GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXII · Issue Fascículo 2 · 1st July Julho – 31st December Dezembro 2021 · pp. 21‑40 21
Do procedimento disciplinar na PSP:
Entreaadmissibilidade e inadmissibilidade
probario processual das mensagens
doWhatsApp1
Disciplinary procedure in PSP: Between the admissibility and
inadmissibility of probatory procedural messages on WhatsApp
CARLOS MANUEL SEQUEIRA CAROLINO2
carlos.carolino@hotmail.com
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXII · 1st July Julho–31ST December Dezembro 2021 · pp.21‑40
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXII.2.2
Submitted on November 30th, 2021 . Accepted on December 28th, 2021
Submetido em 30 de Novembro, 2021 . Aceite a 28 de Dezembro, 2021
RESUMO O presente estudo tem como objetivo contrabalançar os diversos institutos
jurídicos que se prendem com os direitos fundamentais e direitos de personalidade com
a doutrina e jurisprudência, para concluirmos pela admissibilidade ou inadmissibilidade
processual das mensagens do WhatsApp.
É uma temática com marcos recentes importantes, nomeadamente a aprovação da Lei
do Cibercrime, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora dos anos de 2019 e 2020 e,
por fim, a constância de decisões punitivas na PSP em casos análogos aos tratados nos
aludidos arestos.
Concluiu ‑se pelo enquadramento das mensagens enviadas pelo WhatsApp enquanto prova
digital e sujeita à cadeia de custódia de prova, apenas admissível em processo crime, bem
como pelo afastamento das nulidades, através da sua sanação, pelo consentimento do titular
dos direitos de personalidade, in casu, a violação de correspondência, enquanto dimensão
da dignidade da pessoa humana e do direito à reserva da intimidade da vida privada, e
que, em caso de conflito de direitos, devemos atender aos princípios da proporcionalidade
1 O presente artigo corresponde ao Trabalho de Investigação Final apresentado no Instituto Superior de Ciências
Policiais e Segurança Interna (ISCPSI) em novembro de 2021, para conclusão do Curso de Comando e Direção
Policial e, posteriormente, depositado nos serviços do ISCPSI.
2 Mestre em Direito, na especialidade de Ciências Jurídico Criminais, e Licenciado em Direito pela Universidade
Autónoma de Lisboa. Licenciado em Ciências Policiais e Segurança Interna pelo ISCPSI.
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Disciplinary procedure in PSP: Between the admissibility and inadmissibility of probatory ‑procedural messages on WhatsApp
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e adequação, previstos no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, e
com os limites impostos pelo artigo 335.º do Código Civil.
PALAVR ASCHAVE Direitos de personalidade; reserva da vida privada; estatuto disciplinar;
WhatsApp.
ABSTRACT The present study aims to counterbalance the various legal institutes that are
related to fundamental rights and personality rights with the doctrine and jurisprudence,
in order to conclude for the procedural admissibility or inadmissibility of WhatsApp
messages.
It is a theme with important recent milestones, namely the approval of the Law of
Cybercrime, the Judgments of the Évora Court of Appeal of the years 2019 and 2020 and,
finally, the constancy of punitive decisions in the PSP in cases analogous to those dealt
with in the mentioned judgments.
It was concluded by the framing of the messages sent by WhatsApp as digital evidence
and subject to the chain of custody of evidence, only admissible in criminal proceedings,
as well as by the removal of nullities, through its remedy, by the consent of the holder of
personality rights, in this case, the violation of correspondence, as a dimension of the
dignity of the human person and the right to privacy, and that, in case of conflict of rights,
we must attend to the principles of proportionality and adequacy, provided in paragraph
2 of Article 18 of the Constitution of the Portuguese Republic, and the limits imposed by
Article 335 of the Civil Code.
KEYWORDS Personality rights; privacy reserve; disciplinary statute; WhatsApp.
Introdução
A globalização que ocorreu através das plataformas digitais trouxe para o mundo jurídico
‑contemporâneo diversos desafios, nomeadamente em termos de direito laboral (público
e privado).
Foi através das denominadas redes sociais, como por exemplo o facebook, e de outras
plataformas de comunicação, em especial o WhatsApp (enquanto objeto do nosso estudo),
que paulatinamente deixou de existir uma barreira entre os relacionamentos pessoais,
como tradicionalmente eram conhecidos, e os relacionamentos profissionais.
Hoje, tudo está ao alcance de um “clique” no rato, de um “enter” no teclado e de um
touch” no ecrã tátil de qualquer dispositivo móvel de comunicação. Tudo isto transmite
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a ideia de que nos encontramos permanentemente ligados a todo o sítio em qualquer
momento.
Este mitigar de barreiras físicas “assenta numa construção de afastamento do panótico
e da afirmação do sinótico promovido pelas novas tecnologias” que “deram lugar à socie
dade internético ‑personocêntrica3 (Valente, 2019, pp.51 e 50), numa espécie de reminiscência
da conceção de modernidade líquida preconizada por Bauman (2000) em 1960.
É nesta nova tipologia de sociedade que o ser humano, enquanto detentor de direitos
e deveres, cuja fundação elementar é a dignidade da pessoa humana, se encontra perante
“um processo dialético do ser e do dever ser, [onde] cada colocação nas redes sociais é uma
forma da sua afirmação ôntica e ontológica perante os demais membros da sociedade”
(Valente, 2019, p. 39).
São essas colocações ou posts em redes sociais, a maioria feitas em contexto extralabo‑
ral, mas com conexão intrainstitucional, que têm desencadeado inúmeros processos dis‑
ciplinares com recurso (apenas e só)4 como meio de obtenção e meio de prova (material) os
diversos printscreens das mensagens retiradas do WhatsApp adstritas a determinado grupo
de conversação.
Assim, o presente estudo tem como objeto a descrição e confrontação dos regimes jurí‑
dicos vigentes, bem como das alises doutrinal e jurisprudencial em face do dualismo
entre a privacidade da mensagem pessoal, garantida através da ferramenta da encripta‑
ção, e a proteção dada pelo direito à reserva da intimidade da vida privada, na sua dupla
aceção: direito de personalidade (artigo [art.º] 70.º do Código Civil [CC]) e direito funda‑
mental pessoal (art.º 26.º da Constituição da República Portuguesa [CRP]).
