REVISTA
DEDIREITO
EECONOMIA
ISSUE 2·1ST JULY–31TH DECEMBER·FASCÍCULO 2·1 DE JULHO–31 DE DEZEMBRO 2021
VOLUME XXII
e‑ISSN 2184‑1845
OPEN ACCESS · LIVRE ACESSO
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA
VOLUME XXII · Issue 2 · 1st July–31st December 2021
Semiannual Publication. Scientic Journal of the Ratio Legis–Centro de Investigação e De-
senvolvimento em Ciências Jurídicas from the Universidade Autónoma de Lisboa–Luís de
Camões.
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Repositório Cientíco de Acesso Aberto de Portugal (RCAAP).
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Repositório Institucional da Universidade Autónoma de Lisboa (Camões).
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA
VOLUME XXII · Fascículo 2 · 1 de julho–31 de dezembro 2021
Publicação semestral. Revista Cientíca do Ratio Legis–Centro de Investigação e Desenvolvi-
mento em Ciências Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa–Luís de Camões.
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E ‑ISSN 2184 ‑1845
DOI https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXII.2
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TITLE TÍTULO Galileu–Revista de Direito e Economia
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Valter Santin Universidade Estadual do Norte do Paraná,
Brasil santin@uenp.edu.br
Vasco Branco Guimarães ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa,
Portugal vbrguimaraes@net.sapo.pt
Índice Index
7 Editorial Editorial
MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE
11 O impacto da COVID‑19 na livre circulação de pessoas na UE e restrições justificadas por razões de
saúde pública: uma breve análise The impact of COVID‑19 on free movement of people in theEU
and restrictions justified by public health reasons: a brief analysis
CONSTANÇA URBANO DE SOUSA
21 Do procedimento disciplinar na PSP: Entre a admissibilidade e inadmissibilidade probatório‑
‑processual das mensagens doWhatsAppDisciplinary procedure in PSP: Between the admissibility
and inadmissibility of probatory ‑procedural messages on WhatsApp
CARLOS MANUEL SEQUEIRA CAROLINO
41 A autorregulação (compliance) e o Direito Penal Self ‑regulation (compliance) and Criminal Law
TÂNIA SOFIA DAS NEVES TEIXEIRA CARIMBO
53 A perda de bens e vantagens na criminalidade económico ‑financeira The loss of assets and
advantages in economic andfinancialcrime
JAQUELINE MARIA MENTA
65 Direito processual penal económico – (dis)funcionalidades conexas com as pessoas
coletivas Economic criminal procedural law – (dis)functionalities related to legal entity
HÉLDER FIGUEIREDO
75 Questões Prementes do Direito Penal: Brevereflexão sobre o Direito Policial Pressing Criminal
Law Issues: Brief Reflection on Police Law
BERNADETE LIMA DOMINGUES
RECENSÕES
REVIEWS
83 Recensão Crítica da Obra «Perda das Vantagens do crime no direito penal. Confisco alargado
e confisco sem condenação» Critical review of the book «Loss of the advantages of crime in
criminal law. Extended confiscation and confiscation without conviction»
MARIA DA GRAÇA ESTEVES
5
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXII · Issue Fascículo 2 · 1st July Julho – 31st December Dezembro 2021 · pp. 7‑9 7
Editorial Editorial
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXII · 1st July Julho–31ST December Dezembro 2021 · pp.7‑9
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXII.2.1.1
A Galileu – Revista de Direito e Economia continua viva e, numa fase de transição e
de afirmação internacional, impunha -se que atualizássemos a periocidade que se exige a
uma revista científica. Eis mais um número que se traz à comunidade científica em que
alunos de mestrado, a par de professores e investigadores, publicam de modo a integ-los
nas atividades científicas do Ratio Legis – Centro de Investigação em Ciências Jurídicas
da Universidade Autónoma de Lisboa. A cada passo cimenta -se o lastro de maior amplitude
nas atividades de I&D que são exigidas e intrínsecas à vida numa universidade. Esse é o
lema e o desafio que se nos coloca a cada dia da ciência.
Este volume conta com um artigo de Constança Urbano de Sousa sobre a resposta à
pandemia COVID 19 na União Europeia, em especial as medidas adotadas para controlar
a propagação e gerir o seu impacto nos sistemas nacionais de saúde, e os seus efeitos e
impacto na livre circulação de pessoas no interior da União, o que afetou os seus princípios
estruturantes, como resulta da alise de algumas destas medidas com o Direito da União
Europeia: v. g., os princípios reguladores da possibilidade de restrições à livre circulação
de pessoas com fundamento em razões de saúde pública. Este artigo está datado, tendo
em conta que o quadro jurídico se alterou, e, entre a recepção, aprovação e publicação,
houve necessidade de fazer ajustes a atualizações essenciais para uma melhor compreen-
são dotema.
A era da digitalização e da sociedade digital exige estudos como o apresentado por
Carlos Carolino sobre admissibilidade ou inadmissibilidade probatória -processual das
mensagens do WhatsApp em processos de natureza disciplinar face aos institutos jurídi-
cos que se prendem com os direitos fundamentais e direitos de personalidade, baseado
na doutrina e na jurisprudência. Esta temática é debatida com a Lei do Cibercrime, os
Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora dos anos de 2019 e 2020 e, por fim, a constân-
cia de decisões punitivas na PSP em casos análogos aos decididos por aqueles acórdãos.
Oautor discute sobre a aceção das mensagens enviadas pelo WhatsApp como prova digi-
tal e subordinada à cadeia de custódia de prova, apenas admissível em processo -crime,
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sobre as consequentes nulidades e respetiva sanação pelo consentimento do titular dos
direitos fundamentais pessoais, em respeito pelo n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da
República Portuguesa e pelo artigo 335.º do Código Civil.
Seguem -se três trabalhos de alunos de mestrado elaborados no âmbito da UC Seminá-
rio de Investigação: Direito Penal Económico. São textos situados e circunstancializados
ao tema que foi atribuído para apresentar e debater em sala de aula.
O primeiro, escrito por Tânia Sofia das Neves Teixeira Carimbo, trata de «A autorre-
gulação (compliance) e Direito pena, tendo em conta a preservação do princípio da ultima
et extrema ratio deste, que, mesmo no âmbito e espaço corporativo, deve intervir apenas
quando ocorre uma lesão do bem jurídico digno e carente de tutela penal por parte de
agentes singulares e de pessoas jurídicas.
O segundo, apresentado por Jacqueline Maria Menta, estuda «A perda de bens e
vantagens na criminalidade económico -financeira», procurando analisar a motivação,
evolução, objetivos, gerações do confisco alargado de bens, a natureza jurídica, assim
como algumas questões controversas como a decretação da perda de bens ‘post mortem´,
verificando se ocorre a transmissibilidade da pena para além do arguido e a que geração
pertenceria o confisco de bens ´post mortem´, sem olvidar uma reflexão sobre a ética do
Estados que integram no seu património o produto de uma criminalidade que perse-
guem com legislações cada vez mais restritivas de direitos e liberdades fundamentais
pessoais.
O terceiro, elaborado por Helder Figueiredo, aborda o «Direito processual penal econó-
mico – (dis)funcionalidades conexas com as pessoas coletivas», e que está datado (setem-
bro de 2021 antes da aprovação da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro). À data da apresen-
tação deste paper, o autor estudou a ausência de normas processuais penais aplicáveis às
pessoas coletivas em conexão com a criminalidade económico -financeira tendo em conta
a sua inegável e inevitabilidade relacional. A partir de um brevíssimo excurso doutrinal,
o autor considerava que urgia debelar a lacuna de normas processuais penais atinentes à
pessoa coletiva enquanto sujeito processual penal.
Em sequência, publica-se a análise crítica sobre Questões prementes do Direito Penal:
Breve reflexão sobre o Direito Policial» de Bernadete Lima Domingues, que, neste pequeno
texto, procura debater a função constitucional de polícia na defesa e garantia da liberdade
enquanto princípio enformador do Direito penal assente na função de equilíbrio.
Terminamos com a recensão crítica escrita por Maria da Graça Esteves sobre a obra
«Perda das Vantagens do Crime no Direito Penal. Confisco alargado e confisco sem condenão»,
organizada por Adriano Teixeira e publicada pela Marcial Pons, na qual participam auto-
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res de vários países – v. g., Alemanha, Brasil, Estados Unidos da América, Espanha, Itália,
Inglaterra e Portugal. É um livro importante para a ciência jurídica, desde logo por tratar
de um tema candente e muito exposto nos últimos tempos, e por nos apresentar um olhar
científico e assertivo de cada um daqueles regimes sobre o tema da perda de bens e van-
tagens do crime.
O Diretor da Galileu
Manuel Monteiro Guedes Valente
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O impacto da COVID-19 na livre circulação
de pessoas na UE e restrições justicadas por
razões de saúde pública: uma breve análise1
The impact of COVID‑19 on free movement of people in theEU
and restrictions justied by public health reasons: a brief analysis
CONSTANÇA URBANO DE SOUSA2
mconstanca@autonoma.pt
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXII · 1st July Julho–31ST December Dezembro 2021 · pp.1119
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXII.2.1
Submitted on November 18th, 2021 · Accepted on December 28th, 2021
Submetido em 18 de Novembro, 2021 · Aceite a 28 de Dezembro, 2021
RESUMO A pandemia COVID 19 na União Europeia implicou, praticamente em todos os
Estados-Membros, a adoção de medidas para controlar a propagação e gerir o seu impacto
nos sistemas nacionais de saúde. As medidas adotadas (confinamento, quarentenas,
encerramento ou controlo de fronteiras, exigência de Certificado Digital COVID, com ou
sem teste negativo complementar, entre outras) tiveram uma inegável repercussão na livre
circulação de pessoas no interior da União, afetando um dos seus princípios estruturantes.
Objetivo deste artigo é analisar a conformidade de algumas destas medidas com o Direito
da União Europeia, em especial com os princípios que regulam a possibilidade de restrições
à livre circulação de pessoas com fundamento em razões de saúde pública.
PALAVRAS-CHAVE Liberdade de circulação de pessoas; cidadania da União; controlos de
fronteiras; COVID 19
ABSTRACT The COVID 19 pandemic in the European Union led practically all Member
States to adopt measures to contain the spread and manage its impact on national health
systems. The measures adopted (confinement, quarantines, closing or controlling borders,
requiring a COVID Digital Certificate, with or without a complementary negative test,
among others) had an undeniable impact on the free movement of people within the EU,
1 Este artigo foi entregue a 18 de novembro de 2021 e aceite a 28 de dezembro de 2021, sendo que, tendo em conta a
data da publicação deste número da revista e a imperiosa e necessária atualização do artigo, a direção da revista
concordou que fosse inserida nova documentação, doutrina e legislação posterior à data da sua aceitação publi-
cada até março de 2022.
2 Professora Associada da Universidade Autónoma de Lisboa. Investigadora integrada no Ratio Legis, coordenado-
ra do Projeto “Migrações, Direitos Humanos e proteção de pessoas vulneráveis”.
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O impacto da COVID ‑19 na livre circulação de pessoas na UE e restrições justificadas por razões de saúde pública
The impact of COVID‑19 on free movement of people in theEU and restrictions justified by public health reasons: a brief analysis
CONSTANÇA URBANO DE SOUSA
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affecting one of its structural principles. The aim of this article is to review the compliance
of some of these measures with European Union law, in particular with the principles
governing the ability to restrict the free movement of persons on public health grounds.
KEYWORDS Free movement of persons; citizenship of the Union; border controls;
COVID19
I. Introdução
Em 2020 e 2021, praticamente todos os Estados-Membros da União Europeia adotaram,
com maior ou menor intensidade, medidas para tentar controlar a propagação da pande-
mia da COVID 19 e gerir o seu impacto nos sistemas de saúde. Assim, um pouco por todo
o lado, adotaram-se medidas de confinamento3, as fronteiras foram, por vezes, encerradas
e reintroduziram-se controlos nas fronteiras internas. Mais tarde, com a generalização
das campanhas de vacinação, vários Estados-Membros passaram a fazer controlo sistemá-
tico das pessoas, por raes de saúde pública, através da exigência de Certificado Digital
COVID, muitas vezes cumulativamente com um teste negativo.
Ao nível da UE, a Comissão e o Conselho adotaram, em 2020, várias medidas de soft
law4, para assegurar uma abordagem coordenada. Em particular, tentou-se garantir que a
proibição de viagens não essenciais entre os Estados-Membros excluía os trabalhadores
transfronteiriços, os trabalhadores de setores vitais, como o da saúde ou transporte, bem
como pessoas com uma situação familiar particular5.
Todas estas medidas tiveram um inegável impacto na liberdade de circulação de pes-
soas, em geral, e de trabalhadores, em particular, que é uma liberdade fundamental dos
cidadãos da União e um dos pilares do mercado interno.
3 Em Portugal, o primeiro confinamento foi decretado no dia 18 de março, quando se registaram cerca de 450 infe-
tados e um morto. Sobre as medidas restritivas da livre circulação de pessoas adotadas pelos países nórdicos para
fazer face à pandemia e sua compatibilidade com o Direito da União Europeia, ver H S  H
T – The Impact of Covid-19 on Free Movement Regime in the North – Analysis of Border Closures in Denmark,
Finland, Norway and Sweden. In: Nordic Journal of International Law. 91 (2022), pp. 80-100.
4 Por exemplo, Comunicação da Comissão, COVID 19 - Orientações sobre a aplicação da restrição temporária das
viagens não indispensáveis para a UE, sobre a facilitação de regimes de trânsito para o repatriamento de cidadãos
da UE e sobre os efeitos na política de vistos, JOUE C 102 I, 30.3.2020, pp.3-11; Recomendação (UE) 2020/1475 do
Conselho de 13 de outubro de 2020 sobre uma abordagem coordenada das restrições à liberdade de circulação em
resposta à pandemia de COVID-19, JOUE L 337, 14.10.2020, pp.3-9.
5 Sobre estas medidas ver  E H  R JJ –Stopping a Virus from Moving Freely: Border Con-
trols and Travel Restrictions inTimes of Corona. In: Utrecht Law Review, 17(3), 2021, pp.34–50. DOI:http://doi.
org/10.36633/ulr.686; Duić, D., & Sudar, V. –THE IMPACT OF COVID-19 ON THE FREE MOVEMENT OF PERSONS
IN THE EU.EU and Comparative Law Issues and Challenges Series (ECLIC),5, 2021, pp. 30–56. https://doi.org/10.25234/
eclic/18298.
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O impacto da COVID ‑19 na livre circulação de pessoas na UE e restrições justificadas por razões de saúde pública
The impact of COVID‑19 on free movement of people in theEU and restrictions justified by public health reasons: a brief analysis
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Sem querer discutir a imporncia das medidas de contenção da pandemia para a pro-
teção da saúde e da vida dos cidadãos, não podemos ignorar que também conduziram a
uma forte restrição aos movimentos de pessoas no interior dos Estados (com confinamen-
tos obrigatórios), bem como à liberdade de viajar no interior da União Europeia ou para ela.
Objetivo deste artigo é analisar, de forma genérica, a compatibilidade de algumas
medidas restritivas da liberdade de movimentos de pessoas, adotadas em 2020 e 2021, para
conter a COVID 19 com o direito de livre circulação dos cidadãos na União Europeia, conce-
bida como um espaço sem fronteiras internas. Muitas destas medidas já não se encontram
em vigor ou em aplicação, pelo que a presente análise está temporalmente datada, embora
possa ter eventuais reflexos em futuros desenvolvimentos desta ou de outras pandemias.
II. A liberdade de circulação de pessoas na União Europeia como
um direito fundamental inerente à cidadania da União e restrições
justificadas por razões de saúde pública
Muitas medidas nacionais de gestão da pandemia, como o encerramento de fronteiras ou
a imposição de períodos, mais ou menos longos, de quarentena afetaram direitos funda-
mentais do cidadão europeu, como a liberdade de circulação, a livre escolha de residência,
a liberdade de aceder ao mercado de trabalho em qualquer Estado-Membro: São direitos
que estão no centro da cidadania da União.
Concebido, nos primórdios da integração europeia, como elemento do mercado interno,
inerente à livre circulação de trabalhadores, profissionais liberais ou prestadores de ser-
viços, o direito de circular livremente pelo espaço da União Europeia é, hoje, um direito
de qualquer cidadão da União e dos membros da sua família, independentemente da sua
nacionalidade, garantido pelo Direito da União Europeia.
Com efeito, a livre circulação de pessoas é um princípio estruturante do processo da
integração europeia e pedra angular do estatuto de cidadão da União Europeia, que tende a
ser, de acordo com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia “o
estatuto fundamental dos nacionais dos Estados-Membros6. Nos termos da anea a) do artigo
20.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), o cidadão da União
tem “o direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados membros”. O mesmo
direito está previsto no número 1 do artigo 21.º do TFUE, “sem prejuízo das limitações e condi-
ções previstas nos Tratados e nas disposições adotadas em sua aplicação. Por fim, o n.º 1 do artigo
6 Cf. por exemplo, acórdão do Tribunal de Justiça da UE, de 18 de janeiro de 2022 (proc. C-118/20), n.º 38.
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O impacto da COVID ‑19 na livre circulação de pessoas na UE e restrições justificadas por razões de saúde pública
The impact of COVID‑19 on free movement of people in theEU and restrictions justified by public health reasons: a brief analysis
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45.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia consagra o direito do cidadão
da União a “circular e permanecer livremente no território dos Estados membros”.
O direito de livre circulação e permanência também é garantido pelo Direito da União
derivado ou secundário. Assim, os artigos 5.º e 6.º da Diretiva 2004/38/CE, de 29 de abril,
relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros
das suas famílias7, garantem o direito de entrar e permanecer até três meses sem qualquer
condição ou formalidade (para além da titularidade de um documento de identificação ou
de um passaporte válido). Esta Diretiva consagra, no seu artigo 7.º, o direito de residência
do cidadão da União no território de outro Estado-Membro, para exercício duma atividade
profissional (subordinada ou independente) ou que aí estude ou seja inativo e disponha de
meios de subsistência e cobertura de saúde.
Por outro lado, o n.º 3 do artigo 45.º do TFUE e o Regulamento 492/2011 relativo à livre
circulação de trabalhadores preveem o direito dos nacionais dos Estados-Membros a entrar e
residir no território de outro Estado-Membro para aí exercer uma atividade assalariada, bem
como o direito a procurar livremente emprego. Esta liberdade de deslocação no espaço euro-
peu também é particularmente relevante para trabalhadores sazonais ou transfronteiriços.
Mas a livre circulação, como direito fundamental do cidadão da União, não é um
direito absoluto, pois o Direito da União Europeia permite que os Estados-Membros pos-
sam, dentro de certos limites, restringi-lo por razões de ordem pública, segurança pública e
também de saúde pública. Assim, nos termos do número 3 do artigo 45.º do TFUE, o direito
do cidadão europeu de se deslocar livremente a fim de responder a ofertas de emprego ou
de residir no território de um Estado Membro para aí exercer uma atividade assalariada
é garantido “sem prejzo de limitações justificadas por razões de (...) saúde pública”. Por outro
lado, o artigo 29.º da Diretiva 2004/38/CE permite que doenças com potencial epidémico
definidas pela Organização Mundial de Saúde ou doenças infeciosas que sejam objeto
de medidas de proteção aplicáveis aos nacionais dos Estado-Membros possam justificar
medidas restritivas da livre circulação.
A pandemia da COVID 19 pode, sem dúvida, ser considerada um perigo genuíno, atual
e suficientemente grave para a saúde pública, que justifique medidas restritivas da livre
circulação dos cidadãos da União. Mas tais medidas têm de obedecer aos princípios gerais
do artigo 27.º da Diretiva 2004/38/CE. Em especial, não podem ser discriminatórias e
devem ser proporcionais8. De acordo com a jurisprudência constante do Tribunal de Jus-
7 Versão retificada, publicada no JOUE L 229, de 26 de junho de 2004, p. 35.
8 Assim também, van Eijken, H. & Rijpma, J. J. – Op. Cit., p. 42; Lang, Goldner I. – “Laws of Fear” in the EU: The
Precautionary Principle and Public Health Restrictions to Free Movement of Persons in the Time of COVID-19.
In: European Journal of Risk Regulation 2021, pp. 1-24.
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O impacto da COVID ‑19 na livre circulação de pessoas na UE e restrições justificadas por razões de saúde pública
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tiça da UE as disposições que permitem restrições a liberdades fundamentais garantidas
pelo Direito da União Europeia devem ter interpretação e aplicação restritivas e observar
o princípio da proporcionalidade.
Assim, qualquer medida restritiva da livre circulação justificada por razões de saúde
pública deve ser necessária, proporcional, temporária e não discriminatória. Salvo
melhor opinião, a conformidade da exigência de quarentena com o Direito da União
Europeia exige que esta tenha de ser necessária para preservar a saúde pública, o que
depende, em cada momento, da situação epidemiológica. Por outro lado, nunca poderia
ter carácter discriminatório, ou seja, devia aplicar-se indistintamente a cidadãos nacio-
nais e a cidadãos de outros Estados-Membros que entrem no território do Estado-Mem-
bro em causa. Também são questionáveis, sob o ponto de vista do princípio da propor-
cionalidade, algumas medidas, como avisos generalizados para as pessoas não viajarem
para determinados Estados-Membros, que não encontram justificação suficiente na
situação epidemiológica9.
Não obstante, em 2020 e 2021, a liberdade de circulação na União Europeia ficou sujeita
a um emaranhado de medidas nacionais mais ou menos restritivas, que iam da exigên-
cia de testes negativos a quarentenas de duração variável. À medida que novas variantes
foram surgindo, os Estados-Membros continuaram a restringir a mobilidade, não apenas
no interior do seu território, mas entre eles.
Durante a pandemia, os Estados-Membros não se limitaram a introduzir controlos nas
fronteiras internas (que podem constituir um obstáculo, mas não impedem a livre circu-
lação de pessoas) ou a impor quarentenas. Alguns chegaram a fechar as suas fronteiras,
abrindo poucas exceções para viagens essenciais. Tal constitui não apenas um obstáculo
ou uma restrição à livre circulação de dos cidadãos da União, mas a sua negação. Significa
uma suspensão de uma liberdade fundamental do mercado interno que não pode sequer
ser justificada pela cláusula de salvaguarda do artigo 347.º do TFUE, que permite aos Esta-
dos-Membros, de comum acordo, estabelecer medidas excecionais em caso de guerra ou de
ameaça de guerra. Por outro lado, embora nos termos do artigo 4.º, n.º 2, do TUE e do artigo
72.º do TFUE os Estados-Membros tenham competência para adotar medidas de manuten-
ção da ordem pública e de segurança nacional, tal não legitima medidas restritivas da livre
circulação de pessoas em caso de ameaça à saúde pública provocada por uma pandemia.
A introdução da vacinação, do Certificado Europeu COVID e a progressiva transfor-
mação da pandemia num fenómeno endémico tornaram mais difícil, de um ponto de
vista jurídico, sustentar a necessidade e proporcionalidade de medidas restritivas da
9  E H  R J J – Op. Cit., p. 42. Duić, D., & Sudar, V. – Op. Cit., p. 41.
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CONSTANÇA URBANO DE SOUSA
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livre circulação de cidadãos da UE. Sem embargo, em novembro de 2021, para fazer face
à propagação da variante Omicron, o Governo adotou o Decreto-Lei n.º 104/2021, de 27
de novembro, que alterou o Decreto-Lei n.º 28-B/2020, de 26 de junho (regime contraor-
denacional, no âmbito da situação de calamidade, contingência e alerta), introduzindo
novos deveres e contraordenações. Assim, as empresas de transporte (aéreo, marítimo,
fluvial ou terrestre) passaram a ter a obrigação de não embarcar pessoas com destino
a Portugal sem Certificado Digital COVID, sem preenchimento do formulário de loca-
lização de passageiro e sem teste COVID negativo realizado antes do embarque, sob
pena de pesadas sanções pecuniárias entre 20.000 a 40.000 € por passageiro embarcado
sem o teste (artigos 2, al. q), e 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 28-B/2020, na redação dada
pelo Decreto-Lei n.º 104/2021). Também foi imposto aos titulares de Certificado Digi-
tal COVID o dever de possuir teste COVID, realizado antes do embarque, sob pena de
aplicação de uma coima de 300 a 800€ (artigo 3.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 28-B/2020, na
redação dada pelo Decreto-Lei n.º 104/2021). Embora estas medidas só fossem aplicadas
durante a verificação de estado de emergência ou da situação de alerta, contingência
ou calamidade determinadas pela Lei de Bases da Proteção Civil no contexto da situa-
ção epidemiológica originada pela COVID 19, a exigência cumulativa de um teste nega-
tivo COVID e de vacinação atestada pelo Certificado Europeu COVID como requisito de
entrada em território nacional, sob pena de aplicação de sanções pecunrias, não foi,
em minha opinião, conforme ao Direito da União Europeia. Para além da questão da
sua proporcionalidade, contrariou, de forma inequívoca, o artigo 11.º do Regulamento
(UE) 2021/953 relativo ao Certificado Digital COVID, que atesta a vacinação, a recupe-
ração ou um teste negativo (na redação em vigor à época). Com efeito, esta disposição
do Direito da União Europeia estabelece uma clara obrigação para os Estados-Membros
que aceitem este certificado de se abster de impor restrições adicionais à livre circula-
ção de pessoas, tais como realização de testes ou quarentenas, salvo se tais restrições
forem necessárias para salvaguardar a saúde pública (por exemplo, rápido agravamento
da situação pandémica devido a uma variante do SARS-COV-2 que suscite preocupa-
ção). Neste caso, o Estado-Membro pode adotar tais medidas, mas apenas após a entrada
em território nacional do titular do Certificado Digital COVID (e não como requisito de
entrada, como exigido por Portugal) e desde que informe a Comissão e os outros Esta-
dos-Membros sobre as razões dessas restrições, o seu âmbito e a sua duração (artigo 11,
n.º 2, do Regulamento (UE) 2021/953).
