REVISTA
DEDIREITO
EECONOMIA
ISSUE 2·1
ST
JULY–31
TH
DECEMBER·FASCÍCULO 2·1 DE JULHO–31 DE DEZEMBRO 2020
VOLUME XXI
e‑ISSN 2184‑1845
OPEN ACCESS · LIVRE ACESSO
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA
VOLUME XXI · Issue 2 · 1
st
July–31
st
December 2020
Semiannual Publication. Scientic Journal of the Ratio Legis–Centro de Investigação e De-
senvolvimento em Ciências Jurídicas from the Universidade Autónoma de Lisboa–Luís de
Camões.
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Repositório Cientíco de Acesso Aberto de Portugal (RCAAP).
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Repositório Institucional da Universidade Autónoma de Lisboa (Camões).
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA
VOLUME XXI · Fascículo 2 · 1 de julho–31 de dezembro 2020
Publicação semestral. Revista Cientíca do Ratio Legis–Centro de Investigação e Desenvolvi-
mento em Ciências Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa–Luís de Camões.
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E ‑ISSN 2184 ‑1845
DOI https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.2
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TITLE TÍTULO Galileu–Revista de Direito e Economia
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Vasco Branco Guimarães
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Índice Index
6 Editorial Editorial
RUBEN BAHAMONDE
7 A doutrina da norma completa de Hans Kelsen The Doctrine of Hans Kelsen’s CompleteStandard
JOSÉ JOAQUIM MONTEIRO RAMOS
25 A relevância da epistemologia do ilícito para a proteção de bens jurídicos e a efetividade
doprincípio ne bis in idem
The relevance of the illegal epistemology for the protection of legal
assets and the eectiveness of the ne bis in idem priciple
SANDRO LÚCIO DEZAN
46 O paradigma indiciário na era da informação: os desafios semióticos do processo penal The
indiciary paradigm in the information era: thesemioticchallenges of the criminal process
ELIOMAR DA SILVA PEREIRA
57 Proibição do recurso à força e legítima defesa antiterrorista: legado normativo do combate
ao estado islâmico (ISIS) Prohibition of the use of force and self‑defense against terrorsim:
normative legacy of fighting the islamic state (ISIS)
FELIPE AUGUSTO LOPES CARVALHO
77 Cooperação judicial em matéria criminal nomercosul: reconhecimento mútuo emodelohorizontal
de cooperação Judicial cooperation in criminal matters in mercosur: mutual recognition and
horizontal model of cooperation
NEREU JOSÉ GIACOMOLLI, CAÍQUE RIBEIRO GALÍCIA
95 Paridade e género: uma nova igualdadenodesporto Parity and gender: a new equality in sport
PATRÍCIA CARDOSO DIAS
RECENSÕES
REVIEWS
145 Apresentação do livro «A Cadeia de Custódia da Prova no Processo Penal» de geraldo
prado Presentation of the book «The Test Custody Chain in the Criminal Process» by geraldo
prado
MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE
5
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 2 · 1
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July Julho – 31
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December Dezembro 2020 · pp. 6 6
Editorial Editorial
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
July Julho–31
st
December Dezembro 2020 · pp. 6
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.2.1.1
Continuamos a nossa caminhada com a apresentação deste novo número onde perma-
necemos fiéis à apresentação de trabalhos de investigação provenientes de investigado-
res de diversas origens e graus, resultando esta pluralidade da seleção dos trabalhos mais
atuais e pertinentes no atual panorama jurídico.
Agradecemos todos os contributos dos autores cujos trabalhos são alvo da presente
publicação, estendendo um novo convite a todos aqueles que queiram contribuir com os
seus trabalhos, originais, inéditos e relevantes, nos próximos números da revista Galileu.
O contexto de pandemia imperante nos últimos tempos tem avalado muitos ânimos,
mas congratulamo-nos por verificar que não gerou desídia na comunidade científica, que
continua a desenvolver trabalhos de investigação tao interessantes e pertinentes como os
que ora se publicam.