A pertinência do estudo resulta das relevâncias policial, jurídica (disciplinar e cri‑
minal) e social em três momentos marcantes: (i) a aprovação da Lei do Cibercrime; (ii) a
constância de decisões punitivas em casos análogos aos que se irão debater no presente
trabalho; e, (iii) os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora (TRE) relativos aos anos de
2019 e 2020.
Os objetivos do presente estudo são: (i) definição da estrutura do processo disciplinar
da PSP; (ii) qualificar juridicamente as mensagens do WhatsApp; (iii) identificar se a reco‑
3 A teoria da sociedade internético ‑personocêntrica é uma construção de Manuel Monteiro Guedes Valente de 2013
e publicado em 2014: http://www.ibadpp.com.br/publicacoes/os ‑desafios ‑do ‑processo ‑penal ‑do ‑estado ‑democratico ‑de‑
‑direito ‑a ‑sociedade ‑internetico ‑personocentrica ‑por ‑manuel ‑valente/.
4 Apesar de ter sido enviado um email no dia 24.09.2021 para o Gabinete de Deontologia e Disciplina da Direção
Nacional da PSP a solicitar os dados referentes aos processos disciplinares mandados instaurar desde a entra‑
da em vigor do EDPSP, nunca obtivemos qualquer resposta, pelo que, em face do exposto, não poderão tais da‑
dos ser apresentados.
Para efetuarmos dita afirmação socorrem ‑nos do nosso conhecimento empírico, considerando a nossa função
como Instrutor disciplinar no Núcleo de Deontologia do CoMetLis.
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lha das mensagens do WhatsApp é considerada prova digital e se está sujeita à cadeia de
custódia de prova; e, (iv) contrabalançar a figura jurídica do consentimento com o princí‑
pio nemo tenetur se ipsum accusare.
Esta análise será realizada tendo por base as análises jurisprudencial e doutrinal, que
nos permitam concluir pela admissibilidade (legalidade) ou inadmissibilidade (ilegali
dade) da utilização das mensagens e das capturas de ecrã de determinada conversão no
WhatsApp como (único) meio de prova de sustentação do processo disciplinar.
I – Estado da arte
1. Contextualização teórica
a) A Administração Pública e a PSP
O Estado, a par das convencionais funções legislativa e judicial, sempre desempenhou uma
função administrativa. Esta função está umbilicalmente ligada à satisfação de forma fre‑
quente e efetiva das carências coletivas da comunidade (segurança, cultura e bem estar),
enquanto razão primordial da existência de administrações públicas (Caetano, 1932; Fon‑
tes, 2020). Por esse facto a Polícia, de acordo com a arrumação sistemático constitucional
do art.º 272.º da CRP, e a sua inserção no título relativo à Administração Pública, remete
‑nos para a ideia de que toda a polícia é apenas e só polícia administrativa (Raposo, 2006).
Contudo, o mesmo preceito, o qual prevê o denominado “Direito Constitucional da
Polícia”, remete nos, ainda, para a tríplice tipologia que a polícia pode revestir: “(a) a polícia
administrativa em sentido estrito; (b) a polícia de segurança; (c) a polícia judiciária” (Canotilho &
Moreira, 2010, p. 858).
A Polícia de Segurança Pública (PSP), enquanto polícia integral e face visível da lei, é
considerada uma polícia administrativa stricto sensu, uma vez que enquanto manifesta‑
ção da Administração Pública (sentido orgânico de Polícia) cabe lhe, nos termos do n.º 1
do art.º 272.º da CRP e considerando uma tendência funcional (prevenção dos perigos) e
teleológico ‑constitucional, a ação destinada a “defender a legalidade democrática e garan‑
tir a segurança interna e os direitos dos cidadãos”.
Ora, estando a PSP situada no âmago da Administração Pública, mais precisamente
na administração direta do Estado, e considerada para efeitos legais como uma carreira
especial subordinada à condição policial, todos os seus elementos estão sujeitos, por força
do previsto nos artigos 4, n.º 1, alíneas d) e e), 6 e 61.º, todos do Decreto ‑Lei n.º 243/2015,
de 19 de outubro, o qual aprovou o Estatuto Profissional do Pessoal com Funções Policiais
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da Polícia de Segurança Pública (EPPSP), conjugado com os artigos 6.º, 8.º, 76.º e 176.º, n.º
3 da Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, a qual aprovou a Lei Geral do Trabalho em Fuões
Públicas (LGTFP), aplicável ex vi do n.º 2 do art.º 5.º do EPPSP, a uma hierarquia e a um
estatuto disciplinar próprios.
A hierarquia implica a possibilidade de os superiores hierárquicos exercerem diversos
poderes5, em especial, e para o tema que nos ocupa, o poder de controlo ou fiscalização.
Este poder, considerado por nós um poder ‑dever subjetivo, consiste, entre outras, na
faculdade que impende sobre o superior hierárquico de intentar um procedimento dis‑
ciplinar, com obserncia estrita do princípio da legalidade, e aplicar sanções ou penas
disciplinares, sempre que seja detetado um desvio, praticado por ação (faccere) ou omissão
(non faccere ou omittere), aos deveres e fins prosseguidos pela PSP.
Mas este critério densificador sofre um alargamento ao permitir que esses mesmos
deveres funcionais possam ser violados, por um lado, através de condutas dolosas ou, pelo
menos, negligentes, só assim adquirindo ressonância ético ‑jurídica negativa e, por outro
lado, os comportamentos externos ou ocorridos em consequência de atos de gestão da
vida privada, que afetem de forma efetiva o funcionamento dos serviços ou coloque em
causa, de forma entendida como grave, a respeitabilidade e o prestigio da função, poderem
determinar o preenchimento dos elementos constitutivos da infração disciplinar (Leal‑
‑Henriques, 2002; Parecer, 2005).
Esta infração é, salvo disposição em contrário, atípica, ou seja, consubstancia “meras
normas de orientação para servirem de padrão do intérprete” (Caetano, 1972, p. 787),
pois utiliza por definição a “técnica da cláusula geral com enumeração exemplificativa”
(Raposo, 2018, p. 102), e assume natureza formal, uma vez que “se esgotam na própria ação
ou omissão (na conduta)” (Silva, 1998, pp.29 ‑30).