Mas as medidas nacionais de controlo da COVID 19 não afetaram apenas o direito de
livre circulação de pessoas na União Europeia. Também colocaram em causa o princípio
da proibição de controlos nas fronteiras internas da União, que abordarei de seguida.
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O impacto da COVID ‑19 na livre circulação de pessoas na UE e restrições justificadas por razões de saúde pública
The impact of COVID‑19 on free movement of people in theEU and restrictions justified by public health reasons: a brief analysis
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III. A União Europeia como espaço de liberdade de circulação: proibição de
controlos de pessoas nas fronteiras internas e reintrodução de controlos
justificados por razões de saúde pública
Um dos objetivos mais relevantes da União Europeia é, de acordo com o disposto no n.º 2
do artigo 3.º do Tratado da União Europeia (TUE), proporcionar “aos seus cidadãos um espaço
de liberdade, segurança e justiça sem fronteiras internas, em que seja assegurada a livre circulação
de pessoas ...”. O espaço de liberdade, segurança e justiça é um desenvolvimento do cha-
mado Espaço Schengen, criado pelo Acordo de Schengen de 1985 e pela sua Convenção de
Aplicação, de 1990, que, à margem das então Comunidades Europeias, introduziu entre os
Estados signatários a obrigação de abolição de controlos documentais de pessoas nas suas
fronteiras, acompanhada de medidas compensatórias, como a harmonização do controlo
da fronteira externa, da política de vistos, de alguns aspetos da política de imigração e
asilo ou o reforço da cooperação policial e judicria em matéria penal10.
O princípio de que a União é um espaço sem fronteiras internas, sendo, portanto, proi-
bidos controlos de pessoas nas fronteiras entre os Estados Membros, está consagrado na
alínea a) do n.º 1 do artigo 77.º do TFUE. Nos termos desta disposição, a União desenvolve
uma política que visa “assegurar a ausência de qualquer controlo de pessoas, independentemente
da sua nacionalidade, na passagem das fronteiras internas. O mesmo princípio está expresso
no artigo 22.º do Regulamento 2016/399, de 9 de março de 2016, que estabelece o Código
de Fronteiras Schengen11, ao determinar que “as fronteiras internas podem ser transpostas em
qualquer lugar sem que se proceda ao controlo das pessoas, independentemente da sua nacionali-
dade”.
Este não é, no entanto, um princípio absoluto, já que o Regulamento 2016/399 permite
aos Estados-Membros a reintrodução de controlos nas fronteiras internas, em circunsn-
cias excecionais e por um período limitado. Assim, de acordo com o disposto no artigo 25
do Regulamento 2016/399, os Estados-Membros podem reintroduzir, a título excecional e
como medida de último recurso, controlos temporários nas fronteiras internas em duas
situações:
(1) Em caso de ameaça grave à ordem pública ou à segurança interna (por ex. terro-
rismo), desde que a medida seja necessária e proporcional e o seu impacto sobre a livre
circulação de pessoas objeto de avaliação (artigo 26.º);
10 Sobre a evolução do espaço de liberdade, segurança e justiça como desenvolvimento do espaço Schengen, ver, por
exemplo, S C U– A cooperação policial e judiciária em matéria penal na União Europeia:
Evolução e perspectivas. In: Polícia e Justiça, (2003) n.º 2, pp. 9-53.
11 Alterado pelos Regulamentos (UE) 2016/1624, 2017/458 e 2019/817.
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The impact of COVID‑19 on free movement of people in theEU and restrictions justified by public health reasons: a brief analysis
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(2) Em circunstâncias excecionais que coloquem em risco o funcionamento global do
espaço Schengen devido a deficiências graves e persistentes de controlo da fronteira
externa, em especial, em caso de afluxo maciço de imigrantes (artigo 29.º).
No primeiro caso, a reintrodução de controlos nas fronteiras internas pode ter uma
duração máxima de seis meses e, no segundo, de dois anos. Por outro lado, a reintrodução
de controlos nas fronteiras internas por motivos de ordem pública ou segurança pública
está subordinada a um procedimento específico de notificação prévia e fundamentada
aos demais Estados-Membros e à Comissão Europeia (artigo 27.º), salvo quando se trata
de uma ação imediata para fazer face a uma ameaça grave, caso em que existe um proce-
dimento especial e os controlos não se podem prolongar por prazo superior a dois meses
(artigo 28.º).
Ou seja, o Regulamento 2016/399 apenas permite a reintrodução de controlos nas fron-
teiras entre os Estados-Membros por raes de ordem pública ou segurança pública, ou
em caso de afluxo maciço e incontrolado de imigrantes que coloque em causa o funciona-
mento do Espaço Schengen. Não o permite por raes de saúde pública. Embora o consi-
derando número 6 deste Regulamento refira que o controlo fronteiriço também serve para
prevenir ameaças à saúde pública, tal é exclusivamente aplicado ao controlo da fronteira
externa da União, ou seja, na fronteira com países terceiros, mas não aos controlos nas
fronteiras internas.
Durante a pandemia, muitos Estados-Membros invocaram circunsncias especiais
para reintroduzir controlos nas suas fronteiras internas ou prolongar aqueles que já esta-
vam a ter lugar devido a ameaça terrorista. Um número reduzido de Estados-Membros
cumpriu o procedimento previsto no artigo 27.º, que impõe que tais decisões sejam devi-
damente fundamentadas e comunicadas a Bruxelas e aos outros Estados-Membros.
A menos que se possa considerar que uma pandemia, ou seja, uma ameaça à saúde
pública, é, igualmente, uma ameaça à ordem pública, as decisões tomadas de forma unila-
teral por vários Estados-Membros de reintroduzir controlos ou mesmo encerrar as fron-
teiras com outros Estados-Membros não foram, em minha opinião, conformes ao Código
de Fronteiras Schengen, que não prevê este tipo de situação.
IV. Conclusão
A gestão da pandemia da COVID 19 constituiu um enorme desafio para os Estados-Mem-
bros e colocou em crise um dos princípios estruturantes da União Europeia: a liberdade de
circulação de pessoas num espaço sem fronteiras internas.
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The impact of COVID‑19 on free movement of people in theEU and restrictions justified by public health reasons: a brief analysis
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Nem os Estados-Membros, nem a UE estavam preparados, de um ponto de vista jurí-
dico, para fazer face a esta pandemia, que nos apanhou, a todos os títulos, desprevenidos.
Em especial, o regime jurídico da livre circulação de pessoas não estava concebido para
este tipo de situação excecional, tendo conduzido a soluções nacionais, mais ou menos
coordenadas ao nível da União Europeia através de instrumentos de soft law.
Para fazer face a futuras pandemias, é necessário que a União Europeia atualize o
seu regime jurídico da livre circulação de pessoas, para evitar a insegurança jurídica que
resultou de medidas nacionais avulsas. Existem muitos aspetos que carecem de clarifica-
ção jurídica como uma melhor definição das situações que ameaçam de forma generali-
zada a saúde pública, o conceito de viagem essencial ou de trabalhador essencial para efei-
tos de reintrodução de restrições a viagens no seio da União Europeia12. Por fim, impõe-se
a previsão da saúde pública como motivo justificativo da reintrodução de controlos nas
fronteiras internas e o estabelecimento de regras espeficas que garantam um melhor
controlo da necessidade e da proporcionalidade de medidas restritivas da liberdade de cir-
culação de pessoas, a ser aplicadas em situação de pandemia13.
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Sousa, Constança Urbano (2003). A cooperação policial e judiciária em matéria penal na União Europeia:
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12  E H  R J J – Op. Cit., p. 49.
13 Assim, também, Duić, D., & Sudar, V. op. cit., p.50.
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Do procedimento disciplinar na PSP:
Entreaadmissibilidade e inadmissibilidade
probario -processual das mensagens
doWhatsApp1
Disciplinary procedure in PSP: Between the admissibility and
inadmissibility of probatory procedural messages on WhatsApp
CARLOS MANUEL SEQUEIRA CAROLINO2
carlos.carolino@hotmail.com
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXII · 1st July Julho–31ST December Dezembro 2021 · pp.2140
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXII.2.2
Submitted on November 30th, 2021 . Accepted on December 28th, 2021
Submetido em 30 de Novembro, 2021 . Aceite a 28 de Dezembro, 2021
RESUMO O presente estudo tem como objetivo contrabalançar os diversos institutos
jurídicos que se prendem com os direitos fundamentais e direitos de personalidade com
a doutrina e jurisprudência, para concluirmos pela admissibilidade ou inadmissibilidade
processual das mensagens do WhatsApp.
É uma temática com marcos recentes importantes, nomeadamente a aprovação da Lei
do Cibercrime, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora dos anos de 2019 e 2020 e,
por fim, a constância de decisões punitivas na PSP em casos alogos aos tratados nos
aludidos arestos.
Concluiu -se pelo enquadramento das mensagens enviadas pelo WhatsApp enquanto prova
digital e sujeita à cadeia de custódia de prova, apenas admissível em processo crime, bem
como pelo afastamento das nulidades, através da sua sanação, pelo consentimento do titular
dos direitos de personalidade, in casu, a violação de correspondência, enquanto dimensão
da dignidade da pessoa humana e do direito à reserva da intimidade da vida privada, e
que, em caso de conito de direitos, devemos atender aos princípios da proporcionalidade
1 O presente artigo corresponde ao Trabalho de Investigação Final apresentado no Instituto Superior de Ciências
Policiais e Segurança Interna (ISCPSI) em novembro de 2021, para conclusão do Curso de Comando e Direção
Policial e, posteriormente, depositado nos serviços do ISCPSI.
2 Mestre em Direito, na especialidade de Ciências Jurídico Criminais, e Licenciado em Direito pela Universidade
Autónoma de Lisboa. Licenciado em Ciências Policiais e Segurança Interna pelo ISCPSI.
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Do procedimento disciplinar na PSP: Entreaadmissibilidade e inadmissibilidade probatório ‑processual das mensagensdoWhatsApp
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e adequação, previstos no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, e
com os limites impostos pelo artigo 335.º do Código Civil.
PALAVRAS -CHAVE Direitos de personalidade; reserva da vida privada; estatuto disciplinar;
WhatsApp.
ABSTRACT The present study aims to counterbalance the various legal institutes that are
related to fundamental rights and personality rights with the doctrine and jurisprudence,
in order to conclude for the procedural admissibility or inadmissibility of WhatsApp
messages.
It is a theme with important recent milestones, namely the approval of the Law of
Cybercrime, the Judgments of the Évora Court of Appeal of the years 2019 and 2020 and,
finally, the constancy of punitive decisions in the PSP in cases analogous to those dealt
with in the mentioned judgments.
It was concluded by the framing of the messages sent by WhatsApp as digital evidence
and subject to the chain of custody of evidence, only admissible in criminal proceedings,
as well as by the removal of nullities, through its remedy, by the consent of the holder of
personality rights, in this case, the violation of correspondence, as a dimension of the
dignity of the human person and the right to privacy, and that, in case of conflict of rights,
we must attend to the principles of proportionality and adequacy, provided in paragraph
2 of Article 18 of the Constitution of the Portuguese Republic, and the limits imposed by
Article 335 of the Civil Code.
KEYWORDS Personality rights; privacy reserve; disciplinary statute; WhatsApp.
Introdução
A globalização que ocorreu através das plataformas digitais trouxe para o mundo jurídico-
-contemporâneo diversos desafios, nomeadamente em termos de direito laboral (público
e privado).
Foi através das denominadas redes sociais, como por exemplo o facebook, e de outras
plataformas de comunicação, em especial o WhatsApp (enquanto objeto do nosso estudo),
que paulatinamente deixou de existir uma barreira entre os relacionamentos pessoais,
como tradicionalmente eram conhecidos, e os relacionamentos profissionais.
Hoje, tudo está ao alcance de um “clique” no rato, de um “enter” no teclado e de um
touch” no ecrã tátil de qualquer dispositivo móvel de comunicação. Tudo isto transmite
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a ideia de que nos encontramos permanentemente ligados a todo o sítio em qualquer
momento.
Este mitigar de barreiras físicas “assenta numa construção de afastamento do panótico
e da armação do sinótico promovido pelas novas tecnologias” que “deram lugar à socie-
dade intertico -personocêntrica3 (Valente, 2019, pp.51 e 50), numa espécie de reminiscência
da conceção de modernidade líquida preconizada por Bauman (2000) em 1960.
É nesta nova tipologia de sociedade que o ser humano, enquanto detentor de direitos
e deveres, cuja fundação elementar é a dignidade da pessoa humana, se encontra perante
“um processo dialético do ser e do dever ser, [onde] cada colocação nas redes sociais é uma
forma da sua afirmação ôntica e ontológica perante os demais membros da sociedade”
(Valente, 2019, p. 39).
São essas colocações ou posts em redes sociais, a maioria feitas em contexto extralabo-
ral, mas com conexão intrainstitucional, que têm desencadeado inúmeros processos dis-
ciplinares com recurso (apenas e só)4 como meio de obtenção e meio de prova (material) os
diversos printscreens das mensagens retiradas do WhatsApp adstritas a determinado grupo
de conversação.
Assim, o presente estudo tem como objeto a descrição e confrontação dos regimes jurí-
dicos vigentes, bem como das análises doutrinal e jurisprudencial em face do dualismo
entre a privacidade da mensagem pessoal, garantida através da ferramenta da encripta-
ção, e a proteção dada pelo direito à reserva da intimidade da vida privada, na sua dupla
aceção: direito de personalidade (artigo [art] 70.º do Código Civil [CC]) e direito funda-
mental pessoal (art.º 26.º da Constituição da República Portuguesa [CRP]).
A pertinência do estudo resulta das relevâncias policial, jurídica (disciplinar e cri-
minal) e social em três momentos marcantes: (i) a aprovação da Lei do Cibercrime; (ii) a
constância de decisões punitivas em casos alogos aos que se irão debater no presente
trabalho; e, (iii) os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora (TRE) relativos aos anos de
2019 e 2020.
Os objetivos do presente estudo são: (i) definição da estrutura do processo disciplinar
da PSP; (ii) qualificar juridicamente as mensagens do WhatsApp; (iii) identificar se a reco-
3 A teoria da sociedade internético -personocêntrica é uma construção de Manuel Monteiro Guedes Valente de 2013
e publicado em 2014: http://www.ibadpp.com.br/publicacoes/os -desafios -do -processo -penal -do -estado -democratico -de-
-direito -a -sociedade -internetico -personocentrica -por -manuel -valente/.
4 Apesar de ter sido enviado um email no dia 24.09.2021 para o Gabinete de Deontologia e Disciplina da Direção
Nacional da PSP a solicitar os dados referentes aos processos disciplinares mandados instaurar desde a entra-
da em vigor do EDPSP, nunca obtivemos qualquer resposta, pelo que, em face do exposto, não poderão tais da-
dos ser apresentados.
Para efetuarmos dita afirmação socorrem -nos do nosso conhecimento empírico, considerando a nossa função
como Instrutor disciplinar no Núcleo de Deontologia do CoMetLis.
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lha das mensagens do WhatsApp é considerada prova digital e se está sujeita à cadeia de
custódia de prova; e, (iv) contrabalançar a figura jurídica do consentimento com o princí-
pio nemo tenetur se ipsum accusare.
Esta análise será realizada tendo por base as alises jurisprudencial e doutrinal, que
nos permitam concluir pela admissibilidade (legalidade) ou inadmissibilidade (ilegali-
dade) da utilização das mensagens e das capturas de ecrã de determinada conversão no
WhatsApp como (único) meio de prova de sustentação do processo disciplinar.
I – Estado da arte
1. Contextualização teórica
a) A Administração Pública e a PSP
O Estado, a par das convencionais funções legislativa e judicial, sempre desempenhou uma
função administrativa. Esta função está umbilicalmente ligada à satisfação de forma fre-
quente e efetiva das carências coletivas da comunidade (segurança, cultura e bem -estar),
enquanto razão primordial da existência de administrações públicas (Caetano, 1932; Fon-
tes, 2020). Por esse facto a Polícia, de acordo com a arrumação sistemático -constitucional
do art.º 272.º da CRP, e a sua inserção no título relativo à Administração Pública, remete-
-nos para a ideia de que toda a polícia é apenas e só polícia administrativa (Raposo, 2006).
Contudo, o mesmo preceito, o qual prevê o denominado “Direito Constitucional da
Polícia”, remete -nos, ainda, para a tríplice tipologia que a polícia pode revestir: “(a) a polícia
administrativa em sentido estrito; (b) a polícia de segurança; (c) a polícia judiciária” (Canotilho &
Moreira, 2010, p. 858).
A Polícia de Segurança Pública (PSP), enquanto polícia integral e face visível da lei, é
considerada uma polícia administrativa stricto sensu, uma vez que enquanto manifesta-
ção da Administração Pública (sentido orgânico de Polícia) cabe -lhe, nos termos do n.º 1
do art.º 272.º da CRP e considerando uma tendência funcional (prevenção dos perigos) e
teleológico -constitucional, a ação destinada a “defender a legalidade democrática e garan-
tir a segurança interna e os direitos dos cidadãos”.
Ora, estando a PSP situada no âmago da Administração Pública, mais precisamente
na administração direta do Estado, e considerada para efeitos legais como uma carreira
especial subordinada à condição policial, todos os seus elementos estão sujeitos, por força
do previsto nos artigos 4.º, n.º 1, aneas d) e e), 6 e 61.º, todos do Decreto -Lei n.º 243/2015,
de 19 de outubro, o qual aprovou o Estatuto Profissional do Pessoal com Funções Policiais
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da Polícia de Segurança Pública (EPPSP), conjugado com os artigos 6.º, 8.º, 76.º e 176.º, n.º
3 da Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, a qual aprovou a Lei Geral do Trabalho em Funções
Públicas (LGTFP), aplicável ex vi do n.º 2 do art.º 5.º do EPPSP, a uma hierarquia e a um
estatuto disciplinar próprios.
A hierarquia implica a possibilidade de os superiores hierárquicos exercerem diversos
poderes5, em especial, e para o tema que nos ocupa, o poder de controlo ou fiscalização.
Este poder, considerado por nós um poder -dever subjetivo, consiste, entre outras, na
faculdade que impende sobre o superior hierárquico de intentar um procedimento dis-
ciplinar, com obserncia estrita do princípio da legalidade, e aplicar sanções ou penas
disciplinares, sempre que seja detetado um desvio, praticado por ação (faccere) ou omissão
(non faccere ou omittere), aos deveres e fins prosseguidos pela PSP.
Mas este critério densificador sofre um alargamento ao permitir que esses mesmos
deveres funcionais possam ser violados, por um lado, através de condutas dolosas ou, pelo
menos, negligentes, só assim adquirindo ressonância ético -jurídica negativa e, por outro
lado, os comportamentos externos ou ocorridos em consequência de atos de gestão da
vida privada, que afetem de forma efetiva o funcionamento dos serviços ou coloque em
causa, de forma entendida como grave, a respeitabilidade e o prestigio da função, poderem
determinar o preenchimento dos elementos constitutivos da infração disciplinar (Leal-
-Henriques, 2002; Parecer, 2005).
Esta infração é, salvo disposição em contrário, atípica, ou seja, consubstancia “meras
normas de orientação para servirem de padrão do intérprete” (Caetano, 1972, p. 787),
pois utiliza por definição a “técnica da cláusula geral com enumeração exemplificativa”
(Raposo, 2018, p. 102), e assume natureza formal, uma vez que “se esgotam na própria ação
ou omissão (na conduta)” (Silva, 1998, pp.29 -30).
Entendemos que aos dois elementos suprarreferidos está associado outro poder fun-
cional, que se traduz na possibilidade do titular do poder disciplinar, de motu proprio ou
sob proposta do instrutor, e desde que observados determinados requisitos legais, suspen-
der o processo mediante a imposição de injunções ou regras de conduta ao arguido, sus-
pender a execução da pena, de acordo com critérios de oportunidade, ou, simplesmente,
optar pela sua execução.
São estes deveres, enquanto deveres éticos, que “ultrapassam os meros deveres jurí-
dicos, deixando para [os primeiros] [...] as incidências disciplinares e reservando para os
5 Além do poder funcional do superior hierárquico objeto do nosso estudo e aqui tratado, exercem ainda o poder de
direção e o poder de dispositivo de competência.
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[outros] [...] a censura da consciência coletiva” (Carta Deontológica do Serviço Público,
1993, citado por Fontes, 2020, p. 34).
b) Modelo processual do Estatuto Disciplinar da PSP
No caso dos funcionários da PSP, entendidos na aceção do previsto no art.º. 386.º do
Código Penal (CP) conjugado com o art.º 3.º do EPPSP, podemos constatar que o que está
em causa no Estatuto Disciplinar da PSP (EDPSP), aprovado em anexo à Lei n.º 37/2019,
de 30 de maio, é a tutela de deveres ético -funcionais, os quais “emergem da relação entre
o agente público e a entidade pública à qual presta determinada função” (Monte, 2017, p.
193). De acordo com Caetano (1932), é esta função, entendida como “o complexo harmónico
de deveres [...], que concretiza, que materializa a idea -madre do serviço em relação a êle”
(pp.23 -24).
O poder disciplinar, de caráter instrumental face à Instituição PSP, resulta, de acordo
com o n.º 2 do art.º 62.º do EPPSP, das “relações [interorgânicas] de autoridade e subordi-
nação entre os polícias”.
O desvio – entendido como a violação de princípios e normas jurídico -materiais – a
essas regras ou deveres ético -funcionais, quer gerais – previstos no art.º 8.º do EDPSP
– quer especiais – previstos no EPPSP, na Lei de Segurança Interna (LSI) e na Lei de Orga-
nização e Funcionamento da PSP (LOPSP) – geram a responsabilidade disciplinar do pre-
varicador. Essa responsabilidade disciplinar do funcionário ou agente da PSP, terá de ser
averiguada através de um “adequado procedimento administrativo [gracioso, de tipo san-
cionatório]” (Amaral, 2008, p. 218), que “é o género (genus) que engloba [e se consubstancia
materialmente na] espécie (species) processo” (Pinheiro, 2020, p. 154).
O processo disciplinar é, assim, considerado um jogo bipolar ou bidimensional de
estrutura dialética, no qual intervêm a Administração, in casu a PSP, enquanto pessoa cole-
tiva de direito público, e o arguido. O órgão responsável daquela entidade surge, no âmbito
dessa relação funcional, numa situação de superioridade – poder de direção, poder de fis-
calização e poder disciplinar – e assume -se, “simultaneamente, como vítima e detentor do
ius puniendi disciplinar” (Costa, 2012, p. 50).
Arrogando -se as entidades com competência disciplinar previstas nos anexos I e II do
EDPSP dessa dupla função, enquanto órgãos da pessoa coletiva PSP e ao abrigo de uma
relação jurídica estatutária, aos mesmos assiste, nos termos do n.º 1 do art.º 58.º do EDPSP,
a competência de decidir pela instauração do procedimento, bem como de recompensar e
punir, enquanto manifestações do poder disciplinar.
Esta dupla competência leva -nos a considerar a estrutura do EDPSP, em consonância
com a maioria dos processos de cariz administrativo sancionatório, não como possuindo
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uma estrutura acusatória – clara separação entre quem investiga, acusa e julga (Cf. art
32.º, n.º 5 da CRP) –, mas sim com uma estrutura ou modelo inquisitorial, uma vez que
a entidade que decide mandar instaurar o processo disciplinar é a mesma que decide o
arquivamento ou a punição que ao caso couber, implicando “uma unificação parcializada
de todo o processo punitivo” (Macedo, 1990, citado por Pinheiro, 2020, p. 156), numa lógica
de concentração de compencias.
