto sostanziale.
I fenomeni del processo animano un mondo chiuso, con regole proprie (ammissibilità,
fondatezza, rilevanza, validità etc.) insensibili alle vicende del diritto sostanziale e ai
rispettivi criteri di valutazione (lecito/illecito). Ne segue che il diritto processuale esige
un approccio suo proprio da parte dello studioso (quella che Goldschmidt definisce prozes-
suale Rechtsbetrachtungsweise).
Sulla base di queste premesse, viene impostato il controverso problema della prova
illecitamente acquisita. L’illiceità della provenienza non comporta di per sé l’inammissibi-
lità o inutilizzabilità del corpo del reato o della cosa pertinente al reato: solo la legge pro-
cessuale può abbinare una sanzione di invalidità a quella provenienza illecita. Se la legge
processuale tace, la prova può essere utilizzata, benché frutto di un illecito. Come noto, il
problema è stato a lungo dibattuto con riferimento al rapporto fra perquisizione e seque-
stro. L’illegittimità della perquisizione non comporta l’esclusione della cosa sequestrata
dal novero delle prove valide, salvo che la legge vieti esplicitamente il sequestro, come
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accade, ad esempio, con i documenti coperti da segreto (art. 200 c.p.p.); quelli depositati
nello studio del difensore (art. 103 comma 6 c.p.p.) o con le attività di “dossieraggio” (art.
240 comma 2 c.p.p.). Risulta decisiva la latitudine del potere istruttorio assegnato al magi-
strato che compie l’indagine, non i più limitati poteri assegnati alla polizia. La perquisi-
zione si qualifica come semplice antecedente storico (non giuridico) del sequestro; la sua
illegittimità comporterà la mancata convalida giudiziale dell’operazione effettuata dalla
polizia oltre alla possibile sanzione (penale o disciplinare di chi ha agito illecitamente), ma
non la restituzione della cosa sequestrata che il giudice potrà quindi utilizzare. Male cap-
tum, bene retentum è la formula13 che sintetizza un orientamento seguito (ancor oggi) dalla
giurisprudenza della Corte di cassazione italiana.
5. Il manuale di Procedura penale. – La maturazione del pensiero processualistico di Cordero
trova la sua compiuta realizzazione nel manuale di Procedura penale pubblicato per la
prima volta nel 1966. Un’opera che – si può dire – apre una nuova stagione nella cultura
processuale penale italiana. Cordero stesso definirà quel manuale un’opera “atipica”: «la
novità sta nell’esservi disegnata una sintassi»14.
I manuali in circolazione all’epoca erano redatti con stile piatto e acritico: orientati
al metodo tecnico-giuridico, avevano un’impostazione prevalentemente esegetica, tutta
incentrata su principi dottrinali calati come assiomi da accettare supinamente. Erano
pensati per un apprendimento nozionistico; non inducevano riflessioni sui nodi politici e
sui conitti ideologici implicati nelle pratiche giudiziarie e nei relativi istituti.
Ben diverso si presentava il manuale di Cordero. Lo si capiva già dalla copertina. Anche
la quarta edizione (1977 quella sulla quale ho preparato l’esame di Procedura penale nel lon-
tano 1978) raffigurava in una sovracopertina il frontespizio della Practica causarum crimi-
nalium (Averolda nuncupata) di Ippolito Marsili15. In quella stampa cinquecentesca (allegata
in calce a questo scritto) si scorgono, in centro, strumenti e scene di tortura; in basso, scene
di vita accademica con il professore in cattedra e gli studenti in diligente ascolto. In alto e
sui lati, simboli del potere politico, sfilate di alti prelati, scene di guerre navali e campali.
La vista della copertina appariva molto promettente e, in effetti, una volta aperto, quel
manuale apriva un mondo che nessuno – fra i processualisti italiani – aveva mai prima
esplorato con tale sapienza e acume. Gli istituti processuali erano analizzati in prospettiva
storica; studiati con l’occhio critico del filosofo del linguaggio; rimeditati in chiave poli-
13 Criticamente recensita da CARNELUTTI in Rivista di diritto processuale, 1963, p. 625.
14 Rutulia, cit. p. 237.
15 Capostipite dei penalisti moderni, chiamato sulla cattedra di Ius criminale istituita per lui a Bologna nel 1509.
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tica; criticati per il substrato ideologico che nella pratica li reggeva. Siamo distanti dalla
visione formalistica che caratterizzava le Situazioni soggettive.
All’inizio, quell’opera “atipica” desta reazioni poco favorevoli negli ambienti paludati
dell’accademia: «l’establishment l’accoglie a denti stretti – confessa Cordero – ma pratici colti
l’adoperano». Proprio così. I magistrati e gli avvocati migliori notano la straordinaria qua-
lità di quelle pagine. Alcuni docenti lo adottano come libro di testo nei loro corsi. Migliaia
di studenti sono attratti dalla prosa colta, dai riferimenti storici e filosofici, dall’uso
impeccabile dell’arnese interpretativo. In pochi anni, diventerà una lettura obbligata per
tutti coloro che intendono occuparsi di procedura penale.
Il vero valore dell’opera sta nel taglio critico che caratterizza ogni sua pagina. Lautore
non si limita a descrivere gli istituti e le pratiche della procedura. Ne esamina l’origine,
la ragion d’essere, la pratica applicazione alla luce di quelle che lui stesso definisce “leggi
naturali del processo”16.
Niente a che vedere con premesse giusnaturaliste. Ogni strumento – sostiene l’Autore
– ha sue proprie leggi. Nel caso del processo giudiziario, occorre individuare quelle adatte
a produrre decisioni giuste, senza ledere, oltre il necessario, la dignità delle persone che
vi sono coinvolte. I postulati sono pochi e semplici: giudice indipendente e imparziale;
struttura triadica dell’agone giudiziario.
Da questi, discendono, a mo’ di corollario, le regole adatte a regolare lo svolgimento
procedurale. I “principi naturali” appartengono all’essenza logica del processo (giusto) e
sono anteposti agli stessi principi costituzionali.
Si avverte anche qui l’eco di James Goldschmidt e della già segnalata opzione politi-
co-culturale ben evidenziata nella prefazione al suo Prozess als Rechtslage: il diritto proces-
suale può prosperare solo sul terreno del liberalismo democratico. Vale la pena ribadirlo:
trattandosi di un dispositivo atto a produrre norme (singolari e concrete) sulla scorta delle
norme (generali ed astratte) confezionate dal legislatore, il processo va strutturato in
modo da assicurare il contraddittorio fra le parti, affinché queste possano accettarne l’e-
sito. I contesti politici (autoritari o dispotici) che negano il contraddittorio non favoriscono
un autentico diritto processuale, ma semmai una Kabinettsjustiz, vale a dire una giustizia
penale dispoticamente influenzata dal potente di turno: una penalità “amministrativiz-
zata” che non meriterebbe l’appellativo di “giurisdizionale”, anche se ad amministrarla
fosse chiamato chi pretende di essere chiamato “giudice”. Di qui le battaglie che – spe-
cialmente nella prima metà degli anni Sessanta – Cordero si era impegnato a combattere
16 Cfr. Procedura penale, Milano, Giuffrè, 1977, IV edizione, p. 23-24 e già prima, nel saggio L’istruzione sommaria nel
conflitto fra le due Corti, in Jus 1965, p. 275, nonché in Ideologie del processo penale, Milano, Giuffrè, 1966, p. 3 e p. 28.
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contro le incrostazioni autoritarie e inquisitorie del processo penale italiano, contro l’am-
bigua figura del giudice istruttore (giudice accusatore) e contro l’ancora più compromet-
tente figura dell’accusatore giudice (pubblico ministero-istruttore)17.
Il manuale di Franco Cordero è impregnato dalla prima all’ultima pagina di questo
spirito militante. Esso avrà una diffusione ampia e prolungata nel tempo. Ledizione del
1966 sarà seguita da altre 8 edizioni nei venti anni successivi.
Dopo la riforma processuale del 1988 l’autore riscriverà il suo manuale, del quale usci-
ranno ben 9 edizioni nei venticinque anni successivi.
In totale, 18 edizioni sulle quali si sono formate almeno quattro generazioni di studiosi
del processo penale. Bastano questi numeri a dare un’idea dell’influsso davvero straordi-
nario che Franco Cordero ha avuto sulla dottrina processualpenalistica italiana soprat-
tutto nella seconda metà del secolo scorso.
Dal punto di vista, per così dire, dogmatico, credo che il culmine del pensiero proces-
sualistico di Cordero sia tutto racchiuso nella edizione del 1966. Le edizioni successive ten-
gono conto delle evoluzioni normative e giurisprudenziali, sviluppando idee, intuizioni,
posizioni, già maturate in quella prima edizione.
Si può quindi dire che con il manuale del 1966 si conclude quella fase iniziata dieci anni
prima (con la monograa sulle Situazioni soggettive) dedicata allo studio e all’affinamento
delle categorie concettuali del diritto processuale penale.
Lavventura intellettuale di Cordero continuerà negli anni successivi, ma avrà ad
oggetto altre sfide, altri interessi di carattere storico, filosofico, letterario, politico. Sempre
legati, in maniera diretta o indiretta, ai temi della giustizia penale o ad accadimenti che
hanno caratterizzato la sua singolare biograa.
6. Altre sfide. – Dopo la pubblicazione del manuale (edizione 1966) Franco Cordero allenta
il suo interesse per la Procedura penale come disciplina accademica. Diventano rari i suoi
interventi sia nei convegni sia sulle riviste penali.
Insieme con Giovanni Conso e Giandomenico Pisapia figura tra i fondatori della Asso-
ciazione fra gli studiosi del processo penale (Ferrara, maggio 1985), ma non spende energia
nella nuova creatura.
Non è chiara la ragione di questo suo distanziamento dalla comunità scientifica dei
processualisti. Forse, a spiegarla contribuisce l’incidente che lo vede protagonista verso la
fine degli anni Sessanta e che vale la pena brevemente illustrare.
17 «A screditare il processo inquisitorio è sufficiente rilevare come sia un mezzo contro natura»: Procedura penale,
cit., p. 5.
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Dal 1962, all’insegnamento di Procedura penale presso l’Università Cattolica di Milano,
si era aggiunto, per affidamento, quello di Filosofia del diritto: disciplina, questa, delicata
e rischiosa in una Università confessionale. Nel 1967, pubblica un manuale da adottare in
quel corso (Gli Osservanti. Fenomenologia delle norme, Milano, Giuff) dove tratta temi spi-
nosi: origine delle norme giuridiche, idee di giustizia, dogmi religiosi etc. Ogni tema viene
sondato con spirito spiccatamente laico, avvalendosi delle conoscenze teologiche,lolo-
giche, antropologiche, filosofiche, giuridiche attinte dalla sua straordinaria erudizione.
Il contesto dell’epoca poteva sembrare propizio per una simile, ardita operazione cultu-
rale. Si erano da poco conclusi i lavori del Concilio Vaticano 2.º (dicembre 1966). La Chiesa
sembrava aperta al confronto con altre fedi religiose, in particolare con la cultura prote-
stante. Ma certe chiusure restano. La gerarchia cattolica (a partire dall’allora cardinale di
Milano) censura quel manuale troppo orientato in senso laico e materialista. Non solo:
nega al prof. Cordero il nihil obstat necessario per esercitare la docenza in quella Univer-
sità. Ne nasce una causa giudiziaria che si trascinerà per quattro anni e finirà davanti alla
Corte costituzionale. Messa di fronte al quesito se sia legittima una norma del Concordato
fra Italia e Santa Sede che permette di licenziare il docente per le opinioni professate nella
sua attività di insegnamento, la Corte dà ragione all’Università milanese, sul presupposto
che le Università religiose possono pretendere l’adesione ai principi confessionali che ne
caratterizzano la formula educativa: la libertà di insegnamento deve recedere di fronte
alla necessità di salvaguardare le finalità religiose dell’ente accademico. Franco Cordero
mantiene la cattedra (è inamovibile), ma non potrà più insegnare nell’Università cattolica.
Lascerà Milano nel 1974 per trasferirsi a Torino dove insegnerà Procedura penale fino al
1976. Nel 1977 sarà chiamato a Roma-La Sapienza, dove insegnerà la stessa disciplina fino
al suo pensionamento nel 2003.
È immaginabile che quell’incidente di percorso abbia indotto Cordero a seguire altre
passioni intellettuali e coltivare interessi diversi da quelli strettamente processualpenali-
stici. Sta di fatto, come detto, che la sua produzione bibliografica subisce una secca devia-
zione proprio a partire dalla fine degli anni Sessanta (come risulta dall’elenco di pubblica-
zioni qui sotto allegato).
Nel Sistema negato (1969) ripercorre la polemica fra Erasmo e Lutero su libero e servo
arbitrio.
In Risposta a Monsignore (1970) replica con sarcastico puntiglio alla lettera che mons.
Carlo Colombo, allora direttore dell’ente gestore dell’Università Cattolica, gli aveva inviato
per censurare Gli Osservanti, aspettandosi, se non una ritrattazione, quanto meno un ripen-
samento di talune tesi avanzate in quel libro che sfidava l’ortodossia religiosa vigente.
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Nella Epistola ai Romani: antropologia del cristianesimo paolino (1972), commenta un fon-
damentale testo neo-testamentario, caro alla cultura protestante.
Come si vede, si tiene alla larga da tematiche processuali penali che avevano assorbito
le sue energie nel decennio 1956/66 e questo benché in quel periodo (prima metà degli anni
Settanta del secolo scorso) il dibattito sulla riforma del processo penale fosse molto vivace,
in Italia. Ma Cordero è pressoché assente.
Negli anni Settanta pubblica romanzi, talvolta a sfondo autobiografico, scegliendo
temi che gli consentano di proseguire in forme diverse il suo impegno civile e di denun-
cia delle storture derivanti di un uso dispotico del potere del quale ha avuto esperienza
diretta.
Si appassiona poi (anni Ottanta) alla storia del diritto (Riti e sapienza del diritto, 1981) e
dei sistemi penali in particolare (La fabbrica della peste, 1984; Criminalia, 1985; pubblica una
corposa biografia su Savonarola, in quattro volumi, 1986-1988).
Poi, un lungo silenzio, intervallato dalle nuove edizioni aggiornate della sua Procedura
penale, che, come detto, sarà interamente riscritta dopo la riforma del codice 1989) e ripub-
blicata più volte, ma senza la sovra-copertina con la stampa cinquecentesca tratta da Ippo-
lito Marsili.
Torna sorprendentemente in campo verso la fine del 2001 (19 dicembre) con un articolo
pubblicato sul giornale La Repubblica dal titolo Lezione impolitica sulla nostra giustizia. L’occa-
sione è data da un colpo di mano legislativo che introduce un discutibile divieto probatorio
nella disciplina delle rogatorie internazionali (Legge 5 ottobre 2001, n. 367). Su quel divieto
gravava il sospetto di essere stato imposto per favorire – in extremis – un amico dell’al-
lora presidente del Consiglio imputato di corruzione giudiziaria. Cordero vi intravvede
un segno di arroganza del potere e non esita a schierarsi al fianco dei magistrati milanesi,
inflessibili nell’acquisire comunque le prove che la legge intendeva vietare.
Sarà questo il primo scritto di una vasta produzione letteraria durata circa quindici
anni, fatta di articoli su quotidiani e relazioni in pubblico18. Ora se la prende con il vizio
della classe politica di ostacolare con iniziative pseudo-garantiste il lavoro della magistra-
tura penale, particolarmente attiva sul fronte della corruzione politica.
È questa la fase del Cordero pamphlettista, animato da un forte sentimento di intran-
sigenza morale, che – con linguaggio schietto e con arditi paralleli storici – denuncia l’uso
18 Articoli e interventi raccolti in una serie di volumi: Le strane regole del signor B., Milano, Garzanti, 2003; Nere lune
d’Italia: segnali da un anno dicile, Milano, Garzanti. 2004; Fiabe d’entropia: l’uomo, Dio, il diavolo, Milano, Garzanti.
2005; Aspettando la cometa: notizie e ipotesi sul climaterio d’Italia, Torino, Bollati Boringhieri, 2008; Il brodo delle un-
dici: l’Italia nel nodo scorsoio, Bollati Boringhieri. 2010; L’opera italiana da due soldi: regnava Berlusconi, Torino, Bollati
Boringhieri. 2012;
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Franco cordero e le dottrine del processo penale
Franco cordero and the doctrines of the criminal process
RENZO ORLANDI
GALILEU · e-ISSN 2184-1845 · Volume XXIII · Issue Fascículo 1-2 · 1st January Janeiro – 31st December Dezembro 2022 · pp. 23-38
disinvolto e arrogante dell’uomo di potere, incline all’uso pretestuoso di argomenti garan-
tisti per assicurarsi l’impunità.
Si ha, a prima vista, l’impressione che il Cordero pamphlettista, difensore delle inchie-
ste giudiziarie, implacabile censore dei vizi pubblici e delle intemperanze di una classe
politica corrotta, sia in contraddizione con lo studioso che, negli anni Sessanta del secolo
scorso, denunciava, sibilando parole altrettanto schiette, le tare inquisitorie della giusti-
zia penale italiana. In realtà, cè una grande coerenza nella sua lunga avventura intellet-
tuale. Al centro delle sue battaglie c’è sempre stata una manifesta insofferenza per l’uso
impunito e dispotico del potere: non importa che si tratti di potere giudiziario, fondato su
pratiche inquisitorie; di potere religioso, fondato sulla difesa ad oltranza di indiscutibili
ortodossie; di potere politico, fondato su un malinteso senso dell’investitura popolare; di
potere economico, che accentua le diseguaglianze sociali, assoggettando ai propri inte-
ressi anche l’amministrazione della cosa pubblica.
Ogni potere, non solo quello giudiziario, rischia derive personalistiche e tiranniche,
nella misura in cui chi lo esercita si lascia sopraffare da impulsi primordiali. Insegna Sig-
mund Freud – più volte evocato a questo riguardo da Cordero19 – che nei territori dell’ES,
bestia extra tempora indifferente al trascorrere del tempo”, regno di pulsioni individuali
dominate dal principio del piacere, sono all’opera istinti primitivi insensibili a principi
razionali o a freni morali. Uomini fra gli uomini, anche i potenti di ogni risma (non solo
i magistrati) mal sopportano il “disagio della civiltà”. Franco Cordero “umanista etero-
dosso”, giurista militante” si è assunto il faticoso compito di censurare ogni uso smodato
del potere.
7. Cosa ci resta? – Franco Cordero lascia agli studiosi del processo penale un’eredità impor-
tante, che non va dissipata. Certo, bisogna riconoscere che la sua monograa giovanile
sulle Situazioni soggettive appare oggi superata, anche perché scritta in un linguaggio ricco
di astrazioni, che sfida le capacità di comprensione delle generazioni di ricercatori ora in
attività. Occorre però essere consapevoli che – per la dottrina processualpenalistica – quel
testo ha reso possibile l’emancipazione dalla tradizionale (e inadeguata) teorica del “rap-
porto giuridico processuale”. Impostazione cara agli esponenti del tecnicismo giuridico,
che impediva di analizzare il fenomeno processuale come campo di forze dove si scon-
trano interessi terribilmente concreti.
19 Ad esempio, in Morbo italico, cit., p. 67 e p. 169.
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Quanto le riflessioni teoriche contenute in quel primo sforzo monografico siano risul-
tate proficue per la scienza processualistica lo si comprende dagli studi successivi del
nostro Autore.
Gli scritti sulle prove risalenti ai primi anni Sessanta sono quanto di meglio si possa
ancor oggi trovare su questo difficile tema.
Gli interventi sulla riforma processuale penale nei convegni di Lecce e Bellagio (1964),
ai quali si è in precedenza accennato, offrono anche al giovane studioso odierno una quan-
tità di spunti e osservazioni di straordinario acume per la sorprendente lungimiranza che
li caratterizza.
Il manuale (a partire dalla edizione del 1966) costituisce un modello tuttora insuperato
di esposizione critica delle norme processuali penali, con un sapiente uso della compara-
zione storica messa al servizio della comprensione degli istituti volta a volta esaminati.
Unopera ormai appartenente al novero dei “classici”: destinata a durare nel tempo e a for-
nire illuminanti indicazioni (anche di metodo), anche quando le norme delle quali si parla
non siano più in vigore.
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Opere principali di Franco Cordero (elenco limitato ai soli libri)
Procedura penale
Le situazioni soggettive nel processo penale: studi sulle dottrine generali del processo penale, Torino,
Giappichelli, 1956; Contributo allo studio dell’amnistia nel processo, Milano, Giuffrè, 1957; Il
giudizio d’onore, Milano, Giuffré, 1959; Tre studi sulle prove penali, Milano, Giuffrè, 1963; Ideo-
logie del processo penale, Milano, Giuffrè, 1965; Procedura penale, 1966, Milano, Giuffrè, 1966
(18 edizioni complessive in un arco temporale di quasi cinquantanni: l’ultima datata 2012)
Filosofia del diritto
Gli osservanti. Fenomenologia delle norme, Milano, Giuffrè, 1967; Il sistema negato: Lutero contro
Erasmo, Bari, De Donato. 1969; Risposta a Monsignore, Bari, De
Donato,1970; L’Epistola ai Romani: antropologia del cristianesimo paolino, Torino, Einaudi, 1972
Storia del diritto
Riti e sapienza del diritto, Bari, Laterza, 1981; La fabbrica della peste, Roma-Bari, Laterza. 1984;
Criminalia: nascita dei sistemi penali, Roma-Bari, Laterza. 1985; Cronaca d’una stregoneria
moderna, Roma-Bari, Laterza. 1985; Savonarola, 4 volumi, Roma-Bari, Laterza, 1986-1988;
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Romanzi
Genus, Torino, Einaudi, 1970; Le masche, Milano, Rizzoli, 1971; Opus, Torino, Einaudi, 1972;
Pavana, Torino, Einaudi,1973; Viene il Re, Milano, Bompiani, 1973; L’opera,
Milano, Bompiani. 1975; Passi d’arme, Torino, Einaudi. 1979; Larmatura, Milano, Garzanti.
2007; La tredicesima cattedra, Milano, La Nave di Teseo, 2020
Pamphlettistica
Le strane regole del signor B., Milano, Garzanti, 2003; Nere lune d’Italia: segnali da un anno di-
cile, Milano, Garzanti. 2004; Fiabe d’entropia: l’uomo, Dio, il diavolo, Milano, Garzanti. 2005;
Aspettando la cometa: notizie e ipotesi sul climaterio d’Italia, Torino, Bollati Boringhieri, 2008; Il
brodo delle undici: l’Italia nel nodo scorsoio, Bollati
Boringhieri. 2010; L’opera italiana da due soldi: regnava Berlusconi, Torino : Bollati
Boringhieri. 2012; Morbo italico, Bari-Roma, Laterza. 2013; Rutulia, Macerata,
Quodlibet, 2016; Bellum civile, Macerata, Quodlibet,. 2017
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Efeitos extraprocessuais do estado de inocência
– limites aos juízos paralelos condenarios
Extraprocedural eects of the presumption of innocence – limits
to condemnatory parallel judgments
NEREU JOSÉ GIACOMOLLI1
nereu@giacomolli.com
ROGER MACHADO
roger_rm@globo.com
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXII · 1st January Janeiro–31ST December Dezembro 2022 · pp.3962
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXIII.1/2.3
Submitted on June 5th, 2022 · Accepted on June 29th, 2022
Submetido em 21 de Junho, 2022 · Aceite a 29 de Junho, 2022
RESUMO O artigo objetiva avaliar o reconhecimento do estado de inocência como
exigência constitucional e convencional de tratamento, em sua dimensão extraprocessual,
para além das autoridades públicas, aplicando-se aos particulares, inclusive aos meios de
comunicação. Propõe-se uma análise da publicidade processual a partir da presunção de
inocência, definindo o que entende por juízos paralelos condenatórios, com abordagem
a partir do confronto entre liberdade de expressão e estado de inocência. Com utilização
do método hermenêutico-dialético, parte da hipótese de possível compatibilização da
publicidade dos casos penais com o estado de inocência, problemática suscitada. Apresenta
disposições legais do ordenamento jurídico penal brasileiro para enfrentar o problema
das violações cotidianas ao estado de inocência, com foco na Lei 13.869/2019 (abuso de
autoridade), a qual contempla, mesmo que parcialmente, a dimensão extraprocessual,
na perspectiva da tutela penal do estado de inocência. A publicidade do caso criminal
compatibiliza-se dom o estado de inocência quando não são emitidos juízos prévios
1 Doutor em Direito pela Universidad Complutense de Madrid. Pesquisador e professor no Mestrado e Doutorado
em Ciências Criminais da PUCRS, Brasil. Investigador integrado do Ratio Legis – Centro de Investigação em Ciên-
cias Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa, Projeto de I&D: «Corpus Delicti – Estudos de Criminalidade
Organizada Transnacional». Advogado e consultor jurídico. E-mail: nereu@giacomolli.com. Orcid: https://orcid.
org/0000-0003-1753-0334.
2 Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela UNISINOS,
Brasil. Assessor no Ministério Público Federal do Brasil. E-mail: roger_rm@globo.com. ORCID: https://orcid.
org/0000-0002-7530-0249
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Efeitos extraprocessuais do estado de inocência – limites aos juízos paralelos condenatórios
Extraprocedural eects of the presumption of innocence – limits to condemnatory parallel judgments
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condenatórios ou quando a forma e conteúdo da comunicação induzem à formação e
compreensão de que o suspeito, investigado ou processado seja culpado.
PALAVR ASCHAVE Estado de inocência. Exigência de tratamento. Juízos Paralelos. Abuso
de Autoridade. Tutela penal.
ABSTRACT The article aims to assess the recognition of the presumption of innocence as
a constitutional and conventional form of treatment, in its extra procedural dimension,
beyond public authorities, applying to privates agencies, including the media. It proposes
an analysis of procedural publicity from the presumption of innocence, defining what’s
meant by condemnatory parallel judgments, with an approach based on a compatibility
between freedom of expression and presumption of innocence. Using the hermeneutic
dialectic method, it starts from the hypothesis of a possible compatibility of publicity
in criminal cases with the presumption of innocence, a problem raised. It presents legal
provisions of the Brazilian criminal legal system to address the problem of daily violations
of the innocence, focusing on Law 13.869/2019 (authority abuses), which includes, even
partially, the extra-procedural dimension, from the perspective of criminal protection
the presumption of innocence. The publicity of the criminal cases is adequate to the
presumption of innocence when there aren’t previous judgments or when the form and
content or the communication there aren’t induces the formation an understanding that a
suspect investigated or prosecuted is guilty.
KEYWORDS Presumption of innocence. Treatment form. Parallel judgments. Authority
Abuse. Criminal protection.
I. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A inocência em seu contexto jurídico-processual, essencialmente como veto à antecipa-
ção de juízos incriminatórios contra suspeitos e acusados, e aqui enfocada pela noção de
exigência constitucional e convencional de tratamento, gera uma gama de problemas. A
abordagem delimita-se a seguinte problemática: o estado de inocência3 é compatível com
as liberdades de expressão e de imprensa? Informação, publicidade, opinião e juízos pré-
vios ao processamento criminal ofendem a presunção de inocência? A abordagem, a partir
dessa problemática, tem por escopo evidenciar a dimensão extraprocessual da presunção
de inocência, de modo a fornecer subsídios à solução da problemática proposta.
3 Utilizamos a expressão “estado de inocência” por representar o conteúdo material e processual da expressão “pre-
sunção de inocência.
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O articulado parte da hipótese prévia da existência de juízos midiáticos paralelos que
agridem o princípio-garantia constitucional e convencional da presunção de inocência.
Ademais, apresenta-se a hipótese extraprocessual da presunção de culpa e não da presun-
ção de inocência, desconsiderando-se o princípio-garantia. O objetivo é enfrentar o tema
da presunção de inocência em sua vertente extraprocessual, circunscrevendo o ponto
específico dos juízos paralelos condenatórios. Ademais, ingressa no tema problemático
da relação entre inocência e liberdades de expressão, demonstrando como a incompatibili-
dade entre esses direitos é aparente e mobilizada por interesses diversos, nem tanto pelos
empecilhos teórico-práticos e normativos.
Utilizando de revisão bibliogfica e da hermenêutica constitucional e convencional
(Cases da Corte IDH e do TEDH) num primeiro momento, o artigo aborda a presunção de
inocência como exigência de tratamento para, num segundo apartado adentrar na compa-
tibilidade ou não da publicidade dos casos criminais com o princípio-garantia da presun-
ção de inocência. Por fim, são enfocados os juízos condenatórios midiáticos prévios, em
face da presunção de inocência, enfocando-se, inclusive, o art. 38 da Lei 13.689/2019 (abuso
de autoridade), bem como diversas disposições da tutela penal da presunção de inocência,
encerrando-se o articulado com as considerações finais, com retomada do problema e das
hipóteses e do que o artigo se propõe.
1. O estado de inocência como exigência de tratamento
A exigência constitucional4 e convencional5 de tratamento, em seu caráter exógeno, extra-
pola os limites patrimoniais e de liberdade, abarcando uma projeção a refletir na honra e
na dignidade humanas, bem como no devido processo penal. Engloba direitos cujo res-
peito traduz uma necessária preservação da condição de inocente6. Esta não veda um grau
de suspeita, mas proíbe juízos antecipados de culpa, emitidos por autoridades públicas na
investigação, no processamento, bem como os pronunciados pelos demais agentes estatais
(projeção vertical). Igualmente, abarca os meios de comunicação quando não observarem
4 Art. 5.º, LVII, CF – Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória
5 Art. 8.2, CADH Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se compro-
ve legalmente sua culpa. Art. 14. § 2.º, PIDCP – Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua
inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. VEGAS TORRES, Jaime. Presunción de inocência y prueba
en el processo penal. Madri: La Ley, 1993, p. 15 e ss. uma análise da presunção de inocência na Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, em diversos diplomas internacionais e textos internacionais.
6 Em GIACOMOLLI, Nereu José. “Art. 5.º, LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de
sentença penal condenatória, em GOMES CANOTILHO,J.J. MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W. e STRECK,
Lênio. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina e IDP, 2018, p. 477, a abrangência do âmbito
de proteção da presunção de inocência.
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a presunção de inocência (projeção horizontal). A própria Corte IDH revela projetar-se o
tratamento como inocente, inclusive na vedação aos (pré)juízos antecipados de culpa: a
abrangência do dever de tratamento como respeito ao status de inocente, para além das
implicações na seara das medidas privativas de liberdade7, respalda a proibição de juízos
prematuros sobre a responsabilidade criminal do investigado ou processado8. Essa ofensa
se dá, mormente na abordagem, divulgação e juízo prévio acerca do caso criminal (“jul-
gamento”), verdadeiras condenações informais. Esses juízos midiáticos, segundo Puente
configuram um “enjuiciamento publico de conductas socialmente reprobables” à margem do
exclusivo poder jurisdicional do Estado9, na publicidade abusiva e na estigmatização pre-
coce pelo processo penal10. Uma das hipóteses a essa desconsideração poderá ser a limita-
ção da presunção de inocência ao aspecto interno do procedimento criminal.