Um muito obrigado para todos os nossos colaboradores e um bem hajam para os lei-
tores!
O Diretor da Galileu
Ruben Bahamonde Delgado
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 2 · 1
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December Dezembro 2020 · pp. 7‑24 7
A doutrina da norma completa de Hans Kelsen
The Doctrine of Hans Kelsens CompleteStandard
JOSÉ JOAQUIM MONTEIRO RAMOS*
1
jose.j.ramos@mpublico.org.pt
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
July Julho–31
ST
December Dezembro 2020 · pp. 7‑24
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.2.1
Submitted on September 22
th
, 2020 · Accepted on November 10
th
, 2020
Submetido em 22 de setembro 2020 · Aceite a 10 de novembro, 2020
SUMÁRIO Introdução 1. Características do Sistema Normativo 1.1. A Teoria da Estrutura
Escalonada do Direito 1.2. O Sistema Jurídico Como Ordem Normativa Dotada de Coação
2. Norma Completa 3. Norma Completa e Nomoestática/Nomodinâmica Síntese e
considerações finais.
PALAVRASCHAVE normatividade, estrutura escalonada, coacção, norma completa.
SUMARRY Introduction 1. Characteristics of the Normative System 1.1. The Theory of
Staggered Structure of Law 1.2. The Legal System as a Normative Order with Coercion 2.
Complete Standard 3. Complete Standard and staticrule/dinamicrule Summary and final
considerations.
KEYWORDS normativity, staggered structure, coercion, complete norm.
* Procurador da República. Mestre em Direito. Doutorando pela Universidade Autónoma de Lisboa. Professor con-
vidado da Universidade Autónoma de Lisboa.
8
A doutrina da norma completa de Hans Kelsen
JOSÉ JOAQUIM MONTEIRO RAMOS
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I. Introdução
Logo no início da sua mais conhecida e emblemática obra Hans Kelsen deixa bem escla-
recido o seu desiderato científico o qual motivou a larga maioria dos seus estudos
1
e que
o mesmo identifica como a indagação do objecto do Direito, na sua dimensão de jurispru-
dência analítica, em termos tais que procurará responder apenas à questão de ”o que é e
como é o direito”
2
. Essa finalidade importa, para Kelsen, a assunção de um princípio meto-
dológico de pureza na construção dogmático-jurídica impondo o afastamento de tudo o
que se possa confundir com o objecto do Direito, mas que summo rigore lhe é estranho,
como são a sociologia, a psicologia e as valorações decorrentes da ética e da teoria política
3
.
Os actos humanos não são de per si fenómenos jurídicos uma vez que só assumem tal
relevância se e quando uma norma jurídica o determinar, razão pela qual entre o acto con-
creto praticado por determinado indivíduo e o seu relevo jurídico, está a norma de Direito
que lhe dá significação jurídica. A norma opera, pois, como meio interpretativo de actos
humanos conferindo-lhes a qualidade de jurídico (ou antijurídico)
4
. A norma que atribui ao
acto humano um sentido jurídico é, ela própria, gerada por outro acto humano que recebe
a sua significação jurídica de outra norma, o que importa a verificação que a juridicidade
não é circunstância perceptível pelos sentidos, mas que apenas se alcança por operações
de matriz intelectual concretizáveis pela concatenação entre o facto e a previsão da norma
jurídica eventualmente aplicável
5
(juízo de subsunção).
Do exposto decorre que o objecto da ciência do Direito não são factos, mas normas, as
quais são integrantes e constituintes de um sistema
6
o qual especificam como normológico.
1 Apesar de Hans Kelsen ficar conhecido como o autor da Teoria Pura do Direito a qual se pode sintetizar em quatro
teorias ou doutrinas (normatividade ideal do Direito, norma fundamental, estrutura escalonada do Direito e a
norma completa), a sua obra é muito mais ampla e profunda, v. g., a teoria monista com primado do direito interna-
cional e a questão do controlo/fiscalização da constitucionalidade das leis, que levantou acesso debate com Carl
Schmitt. Sobre o debate entre estes dois “gigantes do Sec. XX”, C P F – Repensar o Direito
– Um Manual de Filosofia Jurídica. Lisboa: INCM – 2013.