Podíamos ser levados a pensar que este tipo de estrutura modelar corresponderia na
íntegra ao modelo inquisitorial que vigorou nos Estados autocráticos e autoritários dos
séculos XVII e XVIII, no qual o arguido era considerado um objeto processual. Apesar de
se continuar a verificar o princípio Quod non est in actis non est in mundo, o EDPSP, por força
dos seus artigos 83.º, n.º 4, 95.º e 32, n.º 10, 269.º, n.º 3, ambos da CRP e 58.º do Código
do Procedimento Administrativo (CPA), concede “ao arguido os direitos de audiência e
defesa” (acórdão, 2010).
É precisamente com base no aludido art.º 58.º do CPA, conjugado com o n.º 2 do art
60.º do EDPSP, que o instrutor disciplinar pode levar a cabo ou efetuar todo e qualquer
tipo de diligências que se revelem adequadas e se julguem necessárias à boa decisão da
lide ou relação controvertida, respeitando, como é óbvio, designadamente os princípios da
legalidade, imparcialidade e segurança jurídica.
Este afastamento do princípio do dispositivo, tendo em vista uma maior eficácia e efi-
ciência ao nível da intervenção processual, permite um aumento substancial em termos
probatórios no plano da cognoscibilidade do instrutor, os quais serão subsumidos ao prin-
cípio da livre apreciação da prova, enquanto dimensão da discricionariedade administra-
tiva.
O amplo leque de garantias concedido ao arguido, permite que apesar de se continuar
a privilegiar a hierarquia “esta já não é vista, nem de longe nem de perto, como um valor
absoluto – [...] –, mas antes como um valor que se tem de compatibilizar, quando disso
for caso, com bens ou valores de igual (ou superior) intensidade ou valência normativa”
(Costa, 2012, p. 51).
c) Breve análise jurisprudencial
Foi precisamente essa ponderação de valores, os quais irão ser alvo de análise no pre-
sente trabalho, que surgiram, até este momento, dois Acórdãos do Tribunal da Relação
de Évora (TRE) relativos aos Processos 747/18.5T8PTM.E1, de 28 de março de 2019, e
2034/19.2T8PTM.E1, de 4 de junho de 2020, ambos proferidos no âmbito de relações jurí-
dicas privatísticas laborais.
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Os acórdãos analisaram a admissibilidade das mensagens enviadas pelo WhatsApp,
através de um grupo restrito onde se encontravam, pelo menos, dois trabalhadores, tendo
estas chegado por meio indireto ao empregador, através da divulgação do seu conteúdo por
um terceiro pertencente ao grupo privado, como única prova para fundamentar o despe-
dimento por justa causa.
De acordo com estes arestos, as aludidas mensagens enviadas através de determinado
grupo privado, não fazendo parte do mesmo a entidade empregadora, gozam de proteção
em primeiro lugar pelas configurações de segurança do WhatsApp, e, em segundo lugar,
pela legítima expetativa que o autor da mensagem colocou na mesma, no sentido de que
não fosse divulgada por terceiros e, em último lugar, que os direitos à privacidade e à
reserva da intimidade privada não podem sofrer uma compressão tal que sejam aniquila-
dos, tendo em conta que o direito à produção de prova não é um direito absoluto.
Assim, em ambos os casos, decidiu o coletivo de juízes pela inadmissibilidade e utili-
zação probatória das mensagens enviadas num grupo privado, do qual não fazia parte a
entidade empregadora, como forma de justificação do despedimento por justa causa, por
as mesmas serem nulas.
2. Problema, hipóteses e metodologia
Formulamos o seguinte problema de investigação: Face à garantia concedida pela encrip-
tação ponto a ponto em que se baseia o WhatsApp, conjugado com o direito à reserva da
intimidade da vida privada e familiar (como direito de personalidade e direito fundamen-
tal pessoal – artigo 26.º, n.º 1 e artigo 35.º da CRP) e contrapondo -os com as finalidades
do processo disciplinar, como se interrelacionam sem que alguma prevaleça e niilifique
qualquer outra?
Formulamos as seguintes hipóteses:
Hipótese 1: As mensagens do WhatsApp constituem prova digital, pelo que devem estar
sujeitas à cadeia de custódia de prova.
Hipótese 2: A nulidade resultante da obtenção da prova com violação do direito à
reserva da vida privada do visado, enquanto direito de personalidade e direito funda-
mental, é sanada pelo seu consentimento.
No que diz respeito à metodologia, recorremos aos métodos indutivo, dedutivo e fun-
cionalista. O método indutivo será utilizado para execução de um sistema de raciocínios
conexos, no sentido crescente, ou seja, do mais acessível para o mais complexo e do global
para o individual, em ordem a um desfecho ou conclusão. O método dedutivo será empre-
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gue no que respeita à abordagem. Já no que respeita ao procedimento, será empregue o
método funcionalista através de uma análise do concreto para o abstrato.
II – Perspetivas e diretrizes
1. Questões prévias
a) Qualificação jurídica das mensagens do WhatsApp
O WhatsApp é uma app comunicacional que serve de base às muitas comunicações, escri-
tas, voz e vídeo que são feitas em todo o mundo entre, pelo menos, duas pessoas.
De acordo com os arestos do TRE (2019; 2020), o WhatsApp é considerado uma rede
social, uma vez que “permite a ligação em rede de um conjunto de pessoas ou organizações
que partilhem interesses, conhecimentos e valores comuns por meio da internet.
Concordamos com a conceptualização apresentada aplicada a redes sociais como o Face-
book, Instagram e Linkedin, mas não ao WhatsApp.
Isto porque o WhatsApp: (i) constitui uma aplicação interativa que utiliza, tal como as
redes sociais, a web 2.0 com acessibilidade através da internet; (ii) permite a interação social
entre os seus membros ou utilizadores através de vários formatos (texto, voz e vídeo); (iii)
é restrito a quem envia e a quem recebe tais conteúdos, derivado da encriptação ponto-
-a -ponto, não sofrendo qualquer tratamento por parte da empresa gestora do WhatsApp
(Cf. https://www.whatsapp.com/security/); (iv) ao contrário do que acontece com o Face-
book e Instagram, não apresenta sugestões de amizade e outras páginas com interesses em
comum; (v) apesar de permitir que sejam criados pers, os mesmos surgem como uma
espécie de cartão de visita ou de contato, mas não permitem fazer qualquer ligação com
os dados do utilizador. Em face do exposto e apesar de verificarmos pontos em comum,
entendemos que o WhatsApp é uma plataforma comunicacional e não uma rede social.
Mas uma das caraterísticas mais importantes desta plataforma é a confidencialidade
que é garantida às mensagens enviadas e recebidas pelos seus utilizadores, as quais devem
merecer, em vista dos direitos pessoais e fundamentais em jogo, tutela efetiva pelos vários
ramos do Direito.
De acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (TRP), proferido no âmbito
do processo n.º 37/12.7TBALJ -A.P1, de 3 de dezembro de 2013, existe uma equiparação em
termos legais das comummente denominadas SMS, depois de recebidas, abertas e lidas, às
cartas em suporte físico ou papel.
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Nestes termos e na sequência do defendido nos acórdãos do TRE (2019; 2020), entende-
mos que tais formas de comunicação, nelas se incluindo as mensagens trocadas pelo Wha-
tsApp, devem ser interpretadas em termos alogos e ser integradas, ipso facto, no conceito
de cartas -missivas não confidenciais (Cf. art.º 78.º do CC).
Assim, estipula o art.º 78.º do CC que “o destinatário de carta não confidencial só pode
usar dela em termos que não contrariem a expetativa do autor”. Esta expetativa deve ser
entendida como a vontade presumida do remetente, no sentido de que tal mensagem não
seja divulgada por parte do destinatário, mesmo através dos printscreens do seu disposi-
tivo, e que esses mesmos factos não sejam tornados públicos.
b) O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada – disponibilidade ou
indisponibilidade do titular?
É, pois, perfeitamente legítimo ao emissor de uma determinada mensagem que a mesma
fique e seja apenas acessível ao respetivo destinatário, enquanto comunicação pessoal.
Releva neste caso uma espécie de sinalagma entre o emissor e o destinatário de tais
mensagens, no sentido de que as mesmas não sejam divulgadas ou utilizadas ab initio ad
finem por terceiros, nomeadamente a entidade patronal, in casu a PSP, mesmo que algum
desse conteúdo diga respeito à sua atividade normal ou que faça referência a algum dos
seus funcionários, para efeitos de fundamentação probatória de um processo disciplinar.
Estando estas mensagens ao abrigo de uma expetativa de confidencialidade e de um
princípio de confiança, por terem sido publicadas ou enviadas para um grupo privado,
circunscrito e inacessível, consubstanciará, desde logo, “uma emanação [...] do direito à
reserva sobre a intimidade da vida privada [...], entendida em sentido formal” (Pinto, 2006,
p. 14), que se integra nos denominados direitos de personalidade eventuais.
Estes direitos, enquanto “direitos naturais, humanos (e fundamentais) [..., tendo] como
pedra de toque e angular do [seu] edifício [...] a dignidade da pessoa humana”, podem, por
esse facto e considerando a sua “densidade e prioridade ôntica” (Ascensão, 2002, p. 10),
ser considerados “Direitos Fundamentais [...] de um Direito Privado Constitucional (Cunha,
2008, pp.216 e 224),
Partindo desta premissa, o direito à reserva da intimidade da vida privada, substanti-
vamente distinto da figura anglo -saxónica “privacy, encontra -se amplamente consagrado
e protegido. Desde logo e diretamente, no art.º 26.º e, indiretamente, nos artigos 34, 32,
n.º 8, 35.º e 268.º, n.º 2, todos da CRP, art.º 80.º do CC, 16.º do Código do Trabalho (CT), e
ainda em termos supraconstitucionais no art.º 12.º da Declaração Universal dos Direitos
do Homem (DUDH), art.º 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), e
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art.º7.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), integrados e
aplicáveis ao nosso ordenamento jurídico por força dos artigos 8.º e 16.º da CRP.
O Tribunal Constitucional, acompanhando a jurisprudência assente no Tribunal
Constitucional Federal da Alemanha desde a década de 70, efetuou a delimitação do objeto
e conteúdo do direito à reserva no sentido de “não ver difundido o que é próprio dessa
esfera de intimidade, a não ser mediante autorização do interessado” (Acórdão n.º 128/92,
citado por Pinto, 2006, p. 14).
Existindo neste âmbito uma clara separação entre o direito à reserva sobre a intimi-
dade da vida privada e o direito à proteção da vida privada, podemos armar que aquele
direito, previsto no n.º 1 do art.º 80.º do CC, tem implícito a “ideia de controlo de informa-
ção, através da qual se satisfazem, tanto o interesse na não divulgação, como o interesse
do segredo, [e] implica [ainda] que essa satisfação seja posta na dependência de valorações
do interessado” (Pinto, 2001, p. 534).
É atualmente reconhecido e unânime, no âmbito da jurisprudência e doutrina
nacional, que essa delimitação se faça através da “teoria das três esferas” de Hubmann
(1967), nomeadamente no âmbito da “esfera privada simples (apenas relativamente prote-
gida, [que comporta factos, eventos ou acontecimentos que o seu titular divulga por um
número limitado de pessoas,] podendo ter de ceder em conflito com outro interesse ou
bem público” (Canotilho & Moreira, 2007, p. 468), atendendo aos princípios da proporcio-
nalidade e adequação (Cf. n.º 2 do art.º 18.º da CRP) e com os limites impostos pelo art.º
335.º do CC.
Neste caso, deve observar-se que a extensão da reserva ou limite interno, previsto no
n.º 2 do art.º 80.º do CC, se define, enquanto objeto, pela “natureza do caso [elemento obje-
tivo] e a condição das pessoas [elemento subjetivo]”. Esta concetualização indeterminís-
tica, como regime regra, remetendo -nos para uma análise casuística a ser feita em sede
disciplinar pelo instrutor e, em sede jurisdicional, pelo julgador, bem como nos permite
“superar raciocínios meramente formais na aplicação do direito, próprios de uma jurispru-
dência dos conceitos” (Dray, 2017, p. 676).
Apesar de o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada ser um direito subje-
tivo, ou seja, com eficácia erga omnes, garantido pelas disposições conjugadas dos artigos
26.º da CRP, 70.º e 80.º do CC e 16.º do CT, ao mesmo, por força do art.º 81.º do CC, pode o
seu titular, integrando um certo grau de liberdade conferido pelo princípio da autonomia
privada, autolimitar ou dispor desse direito através do seu consentimento.
O consentimento, nos exatos termos aqui enunciados, deve ser entendido como decla-
ração negocial, e encontra -se sujeito aos princípios previstos nos artigos 217.º, n.º 1 e 219.º,
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ambos do CC. Assim, pode a mesma “ser conferida expressa ou tacita[mente], por um com-
portamento concludente, e não carece de ser escrita” (Pinto, 2001, p. 539).
Contudo, a licitude da limitação fica dependente da conformidade desse consenti-
mento com o respeito pelos princípios da ordem pública, enquanto princípios da “ordem
jurídica global” (Larenz, 1997, p. 588), e com os bons costumes (Cf. art.º 280.º do CC), repre-
sentados aqui pelas “exigências de moral” (Telles, 1980, p. 34).
c) Prova digital e sujeição à cadeia de custódia da prova?
Pese embora o consentimento do visado, em conjunto com o cumprimento dos condicio-
nalismos legais, permita autolimitar o seu direito de personalidade, o facto é que as men-
sagens enviadas e recebidas através do WhatsApp, enquanto plataforma comunicacional,
permanecem no mundo virtual, semi -físico, num limbo, carecendo, por isso, do devido
tratamento em termos de recolha probatória que permita a sua validação, análise e utiliza-
ção em sede própria, consubstanciando assim a denominada prova digital.
Em face das divergências doutrinais e jurisprudenciais em redor do conceito de prova
digital, arriscamos a considerar que a mesma pode ser entendida como todo e qualquer
conteúdo informacional, dados informáticos e de tráfego, com configuração binária ou
digital, que apresente valor probatório e que seja suscetível de ser transmitida, adquirida
ou armazenada através de um sistema informático e cuja gestão, pública ou privada, se
encontre a cargo de um fornecedor de serviço.
Com efeito, as normas penais substantivas e adjetivas há muito que ultrapassaram
a barreira física das respetivas codificações base, para, aos poucos, se expandirem para
outras áreas ou domínios da atividade humana, nomeadamente a área digital.
O legislador português, através da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, a qual aprovou
a Lei do Cibercrime (LCC), transpondo para a ordem jurídica nacional a Decisão Quadro
n.º2005/222/JAI, do Conselho da Europa de 24 de fevereiro, estipulou um conjunto de
regras penais substantivas e adjetivas, aplicáveis, com as devidas adaptações, ao EDPSP
por via do seu art.º 7.º.
De entre essas regras, o legislador definiu um regime adjetivo bipartido relativo ao
ciclo de vida das comunicações eletrónicas dependente, em ambos os casos, de despacho
de juiz. O primeiro regime, circunscrito à fase de inquérito, corresponde ao momento
da transmissão ou envio da mensagem eletrónica e encontra -se previsto no art.º 18.º da
LCC. O segundo regime, que corresponde ao momento de armazenamento, segue o pre-
ceituado para a apreensão da correspondência previsto no art.º 179.º do CPP, aplicável ex vi
do art.º17.º da LCC.
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Como já se disse, tendo em conta a subsunção das mensagens enviadas através do
WhatsApp à figura jurídica das cartas -missivas não confidenciais, consideramos que no
âmbito das comunicações de natureza semelhante se devem incluir os denominados ser-
viços de mensagens instantâneas, v. g. WhatsApp, mesmo que tais mensagens tenham
sido abertas pelo seu destinatário, aplicando -se aqui o princípio consagrado no n.º 1 e 2 do
art.º9.º do CC.
Porém, não nos podemos olvidar que a prova digital é “uma prova fragmentária, dis-
persa, frágil, volátil, alterável, instável, apagável e manipulável, invisível e espacialmente
dispersa” (Rodrigues, 2011, p. 29).
Por apresentar todo este conjunto de caraterísticas, deve a mesma ser recolhida e sub-
metida à cadeia de custódia de prova por forma a se acautelar a sua autenticidade/integra-
lidade, originalidade/identidade e legitimidade/legalidade/licitude, “enquanto garantia
formal e material da tutela da limpidez probatória” (Valente, 2020, p. 38), sob pena de se
correr o risco de inquinar todo o processo.
2. A prova
a) A (eventual) nulidade de prova
A prova, quer ela seja pessoal, pericial ou, como no nosso caso, digital, “é fundamento
material de um facto com relencia jurídica subsuvel a uma norma jurídica que se
afirma como dimensão positiva de um valor, ou seja, arma -se que está subordinada “ao
direito como dimensão ôntica e ontológica” (Valente, 2020, pp.45 -46).
Em termos de prova, o n.º 2 do art.º 71.º do EDPSP estipula como limite imanente a
exclusão da realização das escutas telefónicas em sede disciplinar. Fazendo uma interpre-
tação a contrario seriamos levados a concluir que este preceito permitiria ou possibilitaria
a admissibilidade de todos os outros meios de prova, neles se incluindo a apreensão de
correspondência.
O legislador, demonstrando alguma cautela e por forma a evitar alguns abusos ou
comportamentos arbitrios, deles se excluindo o princípio da livre apreciação da prova
(Cf. 127.º do CPP), veio estipular no n.º 1 do art.º 71.º, conjugado com o art.º 7.º, ambos do
EDPSP, que se lhe aplicam, “com as devidas adaptações, todas as disposições do CPP con-
cernentes à recolha, produção e custódia de prova”.
A prova, de acordo com o art.º 341.º do CC, “tem por função a demonstração da reali-
dade dos factos”, apenas podendo ser admitidas aqueloutras que “não forem proibidas por
lei” (art.º 125.º do CPP).
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Como já tivemos ocasião de referir e em face da qualificação jurídica das mensagens
do WhatsApp, apenas pode ser autorizada a sua recolha e tratamento em sede jurisdicional
processual penal e desde que previamente autorizada pelo juiz, de acordo com a conjuga-
ção dos artigos 179.º do CPP e 34.º, n.º 4 in fine da CRP, assumindo -se, nesses termos, como
“meios processuais de tutela de direitos fundamentais” (Silva, 2001, p. 140).
Em face do referido, tal tipologia de prova, em regra, não poderá ser recolhida e utili-
zada em sede de processo disciplinar por se integrar nas proibições de prova e, por isso,
consideradas nulas (Cf. artigos 32, n.º 8 da CRP, 126.º, n.º 1 e 3 e 118.º, n.º 1 do CPP).
Somos da opinião, ainda que não prevista nos artigos 119.º e 120.º do CPP e 74.º do
EDPSP, que essa nulidade é de conhecimento oficioso por parte do instrutor disciplinar,
enquanto “guardião” e garante da legalidade do processo disciplinar, por imposição dos
artigos 1, 2, 18.º, 26.º, 266.º, n.º 2 e 272, n.º 1 da CRP, e 3.º do CPA e assente na legitimi-
dade legal e sociológica que deve presidir à atividade policial lato sensu.
Constituindo as mensagens do WhatsApp e, bem assim, os printscreens retirados do dis-
positivo do destinatário e cedidos a terceiros, como a única prova (nula) que pretende sus-
tentar o processo disciplinar, não poderá, pois, o instrutor disciplinar socorrer -se da prova
testemunhal como forma ou tentativa de sanação da nulidade e reconstituição fingidiça
dessa prova, fazendo, caso isso viesse a acontecer, com que subsistissem “práticas pro-
cessuais reveladoras da resiliência de uma presunção de culpabilidade de outros tempos”
(Moura, 2019, p. 1325).
Pois bem, nos termos dos artigos 128.º do CPP e, em termos alogos, 84.º do EDPSP,
a testemunha é inquirida relativamente aos factos “de que possua conhecimento direto
e que constituem o objeto da prova”. Declarada a nulidade e considerando o efeito -
-distância das proibições de prova (Cf. art.º 122.º do CPP), a testemunha ir -se -ia pronunciar
acerca de um nada jurídico, pelo que, neste sentido, e em face do princípio do in dubio pro
reo, como manifestação do princípio da presunção da inocência (Cf. artigos 32.º, n.º 2 e 10
da CRP e 6.º da CEDH), o processo disciplinar terá de merecer despacho de arquivamento,
uma vez que apenas existirá infração disciplinar se “houver um facto que a sustente [...,
como] expressão de uma ideia forte de garantia” (Costa, 2012, p. 53).
Reconhecendo que nem todos os direitos fundamentais são ilimitados e absolutos, o
articulado do art.º 126.º, n.º 3 a contrario do CPP prescreve, enquanto regime das nulidades
relativas e em face dos direitos fundamentais atinentes à privacidade, que a nulidade das
provas obtidas mediante intromissão na correspondência pode ser sanada pelo consenti-
mento do respetivo titular do direito.
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CARLOS MANUEL SEQUEIRA CAROLINO
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXII · Issue Fascículo 2 · 1st July Julho – 31st December Dezembro 2021 · pp. 21‑40
b) Consentimento versus princípio nemo tenetur se ipsum accusare
Este consentimento, não deve ser confundido com o consentimento previsto no art.º 38.º
do CP, enquanto causa de exclusão da ilicitude em matéria penal, nem com o consenti-
mento de limitação voluntária do direito previsto no art.º 81.º do CC. O consentimento a
que nos referimos encontra -se plasmado no art.º 340.º do CC.
Em este, ao contrário daqueles, vigora o princípio volenti non fit injuria, ou seja, “ao que
consente não se faz injúria” (Soares, 2017, p. 104).
De acordo com este brocardo, o titular do direito pode resignar -se com a lesão desse
direito “deixando de o exercer, isto é, abstendo -se de requerer as providências visando
evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida. [Por outras
palavras, o art.º 340.º do CC prescreve] o consentimento enquanto causa de justificação ou
exclusão da ilicitude de um ato lesivo do direito” (Pinto, 2001, p. 534).
Assim e de acordo com Pinto (2001) estamos perante o “consentimento tolerante” (p.
552), em contraposição ao “consentimento autorizante” (p. 552) e ao consentimento vincu-
lante (p. 553).
Contudo, não nos podemos olvidar que este tipo de consentimento deve ser prestado
de forma espontânea, clara, livre, sem quaisquer restrições ou condicionamentos, uma vez
que a prova que deve ser feita no âmbito do processo “não é absoluta ou ontológica, mas [...
o que se pretende] não é uma verdade obtida a todo o preço, mas processualmente válida”
(Silva, 2011, p. 161). O mesmo quer dizer que “num regime democrático e submetido ao
valor da lealdade, os fins não justificam os meios” (Valente, 2008, p. 175).
Tudo isto que acabamos de referir prende -se, indubitavelmente, com os respeito que
o instrutor disciplinar deve ter pelo arguido e pelos seus direitos, não o levando, por ação
(dar o consentimento) ou por omissão (elucidá -lo de forma fraudulenta acerca dos seus
direitos ou fazendo perguntas sugestivas), a transformar -se em objeto do processo e violar,
assim, o princípio do nemo tenetur se ipsum accusare.
Este princípio, conhecido na doutrina e jurisprudência como o direito à não incrimi-
nação ou princípio da não autoincriminação, pode ser reconduzido, apesar de não possuir
consagração expressa em termos constitucionais, às garantias processuais previstas nos
artigos 2, 20.º, n.º 4, 32, n.º 2 e 8 da CRP (visão processualista) e nos artigos 1.º, 25.º e
26 da CRP (visão substantiva ou material) e ainda em termos de direito internacional no
art.º 6.º da CEDH e no art.º 14.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos
(PIDCP).
Além da consagração constitucional indireta, o princípio da não incriminação é ainda,
enquanto dimensão negativa da liberdade de declaração, reenviado ao direito ao silêncio
previsto no n.º 1 do art.º 61.º do CPP, como forma de garantia de um processo democrático,
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leal e que concede amplos poderes ao arguido, não podendo esse seu silêncio o prejudicar
no sentido de ser utilizado como elemento probatório para instauração de processo disci-
plinar.
Ao instrutor, enquanto dever de ofício, incumbe -lhe o dever, o “imperativo categórico”
(Ferreira, 1981, p. 306), de procurar a verdade material e processualmente válida e não uma
verdade a todo o custo, nomeadamente obtendo de forma fraudulenta, ilegal e desleal o
consentimento do arguido. Podemos, pois, considerar que “nessa linha divisa -se, als,
uma tensão entre uma visão ética e teleológica dos valores com uma visão moral e deon-
tológica” (Palma, 2007, 658).