Entendemos que aos dois elementos suprarreferidos está associado outro poder fun‑
cional, que se traduz na possibilidade do titular do poder disciplinar, de motu proprio ou
sob proposta do instrutor, e desde que observados determinados requisitos legais, suspen‑
der o processo mediante a imposição de injunções ou regras de conduta ao arguido, sus‑
pender a execução da pena, de acordo com critérios de oportunidade, ou, simplesmente,
optar pela sua execução.
São estes deveres, enquanto deveres éticos, que “ultrapassam os meros deveres jurí
dicos, deixando para [os primeiros] [...] as incidências disciplinares e reservando para os
5 Além do poder funcional do superior hierárquico objeto do nosso estudo e aqui tratado, exercem ainda o poder de
direção e o poder de dispositivo de competência.
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[outros] [...] a censura da consciência coletiva” (Carta Deontológica do Serviço Público,
1993, citado por Fontes, 2020, p. 34).
b) Modelo processual do Estatuto Disciplinar da PSP
No caso dos funcionários da PSP, entendidos na aceção do previsto no art.º. 386.º do
Código Penal (CP) conjugado com o art.º 3.º do EPPSP, podemos constatar que o que está
em causa no Estatuto Disciplinar da PSP (EDPSP), aprovado em anexo à Lei n.º 37/2019,
de 30 de maio, é a tutela de deveres ético ‑funcionais, os quais “emergem da relação entre
o agente público e a entidade pública à qual presta determinada função” (Monte, 2017, p.
193). De acordo com Caetano (1932), é esta função, entendida como “o complexo harmónico
de deveres [...], que concretiza, que materializa a idea madre do servo em relação a êle”
(pp.23 ‑24).
O poder disciplinar, de caráter instrumental face à Instituição PSP, resulta, de acordo
com o n.º 2 do art.º 62.º do EPPSP, das “relações [interorgânicas] de autoridade e subordi‑
nação entre os polícias”.
O desvio – entendido como a violação de princípios e normas jurídico ‑materiais – a
essas regras ou deveres ético ‑funcionais, quer gerais – previstos no art.º 8.º do EDPSP
– quer especiais – previstos no EPPSP, na Lei de Segurança Interna (LSI) e na Lei de Orga‑
nização e Funcionamento da PSP (LOPSP) – geram a responsabilidade disciplinar do pre‑
varicador. Essa responsabilidade disciplinar do funcionário ou agente da PSP, terá de ser
averiguada através de um “adequado procedimento administrativo [gracioso, de tipo san
cionatório]” (Amaral, 2008, p. 218), que “é o género (genus) que engloba [e se consubstancia
materialmente na] espécie (species) processo” (Pinheiro, 2020, p. 154).
O processo disciplinar é, assim, considerado um jogo bipolar ou bidimensional de
estrutura dialética, no qual intervêm a Administração, in casu a PSP, enquanto pessoa cole‑
tiva de direito público, e o arguido. O órgão responsável daquela entidade surge, no âmbito
dessa relação funcional, numa situação de superioridade – poder de direção, poder de fis‑
calização e poder disciplinar – e assume se, “simultaneamente, como vítima e detentor do
ius puniendi disciplinar” (Costa, 2012, p. 50).
Arrogando ‑se as entidades com competência disciplinar previstas nos anexos I e II do
EDPSP dessa dupla função, enquanto órgãos da pessoa coletiva PSP e ao abrigo de uma
relação jurídica estatutária, aos mesmos assiste, nos termos do n.º 1 do art.º 58.º do EDPSP,
a competência de decidir pela instauração do procedimento, bem como de recompensar e
punir, enquanto manifestações do poder disciplinar.
Esta dupla competência leva nos a considerar a estrutura do EDPSP, em consonância
com a maioria dos processos de cariz administrativo sancionatório, não como possuindo
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uma estrutura acusatória – clara separação entre quem investiga, acusa e julga (Cf. art.º
32, n.º 5 da CRP) –, mas sim com uma estrutura ou modelo inquisitorial, uma vez que
a entidade que decide mandar instaurar o processo disciplinar é a mesma que decide o
arquivamento ou a punição que ao caso couber, implicando “uma unificação parcializada
de todo o processo punitivo” (Macedo, 1990, citado por Pinheiro, 2020, p. 156), numa lógica
de concentração de competências.
Podíamos ser levados a pensar que este tipo de estrutura modelar corresponderia na
íntegra ao modelo inquisitorial que vigorou nos Estados autocráticos e autoritários dos
séculos XVII e XVIII, no qual o arguido era considerado um objeto processual. Apesar de
se continuar a verificar o princípio Quod non est in actis non est in mundo, o EDPSP, por força
dos seus artigos 83.º, n.º 4, 95.º e 32.º, n.º 10, 269.º, n.º 3, ambos da CRP e 58.º do Código
do Procedimento Administrativo (CPA), concede “ao arguido os direitos de audiência e
defesa” (acórdão, 2010).
É precisamente com base no aludido art.º 58.º do CPA, conjugado com o n.º 2 do art.º
60.º do EDPSP, que o instrutor disciplinar pode levar a cabo ou efetuar todo e qualquer
tipo de diligências que se revelem adequadas e se julguem necessárias à boa decisão da
lide ou relação controvertida, respeitando, como é óbvio, designadamente os princípios da
legalidade, imparcialidade e segurança jurídica.
Este afastamento do princípio do dispositivo, tendo em vista uma maior eficácia e e
ciência ao nível da intervenção processual, permite um aumento substancial em termos
probatórios no plano da cognoscibilidade do instrutor, os quais serão subsumidos ao prin‑
cípio da livre apreciação da prova, enquanto dimensão da discricionariedade administra‑
tiva.
O amplo leque de garantias concedido ao arguido, permite que apesar de se continuar
a privilegiar a hierarquia “esta já não é vista, nem de longe nem de perto, como um valor
absoluto – [...] –, mas antes como um valor que se tem de compatibilizar, quando disso
for caso, com bens ou valores de igual (ou superior) intensidade ou valência normativa”
(Costa, 2012, p. 51).
c) Breve análise jurisprudencial
Foi precisamente essa ponderação de valores, os quais irão ser alvo de análise no pre‑
sente trabalho, que surgiram, até este momento, dois Acórdãos do Tribunal da Relação
de Évora (TRE) relativos aos Processos 747/18.5T8PTM.E1, de 28 de março de 2019, e
2034/19.2T8PTM.E1, de 4 de junho de 2020, ambos proferidos no âmbito de relações jurí
dicas privatísticas laborais.