O estado de inocência se constitui em vetor de controle, de proteção externa do sus-
peito, acusado ou condenado, cuja publicidade abusiva incrementa a estigmatização pelo
procedimento, pela condição de investigado, preso ou processado. O fato de pender inves-
tigação ou processo penal não retira do sujeito a integralidade do status que lhe confere o
estado de inocência, motivo por que há de ser afastada qualquer estigmatização em face
da imputação (tratamento externo), de uma sentença sem o tnsito em julgado ou mesmo
de uma sentença absolutória ou de extinção de punibilidade.
A presunção de inocência, além de vedar que o julgador, desde o início do processo,
aja condicionado e com um pré-juízo (aspecto interno), também veda, em uma dimensão
mais elástica ao procedimento (aspecto externo) manifestações de juízos incriminatórios
por meio de canais de comunicação ou, de modo geral, por meios de divulgação e propa-
gação de informações, ou seja, a exigência de que o Estado não condene informalmente
um sujeito ou emita um juízo perante a sociedade, contribuindo à formação da opinião
pública, enquanto não tenha uma comprovação da culpa11. Declarações públicas ou infor-
mações acerca de suspeitas ou sobre um caso criminal (direito à informação à cidadania)
7 ILLUMINATI, GIULIO. La presunzione d’innocenza dell’imputato. Bolonha: Zanicheli, 1984, p. 31 e ss., uma aborda-
gem acerca do tratamento do acusado, informado pela presunção de inocência, mormente no que tange à prisão
preventiva.
8 Vid. Caso Ruano Torres y Otros v. El Salvador, § 127 (2015) – Corte IDH ; Caso Lori Berenson Mejía v. Perú, § 160 (2004)
– Corte IDH.
9 Em OVEJERO PUENTE, Ana Maria. Presunción de inocencia y juicios paralelos en derecho comparado. Madrid: Tirant Lo
Blanch, 2017, p. 11. Nas p. 12 e 13 afirma que, diversamente da perspectiva de limitação da presunção de inocência,
pela Revolução Francesa, às barreiras de atuação do Estado, na contemporaneidade, a violência ao devido proces-
so se dá também por agentes privados.
10 Em GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José
da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2015, p. 106. V. também, LOPES JR, Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva
Educação, 2019. E-book. Disponível em: https://app.saraivadigital.com.br/leitor/ebook:646824. Consulta em base
de dados mediante assinatura.
11 Vid. Caso J. v. Peru, §§ 246 e 247 (2013), da Corte IDH.
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diferenciam-se de emissão de juízos de culpa antes de uma sentença definitiva com trân-
sito em julgado, em face da exigência da preservação da presunção de inocência (art. 5.º,
LVII, CF)12.
Assim, o campo de aplicação da presunção de inocência não se limita ao âmbito do
Poder Judiciário e às autoridades que venham a decidir sobre a culpabilidade do acusado.
A liberdade de expressão assegura, tanto o direito de receber como o de comunicar infor-
mações, mas respeitada a presunção de inocência13. O que importa, efetivamente, é o sen-
tido real das declarações14, o relato das circunstâncias particulares com as quais foram
formuladas, bem como a ideia será percebida pelos comunicados e neles incutida. Insuflar
a opinião pública, criar uma imagem ou opinião negativa15 por uma mera suspeita, trans-
mitindo uma concepção prévia de culpa revela o estágio patológico e desmaterializador da
informação16. Decisões ou declarações que refletem um sentimento de culpabilidade, um
pré-julgamento17 sobre o suspeito diferenciam-se daquelas que se limitam a descrever um
estado de suspeita18.
Além de marcadores procedimentais objetivos como o arquivamento de inquérito poli-
cial, rejeição da denúncia, absolvição sumária, sentença e acórdãos (primeiro elemento),
12 Vid. Caso Allenet de Ribemont v. France, §§ 36/41 (1995), do TEDH.
13 Vid. Caso Svetlana Zhuk v. Bielorússia, do Comitê de Direitos Humanos da ONU (Comunicação n.º 1910/2009), An-
drei Zhuk, ainda quando suspeito foi exposto pelos meios de informação estatais, inclusive pelo principal canal
de televisão, sendo chamado de criminoso desde o começo da investigação. Em entrevista, o Ministro do Interior
referiu-se a Andrei e aos corréus como criminosos antes de que fossem declarados culpados. O Comitê reconhe-
ceu afronta à presunção de inocência, diante da precipitação de juízos por parte de agentes estatais.
14 Vid. Caso Saidova v. Tajiquistão (2004) do Comitê de Direitos Humanos da ONU. O ex-esposo da comunicante,
Sr. Saidov, foi preso, acusado e condenado à morte por diversos crimes (bandoleirismo, associação criminal,
usurpação de poder mediante recurso à violência, incitação à quebra da ordem constitucional, aquisição e posse
ilegal de armas e munições, terrorismo e assassinato). Dentre as várias irregularidades mencionadas na denún-
cia (tortura, maus tratos, confissão forçada), apontava-se que durante a investigação se difundiu e publicou,
constantemente, nos meios de comunicação nacionais, controlados pelo Estado, informação em que se tratava
o Sr. Saidov e a outros acusados de “criminales, amotinados, etc” contribuindo desta maneira a criar uma opinião
pública negativa. Diante da falta de manifestação do Estado quanto a isso, o Comitê considerou relevantes as
alegações da parte requerente e advertiu que o comportamento estatal atinente à ampla cobertura midiática
contra o Sr. Saidov violou a presunção de inocência prevista no art. 14. 2, PIDCP.
15 Vid. Caso Gridin v. Rússia (1997) do Comitê de Direitos Humanos da ONU. Em 25/11/1989, suspeito foi preso por
ser suspeito de abuso e de assassinato de uma mulher. Depois da prisão, outras seis acusações lhe foram feitas.
No período entre 26 a 30 de novembro de 1989, foi apresentado em emissoras de rádio e em periódicos como el
temible asesino de los ascensores que había violado a varias muchachas, dando muerte a tres de ellas”. Em 09/12/89, o chefe
de polícia anunciou que estava convicto de que Gridin era o assassino, o que foi difundido pela televisão. O in-
vestigador afirmou a culpabilidade em diversas oportunidades públicas, prévias à audiência judicial, insuflando
a opinião pública contra o suspeito, o que resultou, inclusive, num comportamento hostil de parte do público
presente no dia do julgamento. V. Comunicação n.º 770/1997 do Comitê de Direitos Humanos da ONU, o qual
concluiu que houve violação ao art. 14. 2, PIDCP, pois as autoridades estatais não atuaram com o comedimento
exigido pela presunção de inocência e assinalado na Observação Geral n.º 13/84.
16 Vid. Caso Gutsanovi v. Bulgarie, § 192 a 197 (2014), do TEDH.
17 Vid. Observação-Geral n.º 13 de 1984 e Observação Geral n.º 32 de 2007, do Comitê de Direitos Humanos da ONU.
18 Vid. Observação Geral n.º. 32 do Comitê de Direitos Humanos da ONU.
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mesmo um juízo condenatório definitivo, com trânsito em julgado, não retroage para
prejudicar os juízos emitidos antes da situação processual ter sido pacificada (segundo
elemento) no âmbito do devido processo penal (terceiro elemento). Um quarto aspecto diz
respeito à vedação de as autoridades emitirem juízos prévios de culpa, sejam elas públicas
ou privadas (órgãos de imprensa e congêneres), na perspectiva objetiva e como reflexo da
eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
2. Estado de inocência e publicidade
A publicidade dos atos processuais é regra constitucional (arts. 5, XL e 93, IX, CF), assim
como, em geral, o dever de publicidade dos atos da administração pública (art. 37, caput,
CF). Na normatividade ordiria, a publicidade processual foi inserida em vários disposi-
tivos: art. 792 do CPP; art. 189 do CPC; art. 387 do CPPM; art. 2, parágrafo único, V, da Lei
n.º 9.784/99. A garantia consta também na convencionalidade a que o Brasil aderiu, como o
art. 8. 5, da CADH e o art. 14.1, do PIDCP. Na esfera interna ou restrita, a publicidade afasta
a possibilidade de expedientes secretos e inacessíveis às partes e aos respectivos advoga-
dos. Essa dimensão admite, excepcionalmente, alguma restrição, normalmente atrelada a
diligências investigatórias em andamento ou na iminência de serem realizadas e que, por
sua natureza, seriam prejudicadas caso houvesse divulgação. É o que ocorre com as inter-
ceptações telefônicas, gravação ambiental, quebra de sigilo de dados bancários, fiscais,
telemáticos, por exemplo19. Ao que a presunção de inocência mais afeta, cinge-se à publi-
cidade externa, a que é acessível à cidadania20. Restringe-se o acesso e conhecimento ao
público em geral, à comunidade jurídica em particular, de informações acerca do investi-
gado, das provas e dos julgamentos. Essa restrição submete-se à reserva legal e jurisdicio-
nal, em razão da tutela da privacidade (art. 5, X, CF)21. Há permissivos de restrição, tanto
na proteção da intimidade, quanto de ordem pública (art. 5, XL, CF), o que também pode
ser inferido do art. 14.1 do PIDCP e do art. 8.5 da CADH (preservar os interesses da Justiça).
A intimidade referida no dispositivo constitucional não enseja maiores discussões,
embora uma lei que a regule há de definir casos em que a proteção deva sobrepor-se à
19 Vid. GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José
da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2015, p. 359 e ss.
20 Vid. BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 73 e ss.
21 Em SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 252 e ss.;
COPETTI, André, em: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang;
STRECK, Lênio Luiz. (coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina/IDP, 2013, p. 450;
GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da
Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2015, p. 360.
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Efeitos extraprocessuais do estado de inocência – limites aos juízos paralelos condenatórios
Extraprocedural eects of the presumption of innocence – limits to condemnatory parallel judgments
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publicidade, fornecendo parâmetros de resolução de casos criminais e de conitos. A pro-
pósito do tema, merece relevo o fato de que o art. 189, III, do CPC, prevê a hipótese do
segredo de justiça quanto a processos que contenham dados referentes a direitos protegi-
dos pela intimidade22. Também é de ser admitida a restrição à publicidade quando neces-
sária a proteção de outros direitos fundamentais relevantes, como o direito à honra, à ima-
gem, à vida privada, à intimidade, ou sigilo de correspondências e comunicações em geral,
sendo indispensável uma compatibilidade entre os direitos envolvidos.
Como pontuado, em hipótese de colisão entre liberdade de expressão e o direito a um
julgamento justo, pode ser que a restrição à publicidade traduza uma das formas mais
eficazes de arrefecer eventual campanha da mídia em prol de condenação criminal23.
Defender a publicidade externa não é vinculá-la aos interesses midiáticos de exploração
da miséria das vítimas e de seus familiares e nem às finalidades econômicas e de manu-
tenção da permanência do grande auditório24. Há de ser evitada e minimizada a funcio-
nalidade negativa e estigmatizante da publicidade ao imputado, com a publicização de
atos processuais, inclusive de audiências, com divulgação da situação de réu, processado,
cuja compreensão pelo senso comum já é a de culpado. Por isso, a restrição à publicidade
externa é assecuratória do estado de inocência. O que importa ao Estado de Direito é que
a infração criminal está sendo apurada, que o Estado está cumprindo suas funções, mas
não a exposição da imagem, do nome completo, do endereço, trabalho e laços familiares.
Ademais, publicizar o acontecer judicial não é transformar as audiências e os julgamentos
em um reality show judicial para a mídia angariar dividendos em suas diversas perspecti-
vas (comercial, ideológica, política, v. g.)25.
Contudo, o princípio da publicidade não é absoluto e muito menos escudo a práticas
ilícitas. Há de ser matizado, “pois há momentos em que o sigilo é imprescindível para não
comprometer diversas liberdades públicas, como a honra, a imagem, a intimidade, a vida
privada, etc”26. A publicidade, segundo a Corte IDH, é uma garantia judicial estabelecida
em favor das partes envolvidas, mas também do público. Trata-se de um elemento essen-
22 Em SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 252.
Por sua vez, COPETTI, André, em: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo
Wolfgang; STRECK, Lênio Luiz. (coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina/IDP,
2013, p. 450, afirma que as previsões mais genéricas de restrição à publicidade previstas na CF alinham-se com
o art. 5.º, X, CF
23 Em SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 255.
24 Em GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José
da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2015, p. 360.
25 Em LUZ, Denise; GIACOMOLLI, Nereu José. “Vinculação dos órgãos da imprensa ao estado de inocência”. Novos
Estudos Jurídicos, Itajaí/SC, v. 23, n.º 1, jan./abr. 2018, p. 6-34 Disponível em: https://siaiap32.univali.br/seer/index.
php/nej/article/view/12783. Acesso em 24 dez. 2020.
26 Em BULOS, Uadi. Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 684.
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Efeitos extraprocessuais do estado de inocência – limites aos juízos paralelos condenatórios
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cial do modelo processual penal acusatório em um Estado Democrático de Direito, garan-
tido pela realização de uma etapa oral na qual o acusado mantém contato direto com o juiz
e com as provas, facilitando-se o acesso ao público. Assim, fica proscrita a administração de
justiça secreta, submetendo-a ao escrutínio das partes e do público, relacionando-se com
a transparência e com a imparcialidade. Configura um meio de fomentar a confiança das
pessoas no sistema de justiça27. E a publicidade no processo penal, segundo a Corte IDH é
a regra, admitindo, nos termos do art. 8.5, CADH, que, excepcionalmente, seja restringida
a fim de preservar os interesses da justiça. Mas nesses casos caberá ao Estado justificar
a medida de restrição, demonstrando a necessidade e a proporcionalidade da limitação28.
O Brasil assumiu o compromisso internacional29, também em matéria de publicidade
das audiências e, em geral, dos processos criminais, embora se possa admitir, por algu-
mas razões, a restrição da publicidade, inclusive contra meios de comunicação30. Dentre as
razões que podem legitimar a restrição estão a proteção da vida privada da pessoa ou a pre-
servação dos interesses da justiça. Por ser o processo o locus adequado à imposição da pena
é que se reveste de uma série de garantias fundamentais. A dimensão extraprocessual da
presunção de inocência, no entanto, extrapola dos limites processuais para se impor con-
tra atitudes e comportamentos que pretendem, numa arena quase ilimitada (redes sociais
e meios de comunicação), atingir a condição de inocentes de pessoas investigadas e acu-
sadas. Se faz necessário atentar a todas as dimensões da presunção de inocência, devendo
abarcar também a extraprocessual31.
A vedação à antecipação de juízos acerca da culpa de um suspeito ou acusado, não
implica, necessariamente, interferência na publicidade processual. Em se tratando de
devido processo penal, aos sujeitos estatais são outorgados espaços e momentos adequa-
dos a suas intervenções, especialmente quanto ao mérito do caso criminal. As manifes-
tações públicas para que juízos prévios sejam incorporados não traduzem, em hipótese
alguma, cumprimento de dever legal dos agentes públicos, mas violações explícitas de um
direito fundamental que orienta e fundamenta a própria existência do processo penal, ou
seja, da presunção de inocência32.
27 Vid. Caso Palamara Iribarne v. Chile, §§ 167-168 (2005), da Corte IDH; J. v. Peru (2013), da Corte IDH.
28 V. Caso J. v. Peru (2013) da Corte IDH.
29 Vid. art. 14.1, do PIDCP.
30 Vid. Observação Geral n.º 32 do Comitê de Direitos Humanos da ONU.
31 Em OVEJERO PUENTE, Ana Maria. Presunción de inocencia y juicios paralelos en derecho comparado. Madrid: Tirant
Lo Blanch, 2017, p. 11 e ss.
32 Em VEGAS TORRES, Jaime. Presunción de inocência y prueba en el processo penal. Madri: La Ley, 1993, p. 13 e ss. a
previsão internacional do que denomina de “direito fundamental à presunção de inocência.
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Isso nos conduz a um segundo aspecto: o vazamento de informações não se constitui
em publicidade. Esta, enquanto princípio constitucional da Administração Pública, há de
ser compreendida como uma prática administrativa revestida de legalidade e dos demais
princípios norteadores da atividade estatal, como a impessoalidade e a imparcialidade que,
dentre tantas outras consequências, são incompatíveis com o fornecimento seletivo de
informações de determinados casos criminais aos meios de comunicação. A única publi-
cidade legítima é a que se operacionaliza pelos meios legais e por formas transparentes
de concretização. Nesse contexto, os filtros seletivos realizados por agentes estatais para
fornecimento de informações sobre investigações e processos a canais de comunicação e
a jornalistas específicos configuram prejulgamentos dissimulados33. Essa espécie de com-
portamento induz à formação de uma opinião pública(da) aderente a versões incrimina-
tórias prévias ao devido processo penal, com todas as suas decorrências convencionais,
constitucional e de legislação ordinária. Um dos perigos é a possibilidade de as decisões
judiciais serem influenciadas, mesmo que implicitamente, por exigências populares e
midiáticas.
Mesmo quando seja possível ao órgão de comunicação acessar os autos de determi-
nada investigação ou de processo judicial, há informações, dados, que estão acobertados
por sigilo legal ou constitucional, razão pela qual limitam o direito à informação e à publi-
cidade. O art. 93, IX, CF sinaliza na direção de uma preponderância do interesse público
na informação, mesmo quando em jogo a intimidade do sujeito. Contudo, o art. 5.º, LX, CF
reconhece que a intimidade ou o interesse social são aptos a restringir a publicidade dos
atos processuais. O art. 792 do CPP corresponde, segundo Badaró, ao comando constitu-
cional do art. 5, LX, CF34. De fato, o preceito ordinário prevê a publicidade como regra,
mas admite exceções para resguardar os sujeitos processuais. Mesmo naqueles casos em
que for sedutora a tese da preponderância da informação em detrimento da intimidade,
há que ser considerada a presunção de inocência. Isso para vedar juízos prévios, gerados
pela publicização, com potencialidade de condicionar a formação de juízos condenatórios.
Apublicidade processual não se cumpre por expedientes que violem direitos.
3. O estado de inocência como limite aos juízos midiáticos condenatórios
A banalização da violência pode ser constatada nos diversos programas televisivos, os
quais montam seus quadros de notícias intercalando uma história de tragédia seguida das
33 Em BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulações. Lisboa: Relógio D’Água, 1991, p. 09, onde dissimular é fingir não
ter o que se tem.
34 EmBADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 75.
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informações meteorológicas, que, por sua vez, precedem o noticiário esportivo, do qual
se volta às histórias policiais com incrível rapidez e naturalidade. Notícias e reportagens
sobre casos criminais são drias e incessantes, em face da audiência crescente que pro-
porcionam. Num amplo mercado de notícias, a concorrência pela audiência popular pos-
sibilita aos meios de comunicação a adoção de estratégias de conquista de leitores, espec-
tadores e ouvintes, forjando-se, num segmento comercial livre de quase todos os limites,
práticas jornalísticas orientadas não tanto por princípios éticos, mas por interesses econô-
micos e pela preservação da “saúde financeira” da empresa jornalística.
Num mundo altamente conectado e em rede, com milhares de pessoas ávidas por notí-
cias e diante de uma capacidade frenética de exposição massiva de pessoas e de trans-
missão de informações, um passo inicial ao “sucesso” empresarial jornastico está em
noticiar antes que qualquer outro concorrente35. A credibilidade da informação vai pau-
latinamente cedendo espaço à velocidade e sendo confundida com a atualidade com que
disponibilizada36. Surge com isso o denominado jornalismo de checagem. Além do mais,
a própria ideia de credibilidade da informação passa por critérios questionáveis, como o
número de visualizações e curtidas, por exemplo. Nesse itinerário instala-se um vale-tudo
informativo que não hesita em recorrer aos casos criminais por meio de uma abordagem
que já não se contenta com uma ferramenta informativa, mas aposta em estratégias inten-
samente afetivas, que intencionalmente buscam prosperar mediante apelos emocionais37.
O uso da imagem, nesse contexto, é altamente efetivo, ao proporcionar reportagens
impregnadas de fotos e vídeos. A seriedade de um fato penal, um homicídio, por exemplo,
é ignorada para que se possa criar, no lugar da tragédia, um foco de entretenimento. Ao
invés de respeito ao luto pela perda de um ente, é comum ver jornalistas e repórteres dis-
putando espaço para conseguir a primeira pergunta a um familiar de uma pessoa assas-
sinada e a primeira publicação de matéria sobre tragédias cotidianas. Logo se instaura
um quadro de enaltecimento da vítima e de suas virtudes, acompanhado de efeitos sono-
ros e comportamentos do repórter em demonstração de um “profundo pesar”; filmam-se
familiares, mostra-se o local do crime, chama-se a atenção para a barbárie do que ocorreu,
passa-se em revista a vida do suspeito, local de residência e de trabalho, busca-se alguma
passagem ou ocorrência policial para sugerir uma pessoa perigosa. Alguns programas, no
entanto, sobretudo quando não são diários, utilizam um outro expediente comum para
chamar a atenção: as “informações com exclusividade” (“chafurdar na lama”, afirmou um
35 Em MORETZSOHN, Sylvia. Jornalismo em tempo real: o fetiche da velocidade. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 12 e ss.
36 Em RAMONET, Ignacio. A tirania da comunicação. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 44 e 74.
37 Em GOMES, Marcus Alan. Mídia e sistema penal: As distorções da criminalização nos meios de comunicação. Rio de
Janeiro: Revan, 2015, p. 81 e ss.
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ex-ministro do STF). Esse tipo de reportagem aposta na “hiperemoção” causada ao receptor
da mensagem, com o recurso sistemático a aspectos de simplificação e redução da com-
plexidade da informação a níveis emocionais que possam transmitir, por uma espécie de
equação informacional, a ideia de que se a emoção ao ver o telejornal é verdadeira, a infor-
mação também o é38.
Com a possibilidade da imagem, o modelo sensacionalista ganhou espaço e, para aten-
der seus interesses financeiros, os grandes conglomerados não hesitaram em ampliar a
programação dedicada à exploração da miséria humana, principalmente nos casos cri-
minais. O apelo ao emocional se constitui em componente relevante à dramatização jor-
nastica, com aposta na hipervalorização de elementos fúteis, superficiais, isoladamente
irrelevantes, a fim de fomentar conjunturas de reduzida complexidade e paralisar o nível
crítico na recepção da informação39. Os meios de comunicação de massa acentuam o com-
ponente emocional que estimula a empatia ou a antipatia para com os personagens do
drama noticiado. Oferta-se um catálogo de notícias pleno de representações do inespe-
rado, rompendo com a rotina, que “parece reproduzir instantaneamente as desgraças do
mundo”, que “subverte as regras morais e sociais de comportamento”40.
Trata-se de uma simbiose entre uma anemia sociológica e uma hiperbolia sensaciona-
lista em que meios de comunicação capturam audiência mediante reportagens criminais
revestidas de escassez de informações altamente relevantes conjugada com forte compo-
nente moralista.
Nesse contexto, as coberturas dos casos criminais tendem a potencializar “um certo
tipo de interesse mórbido, com características fortemente moralistas” que abusam da
exposição de detalhes pessoais dos afetados e envolvidos pelo episódio, resultando numa
concentração de esforços em situações particulares insuficientes para compreender o
crime41. Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, “esta demasia no que tange aos aspectos par-
ticulares coexiste com uma espécie de anemia informacional relativa à complexa cadeia
de eventos traumáticos que, de uma forma ou outra, explicam ou justificam a ocorrência
do fato ilícito”, ou seja, circunsncias como vulnerabilidade e risco são suprimidas da
narrativa sensacionalista, apresentando o comportamento individual como uma variável
independente da realidade social42.
38 Em RAMONET, Ignacio. A tirania da comunicação. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 22/23.
39 Em GOMES, Marcus Alan. Mídia e sistema penal: As distorções da criminalização nos meios de comunicação. Rio de
Janeiro: Revan, 2015, p. 81 e ss.
40 Em GOMES, Marcus Alan. Mídia e sistema penal: As distorções da criminalização nos meios de comunicação. Rio de
Janeiro: Revan, 2015, p. 81 e ss.
41 Em CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 421/424.
42 Em CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 423 e 424.
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Um estilo sensacionalista de narrativa que opta pelo discurso de autor “invariavel-
mente prepondera o silêncio no que diz respeito às circunstâncias político-econômicas e
socioculturais que revelam a forma de inserção destes sujeitos no mundo”. O resultado é
um conteúdo normalmente “direcionado à supervalorização de alguns aspectos mórbidos
ou bizarros dos protagonistas e dos coadjuvantes do evento problemático”, formatando
hipóteses de “verdade” nitidamente marcadas por uma perspectiva moral. Esse cenário
contribui para uma visão narcotizada do fenômeno criminal, marcada por um discurso
cujo conteúdo busca a estigmatização de tipos específicos de criminosos e a legitimação
de atuações estatais, sobretudo em intervenções policiais, assentando-se em alguns pres-
supostos, quais sejam o do crime como um dano irreparável e do criminoso como um bár-
baro incapaz de adaptar-se ao meio social, além de recorrer ao puro maniqueísmo do tipo
“nós, os bons, contra eles, os maus” e potencializar a sensação de medo e insegurança que
grassa por todo lugar43. Essa conjuntura reforçada pela pauta dria imposta pela expres-
siva maioria dos meios de comunicação reforça e edifica um sistema jurídico-penal e cri-
minológico de caráter ortodoxo, funcionalmente orientado pelo aforismo “do bem e do
mal” que consolida um discurso moralizador robustecido “por marcadores publicitários
como a impunidade dos crimes e a periculosidade dos criminosos”44.
Observa-se a insistência com que os órgãos de imprensa abordam, de forma abusiva,
aspectos de um caso criminal, oprimindo pessoas e condicionando a opinião de ampla
parcela da cidadania a esta ou aquela perspectiva, em geral, prejudicial ao suspeito, inves-
tigado ou processado. Reivindicando prerrogativas superpostas a qualquer controle,
meios de comunicação em geral utilizam justificativas como liberdade de imprensa, de
opinião e de manifestação, para expor suas próprias convicções sobre o mundo e, em par-
ticular, sobre o valor “justiça” (o que se esconde sob o manto do sigilo da fonte?). O cunho
ideológico, alinhado à ideia de defesa social, explica a adesão nefasta da mídia a um perl
de desprestígio às garantias individuais, razão pela qual a presunção de inocência é hos-
tilizada. Uma característica comum dos programas jornalísticos desse viés é polarizar a
atuação da justiça penal e o comportamento desviante como fator de intervenção social.
Há uma inclinação a criticar, de forma simplificada, o funcionamento do sistema judi-
cial criminal, o qual seria inoperante, ineficaz e letárgico, suprimindo-se, com frequência,
referências às garantias fundamentais das pessoas implicadas45. Como adverte Batista,
43 Em CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 424 e e ss.
44 Em CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 429.
45 Em HERNÁNDEZ GARCÍA, Javier. ‘Juicios paralelos y proceso penal: razones para una necesaria inter-
vención legislativa’. Revista Aranzadi de derecho y proceso penal, Navarra, n. 3, p. 117-131, 2000. Disponível em:
http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=59685. Acesso em: 19 nov. 2020.
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uma das consequências da fé na equação penal “se houver delito tem que haver pena” está
no “incômodo gerado pelos procedimentos legais que intervêm para a atestação judicial
de que o delito efetivamente ocorreu e de que o infrator deve ser responsabilizado por seu
cometimento”46.
Costuma-se salientar o êxito de medidas policiais de “combate”47 ao crime, normal-
mente mais eficazes do que o sistema judicial. A polarização entre o modelo policial e o
judicial e a distinção entre o delinquente irrecuperável e o bom cidadão potencializa o
sistema pririo de segurança, em detrimento do modelo secundário da justiça penal48.
Com isso agiganta-se a discrepância entre o tempo midiático, político e o jurídico-proces-
sual, com notório desdém à garantia da presunção de inocência. Anal, o percurso do pro-
cesso penal é “demasiadamente longo” para que se possa aguardar o julgamento, a não ser
que, em casos espeficos, a própria cobertura do processo penal granjeie interesse público
e assegure níveis palatáveis e rentáveis de audiência. No lugar do “letárgico” julgamento
penal, coloca-se então o juízo célere, intempestivo e definitivo dos meios de comunicação.
Assim, veem-se muitos profissionais da mídia e mesmo juristas de plantão que “compõe
a vasta fauna dos juízes paralelos que são todos aqueles que se julgam capazes de decidir
sobre as condutas alheias com o mesmo vigor de uma sentença transitada em julgado”,
fazendo coro a expedições punitivas como “apóstolos da suspeita temerária” e da “presun-
ção de culpa”.49
Esses juízos paralelos se constituem em julgamento público de condutas socialmente
reprováveis ocorrentes à margem do exclusivo e excludente poder jurisdicional do Estado.
Apesar de reproduzirem, mesmo que parcialmente um ritual similar ao processo judicial,
com manifestação de defensores, detratores, testemunhas, provas documentais e peri-
ciais, confissões, vítimas, etc, não são observadas as mesmas regras nem as limitações
e garantias exigíveis num juízo estatal regular50. O juízo paralelo, “por su propria esencia,
tiene escasso agrado por lo jurídico, y supone la confluência de um buen número de intereses que no
entroncan, por más que se quiera, con el fundamento de lo labor jurisdicional en um Estado de Dere-
46 Em BATISTA, Nilo. “Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Pau-
lo, v. 42, p. 245, jan-mar. 2003. Disponível em: Envio | Revista dos Tribunais (mpf.mp.br). Consulta em base de
Dados da RT on line mediante assinatura. Acesso em 15 fev. 2021.
47 Expressão reveladora da aposta na luta, na guerra, na violência, tudo a fomentar o Market System midiático.
48 Em HERNÁNDEZ GARCÍA, Javier. “Juicios paralelos y proceso penal: razones para una necesaria inter-
vención legislativa”. Revista Aranzadi de derecho y proceso penal, Navarra, n. 3, p. 117-131, 2000. Disponível em:
http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=59685. Acesso em: 19 nov. 2020.
49 Em DOTTI, René Ariel. “Os direitos humanos do preso e as pragas do sistema criminal”, em: PIOVESAN, Flávia;
GARCIA, Maria. (org). Doutrinas Essenciais. Direitos Humanos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, v. 2, p. 1008.
50 Em OVEJERO PUENTE, Ana Maria. Presunción de inocencia y juicios paralelos en derecho comparado. Madrid: Tirant
Lo Blanch, 2017, p. 11.
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cho”51. Há um simulacro de processo, de defesa e contraditório, representados por algumas
gotas de palavras no oceano acusatório.