2 K H– Teoria Pura do Direito: 2.ª edição (1960). Tradução da 7.ª edição alemã de João Baptista Machado. ,
Coimbra: Almedina – 2008, p.1. Do mesmo modo, já em 1911, na sua tese de habilitação, Hauptprobleme der Staas-
rechtslehre, entwickelt aus der Lehre vom Rechtssatze, Tübigen – 1911, Hans Kelsen afirmara que o seu objectivo se
centrava na purificação epistemológica do direito, mormente no seu método.
3 K H – Teoria Pura do Direito …, p.1.
4 K H – Teoria Pura do Direito …, p.2.
5 K H – Teoria Pura do Direito …, p.2.
6 Claus Wilhelm Canaris critica a concepção pura do sistema normativo em Kelsen, bem como todos os sistemas
assim entendidos, por entender que se referem a qualquer ordem jurídica considerável em abstracto, o que é
irreal uma vez que a unidade valorativa é sempre material e só é susceptível de realização numa dada ordem
jurídica histórica determinada, C C W – Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência
do Direito. 2.ª Edição. Tradução de António Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p.27.
O próprio Kelsen, em carta datada de 3 de Agosto de 1933 e dirigida a Renato Treves, assume que a Teoria Pura do
Direito toma como ponto de partida o sistema jurídico (epístola transcrita por Stanley Paulson e Bonnie Paulson
Normativity and Norms, Critical Perspectives on Kelsen Themes, Oxford,1998, pp.169 a 175).
9
A doutrina da norma completa de Hans Kelsen
JOSÉ JOAQUIM MONTEIRO RAMOS
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O Direito tem, pois, a característica da ideal normatividade e, como fenómeno exclusivonor-
mativo
7
, está limitado pela lei de Hume
8
, importando que ser e dever ser são categorias distintas
e independentes entre si, estando separados, segundo o nosso autor, por um “abismo intrans-
ponível”
9
. A norma é o único critério de valoração jurídica do facto, porquanto os postulados
de factos são insuscetíveis de gerar juízos jurídicos. Só a norma dá valor jurídico ao facto
10
.
A assunção que a norma integrada num sistema jurídico constitui o objecto do Direito
tem como substracto epistemológico a filosofia Kantiana do apriorismo das formas trans-
cendentais do conhecimento, na visão da escola de Marburgo, com destaque para os estu-
dos de Herman Cohen
11
. O dever ser kelseniano assume natureza lógico-transcendental na
medida em que representa uma categoria pura, não metasica, à qual se chega apenas por
análise lógica de pensamento
12
.
Assim definido na sua plenitude o objecto do Direito como ciência, fica afastada a pos-
sibilidade de confusão conceptual entre as ciências da Sociologia e do Direito
13
, sendo que
o objecto daquela ciência são factos e o objecto do Direito são normas. Com esta refunda-
ção da jurisprudência como actividade científica Hans Kelsen pode afastar a critica da
acientificidade do Direito por o mesmo não estar dotado de óbjecto, método ou técnica,
critica que, em especial, foi formulada por Eugen Ehrlich
14
.
7 M A S  M C – «Kelsen e a Violência: Uma Leitura Crítica das “Limitações” da
Teoria Pura do Direito»: In: Júlio Aguiar de Oliveira e de Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno (Coord.). Hans
Kelsen – Teoria Jurídica e Política. São Paulo: Forense Universitária,2013, p.257.
8 K H – Teoria Geral das Normas. Tradução de José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sérgio António Fabris
Editor, 1986, p.108. Sobre a aceitação da Lei de Hume por Hans Kelsen ver, G M S – Hans
Kelsen and the Logic of Legal Sistems». Consultado a 10/10/2019 em http://scholarship.law.wm.edu/cgi/viewcontent.
cgi?article, p.390.