Assim, em caso de violação do princípio do nemo tenetur se ipsum accusare, quer seja
através de alguém ser induzido em erro (incluímos aqui as perguntas sugestivas), coagido
ou mediante a violação do dever de advertência dos direitos que assistem ao arguido antes
do interrogatório, de acordo com o n.º 1 do art.º 343.º, n.º 2 do art.º 144.º e al. a) do n.º 4 do
art.º 141, todos do CPP, a prova colhida nestas circunstâncias é nula, aplicando -se -lhe o
regime regra do principio do efeito -distância das proibições de prova previstos no n.º 5
do art.º 58.º, n.º 1 e 2, alíneas a) e d) e n.º 3 do art.º 126.º, todos do CPP, inquinando -se todos
os atos ulteriores por violação das garantias de defesa do arguido plasmadas no art.º 32
da CRP, não podendo as declarações constantes do interrogatório ser valoradas em termos
probatórios.
c) Das proibições de prova – consequências judicas
As proibições de prova, da expressão gernica Beweisverbote, na sua configuração bidi-
mensional, abrangem as proibições de produção de prova, enquanto “limite à descoberta
da verdade” (Andrade, 2006, p. 83), e as proibições de valoração da prova, as quais consti-
tuem “meras prescrições ordenativas de produção da prova, cuja violação poderia acarre-
tar (...) unicamente a eventual responsabilidade (disciplinar, interna) do seu autor” (Dias,
1976, p. 446).
Em todo o caso, a consequência jurídica será sempre a invalidade do ato, por nuli-
dade da prova obtida, quer seja através dos meios de prova proibidos quer seja através dos
métodos de prova proibida quer ainda por violação dos procedimentos das formalidades
(somente se atentarem negativamente contra direitos de liberdade), e a consequente proi-
bição de valoração probatória.
Como nos refere Mendes (2017), com o qual concordamos, “a proibição de utilização (=
valoração) das provas proibidas afigura -se como a melhor maneira de o legislador prevenir
a tentação de obtenção das provas a qualquer preço, por parte das insncias formais de
controlo social” (p. 182), e que o preceituado no n.º 4 do art.º 126.º tem por função alertar “os
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órgãos de perseguição criminal [e disciplinar] de que ninguém está acima da lei, dizendo
alto e bom som que não há diferenças de estatuto entre os representantes da lei e da ordem
e os cidadãos delinquentes” (p. 198).
A dignidade da pessoa humana, prevista no art.º 1.º da CRP, em sede processual-
-disciplinar remete -nos para a ideia de um processo justo, leal, legal e lapidar de um Estado
de direito democrático, que se alicerça “nos princípios axiológicos da superioridade ética,
da supremacia dos direitos fundamentais [...], os quais constituem o fundamento, o fim e
o limite da acção policial” (Valente, 2013, p. 392). É nestes termos que podemos e devemos
considerar que “a dignidade de cada pessoa é incindível da de todos as outras e envolve
responsabilidade” (Miranda, 2016, p. 744) penal, cível e disciplinar.
Esta responsabilidade, gerada na dimensão tripartida apresentada, é concebida desde
logo, ad initio, em sede de proibições de prova, por afetarem o âmago desse Direito univer-
sal, ao estipular o n.º 4 do art.º 126.º do CPP que “se o uso dos métodos proibidos de prova
previstos neste artigo constituírem crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclu-
sivo de proceder contra o agente do mesmo”.
Permitam -nos, então, no âmbito desde exercício académico, fazer uma aproximação ao
enquadramento das consequências penais, civis e disciplinares para os funcionários da
PSP derivadas das nulidades de prova objeto do presente trabalho.
Em termos penais poderá estar em causa o cometimento pelo funcionário da PSP, em
termos abstratos, dos crimes de: (i) violação de correspondência ou de telecomunicações
previsto e punido (p.p.) pelo art.º 193.º; (ii) denúncia caluniosa, p.p. no n.º 2 e al. b) do n
3 do art.º 365.º (quanto ao participante e a quem lhe fornece a informação com quebra da
confidencialidade em coautoria material); (iii) denegação de justa e prevaricação, p.p. no
n.º 1 e 2 do art.º 369.º (quanto ao instrutor processual em autoria material), e; (iv) abuso de
poder, p.p. no art.º 382.º (quanto a todos os funcionários referidos), todos do CP.
Por seu turno, também poderá existir responsabilidade civil por factos ilícitos nos ter-
mos do art.º 483.º conjugado com os artigos 490.º e 493.º, todos do CC e ainda responsa-
bilidade disciplinar por violação dos artigos 9.º, 10, n.º 1 e 2, aneas a) e b), 11.º, 13.º, n.º 1 e
2, aneas a) e c), 15.º, n.º 1 e 2, al. b), 16.º, n.º 1 e 2, al. a) e 19.º, n.º 1 e 2, al. f), todos do EDPSP.
Conclusão
Grande parte das comunicações que realizamos todos os dias são feitas por via digital,
quer seja através de email, redes sociais quer ainda por mensagens do WhatsApp, nos vários
formatos suportados.
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As mensagens enviadas através da plataforma comunicacional WhatsApp, em sentido
oposto às redes sociais, apresentam caraterísticas próprias, nomeadamente a confiden-
cialidade da mensagem e as definições de segurança da aplicação, que lhe conferem uma
equiparação, em termos legais, às denominadas SMS e, por isso mesmo, devem ser inter-
pretadas e integradas nas cartas -missivas não confidenciais previstas no art.º 78.º do CC.
Paralelamente, o art.º 17.º da LCC prescreve que deve ser aplicado o regime das comuni-
cações de natureza semelhante ao regime das apreensões de correspondência previsto no
art.º 179.º do CPP, nele se incluindo os serviços de mensagens instantâneas do WhatsApp,
pelo que devem ficar sujeitas à cadeia de custódia de prova como forma de garantir as suas
fiabilidade, legalidade e integridade probatórias.
Temos assim por confirmada, na globalidade, a hipótese 1: As mensagens do WhatsApp
constituem prova digital, pelo que devem estar sujeitas à cadeia de custódia de prova.
Por seu turno, o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, enquanto direito
de personalidade subjetivo e direito fundamental, permite ao seu titular, através de um
certo grau de liberdade, autolimitar esse direito através do seu consentimento, servindo
este, de acordo com o art.º 126.º, n.º 3 a contrario do CPP, como elemento saneador da
nulidade.
Assim, temos por confirmada a hipótese n.º 2: A nulidade resultante da obtenção da
prova com violação do direito à reserva da vida privada do visado, enquanto direito de
personalidade e direito fundamental, é sanada pelo seu consentimento.
Não obstante, verificamos, como se pode constatar das referências apresentadas, que o
tratamento doutririo do direito disciplinar na PSP é quase inexistente, para não dizer-
mos nulo, o que leva, a maioria das vezes, a que os Instrutores disciplinares se socorram
do conhecimento empírico para o desempenho da sua atividade investigatória processual-
-disciplinar, isto é, de um costume secundum legem.
Por fim, o conflito entre a confidencialidade e a reserva sobre a intimidade da vida pri-
vada, por um lado, e a descoberta da verdade material processualmente válida, por outro
lado, deve ser analisada casuisticamente e subordinada aos princípios da proporcionali-
dade e da adequação, de acordo com o n.º 2 do art.º 18.º da CRP, e com os limites impostos
pelo art.º 335.º do CC.
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216/2010, Série I, de 8 -11 -2010.
Acórdão do TRE, Secção Social, de 28 de março de 2019.
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GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXII · Issue Fascículo 2 · 1st July Julho – 31st December Dezembro 2021 · pp. 41‑51 41
A autorregulação (compliance) e o Direito Penal
Self regulation (compliance) and Criminal Law
TÂNIA SOFIA DAS NEVES TEIXEIRA CARIMBO1
taniasofiateixeira@hotmail.com
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXII · 1st July Julho–31ST December Dezembro 2021 · pp.4151
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXII.2.3
Submitted on August 30th, 2021 . Accepted on September 28th, 2021
Submetido em 30 de Agosto, 2021 . Aceite a 28 de Setembro, 2021
RESUMO De forma necessariamente breve, o presente trabalho2 estuda o mecanismo do
compliance e sua relação com o direito penal, tendo presente a preservação do princípio da
ultima ratio. É nessa intervenção a posteriori, quando a lesão do bem jurídico já ocorreu,
que se analisará a responsabilidade penal, quer das pessoas jurídicas, quer das pessoas
singulares que pratiquem crimes de âmbito corporativo.
PALAVRAS -CHAVE compliance; responsabilidade penal; pessoa jurídica; compliance ocer.
ABSTRACT In a necessarily brief way, the present work studies the compliance mechanism
and its relationship with criminal law, bearing in mind the preservation of the principle
of ultima ratio. It is in this a posteriori intervention, when the damage to the legal interest
has already occurred, that criminal liability will be analyzed, whether of legal entities or
individuals who commit crimes of a corporate scope.
KEYWORDS compliance; criminal liability; legal entity; compliance officer.
1 Procuradora da República. Mestranda em Direito, especialidade em Ciências Jurídico -Criminais da Universidade
Autónoma de Lisboa. Investigadora Colaboradora do Ratio Legis – Centro de Investigação em Ciências Jurídicas
da Universidade Autónoma de Lisboa [Projeto: Corpus Delicti – Estudos de Criminalidade Organizada Transnacional].
2 Este trabalho corresponde com algumas alterações pontuais ao comentário científico entregue no âmbito do
Seminário de Investigação: Direito Penal Económico, do curso de mestrado em Direito, na especialidade em Ciências Jurídico-
-Criminais, regida pelo Professor Doutor Manuel Monteiro Guedes Valente.
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A autorregulação (compliance) e o Direito Penal
Self ‑regulation (compliance) and Criminal Law
TÂNIA SOFIA DAS NEVES TEIXEIRA CARIMBO
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXII · Issue Fascículo 2 · 1st July Julho – 31st December Dezembro 2021 · pp. 41‑51
I. Introdução
A necessidade de punição de determinadas atividades económicas é comummente aceite
pelos diversos atores do espectro político, propugnando -se uma justiça penal que parta
de conceitos como “corporate governance” e “responsability” para o desenvolvimento de
programas de compliance3 e de responsabilidade coletiva.
Esta conceção encontra respaldo na afirmação de Klaus Tiedemann de que a crimina-
lidade económica4 é um “problema político”5, encontrando reforço em Figueiredo Dias ao
referir que se trata de “direito político de modo acrescido e mesmo exasperado” enquanto
produto do “sistema político -económico estadual”, dependendo diretamente da circuns-
ncia de o Estado ser ou não interventivo no domínio económico6.
Um passo significativo e inovador foi dado com o recurso ao compliance, de tal forma
que o presente século tem cunhada a Revolução Digital e a Era do Compliance ou da Integri-
dade7.
Especialmente no “velho continente”, os programas de cumprimento normativo8/9/10
vêm adquirindo importância crescente como forma de reação a situações de má gestão
empresarial11 a que se associaram crises financeiras12. Por outro lado, a tomada de cons-
ciência da importância dos referidos programas13 encontra -se intimamente relacionada
com escândalos empresarias de grandes dimensões causadores de prejuízos sociais e eco-
nómicos14, apresentando -se como um contributo para a prevenção da criminalidade prati-
3 Etimologicamente, deriva do latim complere, significando vontade de fazer aquilo que foi pedido ou agir em conformidade.
Foram os norte -americanos quem, de forma pioneira, utilizou o termo no âmbito das instituições financeiras para significar a
necessidade de regulamentar as relações comerciais. A este propósito, M  S  
4 N   na esteira de Schünemann, opera a distinção, na criminalidade económica, entre criminalida-
de de empresa e criminalidade na empresa.
5 Também N (2015) teoriza um “crime económico de carácter político.
6 R  
7 Neste sentido, C  
8 N M  
9 Sobre o ponto de vista histório, C   
10 R   qualifica -os como “um produto híbrido, público e privado, do Estado e do mundo empre-
sarial” e, no mesmo sentido, Rodrigues (2017: 9).
11 A este propósito veja -se que Edwin Scitado por Saad -Dinis (2018: 171), propugnou que é em função
das janelas de oportunidade e da aprendizagem no âmbito das organizações que os indivíduos encontram as
condições que se afiguram necessárias para praticarem crimes de natureza económica e isso, curiosamente, sem
que os mesmos deixem de reprovar todos aqueles que incorrem na prática de crimes, ditos, tradicionais.
12 Veja -se o sucinto relato a propósito da crise financeira de 2008, por Rodrigues (2017), no capítulo II.
13 S D   refere que, na maioria dos casos, este tipo de programas confunde -se com “outros contro-
les da empresa, reduzidas à “fachada”, ou, o que é ainda pior, “à aparência de “renovação ética””.
14 Como sejam os casos Panama Papers, Parmalat, Enron, WorldCom, Siemens, Lava -Jato, Dieselgate, Volkswagen
e grupo Fiat Chrysler. Retrocedendo à década de setenta do século passado, veja -se o conhecido “escândalo Wa-
tergate.
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A autorregulação (compliance) e o Direito Penal
Self ‑regulation (compliance) and Criminal Law
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cada em contexto empresarial15, pelo que, “a adopção de boas práticas deve fazer parte da
cultura organizacional, seja ela pública ou privada”16/17.
Não fugindo à reconhecida necessidade, o XXII Governo Constitucional aprovou a
Estratégia Nacional Anticorrupção para o quadriénio 2020 -202418, contando -se, entre
outras medidas, a adoção de programas de cumprimento normativo no sector público.
No presente trabalho não se abordará exaustivamente a evolução dos programas de
cumprimento nem, tão -pouco, todas as implicações entre os sistemas de compliance e o
Direito Penal. Do mesmo modo, não se abordará o compliance sob a lente da criminologia
económica. Muito mais limitado, é o propósito que pretendemos atingir, qual seja o de
aferir da responsabilidade criminal da pessoa jurídica e dos seus dirigentes por crimes
ocorridos em contexto corporativo.
II. Programas de compliance
Os efeitos da criminalidade económica -financeira extrapolam as fronteiras dos territó-
rios dos países, envolvendo a economia global, daí decorrendo prejuízos que “excedem não
somente a esfera dos interesses individuais, mas a própria ordem econômica, o que a qua-
lifica como uma macrocriminalidade econômica”19, originando a prática de crimes cujos
danos são irrestauráveis20/21/22.
O compliance 23/24 não pode ser considerado de forma niilista como a conformidade ao
Direito, devendo antes ser concebido como a «adopção de regras e processos intraempre-
sariais que garantam que o cumprimento do Direito não é fruto do acaso, de um compro-
misso individual ou de interesses parciais de um departamento, antes corresponde a uma
15 Que S D (2018: 171) refere que “a criminalidade corporativa é fundamentalmente criminalidade do co-
larinho branco”.
16 C (2020: 22).
17 A  S (2019 (2): 123) refere que a pessoa jurídica deve ser “socialmente responsável” devendo criar
“mecanismos de boa governança e de reforço da ética empresarial”. Neste sentido, veja -se, igualmente, Nieto
Mártin (2017: 27).
18 Aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2021, publicada no Diário da República, I.ª Série, de 6
de Abril de 2021.
19 L F (2020: 245).
20 L F (2020: 245).
21 R   os crimes económicos não deixam, no plano físico, sinais externos que tão facilmente os
identificam como crimes que são próprios da generalidade da delinquência convencional.
22 Sobre o que sejam comportamentos desviantes nas organizações, veja -se o estudo de W   
23 A este termo têm surgido associados outros que, de modo semelhante, procuram traduzir a ideia de uma pessoa
jurídica que seja cumpridora e responsável, como sejam: corporate governance, responsabilidade social, risk mana-
gement, código de conduta, código de ética empresarial, mecanismos internos de integridade. A este propósito,
vejam -se, A  S    N M   e M  S  
24 B   refere que o compliancedeve ser encarado como uma prática de conformidade”.
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arquitectura de Compliance” coerente e omnipresente, i. e., referida a todas as actividades
empresariais, internas e externa25/26. Trata -se de uma iniciativa voluntária das pessoas
jurídicas: é autorregulação27/28.
Paulatinamente, ocorre a consciencialização de que os litígios, as sanções, as restrições
regulatórias e os danos reputacionais das empresas poderiam ser evitados, acaso fossem
concebidos e colocados em prática programas de cumprimento normativo voluntário.
A adoção de boas práticas e a efetivação de sistemas de controlo interno revelam -se
indispensáveis para que as empresas “não sucumbam às próprias falhas e perderem anal
a batalha da competitividade”29.
III. Programas de compliance e direito penal
Se é certo que a adoção dos programas de cumprimento normativo constitue uma incum-
bência da pessoa jurídica30, a verdade, é que a sua responsabilidade penal não significa
uma qualquer sanção pela falta ou pela inadequação dos programas de cumprimento nor-
mativo31.
Uma dificuldade que se aponta aos programas de compliance prende -se com o respetivo
grau de concretização e, consequentemente, ao seu maior ou menor grau de efetividade.
Tal depende, desde logo, da sua finalidade32, do tipo de empresa e da sua dimensão e, ainda,
do seu âmbito de atuação económica33.
25 Q  B (2018: 59).
26 Neste sentido, Ribeiro Bruno (2020: 87). Veja -se, igualmente A  S   pp.124 -125) que, citando
Lothar Kuhlen, apresenta como definição de compliance “o conjunto de medidas por meio das quais se pretende
não só assegurar que sejam cumpridas as regras vigentes para as empresas e para o seu pessoal, mas também
descobrir e eventualmente sancionar irregularidades e infracções cometidas o contexto da organização.
27 S M   refere que o conceito de autorregulação regulada é uma contradictio in adjecto, na
medida em que pretende vincular o Estado à iniciativa das empresas ao adoptarem programas de cumprimento
normativo.
28 S D   elucida que Ian Aires e Braithwaite desenvolveram o conceito de regulação responsiva –
responsive regulation – referindo -se à regulação baseada em escalonamento de condutas e de formas relacionadas
e proporcionais de controle, ou autorregulação regulada – enforced self -regulation.
29 S M   aventa que a finalidade do compliance é a de evitar a prática de vários tipos de ilícitos
e não a de obter qualquer tipo de isenção de responsabilidade – seja individual ou coletiva – ou atenuação de
qualquer sanção, porquanto, se assim não fosse, os referidos programas tornar -se -iam estratégias para fugir à
responsabilidade. Neste sentido, citando Thomas Rotsch, Quintela de Brito (2018: pp.59 -60).
30 Q  B  
31 Q  B   refere que, se assim não fosse, operar -se -ia uma administrativização da responsa-
bilidade criminal da pessoa jurídica.
32 A  S    aponta dois grandes modelos de compliance atendendo à sua “finalidade primária”:
um modelo orientado ao estabelecimento de valores e de princípios éticos e um modelo concebido como um
sistema de “auto -vigilância” da empresa.
33 Acerca da implementação e da concretização dos programas de compliance, veja -se J  M (2018:
125).
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Um programa de compliance que seja indeterminado e genérico aumenta a dificuldade
de imputar o facto que seja criminalmente relevante. Já se antevê, pois, que se o sistema
de cumprimento for preciso, organizado e efetivo – i.e., taylor made – poderá ter repercus-
sões ao nível da responsabilidade penal: seja excluindo a imputação penal, seja atenuando
a pena aplicada. Trata -se de casos, em que os programas de cumprimento normativo se
situam a montante do evento criminal. Todavia, nada impede que tais programas surjam
apenas num momento posterior à prática do facto, já no âmbito de um processo penal,
impondo -se como condição “à decisão de não iniciar ou de suspender o processo”34/35/36.
Não existe impacto automático da existência dos programas de cumprimento norma-
tivo voluntário não apenas ao nível da isenção da responsabilidade dos visados como, de
igual modo, ao nível da determinação da medida da pena37 como consequência das ações
praticadas38.
Haverá, pois, que distinguir quem adote um modelo de responsabilidade por facto e
culpa que sejam próprios da pessoa jurídica, daqueles que adotam um modelo de transfe-
rência do facto da pessoa singular para a pessoa coletiva.
No primeiro modelo, consoante os casos, é admitida a exclusão do ilícito típico coletivo
ou da culpa da pessoa jurídica. No ordenamento jurídico nacional, o artigo 11, nos núme-
ros 2, 4, 6 e 7 do Código Penal, parece consagrar um modelo de responsabilidade penal
direta ou de autorresponsabilidade ou por facto próprio do ente coletivo39, o que permite
a abertura da porta ao denominado Criminal Compliance a nível do ilícito típico coletivo,
mas, também, da culpa do ente coletivo40.
34 A  S   
35 Em comum, note -se, que em qualquer um dos casos apontados, poderá existir um efeito mitigador da responsa-
bilidade penal da pessoa jurídica – ao nível da exclusão da imputação do facto, ao nível da atenuação da pena ou
ao nível da negociação do processo penal – surgindo os programas de compliance “como uma defesa avançada
à responsabilização ou punição criminal da pessoa jurídica” – A  S   pp.10 -11) e (2019 (2): 128
e pp.132 -133). Também neste sentido, L  e S M   
36 Como exemplos de formas de negociação encontramos em Franca, a denominada Lei Sapin II: Lei n.º 2016 -1691,
de 9 de dezembro de 2016.
37 Referimo -nos apenas a penas e não a coimas ou outras consequências jurídicas da prática de infrações, em virtu-
de de nos cingirmos às relações entre os programas de cumprimento normativo e o Direito Penal.
38 Sousa Mendes (2018: 14), refere que o legislador não deve extrair da mera existência de programas de compliance
nas empresas quaisquer efeitos automáticos de dispensa ou de atenuação das sanções a aplicar, dependendo do
modelo de responsabilização penal das pessoas coletivas que seja adotado. No mesmo sentido, Q 
B  
39 M  S   
40 Q  B  
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No segundo modelo, existindo um programa de compliance que seja idóneo e eficaz, é
admitida uma atenuação da responsabilidade do ente coletivo41/42 ou uma isenção da pena,
porquanto o delito praticado pela pessoa singular é concebido como um “acidente”43 para
aquele44.
Seja qual for o modelo que se adote, é certo que a responsabilidade penal das pessoas
jurídicas constitui uma forma de as motivar45 a uma autorregulação correta e, simultanea-
mente, permite o controlo por banda do Estado dessa mesma autorregulação46/47/48.
Na prática, os programas de compliance podem ter impacto na avaliação da respon-
sabilidade – seja coletiva, seja individual – e na determinação das sanções aplicáveis49.
Trata -se de avaliações que, apenas de forma casuística, podem ser efetuadas no processo
decisório50/51/52.
41 É o caso das Sentencing Guidelilines estadunidenses. Cf. A  S   
42 Um exemplo pode ser encontrado no ordenamento jurídico brasileiro, na Lei n.º 12.846, de 13 de agosto de 2013,
incisos VII e VII.
43 Q  B  
44 Veja -se a Circular 1/2016 sobre “la responsabilidade penal de las personas jurídicas conforme a la Reforma del
Código Penal efectuada por la Ley Orgánica 1/2015”, em pp.55 -56.
45 Q  B   acrescenta ainda que, para além de uma forma de motivação, também de trata de
uma forma de coagir as pessoas jurídicas. No mesmo sentido, Nieto Martín (2015: 32).
46 N M    indica que, em 1909, no caso New York & Hudson River v. USA, o Supremo Tri-
bunal dos Estados Unidos da América reconheceu a responsabilidade penal das pessoas coletivas, considerando
que o objetivo da punição residia no incitamento a que se dotassem de mecanismos de controlo interno que lhes
possibilitassem o cumprimento da lei.
47 Em cada caso gerador de responsabilidade, é o visado quem tem o ónus de alegar e provar no processo: a exis-
tência dos programas de cumprimento normativo; que tais programas de compliance são efetivos; a identificação
das medidas que se revelam adequadas e que se encontram efetivamente implementadas contra falhas da orga-
nização e que se revelam suscetíveis de desembocar na prática de infrações e, ainda, a identificação, a avaliação
e o controlo dos riscos que advêm para a empresa.
48 S M   preconiza que não se trata de uma inversão do ónus da prova, na medida em que os
mencionados itens não integram os elementos típicos da infração nem constituem, tão -pouco, quaisquer cau-
sas de exclusão da responsabilidade. No mesmo sentido, Rodrigues (2020: 113).
49 A este propósito, veja -se o artigo 11.º, n.º 6 do Código Penal e, ao nível da determinação da medida concreta da
pena, o estipulado no artigo 71.º do mesmo diploma legal.
50 Em termos de jurisprudência nacional, veja -se a citada por B 
51 Ao nível da jurisprudência alemã, S M   refere o acórdão da 1.ª Secção Penal do Supremo
Tribunal Federal (Bundesgerichtshof – BGH), de 07.05.2017 (BGH 1 StR 265/16), no qual se decidiu que o compliance
pode levar a uma redução da coima aplicada a uma empresa, mesmo que não existam leis ou regulamentos nesse
sentido, porquanto estas estão condicionadas a implementar um sistema de compliance que seja adequado a evi-
tar qualquer conduta imprópria ou ilícita por parte dos seus trabalhadores. Foi estabelecido um critério dual para
a determinação da medida da coima: a) saber se existia um sistema de compliance que fosse, simultaneamente,
efetivo e adequado à prevenção dos riscos da prática daquela infração e, b) saber se a administração da pessoa
jurídica, reagiu de forma pronta, identificou as lacunas do programa de cumprimento normativo e se as corrigiu
de forma imediata para prevenir infrações similares.