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Os acórdãos analisaram a admissibilidade das mensagens enviadas pelo WhatsApp,
através de um grupo restrito onde se encontravam, pelo menos, dois trabalhadores, tendo
estas chegado por meio indireto ao empregador, através da divulgação do seu conteúdo por
um terceiro pertencente ao grupo privado, como única prova para fundamentar o despe‑
dimento por justa causa.
De acordo com estes arestos, as aludidas mensagens enviadas através de determinado
grupo privado, não fazendo parte do mesmo a entidade empregadora, gozam de proteção
em primeiro lugar pelas configurações de segurança do WhatsApp, e, em segundo lugar,
pela legítima expetativa que o autor da mensagem colocou na mesma, no sentido de que
não fosse divulgada por terceiros e, em último lugar, que os direitos à privacidade e à
reserva da intimidade privada não podem sofrer uma compressão tal que sejam aniquila‑
dos, tendo em conta que o direito à produção de prova não é um direito absoluto.
Assim, em ambos os casos, decidiu o coletivo de juízes pela inadmissibilidade e utili‑
zação probatória das mensagens enviadas num grupo privado, do qual não fazia parte a
entidade empregadora, como forma de justificação do despedimento por justa causa, por
as mesmas serem nulas.
2. Problema, hipóteses e metodologia
Formulamos o seguinte problema de investigação: Face à garantia concedida pela encrip‑
tação ponto a ponto em que se baseia o WhatsApp, conjugado com o direito à reserva da
intimidade da vida privada e familiar (como direito de personalidade e direito fundamen
tal pessoal – artigo 26.º, n.º 1 e artigo 35.º da CRP) e contrapondo ‑os com as finalidades
do processo disciplinar, como se interrelacionam sem que alguma prevaleça e niilifique
qualquer outra?
Formulamos as seguintes hipóteses:
Hipótese 1: As mensagens do WhatsApp constituem prova digital, pelo que devem estar
sujeitas à cadeia de custódia de prova.
Hipótese 2: A nulidade resultante da obtenção da prova com violação do direito à
reserva da vida privada do visado, enquanto direito de personalidade e direito funda
mental, é sanada pelo seu consentimento.
No que diz respeito à metodologia, recorremos aos métodos indutivo, dedutivo e fun‑
cionalista. O método indutivo será utilizado para execução de um sistema de raciocínios
conexos, no sentido crescente, ou seja, do mais acessível para o mais complexo e do global
para o individual, em ordem a um desfecho ou conclusão. O método dedutivo será empre‑
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gue no que respeita à abordagem. Já no que respeita ao procedimento, será empregue o
método funcionalista através de uma análise do concreto para o abstrato.
II – Perspetivas e diretrizes
1. Questões prévias
a) Qualificação jurídica das mensagens do WhatsApp
O WhatsApp é uma app comunicacional que serve de base às muitas comunicações, escri
tas, voz e vídeo que são feitas em todo o mundo entre, pelo menos, duas pessoas.
De acordo com os arestos do TRE (2019; 2020), o WhatsApp é considerado uma rede
social, uma vez que “permite a ligação em rede de um conjunto de pessoas ou organizações
que partilhem interesses, conhecimentos e valores comuns por meio da internet.
Concordamos com a conceptualização apresentada aplicada a redes sociais como o Face
book, Instagram e Linkedin, mas não ao WhatsApp.
Isto porque o WhatsApp: (i) constitui uma aplicação interativa que utiliza, tal como as
redes sociais, a web 2.0 com acessibilidade através da internet; (ii) permite a interação social
entre os seus membros ou utilizadores através de vários formatos (texto, voz e vídeo); (iii)
é restrito a quem envia e a quem recebe tais conteúdos, derivado da encriptação ponto‑
‑a ‑ponto, não sofrendo qualquer tratamento por parte da empresa gestora do WhatsApp
(Cf. https://www.whatsapp.com/security/); (iv) ao contrário do que acontece com o Face
book e Instagram, não apresenta sugestões de amizade e outras páginas com interesses em
comum; (v) apesar de permitir que sejam criados perfis, os mesmos surgem como uma
espécie de cartão de visita ou de contato, mas não permitem fazer qualquer ligação com
os dados do utilizador. Em face do exposto e apesar de verificarmos pontos em comum,
entendemos que o WhatsApp é uma plataforma comunicacional e não uma rede social.
Mas uma das caraterísticas mais importantes desta plataforma é a confidencialidade
que é garantida às mensagens enviadas e recebidas pelos seus utilizadores, as quais devem
merecer, em vista dos direitos pessoais e fundamentais em jogo, tutela efetiva pelos vários
ramos do Direito.
De acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (TRP), proferido no âmbito
do processo n.º 37/12.7TBALJ ‑A.P1, de 3 de dezembro de 2013, existe uma equiparação em
termos legais das comummente denominadas SMS, depois de recebidas, abertas e lidas, às
cartas em suporte físico ou papel.
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Nestes termos e na sequência do defendido nos acórdãos do TRE (2019; 2020), entende‑
mos que tais formas de comunicação, nelas se incluindo as mensagens trocadas pelo Wha
tsApp, devem ser interpretadas em termos análogos e ser integradas, ipso facto, no conceito
de cartas ‑missivas não confidenciais (Cf. art.º 78.º do CC).
Assim, estipula o art.º 78.º do CC que “o destinatário de carta não confidencial só pode
usar dela em termos que não contrariem a expetativa do autor. Esta expetativa deve ser
entendida como a vontade presumida do remetente, no sentido de que tal mensagem não
seja divulgada por parte do destinatário, mesmo através dos printscreens do seu disposi‑
tivo, e que esses mesmos factos não sejam tornados públicos.
b) O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada – disponibilidade ou
indisponibilidade do titular?
É, pois, perfeitamente legítimo ao emissor de uma determinada mensagem que a mesma
fique e seja apenas acessível ao respetivo destinatário, enquanto comunicação pessoal.