Em pelo menos dois planos críticos de intervenção, segundo Hernández García identi-
ficam-se zonas patológicas de influência da imprensa sobre processos que aguardam jul-
gamento52. Em primeiro lugar, a incursão ilimitada nos fatos do processo, gerando versões
acusatórias próprias, baseadas na pressão sobre fontes de prova, na utilização indevida de
provas ilícitas, e no exercício de juízos próprios e paralelos para confirmar as hipóteses
adiantadas e geradoras de expectativas a serem atendidas. A segunda patologia diz res-
peito à transformação dos tribunais e juízes em órgãos suspeitos à opinião pública, sobre-
tudo porque, a partir da emissão de juízos paralelos condenatórios, as possibilidades de
solução do caso ficam reduzidas às hipóteses já antecipadas pelos meios de comunicação.
É possível que uma informação seja devidamente divulgada sem violar a presunção
de inocência, mas os múltiplos fatores que podem influenciar uma fabricação, edição e
publicação de notícia ou de uma opinião, tendem a perturbar esse ambiente que no plano
abstrato parece pacífico. O primeiro problema é identificar se, quando e onde houve a
agressão à presunção de inocência. Só após é que a polêmica acerca de um suposto conito
ou uma colisão de princípios assume relencia. A violação à presunção de inocência é
diagnosticável mesmo nos casos em que se decida que a matéria pode ser veiculada ou a
publicação deva ser mantida. Se a compreensão da presunção de inocência como exigência
constitucional e convencional de tratamento, em sua dimensão extraprocessual, for sólida
o suficiente, então não é a providência de reparação ou prevenção que a legitima como
lida. A rigor, os mecanismos de defesa, sob esse aspecto, como o são eventuais medidas
preventivas ou as repressivas, a reparação, o direito de resposta, adquirem características
próprias das garantias manuseáveis em nome da proteção de um direito ou de formas de
tutela repressiva. Ainda que a constatação de uma violação à presunção de inocência e a
adoção de providência seja suplantada em nome de uma “momentânea paralisia à inviola-
bilidade de outros direitos fundamentais”, isso não quer dizer que o direito à presunção de
inocência não exista e que não possa em outro cenário doutrinário e jurisprudencial vir a
ser alterada a forma de tutela.
Afrontas à presunção de inocência podem ocorrer de diversas formas. Nos casos mais
visíveis se identificam nos comportamentos de apresentadores de programas policiales-
51 Em CORTÉS BECHIARELLI, Emilio. “Juicios paralelos y derechos fundamentales del justiciable, em: Ann. Fac.
Der. U. Extremadura, v. 21, p. 123, 2003, p. 126.
52 Em HERNÁNDEZ GARCÍA, Javier. “Juicios paralelos y proceso penal: razones para una necesaria interven-
ción legislativa, em: Revista Aranzadi de derecho y proceso penal, Navarra, n. 3, p. 117-131, 2000. Disponível em:
http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=59685. Acesso em: 19 nov. 2020
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cos em que se acumulam reportagens frequentes em que se relatam, como definitivas,
versões de fatos criminais e dos respectivos autores, ainda que muitas vezes (a rigor, na
maior parte delas) as notícias sejam produzidas em meio aos estágios muito embrionários
das apurações policiais ou, no máximo, tão logo concluída a investigação oficial. Nessas
circunstâncias, diante de informações ainda precárias e obtidas unilateralmente, apresen-
tadores, repórteres, comentaristas, muitas vezes não tomam a cautela de noticiar o fato e
relatar as suspeitas tais como elas são (apenas suspeitas), cujo respaldo exsurge da inves-
tigação com elementos de autoria e materialidade, insuficientes a esses juízos assertivos
que frequentemente pululam, acompanhados de adjetivações extremamente severas e de
forte apelo moral(ista)53. Exemplo paradigmático é o da “Escola Base de São Paulo”54.
Merece destaque a manifestação da Ministra Nancy Andrighi em seu voto-vista no
julgamento do REsp 1.215.294/SP, que tratou de um dos processos em busca de indenização
no caso Escola Base: a ministra distingue o comportamento da imprensa e do delegado.
Aquela efetivamente não mentiu, embora tenha sido descuidado ao veicular matérias ade-
rentes à hipótese da autoridade policial, de modo que em sua perspectiva, a atitude dos
meios de comunicação parecia atenuada em razão da credibilidade de que goza a informa-
ção oriunda do agente público. Em nossa perspectiva essa distinção não atenua a respon-
sabilidade do órgão de imprensa. Se a presunção de inocência é um direito fundamental
com eficácia inclusive contra particulares, é responsabilidade dos órgãos de comunicação
respeitá-la de forma a não dar à publicidade das investigações um caráter altamente opres-
53 Vid. Operação Spoofing; Caso “Lava-Jato” ou “Vaza-Jato.
54 Vid. Documentário Escola Base – 20 anos depois (Caminhos da Reportagem, TV Brasil), publicado por TV Brasil,
07 nov. 2014 (50:39). Disponível em: https://tvbrasil.ebc.com.br/caminhosdareportagem/episodio/escola-base-
-20-anos-depois. Acesso em 13 jan. 2021. Em março de 1994 um casal proprietário de uma escola infantil localiza-
da no bairro da Aclimação em São Paulo/SP e um casal de funcionários foram acusados por duas mães de crian-
ças de prática de abuso sexual contra os infantes – uma mãe e um pai também foram acusados. A sequência da
investigação apoiou-se num laudo médico que apontara alguma fissura ou laceração anal em uma das crianças
supostamente vítimas de abuso, nos depoimentos das crianças e desdobrou-se na prisão dos suspeitos, na oca-
sião já tratados como culpados definitivos, e com uma ampla exposição midiática intencionalmente promovida
pela autoridade policial e por vários canais de comunicação que absorveram as informações e as divulgaram de
forma acrítica. A escola foi invadida e destruída por pessoas da comunidade. A fachada foi pichada com ofensas
aos suspeitos (Mauricio estuprador, Paula “sapatão”, etc...). Uma das suspeitas na época, Paula, funcionária da
escola, diz em documentário produzido pela EBC que seu nome e endereço residencial foram expostos em rede
de TV e minutos após sua casa foi invadida e depredada. Foi um “prejulgamento”, um “massacre moral”, disse à
EBC. As acusações eram graves, orgias sexuais, uso de drogas com as crianças, estupro para produção de con-
teúdo pornográfico. Uma das manchetes de jornal destacava: “Kombi era motel de escolhinha do sexo”. Ouvidos
para o documentário, os jornalistas Florestan Fernandes Jr, Regina Ferraz e Chico Verani, na época dos fatos vin-
culados à TV Cultura, esclareceram que foram procurados pelos acusados durante as investigações e só então as
vítimas conseguiram apresentar uma versão concorrente com a hipótese publicamente ventilada pela autorida-
de policial. O desfecho é conhecido. As acusações eram infundadas e carentes de qualquer respaldo probatório.
O inquérito foi arquivado, as vidas das vítimas profundamente afetadas ou destruídas. Alguns, posteriormente,
obtiveram indenizações judiciais em processos movidos contra canais de comunicação.
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sivo como fez no caso da Escola Base, abdicando de qualquer garantia em favor dos suspei-
tos e proporcionando reportagens que levaram o público ao extremo de atos de violência
contra as efetivas vítimas.
Mais do que isso, sequer alegações de que a presunção de inocência estaria circuns-
crita ao ambiente da investigação policial e às autoridades públicas amenizaria o papel da
imprensa. Pois se assim fosse, num caso tão evidentemente ofensivo à garantia quanto o
da Escola Base, era da responsabilidade dos periódicos constranger a própria autoridade
policial e não dar vazão às suas intenções publicitárias em nome daquela função e do ideal
iluminista de imprensa como órgão controlador e fiscalizador dos agentes públicos a que
tão frequentemente jornalistas recorrem para fundamentar seus excessos sob o agasa-
lho da liberdade de imprensa. Esse descompasso, als, entre as funções ideais de uma
imprensa livre e o papel de fiscalização e de constrangimento dos agentes públicos inclina-
dos às práticas ilegais quiçá tenha chegado ao ápice durante a operação Lava Jato, quando a
cobertura dria e incessante das investigações, prisões, processos, condenações, era abas-
tecida com vazamentos de informações sigilosas e, portanto, por meio de possíveis crimes
cometidos por agentes públicos, uma estratégia de cumplicidade (órgãos estatais/mídia)55.
Liberdade de imprensa, direito a dar e receber informação são compatíveis com a pre-
sunção de inocência. Mais do que alguma dificuldade insuperável em casos concretos, o
dique entre esses direitos tem se dado por conta de razões diversas, sejam interesses ou
posições editoriais, comerciais e empresariais, desconhecimento ou desprezo de direitos,
apego à velocidade da informação na busca do “furo de reportagem”, aderência acrítica a
hipóteses acusatórias estatais, manipulações e distorções de fatos, etc. É indispensável
reconhecer o papel fundamental que a imprensa (idealmente democrática) tem a exercer
nas sociedades democráticas, não só noticiando e dando publicidade aos atos de governo
e de atores estatais em geral, contribuindo para uma fiscalização pública daqueles que
atuam em nome do povo, mas colaborando igualmente na consolidação de um regime
democrático por meio da divulgação, da informação, da formação e da prática institucio-
nal de respeito aos direitos e de respeito ao estatuto constitucional da cidadania.
Antes de uma violência implícita ou explícita de forma deliberada a um direito-garan-
tia humano e fundamental à manutenção e preservação de um regime democrático e de
um sistema de persecução minimamente digno, é também um dever da imprensa contri-
buir à dinamização e concretização da presunção de inocência por meio de informações
que levem aos leitores, espectadores, ouvintes, elementos suficientes para compreender
55 É comum a imprensa receber informações de operações sigilosas e acompanhar as diligências, transmitindo ins-
tantaneamente. Aos defensores são criadas uma série de empecilhos ao acesso aos próprios autos do processo.
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a garantia e a razão de sua existência. Sob esse aspecto, não é possível acreditar que a
imprensa livre possa exercer seu papel se for alçada a um patamar superior de onde não se
submeta a qualquer tipo de limite, fazendo tábula rasa de quaisquer outros direitos funda-
mentais. Não podem ser desconsideradas as provas históricas que insistem em confirmar
uma advertência tão antiga como a de que um poder tende sempre à dominação, seja legal,
carismática ou pela tradição (Weber), bem como ao abuso (Ferrajoli), sendo o poder de
julgar, o mais terrível dos poderes (Montesquieu), seja o julgamento oficial ou o da mídia.
Este último, mais terrível de todos, por ser ilegítimo e disfuncional.
Os perigos em matéria de liberdade de imprensa decorrem de comportamentos esta-
tais porque todo regime autoritário nutre uma predisposição a restringir a liberdade de
expressão, mas também não se pode olvidar os perigos recíprocos da falta de qualquer
limite sobre o espaço privado dos meios de comunicação, principalmente em razão dos
grandes conglomerados de comunicação e a tendência à concentração das propriedades
dos meios de comunicação. Claro que ilegítima qualquer intervenção capaz de sufocar
ideias, ao modelo de uma polícia Orwelliana, mas é preciso reconhecer que a exclusiva
autorregulação pouco ou nada pode fazer em termos de limitação dos abusos cotidianos
perpetrados em órgãos de imprensa e em mídias sociais.
Tendo o quadro aqui desenhado, a presunção de inocência como dimensão extrapro-
cessual exige um tratamento adequado também por parte de órgãos de imprensa, reivin-
dicando o direito que toda pessoa tem de ser tratada em notícias, reportagens, manifes-
tações de opinião, como inocente, desde que, claro, esta seja sua condição em relação ao
fato objeto da matéria publicada. Na linha da observação de “o investigado ou acusado
não tem o direito de impedir que seu caso seja reportado pela imprensa”, mas a presunção
de inocência veda que a pessoa seja submetida a “tratamento humilhante ou exposição
indevida pelos meios de comunicação”56. O problema, acrescenta a autora, não é o interesse
da imprensa na ocorrência de um crime, mas sim na lógica jornastica que permeia esse
interesse e a forma como as pessoas e os fatos são retratados. Sob esse enfoque, a pre-
sunção de inocência transmite juridicamente pelo menos duas incumbências ao órgão de
imprensa. Em primeiro lugar, tratar toda e qualquer pessoa como inocente quando ainda
não condenada criminalmente de forma definitiva, evitando prejulgamentos em forma
de quaisquer abordagens de conteúdo que impliquem na afirmação de culpa ou que refli-
tam de forma dissimulada uma inclinação tendente a condicionar a opinião pública nesse
sentido. Segundo, não ser conivente com práticas de agentes estatais que busquem, por
meio da cumplicidade de meios de comunicação, introduzir versões acusatórias contra
56 Em SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 210.
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pessoas no espaço público das ideias, mediante a seletiva liberação de informações preju-
diciais a suspeitos e/ou acusados ou pela emissão definitiva de prejulgamentos. O papel
da imprensa livre deve ser refratário à cumplicidade na prática de ilicitudes por agentes
estatais, assim como também precisa resistir à tentação de funcionar como mero órgão de
publicação das opiniões de investigações, acusadores e mesmo julgadores. O jornalismo
exige investigação e postura crítica em relação ao ambiente no qual se insere.
4. Enfrentamento aos juízos paralelos condenatórios – abuso de
autoridade e outras formas de tutela penal do estado de inocência
As dimensões subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais colocam em cena, concomi-
tantemente, posições jurídicas subjetivas, mas também vinculam o Estado a uma agenda
de proteção da presunção de inocência numa esfera institucional e procedimental, propi-
ciando a adoção de medidas certificatórias de maior proteção e concretização à presunção
de inocência, nas várias frentes em que ele se projeta. As determinações de tutela57 tam-
bém se extraem do sistema interamericano de direitos humanos e das obrigações assu-
midas Brasil ao aderir a um conjunto de normas de caráter supranacional, dentre as quais
a presunção de inocência. Mais do que uma adesão formal, exige-se também respeito ao
conteúdo eficacial e às interpretações dadas pelas cortes internacionais58 notadamente a
Corte IDH59.
Ademais da natureza jurídica de princípio-garantia fundamental atribuível ao art. 5
LVII, CF, também se potencializa a obrigação de que o aparato estatal seja capaz de prote-
ger a presunção de inocência, em razão da aplicabilidade imediata que a norma contém,
revelando mais uma zona de possíveis fricções com outros direitos. Embora parte con-
siderável da equação entre os juízos paralelos condenatórios e a presunção de inocência
possa depender da intermediação legislativa, a admitir a observação do Ministro Gilmar
Mendes60 no sentido de que a melhor equalização possível à eficácia de direitos funda-
mentais entre particulares há de ser promovida pelo legislador, é premente a necessidade
de providências que possam dar concretude ao princípio-garantia, mesmo diante da apa-
rente escassez de remédios jurídicos específicos e aptos a tanto.
57 Em MONTAÑÉS PARDO, Miguel Angel. La presunción de inocência. Madri: Aranzadi, 1999, p. 339 e ss., formas
de tutela da presunção de inocência no ordenamento jurídico espanhol, em todas as instâncias jurisdicionais,
inclusive no recurso de amparo e no de cassação.
58 Em MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Controle Jurisdicional da convencionalidade das leis. Rio de Janeiro: Forense,
2018. E-book. Disponível em: https://ler.amazon.com.br/?asin=B07GBGMYYK. Acesso em 18 fev. 2021.
59 Vid. Caso Cabrera García y Montiel Flores v. México, § 225 (2010), da Corte IDH.
60 Vid. ADPF 130/2009.
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A inovação legislativa introduzida no art. 38 da Lei n.º 13.869/2019 (abuso de autori-
dade), prevendo como crime antecipar o responsável pelas investigações, por meio de
comunicação, inclusive rede social, atribuição de culpa, antes de concluídas as apurações e
formalizada a acusação. Trata-se de erigir a inocência em verdadeiro bem jurídico penal61
ainda que a proteção, tendencialmente dispensada pelo artigo, possa se revelar insufi-
ciente. A tipificação é um reconhecimento de que a matéria merece maior problematização
e ultrapassa o campo interno do processo penal, avançando a perspectiva de tratamento,
mormente pelos meios de comunicação e redes sociais.
Mantida a redação atual, pelo menos dois pontos são criticáveis. Primeiramente,
quanto ao marco temporal fixado, restringindo a possibilidade de consumação do crime
às investigações, posto que após a formalização da acusação as violências à presunção de
inocência tornam-se, do ponto de vista penal, atípicas. No entanto, a presunção de inocên-
cia estende seus efeitos até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória e não
até a formalização da acusação62. Ademais, a moldura típica em forma de uma infração
penal de autoria própria restringe a abrangência da norma incriminadora, deixando de
alcançar a generalidade dos agentes públicos, circunscrevendo-se ao “responsável pelas
investigações”. Mas mesmo aí a redação é precária e insuficiente. Será apenas o delegado
de polícia encarregado da investigação? O membro do Ministério Público também será
afetado? Todos os agentes envolvidos na investigação são igualmente submetidos à legis-
lação, ainda que não presidam o inquérito (art. 2, Lei n.º 12.830/13) ou o procedimento
investigatório criminal (arts. 26 da Lei n.º 8.625/93, 8.º da LC 75/93 e art. 1.º da Resolução
n.º 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público)? O espectro de abrangência da
dimensão extraprocessual da presunção de inocência é mais amplo do que sugere o tipo
do art. 38 da Lei n.º 13.869/2019. O movimento legislativo foi tímido e o incremento de
ajustes para reparar os dois pontos aqui destacados teria o êxito de conciliar a dimensão
extraprocessual da presunção de inocência com a forma de tutela penal pretendida pela
Lei n.º 13.869/2019 (Abuso de Autoridade).
Por sua vez, o vazamento de informações sigilosas pressupõe o envolvimento de
algum agente, em regra público, que teve acesso permitido aos autos da investigação ou do
processo. Não se arma aqui que todo e qualquer vazamento de informação sigilosa tenha
o intuito de prejudicar a condição de inocente do investigado ou processado, mas que em
determinados casos esse filtro da informação pode ser direcionado a minar a presunção de
61 Em STRECK, Lênio e LORENZONI, Pietro Cardia. Comentários à nova lei de abuso de autoridade. São Paulo: Tirant
lo Blanch, 2020, p. 189.
62 Em GREVI, Vittorio. Alla ricerca di un processo penale “giusto”. Milão: Giufrè, 2000, p. 103, acerca da inadmissibilida-
de da execução provisória da sentença penal condenatória.
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inocência perante a opinião pública. Por isso, as várias previsões legais que resguardam o
sigilo de informações, oriundas de investigação ou processo penal, são compatíveis com a
presunção de inocência e podem colaborar na sua preservação. Uma das formas de coibir
a quebra indevida de sigilo está prevista no caput do art. 325 do CP, em forma de violação
de sigilo funcional. Em se tratando de agentes públicos atuantes em casos cobertos por
segredo de justiça, por exemplo, não se vê como não possam ser, em regra, submetidos a
essa cláusula geral de penalização da quebra do sigilo profissional. Pense-se no caso de
investigação sigilosa com previsão de cumprimento de mandados de prisão ou de busca e
apreensão. A revelação a meios de comunicação do dia e hora em que serão cumpridas as
diligências poderiam enquadrar-se na figura do fato sigiloso que chega ao conhecimento
de um agente público em razão da atividade funcional e do envolvimento com a investi-
gação. O agente não poderia transpor o limite desse sigilo profissional imposto por lei. A
preservação do sigilo nesse tipo de operação poderia garantir o cumprimento de outros
dois dispositivos legais correlacionados ao tema: o art. 41, VIII, da Lei 7.210/84 (Execução
Penal), que garante ao preso, inclusive provisório, a proteção contra qualquer forma de
sensacionalismo; o art. 13, I, da Lei n.º 13.869/2019 (Abuso de Autoridade), que veda cons-
tranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capaci-
dade de resistência a exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública.
No âmbito das proibições de quebra de sigilo, o art. 30 da Lei n.º 13.869/2019 pre
como crime, divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se
pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a ima-
gem do investigado ou do acusado. Já o art. 8.º da Lei n.º 9.296/96 (interceptações tele-
nicas) prevê como sigiloso o procedimento em que se dará a interceptação de suspeito,
preservando-se em segredo as diligências, gravações e transcrições, além de criminalizar
no art. 10 a conduta de quem quebra o segredo de justiça sem autorização judicial ou com
objetivos não autorizados em lei (para fins de investigação ou instrução processual penal).
Outra situação problemática diz respeito à divulgação indevida de conteúdo de acordos de
colaboração premiada, apesar de legalmente estarem acobertados por sigilo, como pres-
creve o art. 7.º, 3, da Lei n.º 12.850/13. Em especial, porque nesse momento as revelações
tendem a afetar pessoas que foram delatadas por interesse do delator, sem que tenham
podido conhecer e refutar as acusações.
O CP ainda oferece outros tipos penais voltados, indiretamente, à tutela da inocência,
como o art. 138 do CP, pois a calúnia pode ocorrer pelos meios de comunicação, bem como
o art. 339 do CP, pois a falsa comunicação de ocorrência atinge diretamente a presunção
de inocência. O art. 27 da Lei n.º 13.869/2019 coíbe os transtornos ao inocente. Incrimina a
conduta de quem requisita instauração ou instaura procedimento investigatório de infra-
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ção penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática
de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa. A mesma prática, se com fina-
lidade eleitoral, adequa-se ao art. 326-A, do Código Eleitoral. Ainda no que se refere à proi-
bição de vazamentos de informações de caráter sigiloso merecem destaque previsões mais
específicas atinentes a determinados agentes públicos. No âmbito do Ministério Público
da União, por exemplo, é dever de todo membro guardar segredo sobre assunto de caráter
sigiloso que conheça em razão do cargo ou função (art. 236, II, LC 75/93). Ademais, o art.
7.º, § 2, da mesma Lei atribui ao membro do parquet o dever de preservar o caráter sigi-
loso de informação, do registro, do dado ou documento que lhe tenha chegado ao conhe-
cimento em razão de suas atividades funcionais. Já a Lei Orgânica do Ministério Público
(Lei n.º 8.625/93) prevê no art. 26, § 2.º, a responsabilidade de quem faça uso indevido de
informação de caráter sigiloso. Soma-se a tudo isso a previsão inserta no art. 15, § único,
IV, da Resolução CNMP n.º 181/2017, impondo a observância da presunção de inocência
na prestação de informações de procedimentos investigatórios criminais no âmbito do
Ministério Público.
Diante de evidente publicidade opressiva, cogita-se o uso de medidas que não necessa-
riamente afetem a liberdade de expressão, tais como o desaforamento, a possibilidade de
postergação de julgamento, a proibição de introdução no processo de matérias que, apesar
de lícitas, tenham caráter nitidamente prejudicial ao réu, fruto da “verdade midiática”63.
Entre as medidas que não afetam a liberdade de expressão, há que se colocar, também, o
direito de resposta ou de retificação (art. 5.º, X, CF, Lei n.º 13.188/15) porque amplia a pos-
sibilidade de manifestação do pensamento, criando espaços para que o afetado apresente
sua perspectiva a respeito do fato em causa.
O direito de resposta pode se mostrar relevante, mormente nas situações em que a abor-
dagem midiática leva à audiência a falsa ideia de que o suspeito ou réu já está condenado
ou a condenação é uma questão de tempo. Nessa hipótese, a apresentação de uma versão
contrária pode evidenciar a informação de que o meio de comunicação veiculou matéria
com conteúdo falso ou duvidoso, apesar do problema do leitor diverso entre a reportagem e
o direito de resposta. Em todo caso, propicia-se o necessário constrangimento. Ademais, o
direito de resposta pode contribuir para que esse transplante temporário do contraditório
à imprensa fomente um necessário debate sobre direitos e garantias individuais, inclu-
sive os processuais, que deveriam aproveitar a todos e não apenas a uma pequena parcela
63 Em SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 390/391.
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da população64. A revelação do conteúdo das provas ilícitas também há de ser vedado65,
bem como a veiculação de determinadas matérias que estão sob julgamento, evitando-se
campanhas midiáticas pela condenação do réu, com potencial risco ao julgamento impar-
cial66. Os critérios de dever geral de cuidado, dever geral de veracidade e dever geral de
pertinência, como medidas de aferição do abuso do direito de informar, podem auxiliar no
reconhecimento de posturas ofensivas à presunção de inocência.
II. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A abordagem enfrentou a seguinte problemática: a presunção de inocência é compatível
com as liberdades de expressão e de imprensa? Informação, publicidade, opinião e juízos
prévios ao processamento criminal ofendem a presunção de inocência? No decorrer da
pesquisa, verificou-se ser possível compatibilizar a liberdade de expressão e a publicidade,
desde que respeitados os princípios-garantia insculpidos na Carta Magna e nos diplo-
mas internacionais subscritos pelo Brasil, no caso abordado, a presunção de inocência.
A publicidade do caso criminal adequa-se à presunção de inocência quando não são emi-
tidos juízos prévios condenatórios ou quando a forma e conteúdo da comunicação induz
à formação e compreensão de que suspeito, investigado ou processado seja culpado. É o
trânsito em julgado de um veredicto penal condenatório jurisdicional que afasta o estado
de inocência; até então, todo sujeito há de ser considerado como inocente, inclusive na
dimensão extraprocessual.
Atingiu-se o objetivo de evidenciar a dimensão extraprocessual da presunção de ino-
cência, aplicável aos sujeitos oficiais (Polícias, Ministério Público, Defensores e Magistra-
dos) e particulares (Imprensa, por exemplo), de modo que os juízos paralelos condenató-
rios soterram a presunção de inocência. Apurou-se, também, no decorrer da investigação,
haver uma tutela penal da presunção de inocência (art. 138, 325 e 339 do CP; art. 326-A, do
Código Eleitoral), inclusive na Lei de Abuso de Autoridade (art. 38 da Lei n.º 13.869/2019).
Podemos identificar, ao lado dos poderes constituídos (Executivo, Legislativo e Judi-
ciário), outros poderes, os denominados “poderes de fato” tanto em instituições (Polí-
cia, Ministério Público) quanto na sociedade (corporações midiáticas, blogues, redes
sociais,v.g.).
64 Em SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 394.
65 Conforme SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.
400/401 e NICOLITT 2016, E-book)
66 Em SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 402/403.
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Efeitos extraprocessuais do estado de inocência – limites aos juízos paralelos condenatórios
Extraprocedural eects of the presumption of innocence – limits to condemnatory parallel judgments
NEREU JOSÉ GIACOMOLLI, ROGER MACHADO
GALILEU · e-ISSN 2184-1845 · Volume XXIII · Issue Fascículo 1-2 · 1st January Janeiro – 31st December Dezembro 2022 · pp. 39-62
Igualmente, se verifica que há poderes que atuam à margem da lei, como o das milícias
formadas por agentes do estado, por associações e organizações criminosas, nacionais e
internacionais. A dominação não se dá somente pela lei ou pela tradição, mas também pelo
carisma (Weber), na medida em que a dominação pode se justificar pelo apoio popular, na
força de atrair esse apoio, principalmente pelo senso comum (maioria). Sujeitos e veículos
carismáticos tendem a agira lateredas garantias penais e processuais, por pensarem que o
apoio da massa justifica a sua conduta. Isso não passa de um retorno à fundamentação da
punição pelo oráculo e à vontade divina, com sacralização da tradição sem sujeição à lei.
O veículo de comunicação, ao emitir e publicar um juízo paralelo condenatório ou
induzir a que haja formação deste, ofende, ademais da presunção de inocência, o dever de
cuidado de veracidade e de pertinência. Medidas efetivas de concretização e tutela da pre-
sunção de inocência, também em sua dimensão extraprocessual, configuram obrigações
a que o Estado brasileiro está submetido, não só por se tratar de um princípio-garantia
fundamental de aplicabilidade imediata em sua dupla perspectiva, mas também porque o
próprio art. 25.1 da Convenção Americana dos Direitos Humanos (CADH), ratificada pelo
Brasil, obriga os Estados a disponibilizarem aos cidadãos um recurso efetivo para viabili-
zar o controle de atos que violem direitos humanos fundamentais. A isso se soma o art. 5.º,
LXV, da CF. Disposições legais atuais tutelam a presunção de inocência, com demarcação
temporal clara: trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
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Aquisição de provas criminais eletrônicas
no Brasil à luz da Convenção de Budapeste,
do Cloud Act dos Estados Unidos da América
edoDireito da União Europeia1
Acquisition of electronic criminal evidence in Brazil in the light
of the Budapest Convention, the Cloud Act of the United States
of America and European Union Law
WILSON ANTONIO PAESE SEGUNDO2
wpaese@gmail.com
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXII · 1st January Janeiro–31ST December Dezembro 2022 · pp.63‑79
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXIII.1/2.4
Submitted on September 2nd, 2022 · Accepted on September 21st, 2022
Submetido em 2 de Setembro, 2022 · Aceite a 21 de Setembro, 2022
RESUMO O escopo do trabalho, centrado na etapa oficial da investigação preliminar
de crimes de competência do Brasil, busca verificar se, a obtenção de metadados e de
conteúdo eletrônico diretamente com o ente privado que a armazena, encontra paralelo
nas disposições da Convenção de Budapeste, na legislação pertinente da União Europeia e
no Cloud Act dos Estados Unidos da América. O tema assume relevo atualmente, porquanto
a autoria da maioria das infrações penais comuns somente pode ser descoberta e seus
autores identificados, mediante a obtenção célere de provas eletrônicas, invariavelmente,
armazenadas em território estrangeiro, ao passo que os tradicionais instrumentos de
cooperação mútua são considerados obsoletos para lidar com o problema.
PALAVR ASCHAVE investigação criminal; provas eletrônicas; dispensa do MLA; obtenção
direta com o ente privado; Brasil e Direito comparado.
1 Este artigo corresponde ao trabalho apresentado na Unidade Curricular de «Teoria Geral do Direito Policial», mi-
nistrada pelo Professor Doutor Manuel Monteiro Guedes Valente, no âmbito do Mestrado em Direito – Ciências
Jurídico-Policiais. O estudo foi desenvolvido no âmbito do Projeto de I&D: Corpus Delicti – Estudos de Criminali-
dade Organizada Transnacional, sediado no Ratio Legis – Centro de Investigação e Desenvolvimento em Ciências
Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa.
2 Delegado da Polícia Federal. Mestrabndo em Direito – Ci~encias Jurídico-Policiais da Universidade Autónoma
de Lisboa. Invetsigador colaborador do Ratio Legis, projeto de I&D: Corpus Delicti – Estudos de Criminalidade
Orgnaizada Transnacional.