9 Hume apud L J – «O conceito de Direito como forma lógica da “experiência” jurídica: a filosofia do
Direito do neo-kantismo de Marburgo». In: Caminhos da Filosofia do Direito Kantiana – I volume de Kant ao Neo-
Kantismo. Lisboa: AAFDL, 2014, p.93.
10 N C S – Introducción al Análisis del Derecho. 2.ª edição, 12.ª reimpressão. Buenos Aires: Editorial
Astrea,2003, p.122.
11 É elucidativo o texto de Kelsen, na já referida epistola a Renato Treves (nota 6), ao afirmar que “É totalmente
correcto que a base filosófica da Teoria Pura do Direito é filosifia Kantiana, em especial a filosofia Kantiana na
interpretação que lhe foi dada por Cohen” (tradução livre).
A filosofia epistemológica Kantiana foi assumida na Alemanha por duas escolas, a de Marburgo e a de Baden.
Aescola de Marburgo, com especial destaque para Herman Cohen (1842-1918) reflectiu fundamentalmente sobre
as condições de possibilidade da experiência, numa refundação da epistemologia kantiana (apriorismo lógico-
transcendental das categorias possibilitadoras do conhecimento) e a escola de Baden aprofundou o estudo dos
apriorismos transcendentais da cultura e do mundo.
12 L J. – «A argumentação transcendental em Kelsen». In: Caminhos da Filosofia do Direito Kantiana – I
volume de Kant ao Neo-Kantismo. Lisboa: AAFDL,2014, p.114.
13 Assim, L K Metodologia da Ciência do Direito. 3.ª Edição. Tradução de José Lamego, Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1997, p.93.
14 E E – Fundamentos da Sociologia do Direito. Tradução de René Ernani Gertz. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, afasta a natureza científica do Direito remetendo-o a uma função meramente técnica,
postulando que a verdadeira ciência do Direito era a Sociologia do Direito.
10
A doutrina da norma completa de Hans Kelsen
JOSÉ JOAQUIM MONTEIRO RAMOS
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O iter que, de forma necessária e sintética, percorremos afastou do objecto do direito as
ideologias (inerentes ao direito natural)
15
e os factos (matéria para o labor da Sociologia do
Direito), definindo-se o objecto da ciência do Direito como as normas que integram siste-
mas jurídicos, assumindo-se a jurisprudência como ciência e a única ciência do Direito
16
.
1. Características do Sistema Normativo
O sistema jurídico é, para Hans Helsen, caracterizado pela relação vertical e escalonada
das normas que o constituem
17
e pela sua capacidade de coacção, particularidade esta
última que o diferencia das demais ordens normativas sociais, como a moral e a religião
18
.
1.1. A Teoria da Estrutura Escalonada do Direito
A Teoria da Estrutura Escalonada do Direito (Stufenbaulehre) é construção dogmática de
Adolf Julius Merkel
19
e foi por Kelsen recepcionada no âmbito da Teoria Pura do Direito
20
.
A assunção que a norma jurídica só é válida se receber a sua legitimidade para integrar o
sistema normativo se uma outra norma – necessariamente de escalão superior – assim o
determinar
21
importa a existência de uma cadeia vertical e sucessiva de normas de atribui-
ção de competência por forma a que todas as normas produzam os efeitos jurídicos pre-
15 Sem embargo da obra de Hans Kelsen se traduzir no estudo das formas do Direito e de negar a existência de
qualquer referência axiológica inerente aos sistemas normativos uma vez que tal é questão de opção política
por via do exercido do poder legislativo, não deixou o mesmo de realizar estudos na área da Justiça como valor
humano. Sobre esses estudos ver L J «A doutrina Kelseniana da Justiça». In: A Teoria Pura do Direito
de Kelsen. Lisboa: AAFDL, 2019, pp.165 a 176, e P A S XJustiça na Perpectiva Kelseniana. Rio
de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2013.
16 B N – Direito e Poder. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Unesp, 2008, p.24.
17 K H – Teoria Pura do Direito …, p.250.
18 K H – Teoria Pura do Direito …, p.41, e K H Teoria Geral do Direito e do Estado, tradução de Luís
Carlos Borges, 3.ª edição, São Paulo, Martins Fontes – 2000, pp.5-6.