Releva neste caso uma espécie de sinalagma entre o emissor e o destinatário de tais
mensagens, no sentido de que as mesmas não sejam divulgadas ou utilizadas ab initio ad
finem por terceiros, nomeadamente a entidade patronal, in casu a PSP, mesmo que algum
desse conteúdo diga respeito à sua atividade normal ou que faça referência a algum dos
seus funcionários, para efeitos de fundamentação probatória de um processo disciplinar.
Estando estas mensagens ao abrigo de uma expetativa de confidencialidade e de um
princípio de confiança, por terem sido publicadas ou enviadas para um grupo privado,
circunscrito e inacessível, consubstanciará, desde logo, “uma emanação [...] do direito à
reserva sobre a intimidade da vida privada [...], entendida em sentido formal” (Pinto, 2006,
p. 14), que se integra nos denominados direitos de personalidade eventuais.
Estes direitos, enquanto “direitos naturais, humanos (e fundamentais) [..., tendo] como
pedra de toque e angular do [seu] edifício [...] a dignidade da pessoa humana, podem, por
esse facto e considerando a sua “densidade e prioridade ôntica” (Ascensão, 2002, p. 10),
ser considerados “Direitos Fundamentais [...] de um Direito Privado Constitucional (Cunha,
2008, pp.216 e 224),
Partindo desta premissa, o direito à reserva da intimidade da vida privada, substanti‑
vamente distinto da figura anglo ‑saxónica “privacy, encontra ‑se amplamente consagrado
e protegido. Desde logo e diretamente, no art.º 26.º e, indiretamente, nos artigos 34, 32.º,
n.º 8, 35.º e 268.º, n.º 2, todos da CRP, art.º 80.º do CC, 16.º do Código do Trabalho (CT), e
ainda em termos supraconstitucionais no art.º 12.º da Declaração Universal dos Direitos
do Homem (DUDH), art.º 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), e
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art.º7.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), integrados e
aplicáveis ao nosso ordenamento jurídico por força dos artigos 8.º e 16.º da CRP.
O Tribunal Constitucional, acompanhando a jurisprudência assente no Tribunal
Constitucional Federal da Alemanha desde a década de 70, efetuou a delimitação do objeto
e conteúdo do direito à reserva no sentido de “não ver difundido o que é próprio dessa
esfera de intimidade, a não ser mediante autorização do interessado” (Acórdão n.º 128/92,
citado por Pinto, 2006, p. 14).
Existindo neste âmbito uma clara separação entre o direito à reserva sobre a intimi‑
dade da vida privada e o direito à proteção da vida privada, podemos afirmar que aquele
direito, previsto no n.º 1 do art.º 80.º do CC, tem implícito a “ideia de controlo de informa‑
ção, através da qual se satisfazem, tanto o interesse na não divulgação, como o interesse
do segredo, [e] implica [ainda] que essa satisfação seja posta na dependência de valorações
do interessado” (Pinto, 2001, p. 534).
É atualmente reconhecido e unânime, no âmbito da jurisprudência e doutrina
nacional, que essa delimitação se faça através da “teoria das três esferas” de Hubmann
(1967), nomeadamente no âmbito da “esfera privada simples (apenas relativamente prote‑
gida, [que comporta factos, eventos ou acontecimentos que o seu titular divulga por um
número limitado de pessoas,] podendo ter de ceder em conflito com outro interesse ou
bem público” (Canotilho & Moreira, 2007, p. 468), atendendo aos princípios da proporcio‑
nalidade e adequação (Cf. n.º 2 do art.º 18.º da CRP) e com os limites impostos pelo art.º
335.º do CC.
Neste caso, deve observar‑se que a extensão da reserva ou limite interno, previsto no
n.º 2 do art.º 80.º do CC, se define, enquanto objeto, pela “natureza do caso [elemento obje‑
tivo] e a condição das pessoas [elemento subjetivo]”. Esta concetualização indeterminís‑
tica, como regime regra, remetendo ‑nos para uma análise casuística a ser feita em sede
disciplinar pelo instrutor e, em sede jurisdicional, pelo julgador, bem como nos permite
“superar raciocínios meramente formais na aplicação do direito, próprios de uma jurispru‑
dência dos conceitos” (Dray, 2017, p. 676).
Apesar de o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada ser um direito subje‑
tivo, ou seja, com eficácia erga omnes, garantido pelas disposições conjugadas dos artigos
26.º da CRP, 70.º e 80.º do CC e 16.º do CT, ao mesmo, por força do art.º 81.º do CC, pode o
seu titular, integrando um certo grau de liberdade conferido pelo princípio da autonomia
privada, autolimitar ou dispor desse direito através do seu consentimento.
O consentimento, nos exatos termos aqui enunciados, deve ser entendido como decla
ração negocial, e encontra ‑se sujeito aos princípios previstos nos artigos 217, n.º 1 e 219.º,
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ambos do CC. Assim, pode a mesma “ser conferida expressa ou tacita[mente], por um com‑
portamento concludente, e não carece de ser escrita” (Pinto, 2001, p. 539).
Contudo, a licitude da limitação fica dependente da conformidade desse consenti‑
mento com o respeito pelos princípios da ordem pública, enquanto princípios da “ordem
jurídica global” (Larenz, 1997, p. 588), e com os bons costumes (Cf. art.º 280.º do CC), repre‑
sentados aqui pelas “exigências de moral” (Telles, 1980, p. 34).
c) Prova digital e sujeição à cadeia de custódia da prova?
Pese embora o consentimento do visado, em conjunto com o cumprimento dos condicio
nalismos legais, permita autolimitar o seu direito de personalidade, o facto é que as men‑
sagens enviadas e recebidas através do WhatsApp, enquanto plataforma comunicacional,
permanecem no mundo virtual, semi sico, num limbo, carecendo, por isso, do devido
tratamento em termos de recolha probatória que permita a sua validação, análise e utiliza‑
ção em sede própria, consubstanciando assim a denominada prova digital.
Em face das divergências doutrinais e jurisprudenciais em redor do conceito de prova
digital, arriscamos a considerar que a mesma pode ser entendida como todo e qualquer
conteúdo informacional, dados informáticos e de tráfego, com configuração binária ou
digital, que apresente valor probatório e que seja suscetível de ser transmitida, adquirida
ou armazenada através de um sistema informático e cuja gestão, pública ou privada, se
encontre a cargo de um fornecedor de serviço.