52 S M  elenca os perigos dos programas de cumprimento normativo, que podem determinar
um agravamento das sanções aplicadas, acaso aqueles sejam mal concebidos ou implementados de forma de-
ficiente.
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Assim, o maior ou menor efeito que, em matéria de responsabilidade criminal da pes-
soa jurídica53, se deva atribuir aos programas de compliance, relaciona -se com o modelo de
imputação do facto que se venha a adotar.
Com efeito, num modelo de autorresponsabilidade ou responsabilidade direta54 – no
qual se reconhece, de forma autónoma, a responsabilidade da pessoa jurídica – a existên-
cia de programas de cumprimento normativo pode ser sinal de que a empresa “se organi-
zou devidamente na prevenção e detecção de infracções”55, pelo que, uma eventual prática
delituosa por parte das pessoas singulares visando iludir o programa de compliance, ape-
nas se pode imputar a estas. Neste modelo, a pessoa jurídica é passível de responsabilidade
penal por “defeito de organização”56, quer porque permitiu que os seus membros praticas-
sem crimes em seu favor, quer porque “através dos seus mecanismos decisórios, optou por
uma actuação dirigida à prática de crimes”57/58.
No modelo de hetero -responsabilidade, de responsabilidade vicarial ou heterónomo
– adotado pelo legislador português59 – a responsabilidade da conduta levada a cabo por
uma pessoa física60 que representa a pessoa jurídica e que atua na prossecução do inte-
resse coletivo, transfere -se mediatamente para esta. Assim, na medida em que a atribuição
da culpa da pessoa jurídica se mostra dependente da atuação de uma pessoa física qualifi-
cada61, um programa de compliance – ainda que efetivo – apenas dificilmente pode excluir
a imputação do facto àquela se os pressupostos legais da sua responsabilidade estiverem
verificados. Mas diga -se que a existência de um programa de compliance poderá ser tida
em conta na determinação da medida concreta da pena da pessoa jurídica, por via do dis-
posto pelo artigo 71.º do Código Penal62/63.
53 Numa perspetiva criminológica, S D  pp.181 -184).
54 Exemplo deste modelo pode encontrar -se no artigo 31.º bis do Código Penal espanhol e, na lei italiana, no artigo
6.º, 1.º, al. a) do decreto legislativo de 8 de junho de 2001. A propósito do regime espanhol, P F
 pp.72 -85).
55 A  S   pp.128 -129).
56 R  
57 R   fazendo referência a Juan Antonio Lascuraín.
58 Cada um dos modelos é suscetível de críticas, conforme R (2020: pp.111 -112).
59 De que são exemplos, o artigo 3.º do Decreto -Lei n.º 84/84, de 20 de janeiro e o artigo 7.º, da Lei n.º 15/2001, de 5
de junho. Quanto ao regime ou sistema vicarial adotado pelo legislador português em 1984, 2001 e 2007, quanto
à alteração ao artigo 11.º do CP em que se passou a admitir e se ampliou a responsabilidade da pessoa coletiva,
F D    e G V   
60 Administrador, dirigente ou empregado.
61 A  S   
62 Neste sentido, S M   e A  S   
63 M  S    refere que as pessoas coletivas podem ser responsabilizadas independente-
mente da identificação do agente da prática do crime, desde que se prove que este apenas “poderia ocorrer por
vontade de alguma das pessoas por cujos crimes a sociedade responde”.
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IV. Da responsabilidade penal das pessoas singulares
A criação de departamentos de compliance e, consequentemente, dos respetivos progra-
mas, coloca questões relativamente à repartição de responsabilidade criminal, mormente,
ao nível do dever de garante dos dirigentes da pessoa coletiva.
Desde logo, haverá que assinalar, na esteira de Aires de Sousa e Lascurn Sánchez64,
que detendo o administrador (ou dirigente) da pessoa coletiva um dever de garante65, tal
não se extingue por via de uma delegação de poderes para o departamento de compliance.
A criação deste departamento constitui novos deveres para o administrador (ou dirigente),
como seja, o dever de controlo, que será “tanto maior quanto maior for o risco da actividade
que é delegada (…), atendendo -se nessa avaliação, ao tipo de actividade, à experiência do
delegado, aos seus conhecimentos e capacidade ou à duração da delegação”, valendo aqui
o princípio da conança66.
No que tange à responsabilidade do compliance ocer67/68, mais uma vez acompanhando
Lascurn Sánchez considerando que “a delegação é fonte de deveres penais”69, o incumpri-
mento por banda do delegado das funções que lhe foram cometidas ou a falta de controlo
por parte do delegante, podem fazer nascer a responsabilidade criminal pelo resultado que
não se evitou, transformando o omitente do dever em autor do crime por omissão70.
Conclusão
Findo o presente estudo, é imperioso concluir -se que, no teatro da criminalidade econó-
mica, eclodiram novos atores – empresas internacionais com projeção mundial coman-
dadas por grandes empresários – característicos de um cenário em que a ideologia que
impera é a do neoliberalismo, apresentando como traços individualizadores a ausência de
uma regulação pública efetiva, o seu caráter transnacional e financiarização da economia
global, buscando “a rentabilidade de quantidades ingentes de capital”71.
A contrapartida não apenas das políticas económicas neoliberais, mas, também, da
desregulação – a que encontram ligados, umbilicalmente, sucessivos escândalos financei-
64 A  S [2019 (2): 136]: “As atribuições que venham a ser legal ou estatutariamente reconhecidas ao
departamento de compliance podem modificar ou alterar o dever de garante do administrador na medida em que
alterem ou restrinjam a capacidade de actuação do dirigente. Porém, não o eliminam”.
65 A  S (2019 (2): pp.68 -75).
66 A  S (2019 (2): 136).
67 No artigo 16.º da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, fala -se em “responsável pelo cumprimento normativo.
68 Sobre esta questão, o estudo levado a cabo por N (2020: pp.653 -680).
69 Cf. L S   A  S [2019 (2): 137].
70 Para maiores desenvolvimentos, A  S (2019 (2): pp.137 -140) e Rodrigues (2020: pp.116 -123).
71 R (2017: 11).
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Self ‑regulation (compliance) and Criminal Law
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ros não evitados pela supervisão – foram as propostas de autorregulação que se consubs-
tanciaram em orientações de corporate governance e de compliance.
Os programas de compliance visam “a promoção de uma cultura empresarial ética e de
cumprimento, mas o seu objectivo final é evitar a responsabilidade administrativa, civil e,
em última linha, mas sobretudo, penal”72.
Especial destaque colhe a inclusão, nos programas de cumprimento normativo, de
compliance ocers, “pelas implicações que poderão ter na sua (potencial) inclusão no uni-
verso de pessoas que ocupem uma posição de liderança e do subsequente risco de uma
«substituição» do representante pelos compliance ocers73.
No Código Penal português, os programas de compliance não têm consagração direta
apontando, contudo, a Estratégia Nacional Anticorrupção, para a sua relencia substan-
tiva, o que se encontra diretamente dependente do modelo de imputação que se adote.
Assim, apenas nos modelos de responsabilidade direta baseados em defeito da organi-
zação, se pode admitir que a existência de programas de compliance conduza à exclusão da
responsabilidade da pessoa coletiva.
Considerando o modelo de imputação vicarial vigente no ordenamento jurídico portu-
guês, a relevância dos programas de cumprimento normativo poderá ser limitada.
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72 R  
73 G  
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A perda de bens e vantagens na
criminalidadeecomico nanceira1
The loss of assets and advantages in economic
andnancialcrime
JAQUELINE MARIA MENTA2
jaqueline.menta@trt4.jus.br
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXII · 1st July Julho–31ST December Dezembro 2021 · pp.5364
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXII.2.4
Submitted on August 30th, 2021 . Accepted on September 28th, 2021
Submetido em 30 de Agosto, 2021 . Aceite a 28 de Setembro, 2021
RESUMO: O presente artigo tem como objeto de estudo a perda de bens e vantagens na
criminalidade económico -financeira, analisando sua motivação, evolução, objetivos,
gerações do confisco alargado de bens, natureza jurídica, bem assim questões controversas
como a decretação da perda de bens ‘post mortem´, verificando se ocorre a transmissibilidade
da pena para além do arguido e a que geração pertenceria o consco de bens ´post mortem´,
finalizando por analisar a ética do Estados que recebem investimentos vultosos sem
questionar sua origem, Estados esses que, por meio de suas legislações rígidas, tornam-
-se refúgios seguros para a proteção patrimonial, podendo dar azo a condutas ilegais,
como evasão fiscal e corrupção, além de possibilitar a criminalidade reditícia (processo
cíclico no qual a organização criminosa investe o provento obtido nas condutas ilícitas no
financiamento ou fomento de novas condutas criminosas).
PALAVRAS -CHAVE: Perda alargada de bens. Criminalidade Económico -financeira.
Criminalidade transnacional.
ABSTRACT: The present article has as its object of study the loss of assets and advantages
in economic -financial crime, analyzing its motivation, evolution, objectives, generations
of extended confiscation of assets, legal nature, as well as controversial issues, such
as decreeing the loss of ‘post -mortem’ goods, verifying whether the sentence can be
1 Este trabalho corresponde com algumas alterações pontuais ao comentário científico entregue no âmbito do Se-
minário de Investigação: Direito Penal Económico, do curso de mestrado em Direito, na especialidade em Ciências
Jurídico -Criminais, regida pelo Professor Doutor Manuel Monteiro Guedes Valente.
2 Mestranda em Direito, na especialidade em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa (UAL).
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The loss of assets and advantages in economic andfinancialcrime
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transferred beyond the defendant and to which generation would the ‘post -mortem’
confiscation of goods belong, ending by analyzing the ethics of States that receive
considerable investments without questioning their origin, States that, through their
strict legislation, they become safe havens for the protection of assets, which can give rise
to illegal conduct, such as tax evasion and corruption, in addition to enabling recidivism
criminality (the cyclical process in which the criminal organization invests the proceeds
obtained in unlawful conduct in the financing or promotion of new criminal conduct).
KEYWORDS: Widespread loss of assets. Economic -financial crime. Transnational crime.
1. Introdução
A criação de comunidades comuns, resultante da integração de regras políticas, económi-
cas e sociais, com consequente extinção de limites fronteiriços, como por exemplo a União
Europeia, a par de permitir o crescimento de forma homogénea de seus membros, ante
ajuda mútua entre eles, possibilita a movimentação de pessoas e recursos económicos,
tanto os bons, como os maus, os quais fazem uso dessa fluidez fronteiriça para desviar -se
de responsabilização decorrente da conduta criminosa, derivando em um novo tipo de
criminalidade, a transnacional económica e reditícia.
O presente estudo tem por objeto a perda de bens e vantagens na criminalidade
económico -financeira, a qual visa, especialmente, cercear a reutilização dos recursos
auferidos de forma ilícita nas práticas criminais, verificando as medidas que estão sendo
adotadas para fazer frente a essa criminalidade reditícia, pois, não havendo barreiras, a
criminalidade se espalha e se enraíza para além das fronteiras nacionais, dificultando aos
Estados a persecução dos criminosos e, nomeadamente, impedir que os lucros decorrentes
da própria criminalidade sejam reinvestidos para fomentar novas práticas criminais, cir-
cunsncia em que, a perda dos bens e vantagens, assume outros delineamentos.
2. Motivação da perda de bens e vantagens na criminalidade
económico‑financeira
Ao alcance de um clique em busca na ‘internet facilmente encontramos endereços com
conteúdo ensinando proteção do património contra o confisco de bens. Dentre as medidas
indicadas cita -se a diversificação entre jurisdições seguras, pesquisa do sistema jurídico
da empresa na qual estão investidos os bens, armazenamento de metais preciosos e outros
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ativos fora do sistema bancário e afastar -se de países que confiscaram no passado, com
destaque para a assertiva de que governos não podem facilmente apreender o que extra-
pola suas fronteiras3.
Nesse diapasão, a movimentação de bens oriundos da criminalidade organizada, inclu-
sive a transferência para terceiros, a título oneroso ou gratuito, via herança ou não, por
meio de negócios simulados ou não, dificulta a rastreabilidade e permite o fortalecimento
económico da organização criminosa, a qual se refinancia e cada vez mais aumenta seu
poderio e essa permanência dos bens e vantagens na posse e propriedade dos criminosos
e familiares resulta na continuidade da vida criminosa, no fortalecimento da organização
com o reinvestimento dos bens e vantagens decorrentes da criminosidade, na “consolida-
ção do patrimônio” via meios legais de investimentos e aplicação do resultado da crimi-
nalidade, além de transmitir para a sociedade da mensagem de que o “crime compensa”.
Segundo Rodrigo Sánchez Rios e de Sólon Cícero Linhares “No Reino Unido, por exem-
plo, em 2006, uma estimativa oficial calculou que o ganho do crime organizado atingiu a marca de
15 bilhões de libras, enquanto que no mesmo período foram recuperados pelo Estado somente 125
milhões de libras4.
Assim, urge retirar -se da pose e propriedade dos criminosos todos os bens e vantagens
decorrentes da criminalidade, exigindo -se uma mudança de paradigmas, com readequação
das penas, pois as penas clássicas, centradas na perda de liberdade e na “restituição apenas
dos bens e produtos diretos do crime”, não tem sido suficientes para coibir o aumento da
criminalidade, voltando o criminoso para o centro de sua comunidade, esbanjando a afir-
mação de que cumpriu sua pena, seguindo na fruição das vantagens amealhadas em razão
da aplicação dos bens e produtos diretos do crime, pois, como afirma Pedro Caeiro “o que é
essencial é privar o criminoso dos ganhos decorrentes de sua atividade, ou seja, confiscar o produto
do crime. É a consagração do velho adágio de que ‘o crime não deve compensar5.
3 Conforme contido no endereço: https://www.sociedadeinternacional.com/confisco -de -bens -2/ .
4 RIOS, Rodrigo Sánchez; LINHARES, Sólon Cícero Linhares. O confisco de bens em um contexto de criminali-
dade reditícia. [Em linha]. João Pessoa: Jornal Correioforense, 11 de maio de 2014. [Consult. 30 abr.
2021]. Disponível em: https://www.correioforense.com.br/opiniao/o -confisco -de -bens -em -um -contexto -de-
-criminalidade -rediticia/.
5 RIOS, Rodrigo Sánchez; COSTA, Victor Cezar Rodrigues da (2020). Confisco Alargado: a ampliação do institu-
to do perdimento de bens na Lei 13.964/2019 (“Lei anticrime”). In: AdrianoTeixeira (Coord.). Perda das Vantagens
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3. Evolução da perda de bens e vantagens na criminalidade
económico‑financeira
Ao se analisar a perda de bens e vantagens na criminalidade económico -financeira deve-
-se ter presente que a aplicação das penas cssicas, em especial a pena privativa de liber-
dade, não surte efeito, tanto de forma geral, dar sentido ao aforismo de que o “crime não
compensa”, como de forma especial, porquanto ao ‘deixar’ com o criminoso e/ou seus
familiares ou demais membros da organização criminosa os bens e vantagens advindas
dos crimes praticados, ainda que o escopo da organização criminosa não seja o lucro6, per-
mite a continuidade delitiva, o reforço da organização criminosa e a introdução de ditos
bens na atividade empresarial, dando -lhe uma ‘aparente’ legalidade, resultando, inclusive,
em concorrência desleal no mercado.
A evolução da clássica perda de bens e vantagens do crime para a perda alargada na
criminalidade económico -financeira, também nomeada como ‘confisco alargado’ de bens,
deve -se à influência dos Estados Unidos e do Reino Unido e aos tratados e atos de organi-
zações internacionais, tais como as Convenção das Nações Unidas contra o Tfico Ilícito
de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, denominada Convenção de Viena, de 20 de
dezembro de 1988, no art. 5º, nº 7; da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Orga-
nizado Transnacional, de 29 de setembro de 2003, denominada Convenção de Palermo, no
art. 12, nº 7; e Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, de 14 de dezembro de
2005, denominada Convenção de Mérida, no art. 31, n.º 87.
Diretivas e Decisões quadro da União Europeia estimularam os Estados do bloco na
adoção de medidas efetivas de confisco alargado. Merece destaque a Diretiva 2014/42/EU,
a qual, tendo por ponto de partida que a ausência dos resultados esperados era consequên-
cia da diferença de conceituação entre os sistemas normativos dos Estados -membros para
os regimes de perda alargada e reconhecimento mútuo, divergências essas que resultam
em dificuldades na cooperação transfronteira, reconhece a necessidade de aprofundar a
6 Como bem exemplifica Rodrigues Nunes, a organização pode tanto ter fins lícitos ou ilícitos, com objetivos além
do lucro, dentre eles obtenção de poder, destituição de organização terrorista, disseminação de ódio racial ou
religioso, etc., e que, mesmo não objetivando a obtenção de lucro com a vida criminosa, dele dependem para o
financiamento de suas atividades (Cf. NUNES, Duarte Alberto Rodrigues (2021). “A incongruência do património
no confisco “alargado” de vantagens provenientes da prática de crimes”. In: Recuperação de Ativos [Em linha]. Lis-
boa: Centro de Estudos Judiciários, 2021. [Consult. 10 ago. 2021]. Disponível na internet: http://www.cej.mj.pt/cej/
recursos/ebooks/penal/eb_RecuperacaoAtivos_7.pdf). p. 15.
7 Listadas pelo seu ano e não por sua maior ou menor importância no cenário do confisco alargado. Ditas dispo-
sições são muito semelhantes, pese embora extraia -se que a contida na Convenção das Nações Unidas contra o
Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, disponha de forma mais contundente e objetiva ao
prever sobre a possibilidade de cada parte prever a inversão do ônus da prova quanto à origem lícita do suposto
produto ou outros bens sujeitos a confisco, em outras palavras, traz ínsita a desconfiança da origem legítima do
bem.
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harmonização das disposições em matéria de perda alargada, com o estabelecimento de
norma mínima única, culminando por conclamar aos Estados -Membros na adoção das
medidas pertinentes para “permitir a perda, total ou parcial, dos bens pertencentes a pessoas
condenadas por uma infração penal que possa ocasionar direta ou indiretamente um benefício eco-
nómico” quando o valor dos bens é desproporcional ao rendimento legítimo do arguido
(art. 5, n.º 1).
Em Portugal a Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, estabelecia um regime especial para
a recolha de prova, quebra do segredo profissional e perda de bens em favor do Estado”
nos tipos criminais nela elencados. A transposição da Diretiva 2014/42 -UE para o direito
interno português ocorreu por meio da Lei n.º 30/2017, de 30 de maio, trazendo no Capítulo
IV, que trata da perda de bens a favor do Estado, a expressão “perda alargada”, presumindo
constituir -se “vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do
arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito” (artigo 7.º, n. 1). Logo,
coexistem dois regimes de perda de bens e vantagens decorrentes dos crimes: um geral,
arts. 109.º a 112.º do CP, e um especial, Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, arts. 7º, 8º, 12 e 12 -A.
Considera -se, também, um regime especial de perda de bens e vantagens o contido na Lei
n.º 15/2001, de 05 de Junho, que estabelece o REGIT, arts. 18 a 20.º.
4. Gerações do confisco de bens
Segundo Johan Boucht8, identificam -se quatro gerações do confisco. Na primeira há
imposição da perda de instrumentos e bens vinculados ao crime. Na segunda supõe -se
serem os bens de origem ilícita, não se exigindo que ditos bens vinculem -se com a infra-
ção atribuída ao arguido. A terceira, trata -se da hipótese pela qual há a perda de bens sem
vinculação à condenação penal (‘non conviction based confiscation’), sendo uma ‘actio in rem’,
isto é, vinculada à propriedade e não à responsabilidade civil ou criminal do proprietário.
Por fim, na quarta geração a perda caracteriza -se como procedimento ‘in personam’, envol-
vendo a avaliação patrimonial do réu.
Em Portugal infere -se existir todas as gerações de perda de bens. A primeira tem dispo-
sição no artigo 109, n.º 1, do CP, e a segunda, perda a partir da presunção, está disposta na
Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, art. 7º, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 30/2017,
de 30 de maio. Quanto à terceira, tem -se a perda sem vinculação à condenação penal nas
hipóteses previstas no artigo 109, n.º 2, CP. Finalmente, encontramos a quarta hipótese
8 BOUCHT, Johan (2019). Asset Confiscation in Europe – past, present, and future challenges. In: Journal of Financial
Crime, v. 26, n. 2, p. 526 -548.
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na Lei nº 5/2002, de 11 de janeiro, artigo 7.º, n.º 1, já que se analisa a existência de ganhos
patrimoniais resultantes de uma atividade criminosa, assim inferindo quando o valor do
património do condenado, em comparação com o valor dos rendimentos lícitos auferidos
por este faz presumir a sua proveniência ilícita, importando impedir a manutenção e con-
solidação dos ganhos ilegítimos9.
5. Objetivos do confisco de bens
Quanto aos objetivos do confisco de bens destaca -se: prevenção geral e especial, por meio
da demonstração que o crime não compensa; coibir que os ganhos ilegais sejam utiliza-
dos para o financiamento e cometimento de novos crimes; reduzir riscos de concorrência
desleal quando são inseridos nas atividades empresariais lícitas10; e, ainda, garantir que
sejam afastados da sociedade, removendo do património do arguido as vantagens que lhe
advieram em razão do cometimento de crimes11.
6. Natureza jurídica
A definição da natureza jurídica da perda de bens e vantagens na criminalidade económico-
-financeira é trabalhosa tendo em vista que tanto pode ser considerada pena ou medida de
segurança ou, ainda, medida administrativa.
Guedes Valente12 nos indica a discussão existente acerca da natureza jurídica da perda
de bens e direitos: saber se trata -se de pena acessória ou se é efeito da pena principal; ou
se estamos frente a uma medida de segurança ou se tem natureza mista, lecionado que
a “doutrina, em Portugal, tem entendido que a perda de instrumentos do crime” e “as
vantagens do crime” tanto podem ser aplicadas “com fundamento preventivo”, coibindo
a prática do pelo agente do “mesmo crime ou crime análogo ou conexo”, como podem ser
9 Parece -nos mais adequada a expressão dimensão, pois geração traz a ideia de que uma geração resulta superada
pela que a segue, o que efetivamente não ocorre, porquanto diversos tipos de confiscos de bens coexistem num
mesmo ordenamento jurídico e ao mesmo tempo, como ora demonstrado.
10 SIMÕES, Euclides Dâmaso (2010). “A proposta de Lei sobre o Gabinete de Recuperação de Activos (um passo no
caminho certo)”. In: Direito Contra - Ordenacional, Revista do CEJ, 2.º Semestre, N.º 14, Coimbra: Almedina, p. 184 -5.
11 Quanto aos bens, coisas e direitos que podem ser objeto de perda para o Estado tem -se: a) instrumenta sceleris
instrumentos utilizados ou que serão usados para execução do crime (art. 109º, n.º 1 do CP); b) producta sceleris
– objetos que foram produzidos pela prática do facto ilícito típico (art. 110, alínea a) do n.º 1, do CP); e, c) fructum
sceleris – vantagens provenientes direta ou indiretamente do crime (art. 110ª, alínea b) do n.º 1 do CP).
12 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes (2020). Da Perda de Bens e Direitos no Direito Penal e Processual Penal
em Portugal: as controvérsias de um regime em ‘apuração’. In: Adriano Teixeira (Coord.). Perda das Vantagens
do Crime no Direito Penal: confisco alargado e confisco sem condenação. São Paulo: Marcial Pons, pp.35 -72. ISBN:
978 -65 -86696 -09 -7. p. 38 -9.
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A perda de bens e vantagens na criminalidadeeconómico ‑financeira
The loss of assets and advantages in economic andfinancialcrime
JAQUELINE MARIA MENTA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXII · Issue Fascículo 2 · 1st July Julho – 31st December Dezembro 2021 · pp. 53‑64
aplicadas com “natureza análoga de medida de segurança”, visando “neutralizar as circuns-
tâncias e espaços de perigosidade para a segurança das pessoas, para a moral ou ordem públicas”.
Solon Cícero Linhares13 escreve que as teses sobre a natureza jurídica da perda alar-
gada de bens e vantagens “oscilam entre proposta de caráter penal, como efeito secundário
de uma sentença condenatória, civil, como forma de reparação do dano e administrativo,
como medida de cunho não jurisdicional”.
Tendo caráter penal exigiria a comprovação da prática de um ilícito penal, mas não
a sua culpabilidade. Como medida de segurança necessitaria relação entre a culpa do
arguido e perigosidade, pois a posse de bens incongruente com suas atividades lícitas
resultaria na aplicação de medida preventiva, impedindo o reinvestimento deles em novas
práticas criminais. A aplicação do confisco alargado como medida administrativa, afasta-
ria a “relação direta com a prática de um crime”, alcançando o arguido que “estivesse na
posse de bens incongruentes, anormais quando comparados aos seus rendimentos licita-
mente declarados”.