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Aquisição de provas criminais eletrônicas no Brasil à luz da Convenção de Budapeste, do Cloud Act…
Acquisition of electronic criminal evidence in Brazil in the light of the Budapest Convention, the Cloud Act…
WILSON ANTONIO PAESE SEGUNDO
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ABSTRACT The scope of the research, related to the Brazilian pre-trial investigation, aims
to verify whether obtaining of metadata and content data directly from a private storage
establishment is in line with the Budapest Convention, European Union Law and the
U.S. Cloud Act. This is relevant because, in most cases, it is only possible to determine
who committed a crime and obtain evidence that can be used in Court, when electronic
evidence, invariably stored abroad, are quickly collected. On the other hand, traditional
mechanisms for mutual cooperation are considered obsolete to solve the problem.
KEYWORDS criminal investigation; digital evidence; non-essential MLA; obtaining
directly from the private entity; Brazil and comparative law.
1. Introdução
O fenómeno da globalização, compreendido como “o facto de vivermos cada vez mais num
único mundo, na medida em que os indivíduos, os grupos e as nações estão a tornar-se
cada vez mais interdependentes” (GIDDENS, 2013, p. 131), produz impacto nos mais diver-
sos campos da vida em sociedade, num processo de retroalimentação que é impulsionado
pelo desenvolvimento tecnológico, especialmente pelo advento da internet, computadores,
smartphones e seu amplo espectro, permitindo o fluxo de dados, voz e imagem, ao arrepio
de quaisquer limitações territoriais existentes entre os países.
A par disso, a multiplicidade de empresas transnacionais, a economia eletrônica e a
velocidade nos deslocamentos para superar grandes distâncias, influenciam nesse pro-
cesso de compressão do tempo/espaço3.
Inegavelmente, os avanços da computação e da tecnologia da informação transfor-
maram e continuam transformando com rapidez exponencial todos os aspectos da vida
moderna, constituindo-se em elementos essenciais para a economia e a sociedade. A uti-
lização da internet e, especialmente das mídias sociais, webmails e aplicativos para uma
gama inndável de situações tornou-se corriqueira em quase todo o planeta4.
No entanto, concomitantemente aos benefícios econômicos, sociais, culturais e de
lazer, essas tecnologias passaram a ser utilizadas também de maneira desvirtuada, como
supedâneo para a criação de novos crimes, próprios deste ambiente5 ou como ferramentas
para transmudar a natureza, escala e alcance de crimes já conhecidos. Quando isso acon-
3 Expressão cunhada por David Harvey, apud Bauman (1999, p. 63).
4 Segundo a International Telecommunication Union (agência especializada das Nações Unidas), aproximadamente
4,9 bilhões de pessoas (63% da população mundial) estão usando a internet. Disponível em: https://bit.ly/3QeKr4H
(Consult. em 14 de agosto de 2022).
5 Os designados cibercrimes. v.g. denial of service (DoS) e distributed denial of service (DDoS); ransomwares; propagação
de vírus, etc.
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tece, o ambiente virtual costuma ser o único lugar onde podem ser encontrados elementos
para determinar quem cometeu um crime.
Especificamente, os serviços em rede podem ser fornecidos de qualquer espaço, dis-
pensando infraestrutura física, pessoal ou instalações no país dos usuários. Eles também
não carecem de local específico para o armazenamento de dados, que é eleito segundo as
conveniências do provedor de serviços, majoritariamente no intento de reduzir custos,
otimizar lucros, proteger dados e oferecer melhor acesso e desempenho.
Na consecução dessas estratégias empresariais, os fornecedores privados, percebendo
a fragilidade da regulação estatal no ambiente virtual, comumente adotam dois caminhos:
(a) prestam serviços em determinado país sem a presença de estabelecimento físico ou;
(b) criam subsidrias para funcionar no local, apenas com a função de vender serviços,
mantendo o armazenamento sob o encargo de outro ente do grupo econômico, em país
com a legislação que mais lhe beneficie. O intento é claro, maximizar as oportunidades,
afastando qualquer empecilho em sentido contrário.
Por conseguinte, as provas aptas a elucidar delitos cometidos em determinado país,
estão ordinariamente armazenados em território estrangeiro6, sem conexão entre o caso
sob investigação no Estado em questão e o Estado do local de armazenamento ou da sede
principal do prestador de serviços, originando o que se tem chamado de globalizão das
evincias criminais.
De outro lado, os investigadores estão limitados aos seus territórios7 e as formas tra-
dicionais de obter provas em jurisdições alienígenas não são eficazes. Isso gera extrema
dificuldade na promoção da justa, ante a incapacidade estatal de proteger a vítima e os
bens jurídicos agredidos.
Nesse diapasão, o Brasil tem buscado soluções jurídicas para enfrentar o problema. A
questão que se coloca é aquilatar a adequação da postura brasileira frente aos instrumen-
tos jurídicos previstos na Convenção de Budapeste, nos Estados Unidos da América (EUA)
e na União Europeia (UE).
Em linha com o objeto da pesquisa, será realizada sucinta exposição jurídica do tema
no Brasil, nas disposições da Convenção de Budapeste, no Cloud Act dos EUA e na legisla-
6 Ante a computação em nuvem, as maiores empresas globais mantêm data centers em múltiplos países, com arma-
zenamento fracionado de dados e trânsito automatizado quase constantemente entre eles, no intuito de aprimo-
rar o desempenho ante a diminuição da latência, por exemplo.
7 Smuha (2018, p. 85, tradução nossa) é contundente a respeito: “Embora os criminosos muitas vezes deixem evi-
dências úteis online e sejam capazes de mover dados de um servidor localizado de um país para outro com o
clique de um mouse, as forças policiais devem interromper sua busca na fronteira virtual e buscar assistência de
outro estado. Se o objetivo é obter justiça criminal rápida, essa situação parece ridícula na melhor das hipóteses
e perigosa para a sociedade na pior.
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ção corretada da UE, para então verificar a existência de elementos comuns, em prol do
direito fundamental à segurança e a justiça8, estabelecendo critérios a serem observados
por todos os Estados.
2. Abordagem no Brasil
No trato da questão de obtenção de provas eletrônicas envolvendo prestadores de serviços
estrangeiros em funcionamento no Brasil, a Corte Especial do Superior Tribunal de Jus-
tiça (STJ), harmonizando a legislação federal, tem entendimento consolidado no sentido
de que o local de armazenamento não afasta a jurisdição do país para requisitar direta-
mente o fornecimento de metadados ou dados de conteúdo, imprescindíveis a descoberta
de crime ocorrido em território nacional, envolvendo brasileiros.
O leading case9 que levou ao entendimento acima, tratava de recusa do Google Brasil em
fornecer, diretamente às autoridades brasileiras, o conteúdo de e-mails trocados entre bra-
sileiros investigados pela prática de crimes graves (associação criminosa, corrupção, lava-
gem de dinheiro etc), sob a justificativa que os dados estavam armazenados em território
americano, ao abrigo da controladora Google Inc. Nesse passo, a subsidria argumentou
que além de não ter acesso ao conteúdo, a legislação americana proibia sua divulgação,
salvo por meio da assistência jurídica mútua (MLA, sigla para mutual legal assistance).
Posteriormente, a Lei 12.965/14, conhecida como Marco Civil da Internet (MCI) regulou
o assunto no Art. 11,caput,§§1.º e 2.º:
Art. 11. Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamen-
to de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de cone-
xão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em
território nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação bra-
sileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das
comunicações privadas e dos registros.
§ 1.º O disposto no caput aplica-se aos dados coletados em território nacional
e ao conteúdo das comunicações, desde que pelo menos um dos terminais esteja
localizado no Brasil.
8 O trabalho adota a concepção de “[...] plurinormatividade da segurança: [que] atravessa todo o ordenamento jurí-
dico – [...] nacional e supranacional – e assume-se nele como fundamental para a vida em comunidade; e absorve,
como bem a preservar e essencial ao desenvolvimento harmonioso da comunidade, o domínio público e o domí-
nio privado do Direito.” (VALENTE, 2012, p. 79).
9 STJ/Inq/784/DF, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJe 28/08/13.
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§ 2.º O disposto no caput aplica-se mesmo que as atividades sejam realiza-
das por pessoa jurídica sediada no exterior, desde que oferte serviço ao público
brasileiro ou pelo menos uma integrante do mesmo grupo econômico possua
estabelecimento no Brasil.10
Como se percebe, o MCI alarga os critérios da jurisprudência, sujeitando as pessoas
jurídicas estrangeiras à lei brasileira, ainda quando não tenham sede no Brasil, desde que
prestem serviço no país, sempre que qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda,
tratamento de metadados ou dados de conteúdo tenha ocorrido em território nacional.
3. Abordagem na Convenção sobre Cibercrime
A Convenção sobre Cibercrime (Convenção de Budapeste)11 12, de caráter universal, prevê que
as partes estabeleçam poderes e procedimentos para obter provas eletrônicas13 e prestar
assistência jurídica mútua, não limitada a crimes cibernéticos. Ainda, no Art. 18.1, “b”, cria
injunção para que as Partes ordenem ao fornecedor, que preste serviços no seu território,
com ou sem sede física, a entrega de dados de assinante na sua posse ou sob seu controle14.
Além disso, a Convenção prevê, nos artigos 16 e 17, ordens de preservação quando houver
motivos para acreditar que os dados de computador são particularmente vulneráveis a
perda ou modificação.
Todavia, os avanços tecnológicos e o incremento da complexidade supra referidos, vem
exigindo maior celeridade na obtenção de provas eletrônicas, especialmente porque atual-
mente elas são imprescindíveis na maioria das infrações penais comuns.
Segundo dados compilados pelo Conselho da UE15, mais da metade de todas as
investigações criminais atuais incluem uma solicitação transfronteiriça para aces-
sar evidências eletrônicas, como dados de identificação, textos, mensagens, e-mails ou
10 Antes dela, o Art. 11, §1.º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro e o Art. 21, parágrafo único do Có-
digo de Processo Civil Brasileiro preveem que a pessoa jurídica estrangeira que tiver agência, filial ou sucursal
no Brasil, fica sujeita à lei nacional.
11 Convenção de Budapeste (ETS n.º 185) de 23 de novembro de 2001.
12 O Brasil somente aprovou o texto da Convenção em 16 de dezembro de 2021, por meio do Decreto Legislativo n.º
7. Registre-se que ainda não foram concluídos os trâmites necessários para internalização.
13 Para uma visão ampla sobre provas eletrônicas em grande parte dos Estados-Membros da UE [definição, proce-
dimento nacional e internacional tanto para obtenção quanto para guarda; autoridade competente para execu-
ção, etc] ver o sítio: https://bit.ly/3Jnku16. Acesso em: 19 de jul. de 2022.
14 Para interpretação deste dispositivo, consultar a Nota de Orientação n.º 10, intitulada Production orders for subscri-
ber information (Article 18 Budapest Convention), emanada pelo Cybercrime Convention Committee (T-CY).
15 Vide: E-evidence – cross-border access to electronic evidence: improving cross-border access to electronic evidence.
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aplicativos. E, as provas eletrônicas são relevantes para aproximadamente 85% das
investigações criminais16.
Ilustrativamente, os relatórios de transparência do Facebook (Meta) e do Google, concer-
nentes a evolução do número de solicitações recebidas para fornecimento de provas ele-
trônicas por autoridades do Brasil e globalmente, são capazes de dimensionar o fenômeno:
Facebook/Brasil
Figura 1. Facebook. Transparency Center. Brazil
Google/Brasil
Figura 2. Google. Relatório de Transparência. Brasil
16 Vide: Commission Sta Working Document Impact Assessment.
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Facebook/Global
Figura 3. Facebook. Transparency Center. Global
Google/Global
Figura 4. Relatório de Transparência. Solicitações globais.
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Atenta a essa realidade, a Comissão da União Europeia propôs o segundo protocolo
adicional à Convenção sobre Cibercrime [CETS n.º 224]17, firmado, até 10 de julho de 2022,
por 24 (vinte e quatro) países18 19.
Em síntese, o segundo protocolo aborda a divulgação de informações de registro de
nomes de domínio, medidas de cooperação direta com provedores de serviços para obten-
ção de informações de usuários, meios eficazes para obtenção de informações de usuá-
rios e dados de tráfego, cooperação imediata em emergências, ferramentas de assistência
mútua, bem como salvaguardas para a preservação dos direitos humanos no ambiente
digital (SANTOS, 2022, p.11).
4. Abordagem nos Estados Unidos da América
O Cloud Act20, aprovado em março de 2018, pelos EUA, altera o Stored Communications Act,
de 1986 (18 U.S. Code Chapter 121)21, permitindo que as autoridades americanas obtenham
prova eletrônica para fins criminais, independentemente do local onde o prestador do ser-
17 O Preâmbulo do mencionado protocolo corrobora o que vem se afirmando: “Reconhecendo a utilização crescen-
te das tecnologias da informação e da comunicação, designadamente os serviços de internet, e o aumento da
cibercriminalidade, que constitui uma ameaça para a democracia e o Estado de direito e que muitos Estados
também consideram uma ameaça para os direitos humanos; Reconhecendo igualmente o número crescente de
vítimas da cibercriminalidade e a importância de obter justiça para essas vítimas; Recordando que os governos
têm a responsabilidade de proteger a sociedade e as pessoas contra a criminalidade não só fora de linha (oine),
mas também em linha (online), nomeadamente através de investigações e ações penais eficazes; Cientes de que
os elementos de prova de qualquer infração penal são cada vez mais armazenados em formato eletrónico em
sistemas informáticos situados em jurisdições estrangeiras, múltiplas ou desconhecidas, e convencidos de que
são necessárias medidas adicionais para obter licitamente esses elementos de prova, a fim de permitir uma
resposta eficaz da justiça penal e defender o Estado de direito; Reconhecendo a necessidade de uma cooperação
reforçada e mais eficaz entre os Estados e o setor privado, e que, neste contexto, é necessária maior clareza ou
segurança jurídica para os prestadores de serviços e outras entidades no que diz respeito às circunstâncias em
que podem responder a pedidos diretos das autoridades de justiça penal de outras Partes para a comunicação
de dados eletrônicos; [...].”
18 Dentre eles, Portugal e, como não integrantes da UE: EUA, Chile, Colômbia, Japão e Marrocos, consoante o Chart
of signatures and ratifications of Treaty 224.
19 O protocolo entrará em vigor no primeiro dia do mês seguinte ao termo de um período de três meses a contar da
data em que 5 (cinco) Estados-Partes tenham manifestado seu consentimento em ficarem vinculadas ao mesmo
(Art. 16.3 do segundo protocolo adicional a Convenção de Budapeste).
20 U.S. Clarifying Lawful Overseas Use of Data Act, H.R. 4943, 2018.
21 O Stored Communications Act (SCA), dispõe sobre o tratamento legal aplicável a comunicações armazenadas, ve-
dando a divulgação de dados de conteúdo, exceto nas 8 (oito) exceções especificadas no §2702(b) do 18 USC,
das quais, destacam-se: as situações de emergência envolvendo perigo de morte ou lesão grave de pessoa e; a
exploração sexual e outros abusos de crianças e adolescentes, reportadas, no último caso, ao National Center for
Missing and Exploited Children (NCMEC) (18 USC 2258A). Nessas situações, os dados de conteúdo são transmitidos
diretamente as autoridades estrangeiras responsáveis pela persecução penal.
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viço, sob sua jurisdição,22 a mantenha armazenada (18 USC §2713)23. Ainda, prevê a possibi-
lidade de países estrangeiros firmarem acordos executivos com os EUA [acordos bilaterais],
permitindo que o conteúdo de comunicações de cidadãos não americanos e não residentes
seja obtida diretamente junto aos prestadores de serviços com sede principal nos EUA24.
Por outro lado, quanto aos metadados, subdivididos pela UE, em dado de assinante,
de acesso e transacional, não há impedimento legal para que sejam fornecidos voluntaria-
mente pelos provedores americanos diretamente as autoridades criminais do país onde
prestam serviços.
Desse modo, a cooperação voluntária para fornecimento de dados que não sejam de
conteúdo é recorrente com prestadores de serviços americanos. Mas sendo discricionária,
despida de mecanismos legislativos cogentes para cumprimento e entrega tempestiva, o
Estado requerente fica inteiramente a mercê do prestador de serviços25 26.
O Cloud Act não alterou esse panorama. Os acordos executivos firmados sob sua égide
servem tão somente para eliminar os conflitos legais existentes entre as legislações dos
países a que o prestador de serviço está submetido. Não são criadas obrigações ao provedor
ou conferidos poderes coercitivos ao Estado requerente27.
5. Abordagem na União Europeia28
Cuidando do tema proposto, traz-se à baila, a Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu
e do Conselho, de 8 de junho de 2000, relativa a certos aspectos legais dos serviços da sociedade
de informação, em especial do comércio eletrônico, no mercado interno, a qual, imperiosamente,
deve ser analisada levando em conta as modificações a serem promovidas, brevemente,
pelo Digital Services Act (DAS)29, aplicável a qualquer plataforma digital que preste serviços
22 O que não se confunde com os prestadores sediados em seu território ou constituídos por americanos.
23 O Cloud Act vem na esteira do caso Microsoft v. United States, no qual a Suprema Corte foi provocada a decidir se
o SCA obrigava a Big Tech, sob jurisdição estadunidense, a entregar dados armazenados no exterior, relativos a
crime de tráfico de drogas cometido em solo americano. Com a superveniência do Cloud Act, o caso foi encerrado
sem apreciação do mérito. Para aprofundamento acerca do litígio ver: DASKAL (2018).
24 As condições e procedimentos necessários para firmar o acordo podem ser consultados no ato, antes referido,
que institui o Cloud Act.
25 Nas palavras de Palmieri (2021, tradução nossa): “Os provedores acabam se tornando os verdadeiros guardiões
do poder de implementação do horizonte investigativo.
26 Segundo relatórios atuais de transparência do Facebook (Meta) e do Google o percentual de atendimento dos
pedidos de autoridades brasileiras e globalmente, não atinge 70% e 80%, respectivamente.
27 Conforme consta no Promoting Public Safety, Privacy, and the Rule of Law Around the World: The Purpose and Impact of
the CLOUD Act do Departamento de Justiça dos EUA.
28 Para uma análise abrangente da legislação relativa a proteção dos dados pessoais na UE, acompanhada de farta
jurisprudência, consultar ficha temática do Tribunal de Justiça da UE (2021).
29 Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo a um mercado único de serviços digi-
tais – COM(2020) 825 final – 2020/0361 (COD) já aprovado em primeira leitura pelo Parlamento e com expecta-
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intermediários30 a usuários residentes na UE, ainda que não tenha estabelecimento nos
Estados-Integrantes.
O DAS reforça a obrigatoriedade do prestador de serviço, sem sede na UE, designar um
representante legal [pessoa singular ou coletiva], para se fazer fisicamente presente num
dos Estados-Membros [Art. 11], dotando-o de poderes para cumprir as ordens emanadas ao
abrigo do regulamento.
Em consonância, o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD)31, no seu Art.
27 c/c Art. 3.2, também elenca o dever dos responsáveis pelo tratamento32 [ou subcontra-
tante] de dados de titulares [pessoas físicas] residentes no território da União, a designa-
rem um representante num dos Estados-Membros, quando ali não estiverem sediados33,
independentemente do local onde os dados são tratados34.
Com idêntica previsão da obrigatoriedade de designação de representante legal, segue
a proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece normas harmoniza-
das aplicáveis à designação de representantes legais para efeitos de recolha de provas em processo
penal35, conforme previsão contida no Art. 3.236.
Assim, enquanto o DAS não entra em vigor e a proposta de diretiva supra não é aprovada,
alguns Estados-Membros, com fundamento no Art. 3.4. da Diretiva 2000/31/CE, tem esta-
tiva de entrar em vigor no ano de 2024.
30 No Art. 2.º, “f”, do aludido diploma legal, define-se serviço intermediário como: “um serviço de ‘simples transporte’
que consista na transmissão, através de uma rede de comunicações, de informações prestadas por um destina-
tário do serviço ou na concessão de acesso a uma rede de comunicações, – um serviço de ‘armazenagem tem-
porária’ que consista na transmissão, através de uma rede de comunicações, de informações prestadas por um
destinatário do serviço, que envolva a armazenagem automática, intermédia e temporária dessas informações,
apenas com o objetivo de tornar mais eficaz a transmissão posterior das informações a outros destinatários,
a pedido destes, – um serviço de ‘armazenagem em servidor’ que consista na armazenagem de informações
prestadas por um destinatário do serviço a pedido do mesmo;”.
31 Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das
pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados.
32 O Art. 4.2 do RGPD define tratamento como: “[...] uma operação ou um conjunto de operações efetuadas so-
bre dados pessoais ou sobre conjuntos de dados pessoais, por meios automatizados ou não automatizados, tais
como a recolha, o registo, a organização, a estruturação, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação,
a consulta, a utilização, a divulgação por transmissão, difusão ou qualquer outra forma de disponibilização, a
comparação ou interconexão, a limitação, o apagamento ou a destruição;”.
33 Nos termos do Art. 3.2 do RGPD, a obrigação de designar representante, somente ocorre quando a atividade de
tratamento tenha relação com: “a) A oferta de bens ou serviços a esses titulares de dados na União, indepen-
dentemente da exigência de os titulares dos dados procederem a um pagamento; b) O controlo do seu com-
portamento, desde que esse comportamento tenha lugar na União.” Estão excluídas da obrigação as situações
constantes nos itens “a” a “d” do Art. 2.2 do RGPD.
34 Art. 3.1. do RGPD.
35 COM(2018)226final – 2018/0107 (COD).
36 Art. 3.2 do RGPD: “No caso dos prestadores de serviços que não se encontram estabelecidos na União, os Esta-
dos-Membros devem garantir que aqueles que operarem nos respetivos territórios designam, pelo menos, um
representante legal na União, para receber e dar cumprimento a decisões e ordens emitidas por autoridades
competentes dos Estados-Membros, para efeitos de recolha de provas em processo penal. O representante legal
deve residir ou estar estabelecido num dos Estados-Membros em que o prestador de serviços opera.
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belecido a obrigação das plataformas designarem representante legal em seu território,
bem como outras medidas coercitivas37.
Imperioso mencionar, por fim, a proposta de regulamento do Parlamento Europeu e do Con-
selho relativo às ordens europeias de entrega e conservação de provas eletrônicas em matéria penal38
(eEvidence), a qual, na esteira da Cloud Act americana, oferece aos Estados-Membros da UE,
uma alternativa diversa do MLA.
Na realidade, essa proposta, juntamente com a proposta de diretiva que obriga a desig-
nação de representantes legais para efeitos de recolha de provas em processo penal acima comen-
tada, faz parte de um pacote legislativo que implementa dois instrumentos expeditos e
simplificados para a colheita direta de provas eletrônicas pelas autoridades encarregadas
da persecução penal: a Ordem Europeia de Entrega de Provas (OEEP) e a Ordem Europeia de
Conservação de Provas (OECP)39.
A OEEP abarca os dados de assinante, de acesso, transacional e de conteúdo40, sendo que
os últimos dois dispõem de condições e garantias acentuadas, uma vez que o Parlamento
Europeu escalona o grau de afetação dos direitos fundamentais frente a cada uma das
espécies41.
6. Parâmetros comuns
A obtenção de provas eletrônicas para fins de investigação criminal é preocupação pre-
sente há várias décadas na comunidade internacional. Mas a demanda crescente, fluidez
e imprescindibilidade de acesso em tempo útil42, tem exercido forte pressão nos sistemas
37 Caso da Alemanha, que no §5.º n.º 2 da Netzwerkdurchsetzungsgesetz [NetzDG] prevê que os provedores de redes
sociais devem nomear um destinatário autorizado a receber e responder pedidos de informações emitidos pelas
autoridades criminais nacionais.
38 COM(2018) 225 final – 2018/0108 (COD).
39 Vide: E-evidence – cross-border access to electronic evidence: improving cross-border access to electronic evidence.
40 A definição de cada espécie de dados está prevista no Art. 2.º, itens “7” a “10”.
41 Conforme explicita o “Considerando 23” da Proposta de Regulamento referida. Por exemplo, as ordens para
produzir dados de assinantes e dados de acesso podem ser emitidas para qualquer infração penal, enquanto os
dados transacionais e de conteúdo exigem que o crime tenha pena máxima igual ou superior a 3 (três) anos ou
digam respeito aos seguintes crimes graves: (a) terrorismo (Diretiva 2017/541/UE); (b) fraude e a falsificação de
meios de pagamento que não em numerário (Diretiva 2019/713/UE); (c) combate ao abuso e à exploração sexual
de crianças e à pornografia infantil (Diretiva 2011/93/UE) e; (d) ataques contra os sistemas de informação (Dire-
tiva 2013/40/UE).
42 As provas eletrônicas, como é sabido, são voláteis e podem facilmente ser alteradas e eliminadas. O cenário se
agravou após o julgamento do caso Digital Rights Ireland (Acórdão de 8 de abril de 2014, proc. C-293/12 e C-594/12),
ocasião que o TJUE invalidou a Diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março
de 2006, afastando a obrigação dos prestadores de serviço armazenarem os dados eletrônicos por um período
mínimo.
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de justiça criminal domésticos, especialmente porque o caminho da cooperação jurídica
mútua tem se mostrado anacrônico.
A necessidade premente, obstaculizada pelo armazenamento de dados em nuvem,
com data centers situados em território estrangeiro e estratagemas societários que cindem
as funções de uma pessoa jurídica prestadora de serviços, por meio de subsidiárias, tem
levado a uma reação dos Estados quanto a artificial maneira de definir o território compe-
tente, em evidente prejuízo a soberania e a jurisdição43.
A coletânea de instrumentos jurídicos trazidos à lume, é exemplo disso. A Conven-
ção de Budapeste e os EUA, por meio do Cloud Act, assentam que a jurisdição das partes
e a americana, respectivamente, não são afetadas pelo local de armazenamento de dados
eletrônicos. Na mesma toada, a Diretiva 2000/31/CE, no seu Art. 3.4, já permitia que os
Estados-Membros obtivessem provas eletrônicas independentemente do local onde estão
armazenadas, culminando, recentemente, com a expressa previsão do eEvidence44.
Outra solução engendrada na UE, conforme relatado, tem a ver com a obrigatoriedade
dos prestadores de serviço, que atuam no território dos seus integrantes,45 designar um
representante legal num dos Estados-Membros46. É assim no RGPD, no DAS e na proposta
de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece normas harmonizadas aplicáveis à
designação de representantes legais para efeitos de recolha de provas em processo penal.
Em comum, os Estados-Membros da UE e os EUA, para não verem sacrificado o direito
fundamental à segurança47, enveredaram por buscar diretamente, junto aos prestadores
de serviço, as provas digitais relativas aos crimes que são competentes para investigar48.
43 Ramos (2016) chama de Direito Transnacional anárquico a estimulação mecânica e falsamente neutra promovida
pelos agentes econômicos privados, visando manipular os elementos de conexão ou de fixação da jurisdição
tradicionais do Direito Internacional Privado a fim de proteger seus interesses. Como exemplo, cita o armazena-
mento de dados em território da preferência da empresa (forum shopping) e a criação de subsidiárias nos países
onde presta serviço.
44 “[...] a aplicação do presente regulamento não deverá depender da localização efetiva do estabelecimento do
prestador ou da instalação de tratamento ou armazenamento dos dados em causa.” (Considerando 17).
45 Para caracterizar a prestação de serviço no Estado-Membro, exige-se uma ligação substancial que, além da pos-
sibilidade de as pessoas utilizarem o serviço, envolve a orientação das atividades a um dos membros da UE, tais
como: utilização do idioma, moeda; publicidade local ou na língua do local; uso de extensão de um dos Estados-
-Membros (ccTLD).
46 A presença de um representante legal na UE resolve os problemas relacionados à execução, vez que eles ficam
vinculados à sua legislação e, na hipótese de descumprimento, podem ser penalizados.
47 Acerca da importância deste direito fundamental, Valente (2012, p. 80) ensina: “A extensibilidade conceptual da
topologia segurança significa a subordinação a uma topologia valorativa real de construção cognitiva epistemo-
lógica e axiológica como bem vital (mas não absoluto) de toda a comunidade (nacional e supranacional). Uma
comunidade desprovida de segurança é uma comunidade desguarnecida de desenvolvimento e de crescimento
do ser humano.
48 A fortiori porque podem ser acessados de qualquer lugar, o que leva Daskal (2015) a apontar que os dados armaze-
nados nas nuvens são tratados como a-territoriais.
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Destarte, nas situações em que os dados eletrônicos circunscritos a nacionais [mem-
bros no caso da UE] e residentes suspeitos da prática de crime em determinado país, o fato
de as provas estarem armazenadas em outro território não tem o condão de impedir sua
obtenção direta pelas autoridades competentes.
Paradoxalmente, a UE e os EUA refutam a aplicação de idêntico raciocínio para países
terceiros. No caso dos EUA, caso outro Estado queira acessar dados de conteúdo armazenado
em seu território ou de prestadores sujeitos a sua jurisdição, o caminho apontado é firmar
um acordo executivo. A UE, por sua vez, indica o MLA para a obtenção de qualquer espécie
de dado49. Não importa sequer que se trate de caso exclusivamente doméstico, no qual o pres-
tador de serviço atua no Estado requerente e os dados tenham sido ali coletados, tratados
ou recebidos.
O abuso de direito da UE e dos EUA neste ponto é manifesto, ainda que com maior
ênfase para a primeira50. Embora assentem possuírem jurisdição para requisitar direta-
mente provas eletrônicas nas situações supra, constrangem os prestadores de serviço a
não aceitarem requisições idênticas de países terceiros. Quer dizer, sem qualquer vínculo
com o dado [salvo o armazenamento em seu território] ou com o crime investigado, ani-
quilam o direito fundamental à segurança51 e a soberania territorial de outros países na
aplicação das regras penais52, caracterizando o que se convencionou chamar de guarda-
-chuva sueco53, em alusão a um foro exorbitante que se afasta da ideia de acesso à Justiça.
49 Notadamente após a decisão do Caso Schrems II (Privacy Shield) (Processo n.º C-311/18 do TJUE), a doutrina tem
afirmado que a UE vem se aproximando dos modelos autoritários da Rússia e China, assumindo, disfarçada-
mente, uma política de localização de dados ao bradar que os dados europeus devem permanecer na Europa.
Concretamente, depois do julgamento do Caso Schrems II, a Autoridade de Proteção de Dados de Berlim emitiu
uma declaração solicitando aos provedores de serviços sediados em Berlim, que armazenam dados pessoais nos
EUA, para transferir os mesmos para a Europa e parar de transferir dados para os EUA até que o quadro jurídico
seja reformado (ABRAHA, 2021).
50 No caso dos EUA a limitação diz respeito apenas a dados de conteúdo que podem ser obtidos, sem a necessidade de
MLA caso seja firmado um acordo executivo. Contudo, dados de nacionais e residentes americanos não podem
ser obtidos diretamente em nenhuma hipótese. A recíproca não é verdadeira.