Com efeito, as normas penais substantivas e adjetivas há muito que ultrapassaram
a barreira física das respetivas codificações base, para, aos poucos, se expandirem para
outras áreas ou donios da atividade humana, nomeadamente a área digital.
O legislador português, através da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, a qual aprovou
a Lei do Cibercrime (LCC), transpondo para a ordem jurídica nacional a Decisão Quadro
n.º2005/222/JAI, do Conselho da Europa de 24 de fevereiro, estipulou um conjunto de
regras penais substantivas e adjetivas, aplicáveis, com as devidas adaptações, ao EDPSP
por via do seu art.º 7.º.
De entre essas regras, o legislador definiu um regime adjetivo bipartido relativo ao
ciclo de vida das comunicações eletrónicas dependente, em ambos os casos, de despacho
de juiz. O primeiro regime, circunscrito à fase de inquérito, corresponde ao momento
da transmissão ou envio da mensagem eletrónica e encontra ‑se previsto no art.º 18.º da
LCC. O segundo regime, que corresponde ao momento de armazenamento, segue o pre‑
ceituado para a apreensão da correspondência previsto no art.º 179.º do CPP, aplicável ex vi
do art.º17.º da LCC.
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Como já se disse, tendo em conta a subsunção das mensagens enviadas através do
WhatsApp à figura jurídica das cartas ‑missivas não confidenciais, consideramos que no
âmbito das comunicações de natureza semelhante se devem incluir os denominados ser
viços de mensagens instantâneas, v. g. WhatsApp, mesmo que tais mensagens tenham
sido abertas pelo seu destinatário, aplicando se aqui o princípio consagrado no n.º 1 e 2 do
art.º9.º do CC.
Porém, não nos podemos olvidar que a prova digital é “uma prova fragmentária, dis‑
persa, frágil, volátil, alterável, instável, apagável e manipulável, invisível e espacialmente
dispersa” (Rodrigues, 2011, p. 29).
Por apresentar todo este conjunto de caraterísticas, deve a mesma ser recolhida e sub
metida à cadeia de custódia de prova por forma a se acautelar a sua autenticidade/integra‑
lidade, originalidade/identidade e legitimidade/legalidade/licitude, “enquanto garantia
formal e material da tutela da limpidez probatória” (Valente, 2020, p. 38), sob pena de se
correr o risco de inquinar todo o processo.
2. A prova
a) A (eventual) nulidade de prova
A prova, quer ela seja pessoal, pericial ou, como no nosso caso, digital, “é fundamento
material de um facto com relevância jurídica subsumível a uma norma jurídica que se
afirma como dimensão positiva de um valor, ou seja, afirma ‑se que está subordinada “ao
direito como dimensão ôntica e ontológica” (Valente, 2020, pp.45 ‑46).
Em termos de prova, o n.º 2 do art.º 71.º do EDPSP estipula como limite imanente a
exclusão da realização das escutas telefónicas em sede disciplinar. Fazendo uma interpre‑
tação a contrario seriamos levados a concluir que este preceito permitiria ou possibilitaria
a admissibilidade de todos os outros meios de prova, neles se incluindo a apreensão de
correspondência.
O legislador, demonstrando alguma cautela e por forma a evitar alguns abusos ou
comportamentos arbitrários, deles se excluindo o princípio da livre apreciação da prova
(Cf. 127.º do CPP), veio estipular no n.º 1 do art.º 71, conjugado com o art.º 7, ambos do
EDPSP, que se lhe aplicam, “com as devidas adaptações, todas as disposições do CPP con‑
cernentes à recolha, produção e custódia de prova”.
A prova, de acordo com o art.º 341.º do CC, “tem por função a demonstração da reali‑
dade dos factos”, apenas podendo ser admitidas aqueloutras que “não forem proibidas por
lei” (art.º 125.º do CPP).
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Como já tivemos ocasião de referir e em face da qualificação jurídica das mensagens
do WhatsApp, apenas pode ser autorizada a sua recolha e tratamento em sede jurisdicional
processual penal e desde que previamente autorizada pelo juiz, de acordo com a conjuga
ção dos artigos 179.º do CPP e 34, n.º 4 in fine da CRP, assumindo ‑se, nesses termos, como
“meios processuais de tutela de direitos fundamentais” (Silva, 2001, p. 140).
Em face do referido, tal tipologia de prova, em regra, não poderá ser recolhida e utili‑
zada em sede de processo disciplinar por se integrar nas proibições de prova e, por isso,
consideradas nulas (Cf. artigos 32, n.º 8 da CRP, 126.º, n.º 1 e 3 e 118.º, n.º 1 do CPP).
Somos da opinião, ainda que não prevista nos artigos 119.º e 120.º do CPP e 74.º do
EDPSP, que essa nulidade é de conhecimento oficioso por parte do instrutor disciplinar,
enquanto “guardião” e garante da legalidade do processo disciplinar, por imposição dos
artigos 1.º, 2, 18.º, 26.º, 266.º, n.º 2 e 272, n.º 1 da CRP, e 3.º do CPA e assente na legitimi‑
dade legal e sociológica que deve presidir à atividade policial lato sensu.
Constituindo as mensagens do WhatsApp e, bem assim, os printscreens retirados do dis‑
positivo do destinatário e cedidos a terceiros, como a única prova (nula) que pretende sus‑
tentar o processo disciplinar, não poderá, pois, o instrutor disciplinar socorrer se da prova
testemunhal como forma ou tentativa de sanação da nulidade e reconstituição fingidiça
dessa prova, fazendo, caso isso viesse a acontecer, com que subsistissem “práticas pro‑
cessuais reveladoras da resiliência de uma presunção de culpabilidade de outros tempos”
(Moura, 2019, p. 1325).