Adotando uma posição intermedria, Solon Cícero Linhares defende o confisco alar-
gado de bens e vantagens “como medida única, autônoma, ‘sui generis, da qual não guar-
daria relação direta com o processo penal, apesar de ter que respeitar o núcleo duro de
seus princípios, como por exemplo, contraditório, ampla defesa, devido processo legal e
presunção de inocência”14.
Já Duarte Rodrigues Nunes entende ser “uma medida de cariz não penal (e não san-
cionatório) similar a uma medida de segurança que visa, em primeira linha, o restabele-
cimento da ordem jurídica violada através da promoção de uma ordenação dos bens ade-
quada ao Direito e apenas de forma meramente reflexa a prevenção da prática de futuros
crimes”15.
Para este autor, de entre as razões de assim entender, está a situação de não ser consi-
derada a gravidade do facto nem a culpa ou perigosidade pessoal do arguido; a finalidade
principal do confisco ser o restabelecimento da ordem jurídica violada através da pro-
moção de uma ordenação dos bens adequada ao Direito; a ausência da finalidade própria
da pena (inigir um mal ao agente), mas somente privá -lo de vantagens ilegitimamente
obtidas; a condenação pela prática de um dos crimes do catálogo insere -se somente como
fundamento da presunção de que o património que o condenado detém tenha sido obtido
13 LINHARES, Solon Cícero (2019). Confisco alargado de bens: uma medida penal, com efeitos civis contra a corrupção sistê-
mica. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, p. 174.
14 Idem, p. 177.
15 NUNES, Duarte Rodrigues (2021). “A incongruência do património no confisco “alargado” de vantagens prove-
nientes da prática de crimes”. In: Recuperação de Ativos [Em linha]. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários. [Consult.
10 ago. 2021]. Disponível na internet: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/penal/eb_RecuperacaoAtivos_7.pdf. p. 19.
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A perda de bens e vantagens na criminalidadeeconómico ‑financeira
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através da prática de crimes, finalizando por afirmar que o confisco não apura a responsa-
bilidade penal do arguido, mas sim verifica a existência de património obtido através de
uma atividade criminosa16.
Guedes Valente17 ensina -nos que, independentemente da conclusão acerca da natu-
reza do tipo de pena que é a perda de bens, deve atentar -se que o sistema jurídico -penal
português exige que o facto qualificado como crime seja aferido dentro do penta corpo
– ação, típica, ilícita, culpável e punível, sustentando que a Lei n.º 5/2002 – “implementa
um regime especial que, se não é uma inversão plena do ónus da prova da proveniência
licita dos bens e direitos, é um autêntico regime impositivo de prova da licitude dos bens
e direitos”18. Acresce que o regime especial da perda alargada contido Lei n.º 5/2002, de 11
de janeiro, sujeita -se a princípios concretos, a saber: catálogo; culpa declarada; patrimó-
nio maculado ou da ilicitude do património & presunção de inocência; temporalidade, e o
princípio da ‘odiosa sunt restringenda, a “ser avocado quando em causa estão restrições de
Direitos fundamentais pessoais19 -20.
7. Questões controversas
Quando se fala em perda alargada de bens e vantagens na criminalidade económico-
-financeira surgem debates, tais como a natureza jurídica do instituto, já analisado em
16 NUNES, Duarte Rodrigues. “A incongruência do património no confisco “alargado” de vantagens …. In: Op. cit.
p. 21. Ademais, também entende constituir medida ‘sui generis, asseverando que “para além de não ter natureza
penal nem sancionatória, o confisco “alargado” constitui uma medida administrativa ‘sui generis’, resultando a sua nature-
za administrativa da utilização da expressão liquidação (que é comum ao ato administrativo de liquidação do imposto), da
semelhança entre o processo relativo ao confisco “alargado” e a impugnação contenciosa do ato de liquidação em processo
tributário (...) e de a liquidação do Ministério Público constituir um verdadeiro ato definitivo «dependente da maior ou menor
capacidade de resistência do condenado»”.
17 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Da Perda de Bens e Direitos no Direito Penal e Processual Penal em Por-
tugal…. In: Op. cit. p. 48.
18 Idem, p. 41.
19 Idem, p. 53.
20 Reconhece -se que, sim, há uma presunção de ilicitude de bens e direitos, sempre que o arguido não prove que os
obteve de forma lícita ou nas hipóteses nas quais existe uma incongruência entre o patrimônio que detém e seu
rendimento lícito. Contudo essa presunção não se traduz em prejuízos ao condenado, pois, como afirma Duarte
Alberto Rodrigues Nunes, o arguido é quem detém as melhores condições para provar a origem lícita de seu
património. Para referido autor, afastando -se a presunção prevista no n. 1º do art. 7.º da Lei 5/2002, transformar-
-se -ia “o ónus da prova a cargo do MP numa ‘diabolica probatio’ uma vez que seria quase impossível demonstrar
a plausibilidade do cometimento de outros crimes (para mais, de crimes do catálogo) e com ligação aos crimes
pelos quais o arguido foi condenado, quando se investigou mas não se recolheram indícios suficientes para
submeter o arguido a julgamento (Cf. NUNES, Duarte Alberto Rodrigues. Admissibilidade da inversão do ônus
da prova no confisco “alargado” de vantagens provenientes da prática de crimes. [Em linha]. Lisboa: Revista
Julgar On -line, fevereiro de 2017, Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Lisboa, 2017. [Consult. 10 ago. 2021].
Disponível em: http://julgar.pt/wp -content/uploads/2017/02/20170220 -ARTIGO -JULGAR -Invers%C3%A3o -%C3%B3nus -da-
-prova -confisco -alargado -Duarte -Nunes.pdf, p. 39.)
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item precedente, a decretação da perda de bens ‘post mortem, aqui destaca -se o questio-
namento sobre ocorrer a transmissibilidade da pena e sobre em qual geração de confisco
insere -se essa perda, além da ética dos Estados que recebem os lucros decorrentes da cri-
minalidade.
7.1 Decretação da perda de bens ‘post mortem
7.1.1 Transmissibilidade da pena para além do arguido
Tendo -se presente o disposto no art. 109, n.º 2º do CP, conclui -se que o confisco alargado
de bens pode ter lugar em face de pessoas diversas do arguido. Ou seja, mesmo ocorrendo
a extinção da punibilidade, em decorrência da morte, por exemplo, prosseguir -se -á com o
processo da perda, questionando -se se não há uma inconstitucionalidade em tal disposi-
ção, ante a previsão do art. 30.º, n.º 3, da CRP.
Inferindo -se não possuir o instituto do confisco natureza de pena, quer acessória, quer
efeito da pena principal, resulta aqui não se estar frente a sua transmissibilidade, nem
em violação ao direito de propriedade assegurado constitucionalmente (art. 62.º), mesmo
ocorrendo sem culpabilidade na hipótese de morte do arguido, hipótese em que conclui-
-se não afetar direito dos herdeiros, não obstante esses possuam expectativa de direito
porquanto “a CRP não tutela a propriedade obtida mediante a prática de crimes”21 e com
a retirada dos bens do património do arguido ou de seus herdeiros, restaura -se a ordem
patrimonial segundo o direito 22.
A utilização de institutos do direito civil, como o confisco não baseado em condenação
penal, coibindo uso e gozo de produtos e vantagens de proveniência ilícita, não resulta
em demonstração de fraqueza dos Estados na persecução criminal, mas sim na adoção de
medidas efetivas para enfrentar a inteligência criminal, que abriga -se nas garantias exis-
tentes nos ordenamentos jurídicos para evadir -se de suas responsabilidades e, por conse-
guinte, fortalecer -se com os lucros da atividade criminosa.
Não devemos perder de vista que os bens decretados perdidos figuram no património
do arguido de forma ilegítima. Assim, não se pode atribuir inconstitucional a conduta do
Estado que, de forma legítima e observando certos princípios, retoma os bens, pois, não
21 NUNES, Duarte Alberto Rodrigues. Admissibilidade da inversão do ônus da prova no confisco “alargado” de
vantagens …. In: Op. cit. p. 61.
22 Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 392/2015, Processo n.º 665/15, de 12 de Agosto de 2015, relator Conselheiro
João Cura Mariano, publicado em DR, 2.ª série, em 23 de Setembro de 2015.
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se olvide, não se perde o que nunca se teve legitimamente, independentemente de a perda
ocorrer em relação ao arguido ou aos seus herdeiros23.
A celeuma parece -nos ter origem na piedade que sentimos quando há notícias de perda
de bens e situação de mazela na qual ficou a família do arguido ‘post mortem’ desse. Con-
tudo, devemos pensar nas vítimas. Qual é a resposta que o Estado dá à sociedade quando
deixa o arguido ou seus herdeiros com os bens que amealhou de forma ilícita, ilegítima?
Não há violação da esfera de direito dos herdeiros, pois os bens amealhados de forma ile-
gítima não se transformam em património lícito com a morte do arguido. Ademais, esses
bens resultam da transgressão das normas da sociedade, cuja conivência pode pôr em
causa a própria sobrevivência, o próprio Estado de Direito.
7.1.2 A qual geração pertence o confisco de bens ‘post mortem’?
A decretação da perda de bens ‘post mortem’ parece inserir -se em geração diversa das qua-
tro elencadas anteriormente. Contudo infere -se não existir uma nova geração para se
enquadrar o confisco de bens quando esse é decretado após a morte do arguido, ante o
facto de ser medida que se inclui no contexto de confisco não baseado em condenação
(‘non -conviction based confiscation’), sendo, pois, integrante, da terceira geração24.
7.2 Ética dos Estados que recebem
Pautados na sua soberania, Estados criaram rígidas legislações, assegurando o sigilo
dos dados bancários, atraindo investimentos vultosos, nem todos lastreados em condutas
legais. Assim, por muito tempo, esses Estados tornaram -se refúgios seguros para a prote-
ção patrimonial, transformando -se em parsos fiscais tanto para os bens legitimamente
amealhados como para os decorrentes da prática de ilícitas. Ao não questionar a origem
do património neles investidos, esses Estados desbordam a fronteira da ética, mormente
porque ditos recursos tanto poderiam originar -se de condutas criminosas como poderiam
ser destinados para a execução delas25.
23 A impossibilidade de decretar -se o confisco de bens em caso de morte, pode dar azo a que o arguido tire a própria
vida para deixar património para sua família ou mesmo que alguém da família ou da própria organização crimi-
nosa provoque sua morte para que os bens com eles permaneçam.
24 Aqui há se ressaltar a importância dessa forma de confisco nas situações nas quais o arguido morre, pois como
leciona Stefan Cassela “é importante compreender que o confisco não baseado em condenação é absolutamente
essencial para a recuperação de ativos no contexto transnacional. Em uma série de situações, simplesmente
não há outra maneira de recuperar os ativos” (Cf. CASSELLA, Stefan D (2020). A perspectiva americana sobre
recuperação de produtos de crime em processos criminais e processos não baseados em condenação. In: Adriano
Teixeira (Coord.). Perda das Vantagens do Crime no Direito Penal: confisco alargado e confisco sem condenação. São Paulo:
Marcial Pons, pp.242 -258. ISBN: 978 -65 -86696 -09 -7. p. 250), como ocorre quando o réu morre antes da condena-
ção, hipótese na qual a decretação do confisco não baseado em condenação permite retirar -se os bens que foram
adquiridos de forma ilegítima.
25 A partir do Fórum Mundial sobre a Transparência e a Troca de Informações com Fins Tributários da Organização de Coo-
peração e Desenvolvimento Econômico (OCDE), impulsionou -se o fim deste sigilo bancário, resultando em cooperação
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8. Considerações finais
A perda alargada de bens traduz -se em abordagem diferenciada da criminalidade orga-
nizada. Atingir seus lucros resulta no seu desmantelamento por meio da redução e des-
truição de seu património, mormente porque a resposta penal adstrita à pena cssica de
restrição ou perda da liberdade não se demonstrou eficaz no combate à criminalidade, em
especial as reditícias.
Questões de ordem prática, como congelamento de ativos e execução de ordens de
confisco de bens, especialmente em relação aos ativos transferidos para outros países ou
aos crimes transnacionais, exigem harmonia de ordenamentos jurídicos e utilização de
instrumentos comuns, como confiscos não baseados em condenações, pelo que devem
os Estados avançar em suas legislações, especialmente nos temas que demandam maior
dificuldade, como é o caso de cálculo e liquidação do património, prazos prescricionais,
tornando o instituto do confisco alargado numa medida mais eficiente na luta contra a
criminalidade económica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASSELLA, Stefan D (2020). A perspectiva americana sobre recuperação de produtos de crime em
processos criminais e processos não baseados em condenação. In: Adriano Teixeira (Coord.). Perda das
Vantagens do Crime no Direito Penal: consco alargado e confisco sem condenão. São Paulo: Marcial Pons,
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NUNES, Duarte Alberto Rodrigues. A incongruência do património no confisco “alargado” de vantagens
provenientes da prática de crimes. In: Recuperação de Ativos [Em linha]. Lisboa: Centro de Estudos
Judicrios, 2021. p. 11 -38. [Consult. 15 jul. 2021]. Disponível: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/
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RIOS, Rodrigo Sánchez; COSTA, Victor Cezar Rodrigues da (2020). Consco Alargado: a ampliação do
instituto do perdimento de bens na Lei 13.964/2019 (“Lei anticrime”). In: Adriano Teixeira (Coord.).
Perda das Vantagens do Crime no Direito Penal: consco alargado e confisco sem condenão. São Paulo:
Marcial Pons, pp.17 -34. ISBN: 978 -65 -86696 -09 -7.
RIOS, Rodrigo Sánchez; LINHARES, Sólon Cícero Linhares. O confisco de bens em um contexto de
criminalidade reditícia. [Em linha]. João Pessoa: Jornal Correioforense, 11 de maio de 2014. [Consult.
desses Estados -membros aos demais países para combater a corrupção, evasão fiscal e lavagem de dinheiro.
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30 abr. 2021]. Disponível em: de https://www.correioforense.com.br/opiniao/o -confisco -de -bens -em -um-
-contexto -de -criminalidade -rediticia/.
SIMÕES, Euclides Dâmaso (2010). “A proposta de Lei sobre o Gabinete de Recuperação de Activos (um
passo no caminho certo)”. In: Direito Contra -Ordenacional, Revista do CEJ, 2.º Semestre, N.º 14, Coimbra:
Almedina.
VALENTE, Manuel Monteiro Guedes (2020). Da Perda de Bens e Direitos no Direito Penal e Processual
Penal em Portugal: as controvérsias de um regime em ‘apuração’. In: Adriano Teixeira (Coord.). Perda
das Vantagens do Crime no Direito Penal: confisco alargado e confisco sem condenação. São Paulo: Marcial
Pons, pp.35 -72. ISBN: 978 -65 -86696 -09 -7.
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXII · Issue Fascículo 2 · 1st July Julho – 31st December Dezembro 2021 · pp. 65‑73 65
Direito processual penal económico
– (dis)funcionalidades conexas com as
pessoascoletivas1
Economic criminal procedural law – (dis)functionalities
related to legal entity
HÉLDER FIGUEIREDO2
helderpedroo@gmail.com
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXII · 1st July Julho–31ST December Dezembro 2021 · pp.65‑73
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXII.2.5
Submitted on August 30th, 2021 . Accepted on September 28th, 2021
Submetido em 30 de Agosto, 2021 . Aceite a 28 de Setembro, 2021
RESUMO Aqui se aborda uma questão não nova, mas atual – a ausência de normas
processuais penais aplicáveis às Pessoas Coletivas – em conexão com a criminalidade
económico -nanceira – atenta a sua ligação inevitável àqueles entes. Após um breve
excurso doutrinal, tendemos a concluir (como há anos o faz a mais avisada doutrina
nacional) que urge, com assinalável atraso, suprir a lacuna de normas processuais
penais dirigidas à participação das Pessoas Coletivas em processo penal, o que ocorrerá,
tendencialmente pela mão da criminalidade económico -financeira.
PALAVRAS -CHAVE Pessoas Coletivas, processo penal, criminalidade económico-
-financeira.
ABSTRACT Here we address an issue that is not new, although current – the lack of
criminal procedural rules applicable to a legal entity – related to economic and financial
crime – given its inevitable connection to those entities. After a brief doctrinal excerpt, we
tend to conclude (as has been done for years by the most relevant national Legal Scholars)
1 Este trabalho corresponde com algumas alterações pontuais ao comentário científico entregue no âmbito do Se-
minário de Investigação: Direito Penal Económico, do curso de mestrado em Direito, na especialidade em Ciên-
cias Jurídico -Criminais, regida pelo Professor Doutor Manuel Monteiro Guedes Valente.
2 Mestrando em Direito, especialidade em Ciências Jurídico -Criminais da Universidade Autónoma de Lisboa.
Licenciado em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa e pós -graduado em Ciências Jurídicas pela
Universidade Católica de Lisboa. Investigador Colaborador do Ratio Legis – Centro de Investigação em Ciências
Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa [Projeto: Corpus Delicti – Estudos de Criminalidade Organizada Trans-
nacional].
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Direito processual penal económico – (dis)funcionalidades conexas com as pessoas coletivas
Economic criminal procedural law – (dis)functionalities related to legal entity
HÉLDER FIGUEIREDO
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXII · Issue Fascículo 2 · 1st July Julho – 31st December Dezembro 2021 · pp. 65‑73
that it is urgent, with considerable delay, to overcome the lack of criminal procedural rules
aimed at the participation of a legal entity in criminal proceedings, which will occur, most
of the times, by the hand of economic -financial criminality.
KEYWORDS Legal entities, criminal procedural law, economic and financial criminality.
Do elenco de temas propostos para o Seminário de Investigação: Direito Penal, a escolha
recaiu sobre o direito processual penal económico, tentando, nesta brevíssima abordagem
apelar a uma dimensão, ou ausência dela, quanto às pessoas coletivas, que, pela sua rele-
vância estruturante de toda a atividade económica são um player ausente em grande parte
do domínio processual penal.
Como elucidário desta escolha, começarmos por acompanhar André Lamas Leite que
nos indica ser relativamente pacífico na doutrina que a atribuição de responsabilidade
criminal às pessoas coletivas se deve à globalização do crime e ao relevo que assume o
combate à delinquência económico -financeira3.
Ora se reconhecidamente um dos atores de relevo no direito penal económico são pes-
soas coletivas, parece ser um bom mote para falarmos de processo penal conexo à cri-
minalidade económico -financeira, ousando trazer um nano contributo para a discussão
e decisão de avançar, como nos exorta Guedes Valente, “para uma alteração séria e res-
ponsável na legiferação de um CPP que seja espelho de uma sistematização consistente
jurídico -processual”4.
Entendemos que não cabem aqui os considerandos que fundamentam a previsão de
responsabilidade penal das pessoas coletivas nem os moldes da sua previsão no artigo 11º
dodigo Penal5, partiremos, contudo, do pressuposto assente de que a Lei 59/2007 na sua
3 LEITE, André Lamas – Fundamentos político -criminais da responsabilidade penal das pessoas coletivas em Direi-
to Criminal clássico, penas de substituição aplicáveis e compliance – breves notas. In: Revista do Ministério Público,
n.º 161, jan -mar2020, pp.203 -234, p. 205. Acrescenta ainda que esta responsabilidade suscita “grandes problemas
práticos de imputação objetiva à conduta ativa ou omissiva”. Faria Costa já havia afirmado a influência da globa-
lização e da criminalidade organizada transnacional, em especial o tráfico de droga, no desenho do Direito penal
económico e da consequente responsabilização penal das pessoas coletivas. Cf. Faria Costa, José de – Direito Penal
Económico. Coimbra: Quarteto, 2002, pp….
4 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Processual Penal: Da Sociedade Internético -Personocêntrica. Lisboa: Ed.
Autor, 2020 p. 211.
5 No quadro justificativo desta previsão André Lamas Leite aponta uma das intenções do legislador na codificação
da responsabilidade penal das pessoas coletivas que “não adianta obnubilar que foi uma intencionalidade de
arrecadação de receita, ligada a uma determinada intencionalidade perspetiva de prevenção geral, aquela que
justificou abrir a brecha que anteriormente só era admitida no Direito Penal secundário, desde o Decreto -Lei
n.º 28/84, de 20 de janeiro, que, aliás, serviu de fonte próxima da normação constante do artigo 11.º e dos artigos
90.º -A e ss., assim LEITE, André Lamas – Fundamentos político -criminais da responsabilidade penal das pessoas
coletivas …, p. 212.
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Direito processual penal económico – (dis)funcionalidades conexas com as pessoas coletivas
Economic criminal procedural law – (dis)functionalities related to legal entity
HÉLDER FIGUEIREDO
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redação daquele artigo 11º do CP veio alargar a responsabilidade penal às pessoas coletivas
para o catálogo de crimes que também ali se prevê6.
Deixar a este propósito apenas duas notas, a primeira é que se trata matéria muito
discutida e “onde reina ainda grande insegurança”, que é a seguinte, no ordenamento ale-
mão não foi ainda reunido o consenso doutrinal que tenha permitido ao legislador alemão
vir a consagrar esta responsabilidade para as pessoas coletivas.7 Nesta lógica dizer que
nos países que adotaram modelos de responsabilidade penal para pessoas coletivas foram
introduzidas “normas de natureza processual específicas” ao contrário do que aconteceu
em Portugal8.
Uma segunda para destacar que a doutrina vem criticando também a exclusão do que
poderíamos apelidar de determinadas categorias especiais de pessoas coletivas, isto é,
existem alguns tipos de pessoas coletivas que serão insuscetíveis deste tipo de responsabi-
lidade. Falamos da exclusão do Estado, das organizações internacionais de direito público
e das pessoas coletivas públicas.9 Ou ainda, como nos resume Mário Meireles a propósito
do n.º 3 do artigo 11.º do Código Penal que “o nosso legislador optou por consagrar, de modo
exclusivo, a responsabilidade penal das pessoas coletivas que tenham natureza privada”10.
Para um laivo de resumo introdutório apelamos a Rui Cunha que nos diz que o direito
penal económico “tem por escopo a proteção das atividades económicas praticadas hodier-
namente num mercado económico livre e global”11.
Na esteira de Gonzalo Castro Marquina, Anabela Miranda Rodrigues acentua a difi-
culdade inerente aos crimes económicos pela sua característica ausência de sinais exter-
nos observáveis no plano físico, o que não se verifica na generalidade da criminalidade
convencional12. Também Guedes Valente nos afirma que a criminalidade económico-
6 Foi nesta reforma do Código Penal que se alargou a responsabilidade criminal das pessoas coletivas ao chamado
Direito Penal clássico, sendo que esta já era admissível em certas áreas do Direito Penal secundário como foi o
marco trazido com o Decreto -Lei n.º 28/84.
7 LEITE, André Lamas – Fundamentos político -criminais da responsabilidade penal das pessoas coletivas …, p.
207 -208.
8 ANTUNES, Maria João – Processo Penal e Pessoa Coletiva Arguida. Coimbra: Almedina, 2020, pp.13 -14.
9 SOUSA, Susana Marias Aires de – Societas Publica (Non) Delinquere Potest: Reflexões sobre a irresponsabilidade dos
entes públicos no ordenamento jurídico português. In: Actas do XV Encuentro AECA “Nuevos caminos para Europa: El
papel de las empresas y los gobiernos. 2012, pp.5 -13 [Disponível em: https://apps.uc.pt/mypage/files/susanaas/675].
10 MEIRELES, Mário Pedro – A responsabilidade penal das pessoas coletivas ou entidades equiparadas na recente
alteração ao Código Pela ditada pela Lei 59/2007, de 4 de setembro: algumas notas. In: Julgar, n.º 5, (maio -agosto
2008), p. 126 [Disponível em http://julgar.pt/wp -content/uploads/2016/05/09 -M%C3%A1rio -Pedro -Meireles -Resp-
-Penal -Pess -Coletivas.pdf].
11 RODRIGUES, Anabela Miranda – Direito Penal Económico: Uma Política Criminal na Era Compliance. 2ª Edição. Coim-
bra: Almedina, 2020, p. 9, a expressão é de Rui Cunha no prefácio da 1ª edição.
12 RODRIGUES, Anabela Miranda – Direito Penal Económico, p. 27.
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-financeira “convive com vítimas invisíveis ou indeterminadas e com agentes de crimes
nem sempre físicos”13.
Aquela autora fala -nos ainda da dificuldade enfrentada pelo legislador penal nesta área
do direito económico, em tipificar o ilícito com precisão. Além do argumento da ausência
de sinais evidentes no plano físico junta -se, a por vezes ténue fronteira entre a licitude
e ilicitude nas práticas características deste tipo de delinquência ou ainda os variados e
sofisticados meios que têm para lhes “dar um banho de legalidade”14.