51 A UE, no Considerando 8 da eEvidence, manifesta plena consciência disso: “[...] a obtenção de provas eletrônicas
através dos canais de cooperação judiciária é muitas vezes morosa, levando mais tempo do que aquele durante o
qual os indícios poderão estar disponíveis.” (grifo nosso)
52 A UE igualmente tem consciência da obrigação positiva de implementar investigações criminais eficazes, sob
pena de violar o Art. 8.º da Convenção Europeia dos Direitos dos Homens/CEDH. Nesse sentido, consultar o
Guide on Article 8 of the European Convention on Human Rights. O Tribunal Europeu de Direitos do Homem (TEDH),
no caso KU v. Finlândia, reputou violado o Art. 8.º do CEDH, devido à falta de um quadro legislativo adequado
apto a proteger a vítima e fornecer uma resposta efetiva da justiça criminal, uma vez que ao atribuir primazia
absoluta a privacidade e a proteção de dados, ressentiu-se de meios aptos a descoberta da autoria delitiva.
53 Em alusão ao Capítulo 10, Seção 3, do Código de Processo Judicial da Suécia que prevê que uma pessoa poderá
ser demandada no país se possuir qualquer bem móvel ou imóvel lá situado. A partir daí, é jocosamente dito que
se um estrangeiro esquecer um guarda-chuva no aeroporto de Estocolmo, poderá ser julgado pelas Cortes locais
em demanda de cobrança, ainda que a obrigação e o credor não tenham qualquer vínculo com o país.
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Portanto, as balizas que a UE e os EUA adotam para si nesta matéria, deve servir, sem
distinções, para todos os demais países, inclusive o Brasil54. Isso se traduz em dar primazia
ao princípio da territorialidade objetiva55 na definição do território competente para requi-
sição direta de provas digitais, salvaguardando a jurisdição e a soberania do país onde o
prestador de serviços participa da economia local e dirige ativa e voluntariamente suas
atividades econômicas para os consumidores locais56.
7. Conclusão
À luz dos desafios discutidos acima, compreende-se que as investigações criminais domés-
ticas eficazes geralmente dependem de o país investigador ter autoridade sob a legislação
interna para obter dados eletrônicos que os prestadores de serviços, sujeitos à sua jurisdi-
ção, possuem, inclusive fora de suas fronteiras, desde que relacionadas com seus nacionais
e residentes.
Destarte, o aparente conflito de jurisdição na produção probatória é solucionado ao
afastar o fictício vínculo criado com o país estrangeiro, decorrente de estratégia empresa-
rial deturpadora dos instrumentos do Direito Internacional Privado.
Assim sendo, a realidade deve se sobrepor as manipulações, a fim de reconhecer os
efetivos elementos de conexão e a maior proximidade jurídica incidentes no caso concreto. Do
contrário, por via transversa, a fixação ou afastamento da soberania de um país estaria
ao talante de entidade empresarial que esgarça os limites da autonomia da vontade, ofen-
dendo a ordem jurídica interna, em detrimento insuportável do direito fundamental à
segurança e a justiça.
A par disso, o critério de jurisdição alicerçado exclusivamente no local de armazena-
mento dos dados, consoante aludido, esbarra em questão de ordem operacional inerente
a computação em nuvem, haja vista que, neste modelo, é praxe sejam os dados particio-
nados em data centers localizados em países distintos e migrem constantemente entre
eles. De mais, o dado eletrônico perseguido, regra geral, foi coletado ou recebido no Estado
requente e dele pode ser acessado pelo prestador de serviço.
54 O Supremo Tribunal Federal irá julgar a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) n.º 51 onde, por via
transversa, entidade que congrega empresas de tecnologia de informação, quer ver declarado o MLA como fer-
ramenta necessária, nos casos de armazenamento extraterritorial, para obtenção de dados de conteúdo. Algo que,
conforme verificado, segue na contramão das movimentações da UE e dos EUA.
55 Vide a respeito, acórdão da Suprema Corte da Bélgica (Cour de Cassation), de 1 de dezembro de 2015, que obrigou
o Yahoo! a fornecer dados eletrônicos em investigação criminal, vez que presente o princípio da territorialidade
objetiva ante a utilização de domínio “be”, idioma local, pop-up com anúncios com base em geolocalização, serviço
de atendimento ao cliente direcionado aos usuários belgas etc.
56 Ver nota 44.
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Justamente pelo exposto, as providências da UE e dos EUA ligadas ao legítimo inte-
resse de possuírem instrumentos que propiciem o acesso, em tempo hábil, às provas ele-
trônicas indispensáveis a uma investigação eficaz, garantindo o direito fundamental à
segurança e a justiça numa sociedade democrática e, em última medida, o respeito aos
Direitos do Homem – gravados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (Art. 3.º);
Convenção Europeia dos Direitos dos Homens (Art. 8.º) e na Convenção Americana sobre
Direitos Humanos (Art. 7.º) – deve ser reconhecido aos demais Estados, sob pena de incor-
rerem em abuso de direito.
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Aquisição de provas criminais eletrônicas no Brasil à luz da Convenção de Budapeste, do Cloud Act…
Acquisition of electronic criminal evidence in Brazil in the light of the Budapest Convention, the Cloud Act…
WILSON ANTONIO PAESE SEGUNDO
GALILEU · e-ISSN 2184-1845 · Volume XXIII · Issue Fascículo 1-2 · 1st January Janeiro – 31st December Dezembro 2022 · pp. 63-79
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GALILEU · e-ISSN 2184-1845 · Volume XXIII · Issue Fascículo 1-2 · 1st January Janeiro – 31st December Dezembro 2022 · pp. 81-92 81
A Perda Alargada e a sua (in)
constitucionalidade1
Extended forfeiture and its (un)constitutionality
JOÃO JAIME CARDEIRA JORGE
joaocardeirajorge@gmail.com
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXII · 1st January Janeiro–31ST December Dezembro 2022 · pp.81‑92
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXIII.1/2.5
Submitted on September 13th, 2022 · Accepted on September 25th, 2022
Submetido em 13 de Setembro, 2022 · Aceite a 23 de Setembro, 2022
RESUMO A criminalidade organizada é um maleficio que os Estados não podem ignorar
ou menosprezar, sendo imperioso assumir a necessidade de novas medidas dotadas de
eficácia para o combate a um fenómeno criminógeno que alastra e mina os próprios
alicerces sociais, colocando em causa as instituições e mesmo os fundamentos do contrato
social. Porém, tais medidas devem ser precedidas de reflexão, não só quanto à sua real
eficiência como também quanto à sua validade e respeito aos valores basilares de um
Estado de Direito democrático, prevenindo um dano irremediável à legitimidade do ius
imperium. A perda alargada assume-se como o maior símbolo da problemática, sendo
inevitável procurar resposta a duas questões. Fomos longe demais? Até onde estamos
dispostos a ir?
PALAVR ASCHAVE Confisco, Perda Alargada, Constitucional, Criminalidade Organizada,
Cooperação Judiciária Internacional
ABSTRACT Organized crime is an evil that States cannot ignore or underestimate,
making it imperative to acknowledge the necessity for new measures equipped with
efficacy to combat a criminogenic phenomenon, which spreads and undermines the very
foundations of society, placing in jeopardy its institutions and even the bedrock of the
social contract. However, such measures must be preceded by reflection, not only as to its
real efficiency but also as to its validity and respect for the basis of values of a democratic
1 Este artigo corresponde ao trabalho apresentado na Unidade Curricular de «Seminário de Investigação: Direito
penal Económico», ministrada pelo Professor Doutor Manuel Monteiro Guedes Valente, no âmbito do Mestrado
em Direito – Ciências Jurídico-Criminais. O estudo foi desenvolvido no âmbito do Projeto de I&D: Corpus Delicti
– Estudos de Criminalidade Organizada Transnacional, sediado no Ratio Legis – Centro de Investigação e Desen-
volvimento em Ciências Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa.
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A Perda Alargada e a sua (in)constitucionalidade
Extended forfeiture and its (un)constitutionality
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state of law, preventing an irreparable damage to the legitimacy of its ius imperium. The
extended forfeiture represents this problematic’s biggest symbol, being inevitable not to
seek the answer to two questions. Have we gone too far? How far are we willing to go?
KEYWORDS Confiscation, Extended Forfeiture, Constitutional, Organized Crime,
International Judiciary Cooperation
SUMÁRIO Introdução; 1. Vexata quaestio; 2. Auctoritas, non veritas facit legem; 3. Exitus acta
probat; Conclusão.
Introdução
A inovação chegou. Os terrores foram esquecidos, os abusos ficaram nas páginas dos
empoeirados livros de história, as palavras na Constituição dão-nos respaldo e tran-
quilidade. O cidadão vive num eterno estado de ultraje manufaturado, potenciado pela
«media», pelos «especialistas» entrevistados, mestres no argumentum ad captandum, diri-
gido à impunidade do «outro», do criminoso, do inimigo.
«Nós» nunca cometeríamos um crime. Além disso, o selvagem poder estadual es
hodiernamente, numa idade iluminada como a nossa, cerceado. Afinal temos os famosos
«checks & balances» e os nossos direitos, os dos cidadãos «de bem», estão a salvo. O confisco,
onde “os abusos, os arbítrios, as prepotências do poder absoluto” não poderão existir, entra
em conflito com o sistema político-constitucional vigente, pois estamos “num Estado de
Direito democrático, onde os diferentes poderes se controlam mutuamente”, tendo-se este
transformado num “mecanismo essencial à defesa da manutenção do próprio Estado”2.
Acima de tudo é necessário agir num esforço de cooperação internacional. A política
criminal está num processo de “desnacionalização” estando em curso uma “regionaliza-
ção político-criminal”, pois os “sistemas penais, individualmente considerados, são inope-
rantes”3 no ‘combate’ à «besta diabólica», a omnipresente criminalidade transnacional,
emergente nesta sociedade globalizada.
Porém, esta ameaça global aparece ligada a uma crise quanto aos “limites funcionais
tradicionais do Direito Penal”, com uma ligação umbilical a um “plano de legitimidade e
eficácia supranacional das soluções penais”4. Vozes levantam-se alertando como a “sis-
temática filosófico-política-constitucional e matemática jurídica” da União Europeia se
2 CORREIA, João Conde – Balanço do Projecto e Perspectivas de Evolução. Recuperação de Activos; Projecto Fenix. Lis-
boa: Procuradoria-Geral da República. 2012. p. 403.
3 RODRIGUES, Anabela Miranda – Política criminal: novos desafios, velhos rumos. Lusíada Direito. N.º 3 (2005).
p.27.
4 PALMA, Maria Fernanda – Sessão de Abertura; Internacionalização do Direito Penal. In: Direito Penal Internacional,
TPI e a Perspetiva da África de Língua Oficial Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 2015. p. 27.
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A Perda Alargada e a sua (in)constitucionalidade
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revela pró-securitária5, com “carácter “prioritariamente repressivo”, colocando a segu-
rança acima da liberdade6.
A perda alargada de bens, prevista na Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, é terreno fértil
para o escrutínio à validade destes alertas e quanto à dicotomia eficácia-direitos funda-
mentais. Estará esta lei ferida de inconstitucionalidade material, ofendendo o princípio
da presunção da inocência e operando ao mesmo tempo uma inaceitável inversão do ónus
da prova? Ou “continuamos (apaticamente) presos a conceções anquilosadas, que só uma
verdadeira rotura cultural poderá superar7?
Que os jogos comecem!
1. Vexata Quaestio
A Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 3 de abril de 2014 foi trans-
posta para o ordenamento jurídico nacional pela Lei n.º 30/2017, de 30 de maio, alterando
esta, designadamente, a Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, objeto do nosso estudo, que estabe-
lece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira. Alterada, também,
foi a Lei n.º 45/2011, de 24 de junho, referente ao Gabinete de Recuperação de Ativos.
O artigo 7.º, n.º 1 da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, consagra uma presunção, ilidível,
de que em caso de condenação por um crime, previsto no catálogo constante do artigo
1.º, já transitada em julgado, considera-se “constituir vantagem de atividade criminosa a
diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu
rendimento lícito”, no espaço de 5 anos a contar desde a data da sua constituição como
arguido, ex vi do n.º 2 do mesmo artigo. Será ónus do arguido ilidir a presunção, juris tan-
tum, ex vi do art.º 350.º, n.º 2 do CC, provando a licitude da proveniência do seu património,
como estabelece o art.º 9.º, também da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro.
O princípio da presunção da inocência encontra-se plasmado no n.º 2 do art.º 32.º da
CRP e no art.º 6.º, n.º 2 da CEDH – “Todo o arguido se presume inocente até ao tnsito
em julgado da sentença de condenação” –, sendo configurável que tal imperativo consti-
tucional colida com uma presunção «automática» de que o património incongruente do
arguido tem origem na prática de um ou mais crimes, os quais não são, nem precisam de
ser, sequer determinados pelo MP, muito menos provados.
5 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Da Perda de Bens e de Direitos no Direito Penal e Processual Penal em
Portugal: As Controvérsias de um Regime em “Apuração”. In TEIXEIRA, Adriano (org.); Et al. – Perda das Vantagens
do Crime no Direito Penal: Confisco Alargado e Confisco Sem Condenação. São Paulo, SP: Marcial Pons. 2020. p. 41.
6 RODRIGUES, Anabela Miranda – Política criminal: novos desafios… Lusíada Direito. p. 29.
7 CORREIA, João Conde; RODRIGUES, Hélio Rigor – Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de
01-12-2014, proferido no processo 218/11.0GACBC.G1 (pedido de indemnização e confisco). Julgar Online. 2015. p. 07.
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Germano Marques da Silva dá nota do valor de reação deste princípio “contra os abusos
do passado mais ou menos próximo”, tendo reflexos, não num instituto em particular, mas
sim tendo “consequências para toda a estrutura do processo penal”. Todo o acusado terá o
direito de exigir prova da sua culpabilidade8.
Ao ilidir a presunção, o arguido terá inevitavelmente de produzir prova da licitude
da origem do património, sugerindo-se a existência de uma possível inversão do ónus da
prova. Este colocará sob pressão o direito ao silêncio do arguido, consagrado no art.º 32,
n.º 1 da CRP e plasmado na alínea d) do n.º 1 do art.º 61.º do CPP, ameaçando o princípio
nemo tenetur se ipsum accusare e cobrindo de dúvida a anuência à matriz da estrutura acusa-
tória do processo penal, consagrada na lex fundamentalis no art.º 32, n.º 5.
No espectro oposto, caso o arguido não se disponha a provar essa licitude, sendo que a
perda alargada se inicia com um arresto preventivo, do património incongruente, nos ter-
mos do art.º 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, que se pode iniciar “a todo o tempo logo
que apurado o montante da incongruência” e que, em regra e para evitar a delapidação, será
decretado antes do início do julgamento do processo penal referente a um dos crimes presen-
tes no suprarreferido catálogo, podendo até acontecer antes sequer da liquidação em casos
de periculum in mora, parece credível que essa inabilidade ou impossibilidade possa, ou tenha
o potencial de macular a sua presunção de inocência no processo em curso. Não obstante
esse «silêncio» não provar a ilicitude e que seja abjeto que o silêncio do arguido o prejudique
num Estado de Direito material, ex vi do art.º 343.º, n.º 1 e 345, n.º 1, ambos do CPP, os dois
processos correm lado a lado, em respeito ao princípio da suficiência, art.º 7.º, n.º 1 do CPP,
sendo o arresto enxertado no processo penal e, no fim de tudo, o julgador um ser humano.
2. Auctoritas, non veritas facit legem
A espada que corta este nó górdio será a natureza jurídica do instituto da perda alargada.
Não sendo “levada em conta a gravidade do facto nem a culpa nem a perigosidade pessoal
do agente” sendo a sua ratio o “restabelecimento da ordem jurídica violada através da pro-
moção de uma ordenação dos bens adequada ao Direito”, não se lhe inserindo qualquer
uma das finalidades da pena ou punição ao agente, nem sendo dirigido a apurar qualquer
responsabilidade penal deste, para Duarte Rodrigues Nunes, o confisco alargado “consti-
tui uma medida administrativa sui generis”9.
8 SILVA, Germano Marques da – Curso de Processo Penal, Vol. I. 4ª Edição. Lisboa/São Paulo: Verbo 2000. p. 82.
9 NUNES, Duarte Rodrigues – A incongruência do património no confisco “alargado” de vantagens provenientes
da prática de crimes. In CORREIA, João Conde; Et al.Recuperação de Ativos. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários.
2021. p. 21.
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Pedro Caeiro afasta, igualmente, o confisco alargado de uma “reacção penal” em vir-
tude de não carecer da alise da culpa nem ter como causa “um facto (típico, ilícito e
culposo) punível, mas sim um património incongruente acoplado a indícios da prática de
certos crimes”. Há, para este autor “ausência de um facto” para além de que sendo vista
como uma reação sancionatória “extra-processo” a um comportamento criminoso, estar-
-se-ia na perda alargada a “violar clamorosamente a presunção de inocência”10.
O mesmo entendimento partilha o Tribunal Constitucional nos acórdãos n.º 101/2015,
n.º 392/2015 e n.º 476/2015, onde se pronunciou pela constitucionalidade dos “artigos 7.º, 8.º
e 9.º da Lei n.º 5/2002, interpretados com o sentido de impor a um cidadão o ónus de provar
a origem lícita do seu património”.
Debruçamo-nos sobre o acórdão n.º 392/2015, o mais complexo e ao mesmo tempo
esclarecedor. Novamente, considera-se que “não está em causa a imputação ao arguido da
prática de qualquer crime e o consequente sancionamento” mesmo que a perda alargada
seja enxertada no processo penal. Na determinação da incongruência e na perda não há
como base “um concreto juízo de censura ou de culpabilidade em termos ético-jurídicos”
nem sequer um “concreto perigo daqueles ganhos servirem para a prática de futuros cri-
mes”.
A imputação de um dos crimes presentes no catálogo da Lei é apenas um “pressuposto
indiciador” da possibilidade da existência de um património decorrente de atividade
ilícita, demonstrado ainda pela incongruência com os rendimentos lícitos do arguido.
Aperda alargada não se refere especificamente a produtos e/ou vantagens destes crimes
do catálogo. Dirige-se sim ao património incongruente, presumivelmente oriundo de ilí-
citos, cuja identificação por parte do MP não é necessária, aproximando-se de uma ficção
jurídica.
Entende-se, em suma, que “a presunção de proveniência ilícita de determinados bens
e a sua eventual perda em favor do Estado não é uma reação pelo facto de o arguido ter
cometido um qualquer ato criminoso”. Como tal, neste procedimento de perda alargada
não se aplicam as garantias constitucionais: v. g., o princípio da presunção da inocência ou
o direito ao silêncio do arguido.
Quanto ao processo criminal por um dos crimes do catálogo, estas garantias mantêm-
-se não vendo o Tribunal Constitucional como “exista um perigo real daquela presunção
(…) contaminar a produção de prova” relativamente a este, sendo também impossível des-
10 CAEIRO, Pedro – Sentido e função do instituto da perda de vantagens relacionadas com o crime no confronto
com outros meios de prevenção da criminalidade reditícia (em especial, os procedimentos de confisco in rem e
a criminalização do enriquecimento ‘ilícito’). Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Ano 21, N.º 2. (abr.-jun. 2011),
pp. 310-311.
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cortinar como ao provar a origem lícita do património o arguido se possa autoincriminar
em relação ao ilícito criminal que lhe foi imputado.
A presunção de inocência continua a ser escrupulosamente respeitada no processo
penal, sendo necessário produzir a prova do thema probandum para assegurar a condena-
ção, conditio sine qua non para a perda alargada. De tudo isto resulta a manutenção da estru-
tura acusatória do processo.
Nega-se a existência de um “ónus excessivo para o condenado”, pois este poderá subs-
tituir a prova da licitude do património pela prova de que os bens incongruentes estavam
na sua posse há mais do que 5 anos desde a sua constituição como arguido. Além disso,
sendo o processo enxertado no processo criminal terá a possibilidade de “utilizar qualquer
meio de prova válido em processo penal, não estando sujeito às limitações probatórias que
existem, por exemplo, no processo civil ou administrativo” tendo o tribunal em atenção
toda a prova produzida no processo criminal “donde possa resultar ilidida a presunção”.
Adianta, ainda, o Tribunal Constitucional que é o arguido que se encontra na melhor
posição para “investigar, explicar e provar” a origem dos bens, como acontece nas presun-
ções legais em que a prova se apresenta “particularmente gravosa ou difícil para uma das
partes”11. O arguido passa ou tem de passar a ser um colaborador da investigação e carrear
para o processo as provas da licitude ou da integração do património há mais de 5 anos dos
bens arrestados.
Acrescentando Duarte Rodrigues Nunes que colocando o ónus da prova no MP este
tornar-se-ia numa “diabolica probatio” além de que exigir qualquer “prova da relação entre
o crime pressuposto e o património do arguido” foi exatamente o que se pretendeu afastar
com este regime legal.
O princípio in dúbio pro reo estipula que, em situações em que os “limites do conhe-
cimento humano” tornem impossível ultrapassar a dúvida, o non liquet deve “ser sempre
valorado a favor do arguido”, pois o contrário seria colocar o ónus da prova no arguido,
baseado na prévia admissão da sua responsabilidade, ou seja, o princípio contrário ao da
presunção de inocência”12. Infeliciter exigir tal pressuposto seria, para o autor, “obstáculos
praticamente intransponíveis” ao confisco alargado, colocando em grave perigo a resposta
à criminalidade organizada e económico-financeira13.
11 MARIANO, João Cura Relat. – Acórdão do Tribunal Constitucional com o n.º 392/2015, de 12 de agosto de 2015.
12 SILVA, Germano Marques da – Curso de Processo…. 4ª Edição. 2000. Vol. I. pp. 84-84.
13 NUNES, Duarte Rodrigues – A incongruência do património… 2021. pp. 27-28.
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3. Exitus acta probat
O Direito Penal encontra-se numa encruzilhada, ou, atrevendo-nos a adiantar, à beira do
precipício. É claro o desafio que a criminalidade organizada e económico-financeira coloca
ao Direito Penal. Revestida de um caráter transnacional, para a combater a “justiça não
pode ser a única entidade com fronteiras”, o que obriga a uma cooperação entre os vários
ordenamentos jurídicos na guerra a uma delinquência que “ameaça pôr em causa o pró-
prio Estado de direito”14.
A própria sociedade global clama por segurança e exige medidas. Os Estados, a juris-
prudência e (alguma) doutrina respondem com a combinação de “instrumentos e crité-
rios repressivos” e “instrumentos e critérios inovadores e modernos” criando um “direito
penal “de colarinho branco”, tecnocrático, de orientação pelos fins”15.
Privilegia-se a eficácia – o imediato, o resultado do momento e mediático –, a evolução
e apelida-se os detratores de «velhos do restelo», acusando a “praxis quotidiana” e juris-
prudência de olhar “para a norma com os olhos viciados do passado”16, elogiando o acervo
de legislação; mas o seu uso “claramente insuficiente, devendo essa falha envergonhar-
-nos a todos sem exceção”17. Pede-se uma mudança, uma formação que altere a cultura
no sentido de “intensificar o confisco e administrar os ativos recuperados segundo uma
lógica económica”18, permitindo “o maior confisco admissível no quadro de um Estado de
Direito”19, esgotando “toda a extensa margem de disponibilidade constitucional que nesta
matéria específica ainda existe”, ao mesmo tempo que se apresentam “propostas inovado-
ras”, as “non-conviction based confiscations, como a actio in rem, desvalorizando a “repulsa
instintiva”20. Esta será “mais emotiva do que racional”21 e aponta-se como através desta
ação de caráter civil ou administrativo as garantias constitucionais-penais como os prin-
cípios ne bis in idem, nemo tenetur se ipsum accusare, in dubio pro reo, e nulla poena sine culpa não
serão aplicadas, estando ausentes também “os agressivos meios probatórios processuais
penais”, sendo o processo-crime “célere, simples e eficaz” e “uma forma hábil de ultrapas-
14 CORREIA, João Conde – Reflexos da diretiva 2014/42/eu (do parlamento europeu e do conselho, de 3 de abril
de 2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na união europeia) no direito
português vigente. In CORREIA, João Conde; Et al. – Recuperação de Ativos. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários.
2021. pp. 65-66.
15 RODRIGUES, Anabela Miranda – Política criminal: novos desafios… Lusíada Direito. p. 19.
16 CORREIA, João Conde – «Non-conviction based confiscations» no Direito penal português vigente: quem tem medo
do lobo mau?. Revista Julgar. N.º 32. (ago. 2017). pp. 87-88.
17 CORREIA, João Conde – Reflexos da diretiva 2014/42/eu… Recuperação de Ativos, p. 68.
18 CORREIA, João Conde – Balanço do Projecto... Recuperação de Activos; Projecto Fenix, p. 403.
19 CORREIA, João Conde – Anotação ao Acordão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de outubro de 2014 (o arresto
preventivo dos instrumentos e dos produtos do crime).. Julgar Online. 2014. p. 15.
20 CORREIA, João Conde – «Non-conviction based confiscations»… Revista Julgar. pp. 71-72.
21 CORREIA, João Conde – Reflexos da diretiva 2014/42/eu… Recuperação de Ativos. p. 78.
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sar os constrangimentos do excesso de garantismo penal”22. Propaga-se a celeridade e a
eficácia do mediático e não se preservam os pilares de um Estado de direito democrático
assente na dignidade da pessoa humana e da vontade do povo que mais não é do que a
vontade – autodeterminação, autoafirmação e auto conformação – de cada cidadão.
Mas “a segurança não é infinita e os direitos, liberdades e garantias também não(!)”.
Guedes Valente sustenta que na prevenção e repressão desta criminalidade se colocaram
em campo “padrões de comportamentos e modelos padronizados” que obliteram, “negam
e niilificam” as garantias, a segurança, a coesão social e o equibrio na ordem jurídica de
um Estado democrático ancorado numa Constituição material. A pressão sobre os direitos
fundamentais do cidadão é efetuada numa ótica de eficácia, “assente no securativismo e
no justicialismo do sistema jurídico-criminal”23.
Anabela Miranda Rodrigues faz eco deste “conito garantia-eficácia”, dizendo que
nesta sociedade de risco, pós-moderna, onde floresce esta criminalidade transnacional,
económica, “duas forças contraditórias” estão em jogo, pedindo-se um paradoxo ao Direito
penal: que seja um “ordenamento de liberdade” e um “ordenamento de segurança”, que
limite o poder do Estado sobre os direitos do cidadão ao mesmo tempo que o amplia para
melhor proteção desses mesmos direitos24.
Se esse objetivo foi atingido na perda alargada, é, no mínimo, digno de debate. Para
Jorge Godinho, todavia, a resposta é definitivamente não, pois o «confisco “alargado” com
base em presunções e com inversão do ónus da prova incorre numa série de violações
do princípio da presunção de inocência: presume a existência dos pressupostos de que
depende a sua aplicação; distribui o ónus da prova ao arguido; suprime o direito ao silên-
cio; e resolve o non liquet contra o arguido»25.
Conclusão
Estamos perante um feito de «engenharia jurídica» digno de elogio quanto à astúcia,
mas de repúdio quanto à deslealdade e ofensa constitucional. Uma construção dogmá-
tica, pejada de «remendos», subterfúgios e uma hipocrisia base, num «faz-de-conta» que
22 CORREIA, João Conde – «Non-conviction based confiscations»… Revista Julgar. p. 78.
23 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Processual Penal; Da Sociedade Internético-Personocêntrica. Lisboa.:
Manuel Monteiro Guedes Valente. 2020. pp. 10-11.
24 RODRIGUES, Anabela Miranda – Política criminal: novos desafios… Lusíada Direito. p. 30.
25 GODINHO, Jorge – Brandos costumes? O confisco penal com base na inversão do ónus da prova (Lei n.º 5/2002,
de 11 de Janeiro, artigos 1.º e 7.º a 12.º) In Almeida, Sebastião; Et al. – Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias.
Coimbra: Coimbra Editora. 2003. p. 1359.
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A Perda Alargada e a sua (in)constitucionalidade
Extended forfeiture and its (un)constitutionality
JOÃO JAIME CARDEIRA JORGE
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almeja perpetuar um inexistente respeito à lex fundamentalis e justificar uma inversão do
ónus probatório injustificável.
Não se creia que os riscos que Montesquieu, Beccaria e Jeremy Bentham denunciavam
já não existem: o “confisco num Estado absoluto, que não conhece quaisquer limites, é
muito diferente do confisco num Estado de Direito democrático”26. Os temores são exage-
rados, dizem, enquanto as fundações do Estado de Direito e o Direito penal e processual
penal como travões ao ius puniendi são desgastadas, como uma erosão hídrica, lenta e sem
se dar conta.
Lembremos Kafka e K. que, ao ver os agentes da autoridade, após o acusarem de um
crime, recusando-se, porém, a informá-lo de que crime era suspeito, a examinarem os seus
pertences, dizendo-lhe que guardariam a sua roupa, mas “lha restituiriam se o seu caso
viesse a ter um desfeito feliz”, se interrogava: anal “K. vivia num Estado que assentava no
Direito. A paz reinava por todo o lado! Todas as leis estavam em vigor; quem eram, pois, os
intrusos que ousavam cair-lhe em cima no seu próprio domicílio?27.
Timeo Danaos et dona ferentes.
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26 CORREIA, João Conde – Balanço do Projecto... Recuperação de Activos; Projecto Fenix, p. 403.
27 KAFKA, Franz – O Processo. (1925) Tradução Gervásio Álvaro, Lisboa: Abril/Controljornal. 2000. pp. 7-8
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A Perda Alargada e a sua (in)constitucionalidade
Extended forfeiture and its (un)constitutionality
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O impacto da (in)gestão do planeamento
doterritório nas metrópoles
As cidades e os imigrantes: o caso de Lisboa
e dos enclaves urbanísticos
The impact of the (non)management of the territory planning
inmetropolises
Cities and immigrants: the Lisbon case and its’ urban enclaves
MARIA JOÃO GUIA
maria.joao.guia@ij.uc.pt
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXII · 1st January Janeiro–31ST December Dezembro 2022 · pp.93‑105
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXIII.1/2.6
Submitted on December 2nd, 2022 · Accepted on December 14th, 2022
Submetido em 2 de Dezembro, 2022 · Aceite a 14 de Dezembro, 2022
SUMÁRIO Introdução; 1. Breve introdução ao Direito do Ordenamento do Território; 2. A
obrigação positiva do Estado de implementar medidas que promovam a igualdade de acesso
aos espaços urbanos; 3. As capitais, as periferias e os imigrantes; 4. A complexificação do
Alojamento Local na cidade de Lisboa e a consequente estigmatização das zonas espaciais
urbanas periféricas; 5. Conclusões
PALAVR ASCHAVE Planeamento do Território; Imigração; Guetos e enclaves; Segregação
Urbana; Desigualdade Social; Urbanismo
SUMMARY Introduction; 1. Brief introduction to the Land Planning Law; 2. The State’s
positive obligation to implement measures that promote equal access to urban spaces;
3. The capitals, peripheries and immigrants; 4. The complexification of the Local
Accommodation in the city of Lisbon and the consequent stigmatization of the peripheral
urban spatial areas; 5. Conclusions.