Pois bem, nos termos dos artigos 128.º do CPP e, em termos análogos, 84.º do EDPSP,
a testemunha é inquirida relativamente aos factos “de que possua conhecimento direto
e que constituem o objeto da prova”. Declarada a nulidade e considerando o efeito ‑à
‑distância das proibições de prova (Cf. art.º 122.º do CPP), a testemunha ir ‑se ‑ia pronunciar
acerca de um nada jurídico, pelo que, neste sentido, e em face do princípio do in dubio pro
reo, como manifestação do princípio da presunção da inocência (Cf. artigos 32.º, n.º 2 e 10
da CRP e 6.º da CEDH), o processo disciplinar terá de merecer despacho de arquivamento,
uma vez que apenas existirá infração disciplinar se “houver um facto que a sustente [...,
como] expressão de uma ideia forte de garantia” (Costa, 2012, p. 53).
Reconhecendo que nem todos os direitos fundamentais são ilimitados e absolutos, o
articulado do art.º 126.º, n.º 3 a contrario do CPP prescreve, enquanto regime das nulidades
relativas e em face dos direitos fundamentais atinentes à privacidade, que a nulidade das
provas obtidas mediante intromissão na correspondência pode ser sanada pelo consenti‑
mento do respetivo titular do direito.
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b) Consentimento versus princípio nemo tenetur se ipsum accusare
Este consentimento, não deve ser confundido com o consentimento previsto no art.º 38.º
do CP, enquanto causa de exclusão da ilicitude em matéria penal, nem com o consenti‑
mento de limitação voluntária do direito previsto no art.º 81.º do CC. O consentimento a
que nos referimos encontra ‑se plasmado no art.º 340.º do CC.
Em este, ao contrário daqueles, vigora o princípio volenti non fit injuria, ou seja, “ao que
consente não se faz injúria” (Soares, 2017, p. 104).
De acordo com este brocardo, o titular do direito pode resignar ‑se com a lesão desse
direito “deixando de o exercer, isto é, abstendo ‑se de requerer as providências visando
evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida. [Por outras
palavras, o art.º 340.º do CC prescreve] o consentimento enquanto causa de justificação ou
exclusão da ilicitude de um ato lesivo do direito” (Pinto, 2001, p. 534).
Assim e de acordo com Pinto (2001) estamos perante o “consentimento tolerante” (p.
552), em contraposição ao “consentimento autorizante” (p. 552) e ao consentimento vincu‑
lante (p. 553).
Contudo, não nos podemos olvidar que este tipo de consentimento deve ser prestado
de forma espontânea, clara, livre, sem quaisquer restrições ou condicionamentos, uma vez
que a prova que deve ser feita no âmbito do processo “não é absoluta ou ontológica, mas [...
o que se pretende] não é uma verdade obtida a todo o preço, mas processualmente válida”
(Silva, 2011, p. 161). O mesmo quer dizer que “num regime democrático e submetido ao
valor da lealdade, os fins não justificam os meios” (Valente, 2008, p. 175).
Tudo isto que acabamos de referir prende ‑se, indubitavelmente, com os respeito que
o instrutor disciplinar deve ter pelo arguido e pelos seus direitos, não o levando, por ação
(dar o consentimento) ou por omissão (elucidá ‑lo de forma fraudulenta acerca dos seus
direitos ou fazendo perguntas sugestivas), a transformar ‑se em objeto do processo e violar,
assim, o princípio do nemo tenetur se ipsum accusare.
Este princípio, conhecido na doutrina e jurisprudência como o direito à não incrimi‑
nação ou princípio da não autoincriminação, pode ser reconduzido, apesar de não possuir
consagração expressa em termos constitucionais, às garantias processuais previstas nos
artigos 2.º, 20.º, n.º 4, 32, n.º 2 e 8 da CRP (visão processualista) e nos artigos 1.º, 25.º e
26 da CRP (visão substantiva ou material) e ainda em termos de direito internacional no
art.º 6.º da CEDH e no art.º 14.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos
(PIDCP).
Além da consagração constitucional indireta, o princípio da não incriminação é ainda,
enquanto dimensão negativa da liberdade de declaração, reenviado ao direito ao silêncio
previsto no n.º 1 do art.º 61.º do CPP, como forma de garantia de um processo democrático,
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leal e que concede amplos poderes ao arguido, não podendo esse seu silêncio o prejudicar
no sentido de ser utilizado como elemento probatório para instauração de processo disci‑
plinar.
Ao instrutor, enquanto dever de ofício, incumbe ‑lhe o dever, o “imperativo categórico”
(Ferreira, 1981, p. 306), de procurar a verdade material e processualmente válida e não uma
verdade a todo o custo, nomeadamente obtendo de forma fraudulenta, ilegal e desleal o
consentimento do arguido. Podemos, pois, considerar que “nessa linha divisa ‑se, aliás,
uma tensão entre uma visão ética e teleológica dos valores com uma visão moral e deon‑
tológica” (Palma, 2007, 658).
Assim, em caso de violação do princípio do nemo tenetur se ipsum accusare, quer seja
através de alguém ser induzido em erro (incluímos aqui as perguntas sugestivas), coagido
ou mediante a violação do dever de advertência dos direitos que assistem ao arguido antes
do interrogatório, de acordo com o n.º 1 do art.º 343.º, n.º 2 do art.º 144.º e al. a) do n.º 4 do
art.º 141.º, todos do CPP, a prova colhida nestas circunstâncias é nula, aplicando ‑se ‑lhe o
regime regra do principio do efeito ‑á distância das proibições de prova previstos no n.º 5
do art.º 58.º, n.º 1 e 2, alíneas a) e d) e n.º 3 do art.º 126.º, todos do CPP, inquinando ‑se todos
os atos ulteriores por violação das garantias de defesa do arguido plasmadas no art.º 32.º
da CRP, não podendo as declarações constantes do interrogatório ser valoradas em termos
probatórios.
c) Das proibições de prova – consequências jurídicas
As proibições de prova, da expressão germânica Beweisverbote, na sua configuração bidi‑
mensional, abrangem as proibições de produção de prova, enquanto “limite à descoberta
da verdade” (Andrade, 2006, p. 83), e as proibições de valoração da prova, as quais consti‑
tuem “meras prescrições ordenativas de produção da prova, cuja violação poderia acarre‑
tar (...) unicamente a eventual responsabilidade (disciplinar, interna) do seu autor” (Dias,
1976, p. 446).