Ulrich Beck, além de nos trazer a conceptualização da sociedade de risco com a insegu-
rança inerente ao progresso, cuja contrapartida é a criação de novos riscos, conexionou
ainda à globalização o surgimento de novos atores da política que são as grandes empre-
sas multinacionais que desenrolam a sua atividade sem confinamento fronteiriço à escala
mundial, redundando na politização da economia15.
Economia esta, hoje global, onde se assiste a uma redistribuição de poderes entre
empresas e o Estado com enfraquecimento deste último, que, como nos dizem Steve
Tombs e David Whyte, “o poder na economia global está concentrado e organizado em
torno de uma relativamente pequena elite de superempresas”16.
Correlativamente, a reação do Estado tem passado por aferir o tipo de intervenção
que este deve ter no plano económico, que, é consabidamente “marcado pela atuação das
empresas”17 e nos últimos anos tem sido pela via expansionista da intervenção penal, e
neste concreto através do direito penal económico.
Guedes Valente, sumariando o conceito e na linha de Germano Marques da Silva,
escreve que o processo -crime é “uma sequência de atos juridicamente pré -ordenados e
praticados por certas pessoas legitimamente autorizadas em ordem à decisão sobre se foi
praticado algum crime e, em caso armativo, sobre as respetivas consequências jurídicas
e a sua justa aplicação”18.
Num apelo a Figueiredo Dias vem Maria João Antunes armar que entre o direito
penal e processual penal se verifica uma “relação mútua de complementaridade funcio-
nal” como reforço da ideia de que o processo penal não é mero instrumento em relação ao
13 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Processual Penal: Da Sociedade Internético -Personocêntrica, p. 212.
14 A  RODRIGUES A M – D P E  
15 RODRIGUES, Anabela Miranda – Direito Penal Económico…, pp.28 -29.
16 Tradução livre do autor de “()power in the global economy is concentrated and organised around a relatively small elite
of super corporations. Cfr. TOMBS, Steve e WHYTE, David – The Corporate Criminal: Why corporations must be
abolished. Nova York Routledge, 2015, p. 7. [Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/282918404_The_
Corporate_Criminal_Why_corporations_must_be_abolished].
17 RODRIGUES, Anabela Miranda – Direito Penal Económico, pp.46 -47.
18 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Processo Penal – Tomo I. 3.ª Edição. Coimbra: almedina, 2010, p. 23. Cfr.
MARQUES DA SILVA, Germano – Direito Processual Penal – Volume I. … Edição. Lisboa/São Paulo: Verbo, …, p…
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direito penal, tornando -os consequentemente em “participantes de uma mesma unida-
de”19.
Para esta autora, como exemplo desta relação mútua de complementaridade funcional
entre direito penal e direito processual penal, atente -se no “direito penal secundário” onde
se inserem os diplomas de criminalidade económica, como seja a Lei n.º 5/2002 com o
regime especial de recolha de prova e quebra de segredo profissional que ali se prevê, mis-
turando assim institutos de natureza jurídico -substantiva com os de natureza jurídico-
-processual20.
A propósito deste direito penal secundário e sobre as alterações penais e processuais
penais e a criminalidade económico -financeira Guedes Valente apela com fundamentada
insistência à necessidade de uma “sistematização consistente jurídico -penal”. Mais nos
diz, destacando a circunstância das pessoas coletivas, que carecemos sim de um Código
Processo Penal que garanta a segurança jurídica e respeite o equibrio da persecução
penal que nos determina a Constituição da Republica Portuguesa, (diríamos que se trata
dum apelo direto às garantias do processo criminal do artigo 32º da CRP) e que não obs-
tante de particularidades inerentes a arguidos e vítimas/ofendidos no plano da crimina-
lidade económico -financeira, tem também todos estes direito a um processo penal respei-
tador das suas finalidades21.
Nesta lógica atinente à responsabilidade penal pessoas coletivas diz -nos ainda Guedes
Valente da necessidade dos direitos, liberdades e garantias que no plano processual penal
lhe devam corresponder, dizendo, no apelo a Germano Marques da Silva, que se impõe
“um conjunto de normas de adaptação do processo comum à idiossincrasia particular des-
tes sujeitos”22. Salienta -se com especial nota que no que respeita às pessoas coletivas se
verifica uma total ausência de normas de natureza processual penal. Isto sem prejuízo de
alguns afloramentos processuais contidos na Lei n.º 13/2017 que trata da responsabilidade
penal por comportamentos antidesportivos23.
A verdade é que a responsabilidade penal das pessoas coletivas existia já antes da sua
inclusão por via da alteração ao Código Penal em 2007, desde logo no Decreto -Lei nº 28/84,
19 ANTUNES M J – D P P ª E C A   
20 ANTUNES, Maria João – Direito Processual Penal…, p. 14.
21 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Processual Penal: Da Sociedade Internético -Personocêntrica, pp.212 -213.
Também aqui nos elenca as “finalidades do processo penal: (i)descoberta da verdade material processual e válida
judicialmente, (ii) realize a justiça, (iii) respeite e garanta os direitos fundamentais de todos os cidadãos (em
especial do arguido e das vítimas), e (iv) restabeleça a paz jurídica.
22 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Processual Penal: Da Sociedade Internético -Personocêntrica, p. 213.
23 ANTUNES, Maria João – Processo Penal e Pessoa Coletiva Arguida…, p. 9.
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entre outros diplomas avulsos, mas todos fora do Código Penal. Entre outros autores24, Flá-
via Loureiro25 refere que a Unidade de Missão responsável pela revisão dos Códigos Penal
e Processual Penal (diríamos nós, de forma consciente ou não) ignorou as chamadas de
atenção da doutrina quanto à absoluta necessidade de introdução de normas processuais
para as pessoas coletivas e que deveriam ter sido introduzidas naquela oportunidade em
que se passou a prever a sua responsabilidade penal no Código Penal.
Mas, por outro lado, não menos certo é que após 14 anos depois e mais de 20 altera-
ções ao Código Processo Penal nada precipitou neste código quanto a normas aplicáveis às
pessoas coletivas. Como bem refere Flávia Loureiro, esta notada ausência de regulamen-
tação é uma “opção seguramente questionável” que vem suscitando manifestas “perplexi-
dades”26. Também Maria João Antunes nos destaca esta ausência de normas processuais
penais para o caso particular das pessoas coletivas (no caso na qualidade de arguidas)
como “uma das singularidades do ordenamento jurídico português”27. De alguma forma
somos levados a rever -nos nas palavras de Frederico Pinto quando a propósito da dog-
mática penal económica retrata a ação legislativa dos Estados dizendo que “por vezes as
respostas legislativas dos Estados constituem um problema em si mesmo, pois expressam
uma reação legislativa nervosa e impreparada que passa a vigorar de forma duradoura no
sistema sancionatório de um país”28 diríamos nós, assim nos parece ser o caso da intro-
dução da responsabilidade penal das pessoas coletivas no Código Penal e a inexistência
de correspondente complemento ao Código Processo Penal. Diga -se, contudo, que aquela
introdução no Código Penal que mais não fosse possui a virtualidade de se constituir
como “um ganho de coerência sistemática”29.
24 Já Maria João Antunes nos Estudos de Homenagem ao Professor Germano Marques da Silva, apelava ao con-
tributo deste Professor no destaque que ele deu às especificidades ligadas ao processo penal e pessoa coletiva
arguida onde diz “o legislador mantém um silêncio incompreensível e intolerável sobre a matéria” ANTUNES,
Maria João – A representação da pessoa coletiva arguida no processo penal. In: MOUTINHO, José Lobo et alii
(Coord.). Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva – Volume III, Lisboa: Universidade Católica
Editora, 2020,, p. 1796.
25 LOUREIRO, Flávia Noversa – A insustentável ausência de normas processuais penais para pessoas coletivas.
In: MOUTINHO, José Lobo et alii (Coord.). Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva – Volume II.
Lisboa: Universidade Católica Editora, 2020, pp.893 -894.
26 LOUREIRO, Flávia Noversa – A insustentável ausência de normas processuais penais para pessoas coletivas.
In: MOUTINHO, José Lobo et alii (Coord.). Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva – Volume II,
, p. 894.
27 ANTUNES, Maria João – A representação da pessoa coletiva arguida no processo penal. In: MOUTINHO, José
Lobo et alii (Coord.). Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva – Volume III, p. 1787.
28 PINTO, Frederico de Lacerda da Costa – Tendências e ruturas na evolução do Direito Penal económico, p. 92.
29 MEIRELES, Mário Pedro – A responsabilidade penal das pessoas coletivas ou entidades equiparadas na recente
alteração ao Código Pela ditada pela Lei 59/2007, de 4 de setembro: algumas notas, p. 122. Este autor retrata ainda
de forma sumária mas clara a questão de saber se, a consagração no Código Penal desta responsabilidade para as
pessoas coletivas teve a correspondente alteração do ponto de vista processual, dizendo tratar -se de uma análise
“relativamente simples de fazer, dada a total omissão legislativa a este propósito” [Idem, pp.123 -124].
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Segundo Flávia Loureiro, este problema faz notar que, a questão da responsabili-
dade penal das pessoas coletivas emerge da necessidade de lidar com a criminalidade
económico -financeira atenta a sua matriz e as características atuais da sociedade globali-
zada. Como refere esta autora “o problema não é exclusivo do direito penal económico, mas
tem nele particular imporncia”30.
Em face desta realidade tem a jurisprudência feito uso da regra do artigo 4º do Código
Processo Penal quanto à integração de lacunas, sob grandes críticas doutrinais, antes e
após a operada alteração legislativa ao Código Penal31. Não deixa de ser elucidativo desta
“confusão” e do modelo de imputação da responsabilidade às pessoas coletivas que ainda
em anos recentes tenhamos diversa jurisprudência a abordar repetidamente a sujeição da
pessoa coletiva às medidas de coação32.
São diversos os núcleos de dificuldade que se suscitam quanto às questões proces-
suais, atenta a reduzida dimensão do trabalho apenas nos permite apontar o dedo a um
dos núcleos ou origem de problemas, falamos a exemplo da pessoa coletiva com posição de
arguida em processo penal e o efeito multiplicador de problemas que deriva dessa posição.
Desde a própria constituição de arguido, da representação e do representante da pessoa
coletiva, da suscetibilidade de aplicação de medidas de coação e garantia patrimonial, da
prova e os meios de a obter e os aspetos conexos com a conformação jurídico -constitucional
do processo penal quando o arguido seja a pessoa coletiva entre muitos outros33.
Como exemplo desta ausência que vimos falando temos a necessidade da circular
n.º4/2011 do Procurador -Geral da Republica quanto à constituição de arguido pessoa cole-
tiva34 que, apesar de dar instruções aos Magistrados do Ministério Público não resolve
seguramente todas as questões de saber a quem deva ser notificada a constituição dadas
a múltiplas circunstâncias admissíveis às pessoas coletivas, nomeadamente, mas não só
30 LOUREIRO, Flávia Noversa – A insustentável ausência de normas processuais penais para pessoas coletivas.
in MOUTINHO, José Lobo et al. Coordenação – Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva.
Universidade Católica Editora. Lisboa 2020, volume II, p. 896.
31 Apesar do longo período já decorrido desde a alteração de 2007 salienta Maria João Antunes que “A sobrevivência
de legislação que não contempla normas de natureza processual específicas em matéria de responsabilidade
penal das pessoas coletivas não é, porém, acompanhada de jurisprudência relevante que saliente a ausência de
tais normas” ANTUNES, Maria João – Processo Penal e Pessoa Coletiva Arguida, p.17.
32 Cfr. ANTUNES, Maria João – Processo Penal e Pessoa Coletiva Arguida quanto à “confusão de posições proces-
suais”, pp 10 -12, onde destaca alguns Acórdãos: do Tribunal da Relação do Porto de 26 de fevereiro e 4 de junho
de 2014; do Tribunal da Relação de Coimbra de 11 de outubro de 2017 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 30
de outubro de 2019.
33 Cfr. ANTUNES, Maria João – Processo Penal e Pessoa Coletiva Arguida.
34 O Professor Germano Marques da Silva chama ainda a atenção das dificuldades desde logo de alcançar o que
são entidades equiparadas e as diversas designações que encontram na legislação avulsa. Cfr. SILVA, Germano
Marques – A pessoa coletiva como arguida no processo penal, pp.2 -3.
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nos casos de insolvência35, mas ainda andará longe da segurança jurídica a que o Professor
Guedes Valente nos alerta ser urgente resolver no capitulo relativo às alterações proces-
suais penais e a criminalidade económico financeira, “adiamos o assumir de um Código
de Processo Penal que garanta, acima de tudo, a segurança jurídica que se impõe a um
Estado de direito e democrático, como princípio basilar de uma democracia constitucional
como a portuguesa”36.
Só neste particular da pessoa coletiva arguida no processo penal como já se disse,
levantam -se diversos aspetos problemáticos quanto à sua posição processual, o Profes-
sor Germano Marques da Silva num dos seus artigos37 (em complemento ao que se disse
acima acompanhando Maria João Antunes) aborda a efeito processual da extinção, a fusão
e cisão da pessoa coletiva, a sua representação, alteração e irregularidades desta represen-
tação, o próprio ato de constituição como arguida, as medidas de coação que lhe podem
ser aplicáveis, a forma de notificação, as declarações naquela qualidade ou ainda o conito
de interesses que possa surgir entre a defesa da pessoa coletiva e o seu representante no
caso de responsabilidade cumulativa, ou seja, quando também ele seja arguido enquanto
pessoa física e singular. Deste catálogo que parece ser eco em parte da doutrina38, conclui
o Professor “dizer simplesmente, ser urgente que o legislador atente nas lacunas da lei
adjetiva no que respeita à intervenção processual da entidade coletiva como arguida no
processo penal”39.
35 A circular dita o seguinte a propósito da constituição das pessoas coletivas como arguidas: “1 – Nos casos em
que existam fundadas suspeitas da prática de factos ilícitos penalmente imputáveis a uma pessoa coletiva, os
Magistrados e Agentes do Ministério Público deverão instruir o órgão de polícia criminal, no qual deleguem
competência para a investigação ou a realização de diligências, no sentido de procederem à sua constituição
como arguida, através dos seus atuais representantes legais; 2 – O disposto no número anterior aplica -se ainda
no caso de ter sido declarada a insolvência da pessoa coletiva, mantendo -se, até ao encerramento da liquidação,
a representação legal nos termos estatutários. 3 – A constituição da pessoa coletiva como arguida não prejudica
a eventual constituição e interrogatório como arguidos dos representantes legais da pessoa coletiva que possam
ser pessoal e individualmente responsabilizados pelos factos que constituem objeto do inquérito.” Disponível
em https://www.ministeriopublico.pt/iframe/circulares.
36 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Processual Penal: Da Sociedade Internético -Personocêntrica,
p.211.
37 Cfr. SILVA, Germano Marques – A pessoa coletiva como arguida no processo penal.
38 Cfr. ANTUNES, Maria João – Processo Penal e Pessoa Coletiva Arguida; ANTUNES, Maria João – A representação
da pessoa coletiva arguida no processo penal. In MOUTINHO, José Lobo et al. Coordenação – Homenagem ao
Professor Doutor Germano Marques da Silva; MEIRELES, Mário Pedro – A responsabilidade penal das pessoas
coletivas ou entidades equiparadas na recente alteração ao Código Pela ditada pela Lei 59/2007, de 4 de setembro:
algumas notas; ANTUNES, Maria João – Direito Processual Penal. 3ª Edição.
39 SILVA, Germano Marques – A pessoa coletiva como arguida no processo penal, p.19.
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GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXII · Issue Fascículo 2 · 1st July Julho – 31st December Dezembro 2021 · pp. 75‑80 75
Questões Prementes do Direito Penal:
Brevereexão sobre o Direito Policial1
Pressing Criminal Law Issues:
Brief Reection on Police Law
BERNADETE LIMA DOMINGUES2
bernadetedomingues@yahoo.com.br
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXII · 1st July Julho–31ST December Dezembro 2021 · pp.7580
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXII.2.6
Submitted on November 10th, 2020 . Accepted on July 14th, 2021
Submetido em 10 de Novembro, 2020 . Aceite a 14 de Julho, 2021
RESUMO A Polícia exerce papel essencial e constitucional na defesa e garantia dos
direitos e liberdades fundamentais. A liberdade, direito natural e princípio constitucional,
é sobreposta à segurança, igualmente, tida como bem jurídico vital. Impõe -se buscar um
novo equibrio do Direito Penal, dentro da dimensão axiológica e teleológica da CRP, a
conjugar o imperativo da segurança com a consideração aos direitos fundamentais.
PALAVRAS -CHAVE Direito penal; Polícia; Direito Policial; Liberdade; Segurança.
ABSTRACT The Police play an essential and constitutional role in the defense and
guarantee of fundamental rights and freedoms. Freedom, a natural right and constitutional
principle, is superimposed on security, which is also considered a vital legal asset. It is
necessary to seek a new balance of Criminal Law, within the axiological and teleological
dimension of the CRP, to combine the imperative of security with the consideration of
fundamental rights.
KEYWORDS Criminal law; Police; Police Law; Freedom; Security.
1 Este artigo corresponde a um relatório científico da Unidade Curricular de Doutoramento em Direito – Direito: da
norma ao procedimento e à fase aplicativa – lecionada pelo Professor Doutor Manuel Monteiro Guedes Valente, em
2019, que mereceu alguns ajustes após o debate realizado em sala de aula.
2 Mestre e Licenciada em Direito. Frequentou o curso de doutoramento na Universidade Autónoma de Lisboa.
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Questões Prementes do Direito Penal: Breve reflexão sobre o Direito Policial
Pressing Criminal Law Issues: Brief Reflection on Police Law
BERNADETE LIMA DOMINGUES
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXII · Issue Fascículo 2 · 1st July Julho – 31st December Dezembro 2021 · pp. 75‑80
A Constituição da República Portuguesa de 19763 (doravante CRP) comporta uma
ordem ou sistema de valores, fruto de toda uma construção dogmática, de onde se per-
mite extrair sua identidade axiológica e todo o sistema de coordenadas ideológicas a ela
subjacentes. Em seu artigo inaugural, a CRP elege Portugal como uma República que se
baseia na dignidade da pessoa humana, nomeando cada ser humano como razão do Estado
e do Direito, “justificando o propósito de construção de uma sociedade globalmente mais
humana e solidária”4. No sentido de dignificar cada ser humano, a Lei Fundamental coloca
como pedra angular do sistema “os valores da liberdade, da justiça e da solidariedade”5.
A CRP funda -se em princípios humanistas que legitimam a intervenção penal,
destacando -se dentre eles o princípio da liberdade que se encontra assegurado em vários
dispositivos constitucionais6, sendo a liberdade consagrada como um direito natural, um
valor sagrado e ideal supremo, que busca proteger a livre ação do indivíduo e cidadão,
garantindo -lhe defesa e segurança erga omnes. O primado ganha maior destaque nomeada-
mente no Direito penal processual, porquanto instrumento de maior importância quando
da atuação dos atores sociais de intervenção (saúde e segurança pública), da justiça e da
Polícia, nomeadamente da Polícia judicria. Portanto, para fins de consecução dessa
tarefa estatal de defesa e garantia dos direitos e liberdades fundamentais, é a atividade da
Polícia que exerce papel essencial, não obstante a existência de outros importantes atores,
a exemplo do Ministério Público7.
O artigo 27º da CRP, n.º 1, assegura a todos o direito à liberdade e à segurança, nesta
ordem8. Conforme salienta G V9, tal estrutura normativa não é displicente,
porquanto quis mesmo o legislador constitucional garantir especificamente a liberdade
– seja como princípio, seja como direito – sobreposta à segurança. Igualmente se extrai
da alínea b) do artigo 9º, que cumpre ao Estado a tarefa constitucional de garantir os direi-
tos e as liberdades fundamentais, enquanto à Polícia cumpre, como missão constitucio-
3 O art. 2º da CRP consagra que Portugal é um Estado de direito democrático. CONSTITUIÇÃO da República Portu-
guesa. Diário da República, I Série. [Em linha]. N.º 86 (10 -04 -1976). Disponível em: https://dre.pt/web/guest/legislacao-
-consolidada/ -/lc/34520775/view.
4 A ideia de Direito reconduz -se a um Estado de direitos humanos” e “Os critérios teleológicos do projecto político
identificam -se com um Estado de Direito democrático”. OTERO, Paulo – Direito Constitucional Português. 1º v: Iden-
tidade Constitucional. Coimbra: Almedina, 2017. p.21 -23.
5 OTERO, Paulo – Op. Cit., p.31.
6 CONSTITUIÇÃO da República Portuguesa. Diário da República, I Série. [Em linha]. N.º 86 (10 -04 -1976). Disponível
em: https://dre.pt/web/guest/legislacao -consolidada/ -/lc/34520775/view.
7 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Teoria Geral do Direito Policial. 5ª Ed. Coimbra: Almedina, 2017, pp.38 -39 e 16.
8 CONSTITUIÇÃO da República Portuguesa. Diário da República, I Série. [Em linha]. N.º 86 (10 -04 -1976). Disponível
em: https://dre.pt/web/guest/legislacao -consolidada/ -/lc/34520775/view.
9 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Teoria Geral …. 5ª Ed., p.445.
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Questões Prementes do Direito Penal: Breve reflexão sobre o Direito Policial
Pressing Criminal Law Issues: Brief Reflection on Police Law
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nal, igualmente basilar, “garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos”10. Não
obstante a ideia prevalente de que segurança significa coacção ou restrição de direitos, a
noção correta é de que se trata de um “bem jurídico vital para garantia dos demais bens
jurídicos fundamentais da vida humana”11.
A Política criminal, considerada uma “ciência não jurídica teleologicamente orientada
para a prevenção criminal”12 (princípio ne peccetur), encontra seus fundamentos na Consti-
tuição Penal, e sua imporncia é acentuada na atividade preventiva e repressiva exercida
pelos atores da justiça criminal13. Cumpre a ela definir os limites da punibilidade (define
o se e o como), revelando -se como “padrão crítico tanto do direito constituído como do
direito constituendo, dos seus limites e da sua legitimação”14.
É de se observar que, sob a ótica contemporânea do Direito, inexistem diferenças
entre o Direito Público e Direito Privado, considerando que normas do primeiro simul-
taneamente tutelam normas do segundo, podendo ambas serem executadas pela Polícia.
É que ambas as normas fazem parte das atividades de Polícia (jurídico -administrativa e
jurídico -criminal policial)15. Guedes Valente defende a sistematização do Direito Policial e
a sua inserção nas Ciências Jurídicas como ramo do Direito Público.16 Não obstante a acção
penal residir fora da esfera da liberdade, a CRP resguarda e protege os direitos, liberdades
e garantias fundamentais ao longo do processo de investigação criminal, sendo a norma
diretamente aplicável e com força vinculante às entidades públicas e privadas17.
O Direito penal do ser humano, que afirma a dignidade da pessoa humana, como “fim
e limite de toda ação do Estado”18 e como sustentáculo da justiça, resulta do Estado de
Direito e do Estado Democrático: o Estado que se alinha aos direitos e garantias funda-
10 Assim dispõe o art. 272º da CRP sobre as funções da Polícia. CONSTITUIÇÃO da República Portuguesa. Diá-
rio da República, I Série. [Em linha]. N.º 86 (10 -04 -1976). Disponível em https://dre.pt/web/guest/legislacao-
-consolidada/ -/lc/34520775/view
11 Essa é uma “visão humanista e humanizante” da segurança. VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Teoria Geral
. 5ª Ed., pp.121 -122.
12 O Direito Penal é uma ciência global ou conjunta que reúne várias outras ciências consideradas autônomas,
como é o caso da Política criminal. VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal: Fundamentos Político-
-Criminais. Lisboa: Manuel Monteiro Guedes Valente, 2017. 284p. p.21
13 Destacam -se como atores a Polícia e o Ministério Público. VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal:
Fundamentos…, p. 17.
14 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal: Fundamentos …, p. 124.
15 Cfr. n.1. do art. 18º da CONSTITUIÇÃO da República Portuguesa. Diário da República, I Série. [Em linha]. N.º 86
(10 -04 -1976). Disponível em https://dre.pt/web/guest/legislacao -consolidada/ -/lc/34520775/view
16 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Teoria Geral …. 5ª Ed., pp.38 -39.
17 Necessário delimitar os grupos de normas jurídicas, seu campo de aplicação, para averiguar a atuação da Polícia
no caso concreto. Há atuações da Polícia que podem gerar responsabilidade civil, por exemplo. VALENTE, Ma-
nuel Monteiro Guedes – Teoria Geral …. 5ª Ed., pp.43 -44.
18 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal do Inimigo e o Terrorismo: O Progresso ao Retrocesso. 3ª ed. Por-
tuguesa. Coimbra: Almedina, 2019, p. 76.