KEYWORDS Territorial Planning; Immigration; Ghettos and enclaves; Urban Segregation;
Social inequality; Urbanism.
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O impacto da (in)gestão do planeamento doterritório nas metrópoles
The impact of the (non)management of the territory planning inmetropolises
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INTRODUÇÃO
A forma como a sociedade se encontra organizada sofre alterações sucessivas, fruto das
transformações históricas, do avanço de mentalidades e da evolução do pensamento nos
seus variados paradigmas. De qualquer forma, grande parte das sociedades atuais ainda
encontra no Direito o standard da organização, regulação e até de sobrevivência dos cida-
dãos e da manutenção da ordem: ubi societas, ibi juris. O Direito funciona assim como uma
alavanca para dirimir conflitos, restaurar a ordem em caso de transgressão, mas também
como apanágio da prevenção de (in)justiças, pelo que a sua atuação precoce e antecipada
ao fator “discórdia” é fundamental na regulação da paz social.
A questão do ordenamento do território assume, neste sentido, um papel de primor-
dial importância nas grandes cidades, não só na regulação e delimitação da localização
de espaços comuns e dos destinados a habitação, mas também e sobretudo, no planea-
mento antecipado, eficaz e estratégico das cidades e do confinamento de cada um dos seus
espaços. Não haveria qualquer dúvida para acreditar que a rentabilidade maximizada das
cidades e dos seus espaços beneficiariam do ordenamento precoce, não fora as sociedades
não obedecerem a uma evolução premeditada, lenta ou ordenada. Tenhamos consciência
de que as cidades, sobretudo as grandes metrópoles, podem crescer rápida, rebelde e desor-
ganizadamente desde os mais ínmos detalhes aos mais importantes espaços nucleares.
O crescimento desordenado das cidades, aliado com frequência ao aumento célere do
número de habitantes, sobretudo se estes forem imigrantes ou cidadãos de determinadas
etnias, tem vindo a estar, cada vez mais, associado a fenómenos de “segregação espacial
urbana (…) à constituição de guetos de ricos e guetos de pobres (…) à instabilidade social” e a
fenómenos ligados à “violência, marginalidade, delinquência” em contexto de desigual-
dade social (OLIVEIRA, 2012: 504 e nota 9 de rodapé).
Nesta breve reflexão, pretendo abordar modestamente esta problemática, procurando
levantar questões decorrentes da pergunta de partida que aqui me trouxe: “será que Lis-
boa tem ou efetivamente implementou algum programa de ordenamento do território que
prevenisse ou evitasse a proliferação de bairros da periferia considerados institucional-
mente Zonas Urbanas Sensíveis (GUIA e PEDROSO, 2016)?” O Direito, conforme o conhe-
cemos na sua atual configuração, é uma ferramenta efetiva no combate à proliferação
desordenada de espaços de segregação? Até que ponto é aceitável a intervenção do Direito,
operacionalizado a partir da mão do Estado, na designação dos espaços em que os cidadãos
devem ou não habitar? E essa atuação é respeitadora dos direitos fundamentais e da liber-
dade de escolha dos habitantes de cada zona?
Abordo, por isso, as questões do ordenamento do território, com especial enfoque no
caso português e na cidade de Lisboa, passando pela reflexão sobre os direitos fundamen-
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O impacto da (in)gestão do planeamento doterritório nas metrópoles
The impact of the (non)management of the territory planning inmetropolises
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tais, nomeadamente o direito à habitação,1 o direito à liberdade de escolha ou de beneficiar
de apoio estatal para habitar espaços condignos2 e o direito de não discriminação3, cul-
minando com uma consideração crítica sobre a perversidade de uma atuação agressiva
ou omissa do Direito na regulação dos espaços das cidades como fator proporcionador de
(des)equilíbrios entre os cidadãos. Ative-me sobretudo ao Direito do Ordenamento do Ter-
ritório (e não tão especificamente ao Direito do Urbanismo) pretendendo uma abordagem
mais ampla, centrada nas responsabilidades das escolhas políticas e do papel das institui-
ções públicas, não vinculando esta breve análise aos particulares, mas sim no efeito das
escolhas estratégicas nas cidades e seu impacto na vida dos cidadãos.
1. Breve introdução ao Direito do Ordenamento do Território
O planeamento do ordenamento do território urbastico encontra-se plasmado no Decre-
to-Lei n.º 80/2015, de 14 de Maio4, na atual redação5, que aprova a revisão do regime jurí-
dico dos instrumentos de gestão territorial (RJIGT) e no Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de
Dezembro, na atual redação introduzida pela Lei n.º 118/2019, de 17 de Setembro, onde se
encontra previsto o regime jurídico da urbanização e edificação (RJUE), sobretudo se for
tido em conta a elaboração e execução de planos que se revelaram mais profícuos em ter-
mos da sua eficácia jurídica, em detrimento dos programas que existiam até então. Impor-
tante a menção à Lei n.º 31/2014, de 30 de Maio6, na versão introduzida pelo Decreto-Lei
n.º 52/2021, de 15 de Junho, a lei de bases gerais da política de solos, de ordenamento do
território e de urbanismo da qual vale a pena citar a al. c) do art.º 2.º (fins), que visa
Reforçar a coesão nacional, organizando o território de modo a conter a
expansão urbana e a edificação dispersa, corrigindo as assimetrias regionais,
nomeadamente dos territórios de baixa densidade, assegurando a igualdade de
oportunidades dos cidadãos no acesso às infraestruturas, equipamentos, servi-
ços e funções urbanas, em especial aos equipamentos e serviços que promovam
o apoio à família, à terceira idade e à inclusão social.
1 Cf. art.º 65.º da Constituição da República Portuguesa.
2 Cf. art.º 34.º, n.º 3 da Carta dos Direitos Fundamentais da EU.
3 Cf. art.º 21.º da Carta dos Direitos Fundamentais da EU.
4 Este Decreto-Lei revogou o Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de setembro onde se previa o Regime Jurídico dos ins-
trumentos da gestão territorial.
5 Introduzida pelo Decreto-Lei n.º 45/2022, de 08 de Julho.
6 Revogou a Lei n.º 48/98, de 11 de Agosto, Lei de bases da política de ordenamento do território e de urbanismo
(cujos antecessores eram o Decreto-Lei n.º 69/90, de 2 de março, que disciplina o regime jurídico dos planos mu-
nicipais de ordenamento do território.
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Prevê-se, assim, a capacitação dos cidadãos no acesso a infraestruturas que possi-
bilitem a sua inclusão social, bem como mencionado na al. m) do mesmo artigo “Rege-
nerar o território, promovendo a requalificação de áreas degradadas e a reconversão de
áreas urbanas de génese ilegal”. Esta reflexão pressupõe o conhecimento e a constatação
prévia da existência de áreas degradadas, desprestigiadas (efetiva e simbolicamente) e
necessitadas de intervenção estatal, sitas nas periferias dos centros urbanos, para onde
tem vindo a deslocar-se uma massa crescente de habitantes, entre os quais cidadãos
nacionais de outros países. Neste sentido, constatou-se o crescimento desordenado e
espontâneo de bairros caracterizados pela falta de identidade social e cultural, pela
carência de infraestruturas suficientes e de transportes favorecedores de “persistência,
segmentação e complexidade das desigualdades socioespaciais” (CARREIRAS, 2018:68).
Estes espaços terão resultado de planeamento deficiente ou inclusivamente de ausência
de planificação ou intervenção, associados com frequência a espaços de delinquência e
crime, descritos como “zonas urbanas sensíveis” (GUIA e PEDROSO, 2016) ou até como
guetos (OLIVEIRA, 2012: 504). Na verdade, na senda de BAUMAN (2003: 106), a inse-
gurança gerada pela imagem da “comunidade segura”, como uma mutação do “gueto
voluntário” em que a conceção da “homogeneidade dos de dentro” se contrapõe à “hete-
rogeneidade dos de fora”, destaca hoje em dia o elemento étnico-racial como fator de
diferenciação entre os habitantes daqueles espaços.
Só a separação étnica/racial dá à oposição homogeneidade/heterogeneidade
a capacidade de conferir aos muros do gueto o tipo de solidez, durabilidade e
confiabilidade de que precisam (e para as quais são necessários). Por essa razão,
a separação étnica/racial é um “padrão ideal” natural a ser seguido por todas as
separações secundárias e substitutas com pretensões a desempenhar o papel de
terceiro elemento
BAUMAN, 2003: 106
Efetivamente, os habitantes destes espaços da periferia têm vindo a ser identificados
como pertencentes ao mesmo grupo étnico, economicamente desprovidos (LEE, 2005),
caracterizados pela concentração de populações imigrantes ou pertencentes a outros gru-
pos vulneráveis (desempregados de longa duração, toxicodependentes, falias monopa-
rentais, crianças e idosos), sendo atribuídas a estas zonas os epítetos de marginalização
urbana, zonas urbanas sensíveis ou guetos de exclusão caracterizado por GONÇALVES
et alii (2015: 2) como parte da “marginalização territorial involuntária da Europa”. Qual a
responsabilidade e consequente intervenção do Estado neste contexto? Outra resposta não
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The impact of the (non)management of the territory planning inmetropolises
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seria expectável que não a aposta da reabilitação destas zonas de periferia, mas também
na estratégica delimitação e distribuição de zonas habitacionais equilibradas.
A reabilitação e revitalização urbana irá, pois, maximizar o aproveitamento dos espa-
ços urbanos, nomeadamente em termos territoriais, financeiros, ambientais, mas sobre-
tudo sociais, pois que a integração sociocultural das populações será um dos objetivos
primordiais que visa a promoção de bem-estar aos seus habitantes e por isso, promovendo
uma maior consequente coesão social e, assim, o caráter excecional que se poderia assu-
mir-se na sua génese, não mais se trata do que uma norma que integra os objetivos da
gestão urbanística e por isso uma meta a alcançar no sentido de promover a igualdade
de oportunidades entre os cidadãos, com completa independência das ações e metas dos
privados.
A ausência ou deficiência de planeamento de intervenção estatal resultaria, nas pala-
vras de BAUMAN (2003: 107), num encurralamento de populações sem quaisquer oportu-
nidades de encontrarem um espaço nas cidades que lhes permita fruir em plena liberdade
e igualdade de direitos do bem-estar que as sociedades proporcionam aos seus habitantes,
impondo o gueto como espaço de confinamento forçado e contido.
É a situação “sem alternativas”, o destino sem saída do morador do gueto que
faz com que a “segurança da mesmice” seja sentida como uma gaiola de ferro —
apertada, incômoda, incapacitante e à prova de fuga. É essa falta de escolha num
mundo de livre-escolha que é muitas vezes mais detestada que o desmazelo e a
sordidez da moradia não escolhida. Os que optam pelas comunidades cercadas
tipo gueto podem experimentar sua “segurança da mesmice” como um lar; as
pessoas confinadas no verdadeiro gueto vivem em prisões.
BAUMAN, 2003: 107
2. A obrigação positiva do Estado de implementar medidas que promovam
a igualdade de acesso dos espaços urbanos
Do anteriormente exposto, facilmente se constata a obrigação do Estado de promover
medidas positivas que salvaguardam e que efetivem a aplicação e gozo dos direitos fun-
damentais dos cidadãos, entre os quais os de gozarem dos espaços urbanos em igualdade
de direitos, combatendo-se assim a exclusão e a marginalização de populações espeficas
(como as dos imigrantes). De destacar o n.º 1.º, do art.º 65.º da CRP, “Todos têm direito, para
si e para a sua falia, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene
e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”, evidenciando-se
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a responsabilidade do Estado em “programar e executar uma política de habitação inse-
rida em planos de reordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização
que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social”
[al.a), n.º 2.º, art.º 65.º CRP].
Na verdade, o Conselho da Europa tem vindo, desde o início do século, marcado pelos
movimentos massivos de regularização extraordiria de imigrantes nos diversos países
europeus, a recomendar a implementação e efetivação de medidas promotoras de uma
distribuição equitativa das populações pelos espaços urbanos, sendo que é ao Estado que
incumbe o papel de garantir “que a habitação e as políticas de planeamento e de urbaniza-
ção tentem dar aos imigrantes e minorias étnicas a liberdade de escolha que tem o resto
da população, incluindo oportunidades de viver fora das áreas tradicionalmente povoadas
por grupos minoritários” (Conselho da Europa, 2000: 15).
E por que se nos é permitido o destaque a esta recomendação? Por motivos vários que
se prendem a) com o aumento do fluxo de populações forçadas a abandonar os seus locais
de origem ou de residência; b) com o incremento do número de migrantes económicos à
procura de vidas melhores em países de acolhimento que proporcionem um maior bem-
-estar e equilíbrio financeiro, nomeadamente a partir do aproveitamento da mão-de-obra
laboral, com oferta de postos de trabalho, c) com a crescente fixação destas populações
recém-chegadas em zonas urbanas (local onde encontram com mais facilidade emprego,
remuneração e acesso a diversas infraestruturas); d) com o mais visível proliferar de cres-
cimento desordenado de zonas periféricas das grandes cidades (sobretudo capitais) onde
abundam eminentes problemas socio-culturais (senão já bem visíveis), sobretudo decor-
rentes do olhar reprovador e marginalizante da sociedade de acolhimento para com aque-
les recém-chegados; e) as capitais dos países / grandes cidades absorvem em número cres-
cente uma massa de mão-de-obra desqualificada que procura melhores condições de vida,
enquanto vai promovendo os cidadãos autóctones com mais e melhor educação, saídas
profissionais e uma aposta mais acurada na qualidade profissional dos seus “nacionais”,
contrapondo uma oferta crescente de empregos pouco qualificados (mas vitais para as
populações economicamente mais vulneráveis e desprovidas); f) é percetível o aumento
global e generalizado de novas cidades de imigração para onde se deslocam cidadãos não
nacionais à procura de melhores oportunidades de vida, trazendo consigo uma série de
novos desafios com os quais a sociedade de acolhimento poderá não saber lidar da melhor
forma (questões religiosas, culturais ou linguísticas, entre outras) que obrigam a respos-
tas mais céleres e acuradas por parte das sociedades de acolhimento.
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3. As capitais, as periferias e os imigrantes
As grandes metrópoles e as capitais são sobejamente conhecidas por serem cidades que
absorvem mão-de-obra e para onde se deslocam cidadãos recém-chegados (como os imi-
grantes) que buscam nos seus conterrâneos já aí estabelecidos um apoio que pode ir muito
além do simples enquadramento no país para onde se deslocam. Lisboa não é exceção,
sendo a cidade mais procurada pelos imigrantes e que, juntamente com Setúbal e Faro,
condensa um maior número de habitantes (cerca de 75% dos residentes estrangeiros cen-
tram as suas vidas na capital portuguesa, segundo dados colhidos no RIFA7 2016). Já em
2004, ESTEVES (2004: 20) relatava o elevado número de cidadãos nacionais que procu-
ravam Lisboa como destino habitacional (55% na altura), à semelhança de outras capitais
ou grandes cidades como Bruxelas (26% de cidadãos não-nacionais residentes, ou 17% em
Viena de Áustria). Naturalmente que as relações que as grandes cidades estabelecem com
cidades satélites que as circundam ou outras paragens com ligações densas às mesmas,
permitem que se estabeleçam grupos coesos de cidadãos pertencentes a origens comuns,
conforme SALGUEIRO8 (2001: 14) menciona.
Apesar de o intervencionismo do Estado se materializar em diversos planos que visam
o debelar das desigualdades económico-sociais dos habitantes das periferias das grandes
cidades (como no caso de Lisboa), a verdade é que a complexidade e a desigualdade gerais
instalados na distribuição dos espaços tem crescente (PIKETTY, 2014), apesar dos esforços
encetados. Com efeito, o enovelar dos problemas associados à integração socio-económica
destes grupos minoritários, como o deficiente acesso a empregos ou à precariedade da
oferta com que os mesmos se deparam, agravam-se se lhe for somada a debilidade das
condições habitacionais a que os mesmos são sujeitos, sendo impraticável uma política
de justiça social efetiva, devido, também ao agravamento da crise económico financeira
que grassou a sociedade portuguesa nos últimos anos e que agravou a estigmatização e
discriminação a que os mesmos são votados por parte da ausência de facilidades conce-
didas pelo Estado. A segregação espacial e a consequente desigualdade de acesso à quali-
dade de vida em todas as suas dimensões tornam-se, assim, uma marca visível dos encla-
ves urbasticos em que residem os cidadãos não-nacionais, nas palavras de OLIVEIRA
(2012: 109) “a marca territorial da exclusão e da injustiça social”. A ineficácia decorrente
da aplicação desigual ou insuficiência de medidas efetivamente implementadas quer por
parte da Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e
de Urbanismo, quer dos programas do PNPOT, PDM ou Plano Estratégico de Habitação
7 RIFA – Relatório de Imigração, fronteira e Asilo do SEF. Disponível em www.sef.pt
8 As cidades não existem por si só pois o seu dinamismo depende bastante das relações que estabelecem com o
exterior.” (…) podendo ir “… buscar sinergias noutras paragens.” (BARATA SALGUEIRO 2001: 14).
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implicam o consequente aumento das dificuldades de intervenção, fazendo emergir uma
massa desuniforme de população vulnerável que vê na desresponsabilização do papel e
obrigação positiva do Estado de zelar pela implementação da justiça social, uma constante
ao longos dos anos que poderia ser evitado pelo planeamento precoce dos espaços das
urbes para, “através da regulação do uso do solo e do fenómeno da urbanização, garantir
uma sociedade coesa, integrada e socialmente sustentável”(OLIVEIRA, 2012:112). Segundo
RODRIGUES (2011), a proteção da dimensão social deveria ser tomada em primeiro plano
na questão da problemática urbana em Portugal ou, segundo OLIVEIRA a implementação
de “fórmulas conjuntas” em que o planeamento prévio do território se mesclaria com a
intervenção e cooperação de diversas entidades com valências na área, bem como imple-
mentando a concertação entre estas e particulares que poderiam até rentabilizar os seus
empreendimentos, não permitindo a redução à perspetiva economicista que vigora fre-
quentemente.
4. A complexificação da figura do Alojamento Local na cidade de Lisboa e a
consequente estigmatização das zonas espaciais urbanas periféricas
A figura do alojamento local foi introduzida no sistema jurídico português a partir do
Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de Março (alterado e republicado no Decreto-Lei n.º 80/2017,
de 30 de Junho – Regime Jurídico dos Empreendimentos Turísticos – RJET). No entanto,
e por necessidade de adaptação à realidade do aumento do número de visitas a Portugal9,
decorrente da franca expansão do turismo10 e de passageiros a entrar nos aeroportos
nacionais11, bem como da rápida e crescente adesão ao alojamento local que se fez sentir
nos últimos anos12, foi publicado o Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto13, alterado pelo
9 Segundo o EUROSTAT, Portugal recebeu, em 2017, 71,3 milhões de turistas que se alojaram em estabelecimen-
tos, “sendo duas em cada três (68%) uma estada de não-residente. O impulso no turismo nacional assenta, es-
sencialmente, no aumento do número de visitantes estrangeiros, com a procura entre os não-residentes a cres-
cer 9,9%, por oposição aos 4,3% entre os residentes”. Informação colhida aos 18/07/2018 em https://observador.
pt/2018/01/24/portugal-com-o-quarto-maior-crescimento-no-numero-de-dormidas-de-turistas-na-ue/
10 Segundo o INE (2018), Portugal recebeu 20,6 milhões de hóspedes em 2017, constatando-se um aumento de 8,9%
em relação a 2016. Informação colhida aos 19/07/2018 em https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=i-
ne_destaques&DESTAQUESdest_boui=281091107&DESTAQUESmodo=2
11 Segundo o INE, “O movimento de passageiros [de transporte aéreo] ascendeu a 52,8 milhões em 2017, ultrapas-
sando-se pela primeira vez a fasquia de 50 milhões” (reportando a ANA 26,7 milhões a entrar só pelo aeroporto de
Lisboa), o que corresponde a um aumento de 16,4% em relação ao ano anterior.
12 …o Alojamento Local na Área Metropolitana de Lisboa registou um elevado número de aberturas, tendo fina-
lizado o ano com um acréscimo de 4.346 unidades, correspondente a um incremento de 94,8%, especialmente
notório, em termos absolutos, nos Apartamentos (+105,6%) e Moradias (+64,3%)” (PEREIRA, 2017: 17).
13 Roque (2017: 6) destaca do preâmbulo deste diploma, a justificação do legislador para a autonomização da figura
do Alojamento Local, justificando-se pela “(…) dinâmica do mercado da procura e oferta do alojamento fez surgir
e proliferar um conjunto de novas realidades de alojamento que, (…) determinam, pela sua importância turística,
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decreto-Lei n.º 63/2015, de 23 de Abril que autonomizou as figuras dos empreendimentos
turístico e do alojamento local, na sua versão atual introduzida pelo Decreto-Lei n.º 9/2021,
de 29 de Janeiro. Assim, a presunção da exploração e intermediação de locais (que inte-
gram a figura do Alojamento Local) passa a ser ilidida desde que sejam subsumidas deter-
minadas condições e elementos (com a prévia comunicação e publicitação de informações
sobre o imóvel em causa14).
Não retirando desta autonomização e regulamentação as mais-valias que o Aloja-
mento local veio trazer a nível internacional e nacional15, sobretudo colmatando falhas
no sistema de alojamento turístico16 que não conseguia responder na totalidade às solici-
tações por parte dos viajantes17 e a preços que respondessem à capacidade financeira dos
turistas, bem como na abertura de um mercado económico em expansão gerador de novos
postos de trabalho18, ou o impacto que esta receita gerou no PIB da área lisboeta19, o efeito
cataclísmico que esta realidade emergente tem vindo a trazer às grandes metrópoles e
capitais, como Lisboa, são preocupantes e exigem reflexão ponderada. Não só pelo facto de
terem impelido os seus residentes a adaptarem-se a esta realidade, dificultando o acesso
a arrendamentos passíveis de custear, mas sobretudo pela tomada de inúmeras habi-
tações que passaram a ser, nos últimos anos, unicamente disponíveis para Alojamento
Local, impossibilitando o acesso dos residentes lisboetas a determinadas zonas da cidade
e empurrando para fora de áreas centrais de Lisboa toda e qualquer população que pro-
cure habitação permanente, por impossibilidade de fazer face à demanda e aumento pro-
pela confirmação de que não se tratam de um fenómeno passageiro e pela evidente relevância fiscal, uma atua-
lização do regime aplicável ao alojamento local.”.
14 Cfr. n.º 1.º e 2.º do art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto, na sua atual redação.
15 “O impacto económico total do Alojamento Local na economia [portuguesa], em 2016, está estimado em 1.664,7
milhões de euros (…) [constituindo] o peso do Alojamento Local no Turismo da Área Metropolitana de Lisboa em
2016 (…) 18,3%, [o que representa] 1,0% do Produto Interno Bruto gerado na Área Metropolitana de Lisboa” (PE-
REIRA, 2017: 7). A área metropolitana de Lisboa, cujos dados aqui são apresentados, integra 18 concelhos, a saber
Alcochete, Almada, Amadora, Barreiro, Cascais, Lisboa, Loures, Mafra, Moita, Montijo, Odivelas, Oeiras, Palmela,
Seixal, Sesimbra, Setúbal, Sintra e Vila Franca de Xira (PEREIRA, 2017: 16).
16 O “peso dos turistas estrangeiros no total das dormidas realizadas em 2016 na Área Metropolitana de Lisboa [foi
de] 76,7%” (PEREIRA, 2017: 56).
17 “Em 2016, o Alojamento Local registou um forte dinamismo na Área Metropolitana de Lisboa, com um aumento
de 95% no número de unidades abertas, de que resultou um incremento de 75% na capacidade de alojamento face
a 2015 (…) [tendo-se sentido um] aumento da capacidade total disponível de Alojamento Local na Área Metropoli-
tana de Lisboa [de] (…) 75,1% para um total de 54.572 hospedes” (PEREIRA, 2017: 7 e 18)
18 Segundo PEREIRA (2017: 8) a relevância do Alojamento Local na Área Metropolitana de Lisboa na criação de
novos postos de trabalho repercutiu-se na “criação de 5.706 empregos diretos e 13.439 de forma indireta, tendo
pago 51,4 milhões de euros em salários e outras retribuições” (PEREIRA, 2017: 8).
19 PEREIRA (2007:8) relata o “contributo para o PIB da região no valor 669,3 milhões de euros, dos quais 97,4 mi-
lhões gerados diretamente e 571,9 milhões resultantes do efeito multiplicador da atividade do Alojamento Local
na economia. Mais se estima que, a manter-se o crescente aumento de procura de turistas e do fornecimento
e regulamentação de Alojamento local, o “impacto económico do Alojamento Local na Área Metropolitana de
Lisboa em 2020 [será de mais-valias] no valor de 3.735,4 milhões de euros” (PEREIRA, 2017:11).
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gressivos de preços, incompatíveis com a realidade que se vive na sociedade portuguesa
e com a média salarial (relembrando que, em Dezembro de 2017, foram identificados 670
mil trabalhadores abrangidos pela Remuneração Mínima Mensal Garantida20, no valor de
557 euros, constituindo estes cerca de 23% dos trabalhadores por conta de outrem – Por-
data21). Segundo dados do INE de 2014, 34% dos trabalhadores portugueses recebia menos
de 600 euros mensais e 61% não ultrapassava os 900 euros mensais (GUIA, 2016: 159-160),
encontrando-se, segundo os últimos dados, quase 2,4 milhões22 de portugueses em risco
de pobreza23 ou exclusão social, segundo os dados do Inquérito às Condições de Vida e
Rendimento do Instituto Nacional de Estatística (INE), realizado em 2017 (menos 196 mil
pessoas do que em 2016). Apesar das melhorias sentidas, e segundo o mesmo relatório,
“em 2017, 9,3% das pessoas viviam com insuficiência de espaço habitacional e a proporção
de pessoas afetadas por condições severas de privação habitacional foi de 4,0%24. Valerá,
pois a pena, a este propósito, relembrar o n3.º do art.º 65.º da CRP, “O Estado adopta
uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento
familiar e de acesso à habitação própria”, facto que deverá ser equilibrado, face às conclu-
sões positivas da criação da figura do Alojamento Local, versus a dificuldade crescente das
populações em acompanhar a escalada dos preços das habitações, em estreita ligação com
a obrigação positiva do Estado de regulamentar o mercado e de manter a coesão social das
populações.
Assim, um problema que já se fazia sentir pelo confinamento de populações vulne-
ráveis, entre as quais os cidadãos não-nacionais que têm vindo a procurar Portugal para
xarem as suas vidas e ocuparem espaços laborais não totalmente preenchidos pelos
portugueses, às zonas residenciais periféricas de Lisboa, caracterizadas pela exclusão e
estigmatização, falta de transportes regulares e outras condições excludentes de igual-
dade de acessos, foi nos últimos dez anos agravado e promete desregular o mercado econó-
mico habitacional, ameaçando a coesão social, nomeadamente no acesso desigual a espa-
20 Segundo dados constantes no 8.º Relatório de Acompanhamento do Acordo sobre a Retribuição Mínima Mensal
Garantida (RMMG)
21 Dados colhidos na plataforma Pordata, com atualização a 2017-07-19 (vide página https://www.pordata.pt/DB/
Portugal/Ambiente+de+Consulta/Tabela, acedida em 25/07/2018).
22 Cerca de 2.399 milhares de pessoas.
23 Segundo o relatório do INE de 2017, “Os resultados definitivos do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento
(EU-SILC) indicam ainda que o rendimento monetário disponível mediano por adulto equivalente foi, em ter-
mos nominais, de 9 071 euros em 2016, que corresponde a um limiar de pobreza de 5 443 euros. Estes resultados
confirmam a taxa de risco de pobreza de 18,3% em 2016, bem como a taxa de risco de pobreza ou exclusão social
de 23,3%, divulgadas em novembro de 2017.”
24 Foi sentida melhoria também nesta área, verificando-se “menos 1 ponto percentual (p.p.) e 0,9 p.p. que no ano
anterior”. Dados acedidos aos 19/07/2018 em https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_desta-
ques&DESTAQUESdest_boui=315222979&DESTAQUESmodo=2
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ços urbanos e a oportunidades proporcionadas às populações, apenas em determinados
espaços na cidade de Lisboa. É-nos exigida reflexão, ponderação, planeamento e prevenção
imediata, nomeadamente em relação às zonas periféricas habitacionais das grandes cida-
des, no caso concreto, da cidade de Lisboa.
5. Conclusões
As sociedades em que atualmente vivemos encontram-se em célere transformação,
jogando a globalização e a circulação de pessoas um papel relevante neste novo mundo
em que habitamos. O Direito tem procurado implementar e equilibrar programas de pro-
moção de igualdade de oportunidades, ainda que atualmente vivamos novos parâmetros
de avaliação de bem-estar das populações que não unicamente baseados no (des)equilíbrio
socio-económico, de que é exemplo relevante o conceito de Felicidade Interna Bruta (FIB),
desenvolvido em 1972, com origem no Butão, que construiu a avaliação do progresso do
país a partir da avaliação do bem-estar dos cidadãos. Na verdade, a responsabilidade do
Estado do Butão em proporcionar a fruição de felicidade (dekid) ao seu povo, tem as suas ori-
gens no código legal de 1729, data da unificação do reino (Ura, 2010 apud World Happiness
Report, 2012:112) que, no fundo, encontra um paralelismo na Constituição Americana, que
define a “procura da felicidade” como um direito inalienável (Guia, 2015: 70). A FIB, con-
ceito reconhecido pela ONU é, assim, considerada um pametro apropriado para medir
o progresso social e a efetivação de políticas públicas para manutenção da coesão social.
Com efeito, em 2016, a OCDE comprometeu-se a “redefinir a narrativa de crescimento para
colocar o bem-estar das pessoas no centro dos esforços dos governos” (HELIWELL, et al.,
2017), tendo sido a saúde mental o pametro mais relevante identificado em 201725.