Em todo o caso, a consequência jurídica será sempre a invalidade do ato, por nuli‑
dade da prova obtida, quer seja através dos meios de prova proibidos quer seja através dos
métodos de prova proibida quer ainda por violação dos procedimentos das formalidades
(somente se atentarem negativamente contra direitos de liberdade), e a consequente proi
bição de valoração probatória.
Como nos refere Mendes (2017), com o qual concordamos, “a proibição de utilização (=
valoração) das provas proibidas afigura ‑se como a melhor maneira de o legislador prevenir
a tentação de obtenção das provas a qualquer preço, por parte das instâncias formais de
controlo social” (p. 182), e que o preceituado no n.º 4 do art.º 126.º tem por função alertar “os
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órgãos de perseguição criminal [e disciplinar] de que ninguém está acima da lei, dizendo
alto e bom som que não há diferenças de estatuto entre os representantes da lei e da ordem
e os cidadãos delinquentes” (p. 198).
A dignidade da pessoa humana, prevista no art.º 1.º da CRP, em sede processual‑
‑disciplinar remete ‑nos para a ideia de um processo justo, leal, legal e lapidar de um Estado
de direito democrático, que se alicerça “nos princípios axiológicos da superioridade ética,
da supremacia dos direitos fundamentais [...], os quais constituem o fundamento, o fim e
o limite da acção policial” (Valente, 2013, p. 392). É nestes termos que podemos e devemos
considerar que “a dignidade de cada pessoa é incindível da de todos as outras e envolve
responsabilidade” (Miranda, 2016, p. 744) penal, cível e disciplinar.
Esta responsabilidade, gerada na dimensão tripartida apresentada, é concebida desde
logo, ad initio, em sede de proibições de prova, por afetarem o âmago desse Direito univer
sal, ao estipular o n.º 4 do art.º 126.º do CPP que “se o uso dos métodos proibidos de prova
previstos neste artigo constituírem crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclu‑
sivo de proceder contra o agente do mesmo”.
Permitam ‑nos, então, no âmbito desde exercício académico, fazer uma aproximação ao
enquadramento das consequências penais, civis e disciplinares para os funcionários da
PSP derivadas das nulidades de prova objeto do presente trabalho.
Em termos penais poderá estar em causa o cometimento pelo funcionário da PSP, em
termos abstratos, dos crimes de: (i) violação de correspondência ou de telecomunicações
previsto e punido (p.p.) pelo art.º 193.º; (ii) denúncia caluniosa, p.p. no n.º 2 e al. b) do n.º
3 do art.º 365.º (quanto ao participante e a quem lhe fornece a informação com quebra da
confidencialidade em coautoria material); (iii) denegação de justiça e prevaricação, p.p. no
n.º 1 e 2 do art.º 369.º (quanto ao instrutor processual em autoria material), e; (iv) abuso de
poder, p.p. no art.º 382.º (quanto a todos os funcionários referidos), todos do CP.
Por seu turno, também poderá existir responsabilidade civil por factos ilícitos nos ter
mos do art.º 483.º conjugado com os artigos 490.º e 493.º, todos do CC e ainda responsa‑
bilidade disciplinar por violação dos artigos 9.º, 10, n.º 1 e 2, alíneas a) e b), 11.º, 13.º, n.º 1 e
2, alíneas a) e c), 15.º, n.º 1 e 2, al. b), 16.º, n.º 1 e 2, al. a) e 19.º, n.º 1 e 2, al. f), todos do EDPSP.
Conclusão
Grande parte das comunicações que realizamos todos os dias são feitas por via digital,
quer seja através de email, redes sociais quer ainda por mensagens do WhatsApp, nos vários
formatos suportados.
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As mensagens enviadas através da plataforma comunicacional WhatsApp, em sentido
oposto às redes sociais, apresentam caraterísticas próprias, nomeadamente a confiden
cialidade da mensagem e as definições de segurança da aplicação, que lhe conferem uma
equiparação, em termos legais, às denominadas SMS e, por isso mesmo, devem ser inter
pretadas e integradas nas cartas ‑missivas não confidenciais previstas no art.º 78.º do CC.
Paralelamente, o art.º 17.º da LCC prescreve que deve ser aplicado o regime das comuni‑
cações de natureza semelhante ao regime das apreensões de correspondência previsto no
art.º 179.º do CPP, nele se incluindo os serviços de mensagens instantâneas do WhatsApp,
pelo que devem ficar sujeitas à cadeia de custódia de prova como forma de garantir as suas
fiabilidade, legalidade e integridade probatórias.
Temos assim por confirmada, na globalidade, a hipótese 1: As mensagens do WhatsApp
constituem prova digital, pelo que devem estar sujeitas à cadeia de custódia de prova.
Por seu turno, o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, enquanto direito
de personalidade subjetivo e direito fundamental, permite ao seu titular, através de um
certo grau de liberdade, autolimitar esse direito através do seu consentimento, servindo
este, de acordo com o art.º 126.º, n.º 3 a contrario do CPP, como elemento saneador da
nulidade.
Assim, temos por confirmada a hipótese n.º 2: A nulidade resultante da obtenção da
prova com violação do direito à reserva da vida privada do visado, enquanto direito de
personalidade e direito fundamental, é sanada pelo seu consentimento.
Não obstante, verificamos, como se pode constatar das referências apresentadas, que o
tratamento doutrinário do direito disciplinar na PSP é quase inexistente, para não dizer
mos nulo, o que leva, a maioria das vezes, a que os Instrutores disciplinares se socorram
do conhecimento empírico para o desempenho da sua atividade investigatória processual‑
‑disciplinar, isto é, de um costume secundum legem.
Por fim, o conflito entre a confidencialidade e a reserva sobre a intimidade da vida pri‑
vada, por um lado, e a descoberta da verdade material processualmente válida, por outro
lado, deve ser analisada casuisticamente e subordinada aos princípios da proporcionali‑
dade e da adequação, de acordo com o n.º 2 do art.º 18.º da CRP, e com os limites impostos
pelo art.º 335.º do CC.
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Do procedimento disciplinar na PSP: Entreaadmissibilidade e inadmissibilidade probatório ‑processual das mensagensdoWhatsApp
Disciplinary procedure in PSP: Between the admissibility and inadmissibility of probatory ‑procedural messages on WhatsApp
CARLOS MANUEL SEQUEIRA CAROLINO
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