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Questões Prementes do Direito Penal: Breve reflexão sobre o Direito Policial
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mentais do cidadão, porquanto é o Direito penal a ultima et extrema ratio, cujo objetivo
primário é o de equilibrar e limitar a ação punitiva descomedida do Estado. Contudo, a
hiper -criminalização ocorrida nos últimos tempos, resultado do terrorismo, dentre outros,
levou o Direito penal a adquirir uma envergadura tal que esse equibrio está em perigo de
desaparecer19. Isso posto, impõe -se hoje uma obrigação aos operadores do Direito de bus-
car um novo equilíbrio, de maneira a conjugar o imperativo de segurança nacional com a
consideração aos direitos fundamentais.
Essa hiper -criminalização que provoca uma crise no sistema penal é decorrente, mas
não somente disso, da sociedade de risco de que trata Ulrich Beck20 tendente a dissemi-
nar o medo e o terror, gerando a desconfiança do cidadão frente ao Direito penal. O que
se percebe é uma forte inclinação securitária do Direito penal, com consequente reforço
dos poderes e competências da Polícia. Essa mudança de paradigma ocorrida levanta a
seguinte questão: que Direito penal (material, processual e penitenciário) se quer ter? E
onde está o “calcanhar de Aquiles” que levou à situação atual? Esta, por acaso, na lei
penal ou na hermenêutica, quem sabe na atuação das polícias ou do Ministério Público, na
reação da sociedade frente aos riscos, ou na presença ou ausência excessiva do Estado?21.
Considerando que o “Direito tem a incumbência de preservar a identidade axiológica
do sistema social”, porquanto é ele “o reflexo do pensar cultural de um povo”22 e que ordem
jurídica nada mais é do que resultado e a representação da estrutura cognitiva da socie-
dade em face dos valores morais e éticos, bem como dos costumes e da visão dos problemas
que a abarcam, o legislador tem o dever de acompanhar a evolução natural da sociedade
e modificar a legislação no que preciso for. Contudo, defende Guedes Valente que “esses
valores morais não podem ser a medula legitimadora e fundante da intervenção penal”23,
sob pena de o Direito penal perder sua primordial função de equilíbrio.
O legislador deve se ater à Constituição, porquanto a ela cumpre determinar os crité-
rios de seleção quanto ao bem jurídico a ser resguardado pela norma penal, sendo certo
19 Houve uma “mudança de paradigma” do Direito penal material, processual e penitenciário. No domínio do DP
material, apontam -se “o aumento da moldura abstrata das penas, ampliação do âmbito da punibilidade dos atos
preparatórios e dos atos de execução, aumento dos tipos legais de perigo abstrato”; no âmbito do processual,
apontam -se a “diminuição das garantias processuais penais, aumento das competências policiais criminais sem
prévio controlo e autorização das autoridade judiciárias”, bem como do Direito penal penitenciário, com a “trans-
formação das penas de prisão em medidas de segurança privativas de liberdade por tempo indeterminado.
VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal Inimigo e o Terrorismo. 3.ª Ed., pp.86 -87.
20 BECK, Ulrich – Sociedade de risco mundial: em busca da segurança perdida. Lisboa: Edições 70, 2016.
21 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal do Inimigo e o Terrorismo…. 3.ª Ed., p. 8.
22 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Consumo de Drogas: Reflexões sobre o Quadro Legal. 7ª Ed. Coimbra: Alme-
dina, 2019, p. 38.
23 A norma penal somente pode intervir como ultima ratio, máxima ligada ao princípio in dubio pro libertate, que
impõe provar se a tutela da norma penal é necessária. A Intervenção penal requer análise dos critérios de subsi-
diariedade. VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Consumo de Drogas…. 7.ª Ed., p. 57.
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que não é qualquer moral que se torna bem jurídico a proteger. Considerando ser a inter-
venção penal uma excepcionalidade, a conduta humana somente pode ser incriminada
quando os demais instrumentos do âmbito civil e administrativo já tiverem sido aplica-
dos. Tome -se, como exemplo, o consumo de drogas. A criminalização da conduta de consu-
mir drogas não se pode dar com base em critérios morais. Cabe inclusive questionar se ao
Direito penal é legítimo intervir no consumo de drogas, considerando o direito da pessoa
de dispor do próprio corpo.24 Não é objetivo aqui discorrer contra ou favor da criminaliza-
ção do consumo de drogas, mas tão -só levantar discretamente um véu sobre a questão da
legitimidade do Direito penal, quando este intervém na esfera da liberdade do ser humano
e igualmente trazer à reflexão o papel do legislador na formulação da política criminal.
É que a Justiça tem como escopo garantir a liberdade, conforme dito, sendo igualmente
certo que à Política criminal cumpre concretizar o princípio por meio de ações estatais,
preventiva e repressiva, próprias de um Direito penal material, processual e penitencrio,
garantista e humanista. Disso resulta o equibrio do Direito penal. A lógica constitucional
é o de respeitar o princípio da não violência, dentre outros, que se pauta na justiça, nos
valores democráticos e no modelo garantista25.
Os princípios da política criminal são axiomáticos e devem reger todas as ações da
Polícia, tanto a preventiva como a penal. É a denominada “política criminal do Ser Huma-
no”26, assentada em quatro princípios constitucionais que a legitimam, tais sejam: i) da
legalidade, ii) da culpabilidade, iii) da humanidade, iv) da recuperação ou ressocialização
ou do tratamento. Daí dizer que é a política criminal que dita o se e o como do Direito
penal, devendo tanto a decisão de criminalizar ou não certa conduta guardar inteira con-
sonância com a dimensão axiológica e teleológica constitucional.
Voltando ao exemplo do combate à droga, o princípio da prevenção vem consagrado
no RCM 46/99 que aprova a Estratégia Nacional de Luta contra a Droga27, segundo o qual
24 A Lei nº 30/2000, sobre a Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga (ENLCD), em seu art. 2º, descriminaliza a
aquisição e a detenção e posse de estupefacientes (drogas) para consumo privado, e dispõe que a conduta consti-
tui contra -ordenação. LEI Nº 30/2000. Diário da República. I -A Série. [Em linha]. Nº 276 (29 -11 -2000), Disponível
em: https://dre.pt/web/guest/legislacao -consolidada/ -/lc/34545875/view?w=2011 -11 -30.
25 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal: Fundamentos…. pp.25 -27.
26 Uma “Teoria Geral do Direito Policial” é defendida por Guedes Valente, significando, em linhas gerais, a existên-
cia de uma Teoria Geral incidente sobre o “Direito de Polícia ou Direito Policial em sentido estrito, ou seja, aquele
que confere legalidade e legitimidade às suas acções desenvolvidas para materialização da sua tarefa”. É parte da
Teoria Geral do Direito em sentido lato, não podendo se afastar dos “princípios gerais do direito, dos princípios
gerais de cada ramo do direito, do direito positivado (supraconstitucional, constitucional e infraconstitucional),
da jurisprudência e da doutrina. VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Teoria Geral …. 5ª Ed., pp.33 -35.
27 Cabe destacar que a RCM é de convicção humanista e pragmática que propõe o combate ao tráfico ilícito de dro-
gas ao branqueamento de capitais. RESOLUÇÃO do Conselho de Ministros nº 46/99. Diário da República, I -B Sé-
rie. [Em linha]. Nº 122 (26 -05 -1999), p.2972 -3029. Disponível em: https://data.dre.pt/eli/resolconsmin/46/1999/05/26/p/
dre/pt/html.
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se deve evitar, primeiramente, que o perigo das drogas se transforme em risco e conse-
quente dano àqueles que seguirem o caminho das drogas. E a prevenção especial28 ocorre
em outro momento, tal seja, quando o já denominado toxicodependente decide pelo trata-
mento. Vale ressaltar que o legislador optou pela descriminalização29 e não despenalização
do consumo, escolheu a via teleológica da prevenção, de caráter humanista e programá-
tica, que requer dos atores da política criminal, bem como da sociedade como um todo, ati-
tudes que proporcionem resultados práticos positivos e inovadores, que levem ao mesmo
tempo ao combate à droga e à preservação da dignidade da pessoa humana.
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Edições, 2018. ISBN 978 -972 -8973 -51 -3.
28 A prevenção especial consiste em suspensão provisória do processo, com a ocorrência do tratamento do toxi-
codependente. LEI Nº 30/2000. Diário da República. I -A Série. [Em linha]. Nº 276 (29 -11 -2000), Disponível em:
https://dre.pt/web/guest/legislacao -consolidada/ -/lc/34545875/view?w=2011 -11 -30.
29 A rigor, trata -se de descriminalização em sentido técnico e estrito, porquanto não se trata da despenalização
da conduta de consumir, lembra Manuel Valente. O consumo de drogas passou a ser considerado um ilícito de
mera ordenação social e não mais um crime. VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Consumo de Drogas…. 7
Ed., p. 35.
RECENSÕES
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Recensão Crítica da Obra «Perda das Vantagens do crime no direito
penal. Confisco alargado e confisco sem condenação»
Critical review of the book «Loss of the advantages of crime in criminal law.
Extended confiscation and confiscation without conviction»
1 Mestranda em Direito, especialidade em Ciências Jurídicas, e Licenciada em Direito pela Universidade Autónoma
de Lisboa.
MARIA DA GRA ESTEVES1
graca.a.esteves@gmail.com
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXII · 1st July Julho–31ST December Dezembro 2021 · pp.8388
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXII.2.1.01
Submitted on June 22th, 2021 . Accepted on July 16th, 2021
Submetido em 22 de Junho, 2021 . Aceite a 16 de Julho, 2021
Esta recensão crítica tem como objeto de
sua alise a obra organizada por Adriano
Teixeira, publicada em São Paulo, no ano
de 2020, pela editora Marcial Pons e intitu-
lada Perda das vantagens do crime no Direito
Penal: confisco alargado e consco sem con-
denação, cuja tradução dos textos em lín-
gua não portuguesa incumbiu a Tatiana
Badaró e Rinuccia Faria La Ruina.
A obra em comento, dedicada a apre-
sentar e aprofundar a temática do confisco
de bens provenientes do crime e a recupe-
ração de ativos por parte do Estado, está
estruturada na exposição de sete artigos
de distintos intelectuais origirios de
variados países – Alemanha, Brasil, Espa-
nha, Estados Unidos da América, Itália,
Inglaterra e Portugal –, precedidos de uma
breve apresentação realizada pelo próprio
organizador da obra: Adriano Teixeira.
Nesta apresentação, além de uma
sucinta exposição de elementos de ordem
teórico -conceituais, pode verificar -se que
a obra organizada por Teixeira (2020),
ao propor uma inserção teórica relacio-
nada ao tema do confisco de bens à luz do
Direito Penal, pretende, não raro, inserir-
-se, de um lado, no debate internacional
da temática, oportunizando -se, de outro
lado, nomeadamente aos leitores, em
especial brasileiros, a sua apresentação,
tanto no debate jurídico -penal pátrio –
recentemente modificado com a inovação
trazida pela Lei nº 13.964/2019 (chamada
comumente de “Lei Anticrime”), a acrescer
o art. 91º -A ao Código Penal brasileiro, nor-
matizando o confisco alargado – quanto no
debate internacional, objecto de escrutínio
nos artigos dos juristas internacionais que
enriquecem a obra (Teixeira, 2020: 10 -11).
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Neste diapasão, tocou inicialmente
a Rodrigo Sánchez Rios e a Victor Cezar
Rodrigues a tarefa de refletir sobre a rea-
lidade brasileira no artigo inaugural da
obra em comento, no qual os autores se
valem precisamente daquela alteração
outorgada pela Lei nº 13.964/2019 para ava-
liar aspectos gerais a respeito do confisco
alargado, conforme prescrição do art. 91 -
-A, especialmente no que toca a) o contexto
fático da sua incorporação no ordenamento
jurídico -penal brasileiro, b) a brevíssima
exposição deste instituto na experiência
comparada, em especial a sua evolução na
Europa, c) a natureza jurídica do confisco –
tema, ademais, fulcral na maioria dos arti-
gos que avançam na temática ao longo da
obra, d) a compatibilidade entre o confisco
alargado e o ordenamento jurídico bra-
sileiro, e e) as avalições críticas a respeito
deste confisco alargado na experiência
brasileira à luz da apreciação do art. 91 -
-A do Código Penal vigente (Rios & Rodri-
gues, 2020).
Notemos, contudo, que tanto a apre-
ciação do tema do confisco na experiên-
cia internacional, quanto à sua avaliação
crítica no ordenamento jurídico -penal
brasileiro, parecem -nos demasiado intro-
dutória e geral, especialmente no caso
desta última, ao tomar, por exemplo, que
o § 2º do art. 91.º -A inserido no Código
Penal brasileiro se encontra em flagrante
invero do ônus da prova, ao facultar ao
condenado a prerrogativa de demonstrar
a inexistência de incompatibilidade ou a
procedência lícita do seu patrimônio, sem
que, no entanto, esta constatação mereça
maior aprofundamento crítico por parte
dos autores brasileiros (Rios & Rodrigues,
2020: 33).
A primeira insuficiência que indica-
mos, porém, não parece ser problema de
maior envergadura, dado que os demais
artigos colacionados na obra em comento,
frutos da reflexão generosa de intelec-
tuais de Portugal, Espanha, Itália, Alema-
nha, Inglaterra e Estados Unidos, pare-
cem servir justamente para condensar a
experiência comparada sobre a matéria,
oportunizando -se, no caso do leitor bra-
sileiro, um vasto panorama útil antes
de confrontar tais realidades com o caso
nacional; a segunda questão indicada, ade-
mais, acha -se superada, dentre outros, ao
nosso sentir, no artigo subsquente, apre-
sentado no texto do jurista português,
Manuel Monteiro Guedes Valente.
Manuel Guedes Valente avança para
o exame crítico da evolução do regime de
perda de bens em Portugal, assentando
olhar atento à Lei n.º 30/2017, de 30 de maio,
a agregar disposições da Diretiva 2014/42/
UE do Parlamento Europeu e do Conse-
lho sobre o congelamento e a perda dos
instrumentos e produtos do crime, que, a
rigor, «ampliou o âmbito ou o catálogo de
tipos legais de crime que admite o regime
especial da perda alargada» (Valente,
2020: 43).
Destacamos, da análise crítica de Gue-
des Valente, a capacidade do autor em supe-
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rar o horizonte imediatista que, por ventura,
possa informar a evolução, a ampliação e o
aprofundamento da perda das vantagens,
produtos e instrumentos apreendidos ou
arrestados em processo -crime, «face a uma
nova matemática sistémica emergente de
uma cognitividade de perigos e de riscos,
a serem enfrentados pelo Direito Penal,
quando confrontada com as funções do
Direito penal» (Valente, 2020: 37). A pro-
teção de bens jurídicos, continua Valente
(2020), reclama equilíbrio entre a sua efe-
tividade e a proteção do agente criminoso
contra o manancial persecutório e puni-
tivo do Estado2. Neste condão, mais que
restringir -se à apreciação crítica da evolu-
ção do instituto na realidade portuguesa, o
autor trava importantes considerações que
servem para elucidar os desafios vindou-
ros em matéria de política -criminal neste
tempo histórico; destas considerações,
chamou -nos atenção o exame daquilo que
o autor denominou como uma «tetralo-
gia de princípios normativos» específi-
cos (Valente, 2020: 53) determinantes da
perda alargada, iniciado no item 4.1 do seu
artigo. As conclusões do jurista português-
demonstram uma cautela necessária para
que os novos instrumentos de constrição
patrimonial, normatizados como resposta
à criminalidade reditícia, às organizações
criminosas transfronteiriças e aos crimes
económico -financeiros, não atropelem os
2 Na linha do que defende quanto às funções do Direito penal – garantia, segurança, coesão social e equilíbrio
(V  131 -138).
3 Tradução do espanhol nossa.
pilares do Estado Democrático de Direito,
encerra seu contributo de forma louvável,
deixando espaço para novas investiga-
ções que, naquele artigo, não puderam ser
escrutinadas.
De maneira bastante didática, Isidoro
Blanco Cordero inicia o terceiro artigo jun-
tado na obra em comento, a dedicar -se ao
exame do confisco de bens à luz do Código
Penal espanhol, especialmente através
da alise da transposição da Diretiva
2014/42/UE, a balizar a reforma de 2015
e a introduzir distintas modalidades de
confisco alargado no ordenamento jurídico-
-penal da Espanha.
A cooperação internacional na matéria
tratada constitui, segundo Blanco Cordero
(2020), um importante pilar da política
criminal da União Europeia, no intento
de lutar contra os delitos cometidos com
o desígnio de obter vantagens económi-
cas. A Diretiva 2014/42/UE marca, neste
sentido, «os esforços da UE para aproxi-
mar o Direito penal substantivo e facili-
tar desta maneira à cooperação penal no
espaço europeu» (Blanco Cordero, 2020:
763). Ainda neste diapasão, vê -se que a
necessidade de atender compromissos inter-
nacionais fora levantada pelo legislador
espanhol como fundamento a justificar a
reforma ocorrida em 2015 no Código Penal,
visando transpor a política criminal euro-
peia em matéria de confisco ao ordena-
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RECENSÕES
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GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXII · Issue Fascículo 2 · 1st July Julho – 31st December Dezembro 2021 · pp. 83‑88
mento jurídico nacional ( Blanco Cordero,
2020: 79). A partir de então, o autor reali-
zará um escrutínio das distintas formas
de confisco introduzidas no ordenamento
jurídico -penal espanhol, desde o decomiso
ampliado, dividido em decomiso ampliado
sico, do art. 127.º bis e o decomiso ampliado
reforzado, arts. 127.º quinquies e 127.º sexies
CP (Blanco Cordero, 2020: 108); passando
pelo decomiso sin condena, do art. 127.º CP;
e desaguando, por último, no decomiso de
terceros, art. 127.º quáter CP, incorporado
no bojo da Lei Orgânica 1/2015, de 30 de
março, de forma a atender a prescrição
exposta no art. 6º da Diretiva 2014/42/UE.
O artigo de Francesco Viganó trata
do confisco “de prevenção”, disposto no art.
24.º do Código Antimáfia italiano, à luz de
uma rigorosa análise constitucional e
convencional, tendo como fundamentos
teóricos -jurídicos [a)] a jurisprudência do
Tribunal Europeu de Direitos Humanos
(TEDH) e [b)] a experiência americana do
civil forfeiture (Teixeira, 2020: 14), oferece-
-nos, a exemplo dos trabalhos anteriores,
importantes ponderações sobre os limites,
a natureza e a aplicação daquela forma de
confisco na realidade material daquele
país que, no entanto, servem ao aprofun-
damento da matéria em termos gerais.
Compreender qual é, anal, a ver-
dadeira natureza jurídica do confisco de
“prevenção”, nos termos do art. 24.º do
Código Antia italiano, transforma -se
num dos principais objetivos da contri-
buição de Viganó (2020). Compreendê -la,
adverte o autor, não se restringe a mera
questão teórica, pois, em última instância,
«reconhecer ao confisco em questão uma
natureza substancial de pena significa,
ao mesmo tempo, afirmar que a sua pre-
visão normativa e a sua aplicação no caso
concreto devem submeter -se às garantias
que a Convenção Europeia dos Direitos
Humanos (CEDH) e, antes disso, a pró-
pria Constituição estabelecem em matéria
penal» (Viganó, 2020: 154), com todo rol
de consequências que esta subordinação
implicaria.
A garantia dos direitos fundamentais
dos sujeitos atingidos pela intensa carga
repressiva do confisco – e de demais medi-
das de constrição patrimonial – deve ser
observada, na perspectiva do intelectual
italiano, com rigor; o sucesso obtido por
tais medidas, cada vez mais utilizadas
no contexto da política criminal italiana,
não pode servir de óbice à designação do
estatuto de garantias, constitucionais e
convencionais, aplicáveis ao confisco “de
prevenção”, de forma que a sua rotulação,
falsa segundo o autor, enquanto medida
de prevenção não lhe permite assegurar
(Viganó, 2020: 183 -184).
Ao reescrever -se estruturalmente as
questões relativas ao confisco de bens na
realidade alemã, através da aprovação, em
abril de 2017, da nova lei sobre a reforma de
confisco penal de propriedade, abre -se uma
janela de reflexões acerca de questões
como (i) o locus jurídico e dogmático do con-
fisco – se atinente ao âmbito civil, penal
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ou administrativo; (ii) a extensão deste con-
fisco; e (iii) os limites constitucionais, seja do
confisco alargado, seja do confisco autônomo,
isto é, o confisco não baseado em uma con-
denação; conjunto de questões que, com
rigor, serão avançadas no artigo de Frank
Saliger.
A realidade alemã, a exemplo dos
demais países apresentados ao longo da
obra em comento, atravessada por este
forte movimento do direito que regula a
perda de propriedade, centra -se diante de
contradições jurídicas e doutririas, das
quais o artigo de Saliger (2020) procura
dar algumas respostas. Daquelas que nos
sobressaem à vista, destacamos a com-
preensão de que o confisco deve situar -se
nos fundamentos do direito penal, o que, por
sua vez, encaminha conclusões críticas do
autor: a primeira, a respeito da inconstitu-
cionalidade da ampliação do rol de delitos-
-base alcançados pelo confisco alargado a
todos os tipos penais; a segunda, sobre a
necessidade de se atentar se, do conjunto
daquela reforma do confisco penal, não
se extrai uma tendência para utilizar o
processo penal como instrumento fiscal-
-arrecadatório4.
Os dois últimos trabalhos expostos na
obra em comento estão dedicados à apro-
ximação da matéria através do Common
Law que, já na sua apresentação, Adriano
4 Apenas para fins de reflexão sobre as ponderações de Saliger (2020: 216), deixamos o sítio oficial do Ministério
Público Federal brasileiro, reservado a divulgar os resultados, inclusive patrimoniais, obtidos com a assim cha-
mada Operação Lava -Jato. Disponível em: «http://www.mpf.mp.br/grandes -casos/lava -jato/resultados». Acesso em: 01
de julho de 2021.
Teixeira (2020) alerta sobre sua influência
cada vez mais sensível na temática do con-
fisco de bens provenientes de crime.
Deste modo, Peter Alldridge, da Ingla-
terra, oferece -nos o exame da evolução e
aplicação do Proceeds of Crime Act, de 2002
(POCA), trazendo à colação a análise de
casos concretos, a reflexão a partir de
questões como as implicações da tributa-
ção, a recuperação civil, os balanços con-
beis que, adiante, serão confrontadas com
aspectos de cunho probatório no processo
de confisco de bens provenientes do crime,
para, ao final, mostrar -se pouco reticente
quanto às possíveis controvérsias involu-
cras na matéria (Alldridge, 2020).
O último artigo apresentado, de Ste-
fan D. Cassella, avalia a perspectiva esta-
dunidense de recuperação de produtos de
crime em processos criminais e proces-
sos não baseados em condenação, tendo a
questão da criminalidade transfronteiriça
e a alegada dificuldade dos Estados Unidos
de alcançar ativos transferidos para além
das fronteiras nacionais como núcleo ana-
lítico (Cassella, 2020).
Julgamos que a obra orgnaizada por
Adriano Teixeira (2020), ao dar -nos a possi-
bilidade de nos defrontarmos com contri-
butos de intelectuais a abordar a temática
não só a partir de distintos países, reali-
dades ou ordenamentos jurídico -penais,
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mas, em especial, através de perspectivas
que, por vezes, parecem divergir quanto à
matéria e alguns dos seus pontos que sus-
citam maior polêmica, consegue, a um só
tempo, condensar uma apresentação atra-
vés de rigorosas análises e suscitar outras
divergências que, de um lado, enriquecem
o trabalho apresentado, ao mesmo tempo
que, de outro, fazem avançar o debate espe-
cializado e crítico em torno da temática.
Parece -nos, também, bem delimitada
na obra em questão – em alguns auto-
res (Blanco Cordero, 2020; Saliger, 2020;
Valente, 2020), noutros menos (Alldridge,
2020; Rios & Rodrigues, 2020) – que, muito
embora a realidade material pareça impor
formas mais aptas de sustar os crimes
económico -financeiros, as organizações
criminosas transnacionais e a crimina-
lidade reditícia, não se torna viável faze-
-lo distante de uma rigorosa obserncia
dos direitos e garantias fundamentais que,
em última insncia, estruturam o Estado
Democrático de Direito, sob pena dos fins
passarem a justificar os meios empregados,
como acertadamente, ao nosso sentir, con-
cluiu Valente (2020).
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Paulo: Marcial Pons.
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São Paulo : Marcial Pons.
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condenação. São Paulo: Marcial Pons .
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vantagens do crime no Direito Penal: confisco
alargado e confisco sem condenão (pp. 35 -72).
São Paulo: Marcial Pons.
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Viganó, F. (2020). Reflexões sobre o Estatuto
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“de prevenção” no ordenamento italiano. Em
A. Teixeira, Perdas das vantagens do crime no
Direito Penal: confisco alargado e consco sem
condenação (pp. 151 -184). São Paulo: Marcial
Pons.