Em termos do assunto aqui em causa, julgo que, apesar de haver progresso nos pro-
gramas implementados para gerir os problemas nas cidades e sobretudo efetivando a res-
ponsabilidade do Estado na maior justiça de acesso a espaços habitacionais condignos,
há ainda muito a fazer, nomeadamente na prevenção de problemas de desregulação de
acessos de populações vulneráveis. Destaco, por exemplo, a este propósito, o Decreto-Lei
n.º 29/2018, de 4 de maio, na versão introduzida pelo Decreto-Lei nç 74/2022, de 24 de
Outubro que estabelece o Porta de Entrada – Programa de Apoio ao Alojamento Urgente,
em especial no que respeita a habitação, congratulando a previsão e inclusão da alínea c)
25 O Relatório da Felicidade Interna Bruta de 2017 destaca a saúde mental (ou a falta dela) como um dos fatores
mais relevantes para avaliação da felicidade, sendo as diferenças de rendimentos mais relevantes nos países
mais pobres. O trabalho e a qualidade do mesmo também se revela um fator importante que pode afetar a perce-
ção da felicidade, sendo o desemprego causador de perceção negativa da mesma. (Helliwell, et. al., 2017).
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do art.º 3.º que define, para efeitos deste diploma, “movimentos migratórios”26, ainda que
tal conceito me pareça mais enquadrável no âmbito do conceito de refugiado27, constante
na lei da Concessão de Asilo ou Proteção Subsidria (Lei n.º 18/2022, de 25 de Agosto, que
alterou a Lei n.º 27/2008, de 30 de junho), do que propriamente de migrantes económicos
(que, para já, assume mais visibilidade do que a anterior classificação, pelo maior número
de residentes não nacionais que residem na cidade de Lisboa). Ainda assim, o apoio público
disponibilizado a partir deste decreto-Lei para populações carenciadas “em virtude de fac-
tos imprevisíveis ou excecionais” (que também não será o caso concreto), são relevantes no
sentido de suprir quaisquer “carências habitacionais e sociais dos beneficrios”.
Na opinião de FERNANDA PAULA OLIVEIRA (2012: 126), de que partilho, deveria ser
desenvolvida “uma nova sensibilidade pelas questões sociais no âmbito do planeamento
territorial em geral e do planeamento urbanístico em particular. Sobretudo tendo em
conta a realidade emergente da questão do Alojamento Local e tendo em conta o caso par-
ticular da cidade de Lisboa, relembro o n.º 4.º do art.º 65.º28 da CRP, destacando a obrigação
positiva do Estado de atuar em caso de previsível lesão de direitos, entre os quais a igual-
dade de acesso a zonas espaciais condignas e livres de exclusão e estigmatização.
Termino com uma reflexão de FERNANDO ALVES CORREIA (2012: 60) “o urbanismo
é a ciência que estuda o modo de tornar compatíveis entre si os vários usos possíveis do
território, de evitar entre eles as interferências recíprocas negativas”. Aliado ao papel regu-
lador e preventivo do Direito, seria possível maximizar os instrumentos do Estado para
assegurar uma maior e mais efetiva igualdade entre todos os cidadãos, nomeadamente
na questão da distribuição de arrendamentos ou vendas de imóveis em zonas mais cen-
trais na cidade de Lisboa e no dirimir da potencial tensão adveniente da estigmatização
(já instalada) relativamente às periferias da cidade de Lisboa, e sobretudo às populações
aí residentes.
26 c) «Movimentos migratórios», os movimentos de imigração de populações despoletados por conflitos políticos,
étnicos ou religiosos ocorridos no local de origem e tendencialmente direcionados para áreas específicas ou
para a totalidade do território nacional”.
27 Al. ac) do n.º 1.º do art.º 2.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho na sua atual redação “ac) «Refugiado», o estrangeiro
ou apátrida que, receando com razão ser perseguido em consequência de atividade exercida no Estado da sua
nacionalidade ou da sua residência habitual em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz
entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana ou em virtude da sua raça, religião, nacionalidade,
convicções políticas ou pertença a determinado grupo social, se encontre fora do país de que é nacional e não
possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção desse país ou o apátrida que, estando fora do
país em que tinha a sua residência habitual, pelas mesmas razões, não possa ou, em virtude do referido receio, a
ele não queira voltar, e aos quais não se aplique o disposto no artigo 9.º”.
28 “O Estado e as autarquias locais exercerão efectivo controlo do parque imobiliário, procederão à necessária na-
cionalização ou municipalização dos solos urbanos e definirão o respectivo direito de utilização”.
105
O impacto da (in)gestão do planeamento doterritório nas metrópoles
The impact of the (non)management of the territory planning inmetropolises
MARIA JOÃO GUIA
GALILEU · e-ISSN 2184-1845 · Volume XXIII · Issue Fascículo 1-2 · 1st January Janeiro – 31st December Dezembro 2022 · pp. 93-105
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Implementação da Lei de Proteção do Clima
– Tribunal Federal Constitucional da Alemanha exige respostas mais céleres
Análise da Decisão do Primeiro Senado de 24 de Março de 2021 –
Implementation of the Climate Protection Act
– Germany’s Federal Constitutional Court demands faster responses
Analysis of the First Senate Decision of 24 March 2021 -
ANJA BOTHE1
abothe@autonoma.pt
DANILA GONÇALVES DE ALMEIDA2
danilaalmeida@gmail.com
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXII · 1st January Janeiro–31ST December Dezembro 2022 · pp.107‑122
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXIII.1/2.7
Submitted on November 2nd, 2022 · Accepted on November 22nd, 2022
Submetido em 2 de Novembro, 2022 · Aceite a 22 de Novembro, 2022
RESUMO O Tribunal Federal Constitucional da Alemanha decidiu pela
inconstitucionalidade parcial da Lei Federal do Clima. A insuficiente limitação das
emissões de gases com efeito de estufa até 2030, e a falta de estipulações legais mínimas a
partir de 2030, comprometem as liberdades fundamentais, porque a ausência de medidas
mais contundentes neste futuro próximo implica a necessidade de reduções drásticas de
CO2 e equivalente depois de 2030, que afetarão potencialmente todas as áreas da sociedade.
PALAVR AS CHAVE Lei do Clima; Tribunal Constitucional; Liberdades Fundamentais;
Direito do Ambiente; Emissões CO2 e equivalente
ABSTRACT The Federal Constitutional Court of Germany ruled the Federal Climate
Act to be partially unconstitutional. The insufficient limitation on the greenhouse gas
emissions until 2030, and the lack of minimum legal stipulations after 2030, compromise
1
Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Hamburgo; Pós-doutoramento financiado pela
FCT; Docente da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL); Investigadora no Ratio Legis (Centro de Investigação do
Departamento de Direito da UAL); advogada na hdprm.com.
2 Juíza Federal da Subseção Judiciária de Barra do Garças, no Estado de Mato Grosso – Brasil, Mestre em Ciências
Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa.
Abreviaturas mais usadas: ONGA = Organizações Não Governamentais do Ambiente; CRP = Constituição da
República Portuguesa; RFA = República Federal da Alemanha.
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Implementação da Lei de Proteção do Clima
Implementation of the Climate Protection Act
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fundamental freedoms, because the absence of more forceful measures in the near
future implies the need for drastic CO2 and equivalent reductions after 2030, which will
potentially affect all areas of society.
KEYWORDS Federal Climate Act; Constitutional Court; fundamental freedoms;
Environmental Law; greenhouse gas emissions
SUMÁRIO Introdução 1. Sujeitos e objetos da ação; 2. Alegadas insuficiências da legislação
de proteção do clima; 3. Constitucionalidade quanto ao artigo 2, n. 2 da Constituição
Federal Alemã: Dever do Estado de proteger a vida e a integridade física das pessoas; 4.
Constitucionalidade quanto ao artigo 14, n. 1 da Constituição Federal Alemã: Direito de
propriedade privada; 5. Constitucionalidade quanto ao dever de proteção dos residentes no
Bangladesh e no Nepal; 6. Inconstitucionalidade da transferência de significativa parcela
dos encargos de redução de gases com efeito estufa para períodos posteriores a 2030; 7.
Inconstitucionalidade decorrente de um prejuízo futuro?; 8. Foram reconhecidos direitos
às gerações futuras?; 9. O princípio da equidade intergeracional; 10. Mandado de proteção
objetiva e a proteção das gerações futuras; 11. Inadequação dos requisitos legais para a
continuação da trajetória de redução após 2030; Conclusão
Introdução
Em 24 de março de 2021, o Tribunal Federal Constitucional da Alemanha deu provimento
parcial a quatro queixas apresentadas contra partes da Lei de Proteção do Clima e contra
alegadas omissões do Estado na mitigação das alterações climáticas. O tribunal negou pro-
vimento, considerando que a Lei de Proteção do Clima e o restante desempenho do Estado
são capazes e suficientes, e não violam os deveres estatais de proteção da vida e da inte-
gridade física das pessoas (artigo 2, n.º 2), o Direito ao desenvolvimento da personalidade
(artigo 2, n.º 1), a Dignidade humana (artigo 1, n.º 1), a Liberdade de escolha de profissão
(artigo 12, n.º 1), o Direito de propriedade privada (artigo 14, n.º 1) e o Dever do Estado de
proteger o ambiente (artigo 20 a) por exporem as pessoas às consequências ecológicas que
as alterações climáticas estão a trazer consigo. O tribunal considerou, no entanto, que o
direito fundamental da liberdade pode ser inconstitucionalmente ameaçado se as dispo-
sições legais resultarem em emissões de CO2 demasiado generosas num futuro próximo,
de modo que os encargos de redução necessários seriam transferidos para o futuro em
detrimento da liberdade futura.
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A publicação do Acórdão situa-se seis meses antes das eleições para o Parlamento Fede-
ral e quinze semanas antes das inundações torrenciais que mataram 200 pessoas e causa-
ram uma destruição tremenda.
1. Sujeitos e objetos da ação
Foram analisadas em conjunto quatro queixas. Em Portugal, apenas alguns órgãos cons-
titucionais têm legitimidade ativa para requerer a apreciação da constitucionalidade. Na
Alemanha, qualquer pessoa pode apresentar queixa perante o tribunal constitucional,
quando alega a violação dos seus direitos constitucionalmente garantidos, e esgotadas as
instâncias judiciais.
Objeto das ações são certas cláusulas da Lei Federal de Proteção do Clima e um desem-
penho inconstitucionalmente fraco, do Estado, na luta contra o aquecimento global. Parte
das queixas já foram apresentadas em 2018, enquanto a Lei de Proteção do Clima data
de 2019. Mas, como os autores das queixas consideram o conteúdo da Lei de Proteção do
Clima insuficiente, entendem que continua a existir inconstitucionalidade.
Os queixosos são Organizações Não Governamentais do Ambiente (ONGA), jovens,
residentes na Alemanha e residentes no Bangladesh e no Nepal. O Bangladesh e o Nepal
são países que já estão a sofrer danos especialmente graves causados pelas alterações cli-
máticas. Eles estão sujeitos, de forma destacada, à subida do mar, a trovoadas, a ondas de
calor extremo, a derrocadas de terra, etc. Quanto às ONGA o tribunal negou a legitimidade
ativa porque, no Direito Processual Constitucional da Alemanha não se encontra prevista
a ação popular (constante em Portugal no artigo 52.º Constituição da República Portu-
guesa (CRP). Na República Federal da Alemanha (RFA) apenas são analisadas queixas de
quem alega uma violação dos seus direitos subjetivos próprios.)
Na Constituição da RFA, não se encontra explicitado nenhum direito ao ambiente de
vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado. Existem sim o objetivo e a tarefa funda-
mental do Estado de proteger o ambiente. Para além deste dever de proteção do ambiente,
enquanto parte objetiva, há o direito ao ambiente saudável como condição prévia para cer-
tos direitos explicitamente garantidos. No contexto da presente análise é invocado um
direito a um mínimo de existência ecológica baseado no direito ao desenvolvimento da
personalidade juntamente com o princípio da dignidade humana.
A Lei de Proteção do Clima assenta em dois mecanismos principais: nos objectivos
nacionais de protecção do clima (§ 3) e nos níveis de emissão anuais admissíveis (§ 4).
Quanto aos objetivos, “(1) As emissões de gases com efeito de estufa devem ser progressi-
vamente reduzidas em relação a 1990. Será aplicada uma quota de redução de pelo menos
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55% até ao ano alvo de 2030.” Este objetivo encontra-se instrumentalizado via reduções
anuais, que especificam emissões admissíveis para os setores da energia, indústria, trans-
porte, edifícios, agricultura, gestão de resíduos e outros.
O instrumento das reduções anuais, § 4, traz consigo vários mecanismos de flexibili-
zação, que integram o objeto das alegadas inconstitucionalidades aqui analisadas. “(2) O
Governo Federal terá poderes para alterar a atribuição de fontes de emissão aos setores
referidos no Anexo 1. (3) Se, a partir de 2021, as emissões […] excederem […], a diferença
será creditada igualmente às restantes quantidades anuais de emissões do setor até ao ano
seguinte […] (5) O Governo Federal tem poderes para alterar os níveis anuais de emissões
dos sectores enumerados no Anexo 2 por decreto regulamentar […]”.
2. Alegadas insuficiências da legislação de proteção do clima
Os requerentes apresentam três níveis de insuficiência de atuação: 1.º a finalidade da limi-
tação da subida da temperatura: “se possível a 1,5 graus acima do nível pré-industrial”. Esta
finalidade assenta no “Acordo de Paris baseado na Convenção-Quadro das Nações Unidas
sobre Alterações Climáticas, segundo a qual o aumento da temperatura média global deve
ser limitado a muito menos de 2 graus Celsius e, se possível, a 1,5 graus acima do nível pré-
-industrial, a fim de manter os efeitos das alterações climáticas globais tão baixos quanto
possível, bem como o compromisso da Alemanha, na Cimeira das Nações Unidas sobre o
Clima, em Nova Iorque, a 23 de Setembro de 2019, de prosseguir a neutralidade dos gases
com efeito de estufa até 2050 como um objetivo a longo prazo.” (§ 1 Finalidade da Lei)
Quanto a esta primeira insuficiência, alegam os demandantes, que aceitando que este
limite de 1,5 graus possa não ser alcançado, implica pôr em risco a vida de milhares de
pessoas e implica que sejam ultrapassados os pontos de viragem, apresentados pelo painel
intergovernamental sobre mudanças climáticas.
A segunda insuficiência de atuação, objeto da ação, implica a incoerência entre a fina-
lidade e o referido objetivo da lei, significando que será impossível alcançar a finalidade
do limite de 1,5 graus de subida da temperatura com a quota de redução de 55% até ao ano
alvo de 2030.
A terceira alegada insuficiência é refletida nas emissões máximas anuais, que não
alcançarão o objetivo legalmente determinado. Assim, a “quantidade máxima expressa em
milhões de toneladas de CO2 e equivalente” foi indicada, pelo painel intergovernamental
sobre mudanças climáticas, com 336 giga toneladas de emissões de CO2 e equivalente para
o nível global, o que significa em termos de direitos de emissões, per capita, da Alemanha
a partir de 2020, uma quantidade de 3,465 giga toneladas de CO2 e equivalente. Tomando
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apenas as medidas de redução previstas na lei, este budget, i.e., esta quantidade máxima,
será atingida nos próximos anos, incumprindo os objetivos da lei.
Os juízes analisaram detalhadamente as referidas três insuficiências da lei e da atua-
ção do Estado, que são os objetos da alegada inconstitucionalidade: a finalidade, os objeti-
vos e as reduções de emissões previstas.
Fundamento das alises da matéria de facto, realizadas pelos magistrados, são os
relatórios do painel intergovernamental sobre as alterações climáticas, segundo os quais
as consequências das alterações climáticas têm demonstrado a enorme vulnerabilidade
das pessoas perante ondas de calor, secas, chuvas extremas, inundações, ciclones, incên-
dios. Facilmente é provocada uma rutura do abastecimento de alimentos e água, são cau-
sados danos nas infraestruturas e no alojamento, há doentes e há mortos. Aumentaram
já, de forma relevante, as doenças infecciosas, doenças cardiovasculares e respiratórias,
alergias, entre outras.
Quanto à Alemanha, destaca-se, na presente alise do Acórdão, apenas a preocupação
dos magistrados com o nível das águas subterrâneas, bem mais baixo do que aquilo que
era normal.
O tribunal arma a obrigação constitucional do Estado de tomar medidas contra os
perigos, que resultarão das alterações climáticas. Assim, o Estado tem de tomar medidas
contra o aumento da temperatura e outras de adaptação às alterações climáticas.
Também, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, resultam obrigações dos
Estados de proteção contra a degradação ambiental que possa causar perigo para a vida e
a saúde. Estas obrigações, no entanto, não vão mais longe do que as respetivas obrigações
na Constituição da RFA.
O facto de a Alemanha apenas conseguir travar o aquecimento global com os outros
países, não faz com que deixe de ter as suas obrigações, mesmo constitucionais. A Alema-
nha, representa 1,1% da população mundial e é responsável por perto de 2% das emissões
de gases com efeito de estufa.
3. Constitucionalidade quanto ao artigo 2, n. 2 da Constituição Federal
Alemã: Dever do Estado de proteger a vida e a integridade física das
pessoas
Como já se referiu, o tribunal concluiu que os deveres do Estado de proteger a vida e a
integridade física das pessoas, constantes no artigo 2, n. 2 da Constituição Federal Alemã,
se encontram cumpridos. As obrigações constitucionais do Estado incluem a proteção das
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gerações futuras mas, objetivamente, não há direitos subjetivos de pessoas que ainda não
nasceram. O Estado tem de promover medidas no seio dos atores internacionais.
É importante ter em conta, que existem vários níveis de densidade dos conteúdos dos
diferentes tipos de direitos fundamentais. Assim, os direitos fundamentais de defesa
implicam uma atuação determinada na Constituição. Há deveres de abstenção muito con-
cretos como, por exemplo, a proibição da expulsão de cidadãos, ou a inviolabilidade do
domicílio. Tomando como objeto, no entanto, a parte objetiva dos direitos fundamentais,
i.e., os deveres de proteção do Estado, o grau de concretização é muito menor. Trata-se de
um conteúdo indeterminado, atribuindo ao Estado uma ampla margem de como analisar,
avaliar e atuar. Dentro desta margem ampla, apenas há inconstitucionalidade no caso de
medidas incapazes ou insuficientes para alcançar o fim de proteção devido. Deste modo,
tratava-se de um conceito incapaz, se a lei não tiver em vista a neutralidade climática. A
redução em 55% de CO2 e equivalente, em comparação ao ano 1990 é, claramente, um obje-
tivo intermédio e, como tal, a determinação legal das quantidades de emissões, após 2030,
apenas num momento mais tarde deve ser considerada uma técnica legislativa admissível.
Quanto à alise da suficiência das medidas, consideram os juízes que a Constituição
não implica uma necessidade absoluta de travar o aquecimento com um aumento de 1,5.ºC.
Pode uma parte da população considerar que a limitação do aumento da temperatura de 2
graus, e possivelmente 1,5 graus, seja pouco ambiciosa, no entanto, o legislador tem uma
ampla margem de avaliação dos riscos e determinação das medidas. A partir do aumento
de 1,5 .ºC cresce exponencialmente o risco de pontos de viragem – tipping points – com
consequências qualitativas para maiores subsistemas ecológicos.
O tribunal refere-se a um relatório especial do painel intergovernamental sobre as
mudanças do clima de 2018, em que compara as consequências de um aquecimento de 1,5
graus com as consequências de um aquecimento de 2 graus. Até a publicação deste relató-
rio, o essencial do trabalho preparatório do Direito Internacional e nacional assentava na
finalidade de evitar um aumento de 2 graus. Resulta do referido relatório especial, do pai-
nel intergovernamental sobre as mudanças do clima de 2018, que um aumento acima dos
1,5 graus provocará alterações qualitativas para maiores subsistemas ecológicos. Trata-se
de sistemas com significado especialmente relevante para o clima global, e que podem
sofrer ruturas drásticas que, por sua vez, poderão provocar outras ruturas, assim num
tipo de cascata de consequências irreparáveis e imprevisíveis. Exemplo destas ruturas são
a instabilidade dos lençóis de gelo marinho na Antárctica e ou a perda irreversível dos
lençóis de gelo marinho na Groenndia que aumentará a altura do nível do mar em vários
metros. Outros sistemas são a floresta Amazónica, ou sistemas de correntes de ar e ou do
mar.
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Na sua análise da constitucionalidade do direito fundamental à vida humana e à inte-
gridade física, os magistrados focam-se na identidade e na diferença entre a proteção da
vida humana e da integridade física por um lado, e da proteção do clima, por outro. Assim,
sublinham uma interseção relevante entre a proteção do clima e a proteção dos bens tute-
lados no artigo 2 n.º 2, 1ª frase da Constituição, mas os bens tutelados não são inteiramente
idênticos: a vida humana e a integridade física podem ser protegidas por medidas de adap-
tação ao aumento da temperatura.
Para salvaguardar as suas obrigações constitucionais de proteção da vida e da inte-
gridade física das pessoas, governo e legislador estabeleceram as devidas estratégias de
adaptação às consequências das alterações climáticas. Como tal, os juízes referem medi-
das de planeamento urbanístico e paisagístico, para diminuir o aquecimento das cidades,
apresentam a construção de diques junto as costas, construções de drenagens, renaturali-
zação, reflorestação, entre outras.
Quanto à insuficiência das medidas para alcançar os objetivos legalmente determi-
nados, admite o tribunal que, de facto, há indícios de que a Alemanha não conseguiria
cumprir o compromisso assumido para fazer a sua parte para limitar o aquecimento do
planeta aos 1,5.ºC. Conseguiria 52,2% em vez dos 55% assumidos. Os objetivos, por sua vez,
que servem de base para as medidas de diminuição de emissões, foram elaborados em
2010, quando a meta global do aquecimento máximo se encontrava determinada em 2 .ºC.
Conclui o tribunal que o legislador está a cumprir as suas obrigações de proteção da
vida e da integridade física das pessoas, porque ele não produziu apenas medidas de miti-
gação das alterações climáticas – a lei de proteção do clima e outras leis de diminuição das
emissões de gases com efeito de estufa – como acrescentou medidas de adaptação.
4. Constitucionalidade quanto ao artigo 14, n. 1 da Constituição Federal
Alemã: Direito de propriedade privada
Nas ilhas e zonas costeiras da Alemanha, a subida do nível do mar ameaça propriedades.
A insuficiente proteção destas propriedades é apresentada pelos queixosos como violação
do legislador na proteção do direito de propriedade privada. Os magistrados consideram,
no entanto, que o legislador tem uma ampla margem de determinação, quando pondera os
interesses dos proprietários e outros interesses afetados por uma proteção mais rigorosa
do clima. Assim, mais uma vez, a atuação do legislador está situada dentro da constitucio-
nalidade.
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5. Constitucionalidade quanto ao dever de proteção dos residentes no
Bangladesh e no Nepal
Dois terços do território do Bangladesh encontram-se a menos de cinco metros acima do
nível médio do mar e o país encontra-se altamente ameaçado pela subida do mar. Vários
rios recebem água da cadeia montanhosa das Himalaias e o degelo dos glaciares provoca
cada vez mais inundações. Há monções e turbilhões, há derrocadas de terra devido a chu-
vas extremas que causam destruição de vidas, alojamentos, solos agrícolas, dificultam o
acesso à água potável, entre outras. Nas cidades, especialmente nos bairros de lata, qual-
quer aumento mínimo da temperatura fragiliza mais a população. Há imensas mortes
causadas por disenteria.
Todo o poder soberano do Estado Alemão se encontra vinculado à Constituição, i.e.,
não há nenhuma limitação quanto ao território alemão. Apesar desta vinculatividade, há
dimensões diversas de direitos fundamentais, quanto aos seus efeitos: diferencia-se entre
direitos de defesa, direitos de prestações, valores e princípios constitucionais e os deveres
de proteção como base para direitos subjetivos.
O Estado Alemão cumpre as suas obrigações para com os residentes na Alemanha atra-
vés de medidas de mitigação do e de adaptação ao aumento da temperatura do planeta.
A parte da proteção via adaptação não é realizável no Bangladesh e no Nepal pelo Estado
Alemão, i.e., o Estado Alemão pode contribuir com ajudas, mas não tem poder de decisão.
Através da participação, a nível internacional, no combate ao aquecimento global, o
Estado Alemão cumpriu as suas obrigações de proteção dos queixosos residentes no Ban-
gladesh e no Nepal.
6. Inconstitucionalidade da transferência de significativa parcela
dosencargos de redução de gases com efeito estufa para períodos
posteriores a 2030
Embora o Tribunal Federal Constitucional da Alemanha não tenha considerado inconsti-
tucionais as disposições da Lei de Proteção do Clima quanto às alegações dos queixosos
de violação do “direito fundamental a um futuro digno”, ou que os esforços de proteção do
clima pelo legislador alemão tenham sido insuficientes, reconheceu a existência de ameaça
inconstitucional ao direito fundamental de liberdade, na medida em que a Constituição,
sob determinadas condições, garante uma proporcional distribuição de oportunidades de
liberdade decorrentes dos direitos fundamentais ao longo do tempo e das gerações.
Tendo em vista o compromisso da Alemanha de alcançar a neutralidade dos gases de
efeito estufa até o ano de 2050, é necessário um planeamento e uma progressiva trajetória
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de redução desses gases, de modo que, quanto mais rápido forem adotadas medidas para
reduzir as emissões, menos drásticas deverão ser as alterações impostas no estilo de vida
das pessoas.
Contudo, a Lei de Proteção do Clima transfere proporções significativas dos encargos
de redução de gases com efeito de estufa para períodos posteriores a 2030. Isso pode impli-
car novos encargos de redução no futuro, que deverão ser adotados a curto prazo, o que
pode exigir enormes esforços ameaçando, assim, a liberdade fundamentalmente prote-
gida dos atingidos.
Isso ocorre porque, a redução das emissões de gases com efeito estufa afeta potencial-
mente toda a forma de liberdade, tendo em vista que, hoje, quase todas as áreas da vida
humana provocam a emissão de gases com efeito estufa e podem, portanto, ser ameaçadas
por restrições dsticas após 2030.
Nessa senda, o Tribunal Federal Constitucional da Alemanha considerou que o direito
fundamental da liberdade pode ser inconstitucionalmente ameaçado, considerando que
as atuais disposições legais permitem emissões de gases de efeito estufa em proporções
demasiado generosas num futuro próximo, o que implica que os encargos de redução
necessários seriam transferidos para o futuro, em detrimento da futura liberdade.
Com efeito, as quantidades de emissão de gases com efeito estufa autorizadas até ao
ano 2030 já têm consequências para os encargos de redução subsequentes. Desta forma,
já estão a determinar futuras restrições aos direitos fundamentais, conforme os próprios
termos legais. Isso porque os gases emitidos geram efeitos irreversíveis na temperatura
da Terra. Além disso, deve-se seguir um caminho progressivo até à neutralidade climática,
de modo que não se pode deixar tudo para o último momento. A ausência de ações mais
contundentes nos anos mais próximos implica, inevitavelmente, a necessidade de tomada
de ações mais dsticas de redução no futuro em condições potencialmente mais desfavo-
ráveis, o que atingiria drasticamente o direito à liberdade.
As restrições à liberdade são mais brandas quanto mais tempo houver para a mudança
para alternativas sem gases de efeito estufa; quanto mais cedo for iniciada, mais se reduz
o nível global de emissões. Se, por outro lado, uma sociedade caracterizada por um modo
de vida intensivo em gases de efeito estufa tiver de mudar para comportamentos neu-
tros em termos climáticos, no mais curto espaço de tempo possível, as restrições à liber-
dade seriam, então, enormes. Neste caso, as metas de redução de emissões para o período
após 2030 teriam de ser muito mais ambiciosas e as medidas daí derivadas teriam que ser
muito mais dsticas para a liberdade dos detentores de direitos fundamentais, conside-
rando que a determinação das emissões totais admissíveis a nível nacional afeta todas as
áreas de vida dos titulares dos direitos fundamentais.
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Implementação da Lei de Proteção do Clima
Implementation of the Climate Protection Act
ANJA BOTHE, DANILA GONÇALVES DE ALMEIDA
GALILEU · e-ISSN 2184-1845 · Volume XXIII · Issue Fascículo 1-2 · 1st January Janeiro – 31st December Dezembro 2022 · pp. 107-122
Partindo dessas premissas, o tribunal, no acórdão, considerou a necessidade de salva-
guarda da liberdade futura (no caso, após 2030), numa perspetiva intertemporal, tendo em
vista a necessidade de distribuição equitativa desse direito à liberdade ao longo do tempo
e das gerações.
7. Inconstitucionalidade decorrente de um prejuízo futuro?
Considerando que essa transferência de encargos de redução de emissões para depois de
2030 se trata de uma situação que somente vai afetar o futuro, não se poderia dizer que é
inexistente um dano atual? Ou seja, que não há uma atual violação de direitos fundamen-
tais já que a lesão ainda não ocorreu?
No entanto, o tribunal alemão entendeu que, como já existe uma legislação em vigor
que conduz a essa situação no futuro, a preocupação já se faz válida no presente. A liber-
dade após 2030 está ameaçada precisamente porque já existe uma legislação que permite
a emissão de gases de efeito estufa em níveis ainda elevados até o ano de 2030, o que gera
consequências irreversíveis. Assim, se houvesse uma queixa constitucional no futuro con-
tra essas restrições à liberdade, esta seria inócua diante da situação de irreversibilidade, de
modo que é preciso reconhecer, já no presente, o direito de reclamar em juízo.
As obrigações estatais de proteção decorrentes da função objetiva dos direitos fun-
damentais, não intervêm portanto apenas quando já ocorreram lesões, mas são também
direcionadas para o futuro. Inclusive, a obrigação de proteger contra riscos para a vida e
a saúde pode igualmente justificar o dever de proteção das gerações futuras, mormente
quando estão em causa eventos irreversíveis.
8. Foram reconhecidos direitos às gerações futuras?
Embora tenha sido reconhecida a necessidade de se resguardar as liberdades futuras, isso
não significa que o Tribunal Federal Constitucional da Alemanha tenha reconhecido direi-
tos às gerações futuras.
No caso, os juízes consideraram que os requerentes estavam, eles próprios, defendendo
as suas próprias liberdades, por se tratar predominantemente de adolescentes e adultos
jovens. Ou seja, esses autores estão, eles próprios, sujeitos às medidas necessárias para
reduzir as emissões de gases de efeito estufa depois de 2030. Não estavam eles, portanto,
a afirmar os direitos dos que ainda não nasceram, ou de gerações futuras inteiras. Pelo
contrário, eles estavam a procurar defender os seus próprios direitos fundamentais.
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Implementação da Lei de Proteção do Clima
Implementation of the Climate Protection Act
ANJA BOTHE, DANILA GONÇALVES DE ALMEIDA
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Aqui, porém, deve-se fazer uma ressalva, pois aqueles queixosos com residência no
Bangladesh e no Nepal, por não poderem ser afetados pelas medidas mais restritivas na
Alemanha depois de 2030, não têm legitimidade nesse aspeto.
Segundo o acórdão, o dever constitucional de proteger a vida e a saúde dos perigos
das alterações climáticas pode também estabelecer uma obrigação objetiva de proteger
as gerações futuras. E, na hipótese de incerteza científica sobre as causas relevantes das
ameaças ambientais, o dever especial de cuidado conferido ao legislador, pelo artigo 20.ºa
da Constituição alemã, também deve ser interpretado em benefício das gerações futuras,
tendo em conta indicações já fiáveis da possibilidade de consequências graves ou irrever-
síveis ao ambiente. Este artigo, inclusive, contém uma norma jurídica que se destina a
vincular o processo político a favor de preocupações ecológicas, tendo em vista, também,
as gerações futuras. O mandato objetivo de proteção do artigo 20.ºa, da Constituição Fede-
ral alemã, abrange a necessidade de lidar com os fundamentos naturais da vida e de os
deixar, à posteridade, num estado tal que as gerações seguintes não se vejam obrigadas a
preservá-las apenas ao preço da uma abstinência radical.
Segundo o posicionamento do tribunal alemão, a obrigação intergeracional do Estado
de proteger é portanto apenas de natureza objetiva, uma vez que as gerações futuras não
são atualmente capazes de direitos fundamentais em termos subjetivos, quer como grupo,
quer como soma das pessoas singulares que viverão apenas no futuro. No entanto, tendo
em conta os grandes perigos que as alterações climáticas podem implicar, como os peri-
gos relacionados a ondas de calor, inundações, furacões etc., o Estado é obrigado a atuar
para proteger tanto as pessoas que vivem hoje, como, de uma forma objetiva, as gerações
futuras.
9. O princípio da equidade intergeracional
Embora não constem do acórdão ora analisado as observações que seguem, é interessante
observar, para fins de comparação, que Brasil e Portugal reconhecem um direito funda-
mental ao meio ambiente, independente do direito à vida, à saúde, à integridade física
etc. Isso torna mais fácil, em tese, reconhecer-se um direito difuso ao ambiente, o qual diz
respeito não apenas às gerações atuais, mas também às gerações futuras, principalmente
quando se considera o princípio da equidade intergeracional, que é previsto tanto na Cons-
tituição portuguesa, como na brasileira.
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Implementação da Lei de Proteção do Clima
Implementation of the Climate Protection Act
ANJA BOTHE, DANILA GONÇALVES DE ALMEIDA
GALILEU · e-ISSN 2184-1845 · Volume XXIII · Issue Fascículo 1-2 · 1st January Janeiro – 31st December Dezembro 2022 · pp. 107-122
Segundo EDITH BROWN WEISS,3 advogada e autora americana, o princípio da equi-
dade intergeracional compreende os seguintes princípios:
a) princípio de conservação das opções – segundo o qual, cada geração é obrigada a
preservar a diversidade de sua base de recursos naturais e culturais, de forma a não
limitar indevidamente o leque de opções de que disporão as gerações futuras para
resolver seus próprios problemas;
b) princípio da conservação da qualidade – o qual estabelece que se preserve a qua-
lidade do planeta para transmiti-lo em um estado que não seja inferior àquele a que a
geração presente teve acesso, de forma que cada geração possa beneficiar de um pla-
neta comparável em qualidade àquele do qual beneficiaram as gerações anteriores; e
c) princípio da conservação do direito de acesso – de acordo com o qual, cada gera-
ção humana tem o dever de assegurar a todos os seus membros, de forma equitativa,
direitos de acesso à herança planetária, além de conservar tais direitos de acesso às
gerações futuras.
O jurista e filósofo belga FRANÇOIS OST,4 por sua vez, entende a responsabilidade em
relação às gerações futuras sob a forma da transmissão de um património comum, ligando
todos os membros da espécie humana (presentes, passados e futuros), pois todos têm igual
dignidade, de forma que todos também têm direito de beneficiar desse património comum
e, ao mesmo tempo, cada geração tem o dever de transmitir esse património para as gera-
ções futuras. Assim, cada geração é apenas usufrutria dessa herança planetária, e não
sua titular/proprietária.
Nesse contexto, embora a proteção das gerações futuras possa ocorrer sem que lhes
sejam conferidos direitos, WEISS defende que reconhecer direitos às gerações futuras
(ainda que direitos em um sentido mais amplo) é mais eficaz para a defesa dos interesses
das gerações futuras e do meio ambiente, do que a previsão unicamente de deveres.
Essa autora define os direitos intergeracionais (ou planetários) como os direitos de cada
geração de receber o planeta numa condição que não seja inferior àquela da qual benefi-
ciou a geração precedente, de herdar uma diversidade comparável de recursos naturais e
culturais e de ter acesso equitativo ao uso e aos benefícios desse legado.5 Quanto aos deve-
res intergeracionais, ela menciona os seguintes: dever de conservar os recursos; dever de
assegurar uma utilização equitativa; dever de evitar efeitos prejudiciais; dever de evitar as
3 EDITH BROWN WEISS, Justice pour les générations futures. Paris: Sang de la terre (1993) 35.
4 FRANCOIS OST, La nature hors la loi: l’écologie à l’épreuve du droit. Paris: La Découverte (2003) 297-298.
5 EDITH BROWN WEISS, Intergenerational fairness and rights of future generations. Generational Justice! N.º 3 (nov.
2002) 6.
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Implementação da Lei de Proteção do Clima
Implementation of the Climate Protection Act
ANJA BOTHE, DANILA GONÇALVES DE ALMEIDA
GALILEU · e-ISSN 2184-1845 · Volume XXIII · Issue Fascículo 1-2 · 1st January Janeiro – 31st December Dezembro 2022 · pp. 107-122
catástrofes, de limitar os desgastes e de fornecer uma ajuda de urgência (cooperação entre
países no caso de desastres ecológicos); dever de reparação em caso de danos ao ambiente.
10. Mandado de proteção objetiva e a proteção das gerações futuras
Fazendo-se uma analogia, dentre os deveres intergeracionais indicados por WEISS, o de
assegurar uma utilização equitativa é o que mais se assemelha ao fundamento adotado
pelo Tribunal Federal Constitucional Alemão ao considerar que se deve salvaguardar a
liberdade ao longo do tempo, assim como a distribuição proporcional de oportunidades
de liberdade ao longo de gerações, não sendo razoável criar-se riscos desproporcionais no
decurso do tempo, violando a equidade entre atuais e futuras liberdades fundamentais.
Desta forma, embora não reconheça direitos às gerações futuras e tenha reduzido a
análise à possibilidade de lesão da liberdade futura dos próprios queixosos, o tribunal ale-
mão admite, em tese, que o mandado de proteção objetiva derivado do artigo 20a, da Cons-
tituição Alemã, inclui também a necessidade de lidar com atenção com os fundamentos
naturais da vida, de modo a deixá-los à posteridade num estado tal que não obrigue as
gerações seguintes a preservá-los somente ao custo de uma privação radical.
11. Inadequação dos requisitos legais para a continuação da trajetória de
redução após 2030
Segundo a Lei de Proteção do Clima, a continuação do caminho de redução de gases de
efeito estufa nos períodos anuais após a trajetória regulamentada até 2030 será discipli-
nada por decreto, de modo que o governo federal deve definir as quantidades anuais de
redução de emissões em 2025 para períodos adicionais após 2030 por meio de um decreto
regulamentar.
Dessa forma, tendo em vista que o processo de redução após 2030 é orientado pela
autorização para emitir decretos, tal disposição deve ser capaz de criar o horizonte de pla-
neamento exigido pelo Direito Constitucional. Isso implica que disposições transparen-
tes para o desenvolvimento de opções de emissões remanescentes e requisitos de redução
para após 2030 devem ser formuladas o mais cedo possível, a fim de se possibilitar um
planeamento e desenvolvimento em grande escala em tempo útil, de modo a não se res-
tringir a liberdade futura de forma abrupta, radical e sem possibilidade de substituição.
De acordo com o que foi decidido pelo Tribunal, é compreensível que, quando da ela-
boração da Lei de Proteção do Clima, não fosse possível determinar especificamente os
caminhos de redução para além do ano de 2030 até o ano de 2050, definido como o ano em
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Implementação da Lei de Proteção do Clima
Implementation of the Climate Protection Act
ANJA BOTHE, DANILA GONÇALVES DE ALMEIDA
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que deve ser atingida a neutralidade climática. Isso porque o desenvolvimento técnico e a
mudança comportamental não podem ser previstos com suficiente previsão, de forma que
estabelecer muito cedo caminhos rígidos de evolução, mormente em áreas do Direito que
estão constantemente sujeitas a mudanças, pode até mesmo comprometer o potencial de
desenvolvimento e revelar-se prejudicial à proteção dos direitos fundamentais.
Por outro lado, os caminhos que até agora só foram regulamentados por lei até 2030
devem ser desenvolvidos continuamente ao longo do tempo num processo gradual, o que
deve acontecer em tempo hábil para que surjam horizontes de planeamento claros, com
a especificação das quantidades anuais adicionais de emissões e as medidas de redução
necessárias, de modo a ser criada uma orientação suficientemente concreta, permitindo
reconhecer quais os produtos e comportamentos que terão de ser significativamente
remodelados.
Partindo dessas premissas, o Tribunal Federal Constitucional da Alemanha conside-
rou que os parâmetros previstos na lei para a continuação da trajetória de redução após
2030 não atendem aos requisitos constitucionais de um projeto que forneça orientação
suficiente para desenvolvimentos futuros. Embora não se possa exigir que as quantida-
des de emissão sejam determinadas especificamente até que a neutralidade climática
desejada seja atingida em 2050, não é suficiente a previsão de que o governo federal esti-
pule, em 2025, as emissões decrescentes anuais para períodos adicionais após 2030 por
meio de decreto. Isso porque o caminho de redução dificilmente poderá ser determinado
definitivamente em 2025, de forma que ao menos teria que restar determinado na lei em
que intervalos de tempo outras especificações devem ser feitas de forma transparente.
Ademais, o planeamento para períodos além de 2030 somente ocorreria em 2025, o que
resulta em um tempo de preparação de apenas cinco anos para o período seguinte. Assim,
é improvável que haja um horizonte de planejamento hábil em muitas áreas de produção,
consumo e infraestrutura.
A previsão legal não garante, portanto, que as estipulações sejam realizadas com a
antecedência necessária e nada é dito sobre a duração dos períodos a serem regulamen-
tados pelo governo federal. Assim, a lei deveria fornecer estipulações mais abrangentes,
regulando tudo o que é necessário para a trajetória de redução no futuro em tempo hábil.
A Constituição alemã permite que o Governo Federal seja autorizado por lei a emitir
decretos regulamentares. Entretanto, o conteúdo, a finalidade e a extensão da autorização
legal concedida devem ser determinados na própria lei. O grau de especificidade da lei
quanto à autorização em cada caso depende também da intensidade dos efeitos da regula-
mentação sobre os afetados. Quanto mais graves forem os efeitos, mais numerosos serão
os requisitos para autorização. No presente caso, a princípio, o legislador pode estipular
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Implementação da Lei de Proteção do Clima
Implementation of the Climate Protection Act
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que novos regulamentos, para determinação das quantidades de emissões anuais para
períodos posteriores a 2030, sejam feitos por decreto. Entretanto, o princípio constitucio-
nal da reserva de lei impõe que o próprio legislador determine as bases decisivas do espaço
jurídico a regulamentar, que afetam essencialmente o espaço de liberdade e igualdade dos
cidadãos, não podendo deixar isso a cargo da administração.
Assim, para que a determinação adicional das quantidades de emissões anuais possa
ser realizada por meio de decreto, o legislador deve definir a extensão da autorização de
forma mais precisa, determinando a amplitude das quantidades de emissões anuais a
serem determinadas ou especificando requisitos mais detalhados para a sua determina-
ção espefica. Isso implica que as disposições da Lei do Clima, neste aspeto, são incons-
titucionais, diante da ausência de determinação das bases essenciais para a regulamen-
tação sobre a atualização das metas de redução de 2031 até ao momento da neutralidade
climática.
Conclusão
A partir da alise do que foi decidido pelo Tribunal Federal Constitucional da Alema-
nha quanto às queixas apresentadas contra certas cláusulas da Lei de Proteção do Clima
e contra alegadas omissões do Estado na mitigação das alterações climáticas, observa-se
que, por inexistir na Constituição da República Federal da Alemanha uma previsão explí-
cita de um direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, a questão foi anali-
sada a partir dos deveres estatais de proteção da vida e da integridade física das pessoas,
do direito ao desenvolvimento da personalidade, da dignidade humana, da liberdade de
escolha de profissão, do direito de propriedade privada e do dever do Estado de proteger o
ambiente, os quais foram considerados como atendidos pelo legislador.
Além disso, foi analisado, ainda, o direito fundamental da liberdade, o qual foi con-
siderado como inconstitucionalmente ameaçado pelas disposições da Lei de Proteção do
Clima, por transferirem proporções significativas dos encargos de redução de gases com
efeito de estufa para períodos posteriores a 2030, comprometendo a liberdade futura.
Embora o Tribunal Federal Constitucional da Alemanha não reconheça direitos às
gerações futuras, admite, em tese, que o mandado de proteção objetiva derivado do artigo
20a, da Constituição Alemã, inclui também a necessidade de cuidar dos fundamentos
naturais da vida, de modo a deixá-los à posteridade em um estado tal que não obrigue as
gerações seguintes a preservá-los somente ao custo de uma privação radical.
Foram também consideradas inconstitucionais certas disposições da Lei de Proteção
ao Clima por estabelecerem que a determinação adicional das quantidades de emissões
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Implementation of the Climate Protection Act
ANJA BOTHE, DANILA GONÇALVES DE ALMEIDA
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anuais de gases de efeito estufa seja realizada por meio de decreto sem que o legislador
tenha definido a extensão da autorização de forma mais precisa, no que se refere às bases
essenciais para a atualização das metas de redução de 2031 até o momento da neutralidade
climática.
Em 24 de junho de 2021, o Parlamento Federal e no dia a seguir o Conselho Federal,
aprovaram a primeira alteração da Lei Federal de Proteção do Clima. Conforme exigido
pelo Tribunal Federal Constitucional, foram elevadas as metas de redução de gases com
efeito estufa e equivalente de 55% até 2030 para 65%, e para 88% até 2040 em comparação
com os valores de 1990. A neutralidade carbónica deve ser alcançada em 2045 em vez de
2050. Em consonância com estes valores, foram adaptadas as quantidades de emissões
anuais para cada setor para os anos 2023 a 2030. O Governo Federal fica obrigado a deter-
minar os valores anuais para 2031 a 2040 até 2024, e para 2041 a 2045 até 20326.
Para além das alterações introduzidas na Lei Federal de Proteção do Clima, o Acórdão
do Tribunal Federal da Alemanha e as inundações em junho 2021 fizeram com que as alte-
rações climáticas se tornassem o tema central para as campanhas eleitorais das legislati-
vas, agendadas para o dia 26 de setembro de 2021, na Alemanha.
6 PARLAMENTO FEDERAL ALEMÃO, Boletim do Parlamento Federal Alemão (Drucksache) 19/30230, Entwurf eines Ersten
Gesetzes zur Änderung des Bundes-Klimaschutzgesetzes (Projeto de uma primeira lei de alteração da Lei Federal de Proteção
do Clima), dserver.bundestag.de/btd/19/302/1930230; CONSELHO FEDERAL ALEMÃO, Boletim Federal do Conselho
Federal Alemão 576/21, www.bundesrat.de/SharedDocs/drucksachen/2021/0501-0600/576-21.
RECENSÕES
REVIEWS
GALILEU · e-ISSN 2184-1845 · Volume XXIII · Issue Fascículo 1-2 · 1st January Janeiro – 31st December Dezembro 2022 · pp. 124-130 124
Brazilian Politics on Trial: Corruption & Reform Under Democracy
by Luciano da Ros and Matthew M. Taylor (Reinner, 281 pp., 2022)
1 Bruce Zagaris is a partner with the law firm of Berliner, Corcoran & Rowe, LLP, Washington, D.C. His criminal
work has included counseling businesses on anti-corruption and anti-money laundering and preparing due dili-
gence programs. He regularly testifies as an expert in international criminal cases involving evidence gathering,
extradition, prisoner transfers, money laundering and tax crimes, and counseling of witnesses for grand jury
investigations. Since 1985, he has edited the International Enforcement Law Reporter. He has been an adjunct
professor of law at several law schools. He has authored and edited several books, including International White
Collar Crime: Cases and Materials (2d ed. Cambridge U. Press, 2015), International Criminal Law with Jordan
Paust et al (4th ed. Carolina Academic Press, 2013) and hundreds of articles on international law. He has repre-
sented various governments and international organizations on international financial services, transparency,
and financial regulatory issues. For several governments he has advised on and participated in negotiations with
respect to income tax treaties, tax information exchange agreements, and mutual assistance in criminal matters
treaties. Since 1981, he has registered under the Foreign Agents Registration Act. He has testified several times in
Congress on international tax, financial services, and international evidence gathering issues. He has authored
Foreign Investment in U.S. Real Estate (Praeger Press 1979).
2 Professor Taylor has worked in Brazil for more than a decade, including serving on the faculty of political science
at the University of São Paulo from 2006-2011. He has written several books on Brazil, including D D
 T P E  D B C U P 
BRUCE ZAGARIS1
bzagaris@bcr-dc.com
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXII · 1st January Janeiro–31ST December Dezembro 2022 · pp.124‑130
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXIII.1/2.01
Submitted on July 22th, 2022 · Accepted on July 26th, 2022
Submetido em 22 de Julho, 2022 · Aceite a 26 de Julho, 2022
This book analyzes Brazil’s complex his-
tory of corruption and anticorruption
since the return to democracy in 1985,
and evaluates its lessons for anticorrup-
tion reformers in Brazil and in other large
democracies. The authors, an assistant
professor of political science at the Federal
University of Santa Catarina and an asso-
ciate professor of international relations
at American University in Washington,
2evaluate the corruption scandals that
occurred and the anticorruption reforms
that have arisen. The book considers the
conditions whereby anticorruption efforts
succeed. The book discusses the deba-
tes around Lava Jato, the impeachment of
Dilma Rousseff, and the election of Jair
Bolsonaro.
According to the authors, Brazil’s anti-
corruption development has been unique
because its accountability reforms have
followed two distinct strategies, one incre-
mental and the other a big push. From 1985
until the 2010s, Brazil had a piecemeal,
gradual, small-scale reform strategy. Star-
ting in 2014, Brazil’s anticorruption efforts
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REVIEWS
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underwent dynamic changes as the task
force of the Lava Jato investigation and
many of its allies across government and
within civil society, quickly increased the
tempo of anticorruption efforts, including
investigations and prosecutions of diverse
groups of elite figures, public mobiliza-
tion, and legislative reforms, in a big push
for accountability.
Chapter 1 discusses the distinctions
between the big push approach to anticor-
ruption, which pushes for quick changes
in the equilibrium while the status quo
is in flux, as occurred with Vicente Fox
in Mexico and incrementalism, whereby
small gradual gains are built on top of each
other.
Chapter 2 describes the prevalent syn-
drome of “elite cartel” corruption. The
authors discuss four prominent cases of
grand corruption that occurred in the pre-
-Lava Jato era. The authors attributed the
syndrome to “the perilous combination
of coalitional presidentialism3 in a hyper-
fragmented party system, a large state
with a developmentalist4 economic policy
infrastructure, and a loose campaign
3 Coalitional presidentialism refers to the “strategy of directly elected minority presidents to build stable majority
support in fragmented legislatures, particularly through the coordination of two or more legislative parties by
the president”. In this regard, no president’s party since 199 in Brazil has held more than one-fifth of congressio-
nal seats. B P  T  
4 The developmental state is the idea that the state can be an engine of long-term development through consciously
changing investment conditions, grappling with market failures, and addressing coordination problems. B
 P  T  
5 Campaign finance in Brazil enables both private individuals and businesses to contribute to candidates with only
limitations as a proportion of an individual’s income or a company’s revenue respectively. As a result there is an
extreme concentration of donors; Significant parts of the contributions were irregular, unregistered with elec-
toral officials, and were characterized as caixa dois, a so-called second registered, meaning they are from a second,
off-the-books, illicit source. Id.
finance system.5 The cases showed recur-
ring historical patterns of weak accounta-
bility, which may have contributed to the
emergence of Lava Jato.
The book notes that in the Lava Jato
cases, the operators, doleiros, and fixers in
the scheme, were prosecuted, but not the
economic and political elites involved in
these scandals. One of the reasons federal
officeholders were not prosecuted is that
they can be prosecuted for their crimes
only before STF. The specific rules of the
STF have been revised to preserve political
elites.
Chapter 3 traces Brazil’s incremental
progress from a fairly low accountability
equilibrium toward a much-improved, if
still intermediate, equilibrium during the
course of three decades between 1985 and
2014. The chapter evaluates the substan-
tial reforms in the accountability policy
that facilitated these improvements, and
discusses the reforms that followed.
The authors trace the fact that in the
first seven years following the return to
democracy in 1985 there was a streng-
thening of civic engagement and trans-
126
RECENSÕES
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parency mechanisms such as increased
media coverage and greater citizen access
to public information required in a demo-
cracy. Overall, the reputational, political,
and legal forms of accountability grew in
the context of responding to grand corrup-
tion.
Endogenous reforms occurred due
mainly to agencies responsible for the
implementation of anticorruption tasks.
They involved innovations at the orga-
nizational level, such as training and
specialization programs, initiatives for
interagency coordination, and the develo-
pment of new technologies and processes.
ENCCLA (Strategy for AntiCorruption and
Anti-Money Laundering), the proliferation
of task forces, and the establishment of
courts specializing in financial crimes are
examples of the endogenous reforms.
At a grassroots level, new civil society
organizations devoted to issues of crime,
corruption, voting rights, and improved
public sector performance. They included
in the anticorruption work Amarribo, Arti-
culaçao Brasileira Centra a Corrupção e a
Impunidade (ABRACCI), Instituto Ethos
de Empresas e Responsabilidade Social,
Movemento de Combate à Corrupção Elec-
toral (MCCE), Transparencies Brasil, and
Observatório Social do Brasil.
Chapter 4 evaluates the big push which
occurred in Lava Jato. The chapter discus-
ses the contingent and highly contextual
factors, and the longer-term institutional
changes that had incrementally accumula-
ted over the prior three decades in Brazil.
The authors underscore the various capa-
cities in the accountability institutions in
Brazil as a whole, and especially in Lava
Jato’s headquarters in Curitiba. The legal
and political strategies used by the task
force of prosecutors and investigators to
help judicial cases progress are reviewed,
as well as the context of severe political
gridlock that prevented any credible threat
of political interference in the investiga-
tions, particularly during the operation’s
first two years. The chapter underscores
how the task force achieved a big push
through legal action, a media push, broad
public engagement, and a reform effort
that tried for ambitious changes in the
statutory rules governing corruption pro-
secutions.
Lava Jato signaled the court’s unu-
sual proactivity and its decision to con-
vict powerful political figures, including
Lula’s former chief of staff, José Dirceu.
All the anticorruption investigations, the
impeachment of Dilma Rouseff reflected
declining popular support by political eli-
tes and rising dissatisfaction of the popu-
lation with political leaders. In 2012 and
2013, Congress enacted three important
new laws: (1) the reform of the 1998 Anti-
-Money laundering Law; (2) the Anti-Cor-
ruption Law; and (3) the Organized crime
Law. These laws formally instituted plea
bargaining, corporate liability for corrup-
tion, leniency agreements, and penalties
for racketeering. Capacity was increased
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by technological innovations during Lava
Jato. They included the Sislava system per-
mitting shared information system used
by prosecutors and the Receita Federal
(the Internal Revenue Service) to analyze
bank and fiscal records. Online access to
bank records was expanded and more than
500 requests for international cooperation
occurred involving forty-five countries,
producing an abundant amount of infor-
mation.
Chapter 5 discusses the disintegration
of Lava Jato and its implications for accoun-
tability institutions that had developed
prior to the investigation. The impea-
chment of President Rousseff’s in 2016
is discussed, and the effects of political
realignment and saturation. The chapter
discusses how, starting in 2016 and con-
tinuing under the Bolsonaro regime after
2018, new governing coalitions targe-
ted Lava Jato and reversed accountability
improvements.
Developments resulted in the questio-
ning of the Lava Jato task force on several
legal, political, and ethical grounds. They
reached their apogee with the arrest of
former president Lula in April 2018. 35 per-
cent of the population believed Lula recei-
ved worse treatment than other defen-
dants. The increasing doubts about the
case and about the costs of accountability
facilitated a reversal of the gains of Lava
Jato and accountability improvements.
The concerns resulted in the shifting of
campaign finance cases out of federal cri-
minal courts. In addition, President Temer
replaced the head of the Federal Comp-
troller’s Office (CGU) and most of the top
officials in the Justice Ministry. Bolsonaro
overruled his justice minister in seeking
to replace the head of the Federal Policy
in Rio and ultimately the director gene-
ral of police, resulting in Sergio Moro’s
resignation. The Brazilian executive also
sidelined top officials in the Receita Fede-
ral and COAF (the Financial Intelligence
Unit) after they criticized the high court or
appeared not willing to suppress investi-
gations of Bolsonaro family members.
Chapter 6 considers the broader lessons of
Lava Jato from a comparative perspective.
One is that judicial pushes, such as Lava
Jato, have not succeeded in democracies, as
has been showed in examples of Italy and
France in the 1990s and Indonesia since
the 2000s. The authors discuss the rever-
sion to equilibrium closer to the old status
quo ante before Lava Jato. They conclude
that big push efforts out of low accountabi-
lity equilibria can easily lead to a perverse
effect whereby the end result is worse than
the initial condition. The chapter conclu-
des that the big push approach is especially
challenging in large democracies such as
Brazil. In a large consolidating democracy
like Brazil, big push efforts may threaten
the democratic regime by destabilizing the
political system without restructuring the
underlying incentives of political engage-
ment that triggered the corruption.
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Chapter 7 focuses on two bottlenecks
to the accountability process in Brazil: (1)
the extent to which collusion between
political and economic elites enabled
them to push back against accountability
policies and reduce the effectiveness of
reform; (2) and the weakness of the sanc-
tioning process, which is weakened due
to administrative lethargy and judicial
breakdowns in grand corruption cases.
These two bottlenecks have served as obs-
tacles to Brazil’s progress and have even
contributed to regression.
While Brazil has achieved some gains
in transparency, oversight, capacity, and
effectiveness, two important obstacles
continue: achieving effective sanction,
especially for the political elite, and the
unique patterns of political dominance in
the coalitional presidential system. Brazil
has not sustained the early gains it made
in accountability. Progress has not been
deep insofar as it does not seem that the
institutional incentives have changed. The
progress was narrow insofar as many of
the most concrete gains of recent years in
the Lava Jato case, as opposed to improved
effectiveness of police, prosecutors, and
judges in other contemporary cases.
The Brazilian judiciary’s inefficiency
and uncertainty has continued to protect
elites. The politicians have also blocked
further anticorruption progress. The ope-
ration of campaign finance and the role of
the executive branch as a source of patro-
nage and privilege, even for members of
the opposition, make politicians reticent
to criticize incumbents for accountability
breaches. Most of the accountability chan-
ges are due to developments outside the
political system, from agencies such as the
Federal Police, from autonomous bodies
such as the Ministério Publico, or from
civil society and the media.
Police and prosecutors have been force
to rely on a court system that not only was
slow and timid in combating wrongdoing
by the political elite, the authors say that
the two highest courts, the STF (Supreme
Federal Tribunal) and the STJ (Superior
Tribunal of Justice) were interlinked with
the very political bodies they are asked to
control.
The anticorruption improvements in
Brazil are the improvement in oversight,
with the media, congressional commit-
tees of inquiry, and in the 2000s, effective
investigation and prosecution, especially
in lower court criminal trials and civil
cases, even the high courts repeatedly
overrode them on procedural grounds and
enormous delays. Starting in the 2010s, a
problem was that few trials actually lead
to effective punishment for powerful eli-
tes.
The authors conclude that eventually
Lava Jatobecame a victim of its own suc-
cess. Public exhaustion, self-inflicted wou-
nds, failure to expand more broadly across
the judicial system, increasing contro-
versy, and the growing opposition of judi-
cial, political, and economic elites began
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to slow the progress of anticorruption
efforts.” During 2016-2021, the legislative
branches reasserted their supremacy over
the judiciary and the accountability insti-
tutions. As the key actors, such as Judge
Sérgio Moro joined the political regime,
critics of the anticorruption efforts cha-
racterized those efforts as partisan.
As a result, the STF realigned and prio-
ritized more defendants’ rights. President
Temer, and Bolsonaro reduced the budgets
available to oversight agencies and des-
tabilized the bureaucracy by appointing
unsympathetic directors to key agencies.
Congress blocked and diluted reforms.
Nevertheless, several signicant anti-
corruption laws, such as the Anti-Money
Laundering Act of 1998, The Law of Admi-
nistrative Improbity, the Criminal Organi-
zations Law of 2013 (formalizing plea bar-
gaining) have been enacted.
The authors prioritize four interrela-
ted areas as ripe for incremental reform in
the future: revising the incentives within
coalitional presidentialism, tightening
campaign finance, judicial reforms (redu-
cing the privileges to politicians such as
access to the original jurisdiction of the
high courts), and improving control and
oversight of the expansive developmental
state apparatus. The latter gives rise for
huge patronage opportunities.
The authors point to important les-
sons from Brazil’s anticorruption efforts.
The Brazilian developments illustrate the
benefits of incrementalism over big bang
approaches, especially when the judicial
system drives these big pushes; the gains
from viewing accountability as a process
more than an outcome; and the realization
that anticorruption progress can be made
by focusing on smaller reforms to each
of the components of the accountability
regime.
As the authors observe, one of the conti-
nuing improvements in anticorruption in
Brazil has occurred because civil servants
and policymakers developed incremental
improvements in the elements of overall
accountability: transparency, oversight,
sanction, and capacity. They improved
audits, enacted laws governing corporate
behavior, and improved bureaucratic coor-
dination. In addition, efforts to strengthen
oversight agency, prosecutorial indepen-
dence, and better anti-money laundering
laws enabled Brail to incrementally stren-
gthen accountability. While Brazil’s anti-
corruption progress has not always been
even, it nevertheless has significantly
improved. As a result, the authors hold
hope for the prospects that Brazil has a
much better anticorruption and accounta-
bility framework going forward.
An appendix provides tables for Brazil’s
major federal corruption scandals during
1985-2021. It considers as “major federal
political corruption scandals” those scan-
dals that allegedly involved misconduct
by members of Congress or the executive
branch, or both, and that received signifi-
cant attention from the national media.
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The book contains 35 pages of useful
references.
Even though only the Brazilian author
has a law degree, the discussions focus
on the development of anticorruption
and accountability institutions and fra-
meworks, including law, legal actors, and
the various pressures influencing them.