19 Sobre a autoria, génese e evolução da Teoria da Estrutura Escalonada do Direito e da sua recepção por parte de
Hans Kelsen, ver B M «A Doutrina da Estrutura Escalonada do Direito de Adolf Julius
Merkl e a sua Recepção em Kelsen». In: Júlio Aguiar de Oliveira e de Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno
(Coord.). Hans Kelsen – Teoria Jurídica e Política. coordenação de São Paulo: Forense Universitária, 2013, pp.129 a
183. O autor defende que, injustamente, Adolf Julius Merkel foi colocado na sombra de Hans Kelsen quando é
certo que os seus trabalhos têm uma “qualidade impressionante e que entre os teóricos esquecidos do direito
poucos há com a sua qualidade”.
O próprio Hans Kelsen, logo em 1923, no prefácio de Hauptprobleme der Staatsrechtslehre, reconhecia a importância
de Adolf Julius Merkel para a assunção de uma visão nomodinâmica na Teoria Pura do Direito.
20 P S «Reflexões Sobre a Periodização da Teoria do Direito de Hans Kelsen». In: de Júlio Aguiar
de Oliveira e de Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno (Coord.). Hans Kelsen – Teoria Jurídica e Política. São Paulo:
Forense Universitária, 2013, pp.21 a 24.
21 K H– Teoria Pura do Direito …, p.2.
11
A doutrina da norma completa de Hans Kelsen
JOSÉ JOAQUIM MONTEIRO RAMOS
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tendidos, sendo a validade de cada norma aferida em razão da norma de escalão superior
que a autoriza
22
.
O sistema normativo assim entendido responde à questão de saber quais as normas
lidas, mas, de forma concomitante, cria outro problema: o de saber onde terminam as
normas de atribuição de competência, i. e., invertendo o sentido lógico que temos vindo a
percorrer, qual a primeira norma que permite o início da cadeia de permissões legislativas.
A Teoria da Estrutura Escalonada do Direito pode ser graficamente representada por uma
pirâmide cujo vértice superior corresponde à Constituição, o escalão intermédio respeita
às normas superiores emanadas pelos órgãos estaduais com competência legislativa e o
escalão inferior acomoda as normas inferiores ou normas individuais que correspondem
a decisões/deliberações judiciais ou administrativas, bem como aos actos dos sujeitos de
direito que criam auto-vinculações. Se a Constituição importa a validade das normas dos
dois níveis hierarquicamente inferiores e ela própria é revista nos termos constitucional-
mente previstos, a questão é apenas a de saber qual a força jurídica (validade) da primeira
Constituão historicamente considerada
23
e na qual as posteriores Constituições reco-
lhem a sua força vinculativa. O pensamento tributário da lógica deôntica não pode deixar
de concluir pela existência de uma norma pressuposta
24
– e não posta, tal como todas as
demais normas – que corresponde à “norma fundamental”
25
do sistema e que permite não
22 Herbert Hart em face da questão do fundamento da validade normativa, defende a existência da rule of
recognition segundo a qual são válidas as normas que forem aceites pela praxis social de cada comunidade
humana concretamente determinada no seu momento histórico. A rule of recognition é uma questão de matéria
de facto e apenas é verificável pela análise das práticas sociais, uma vez que não é formulada de forma
explícita, HART H O Conceito de Direito. 6.ª Edição. Tradução de Armindo Ribeiro Mendes. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian – 2011, pp.113 e ss.
Sobre a regra do reconhecimento e a sua interacção dogmática com a Teoria Pura do Direito ver, SPAAK
T «Kelsen and Hart on the Normativity of Law». Consultado a 24/10/2019, disponível http://www.
scandinavianlaw.se/pdf/48-24.pdf, p.408 e ss., e D D  L S«A Validade do Direito
na Pespectiva Juspositivista. Reflexões em Torno de Hans Kelsen». In: Júlio Aguiar de Oliveira e de Alexandre
Travessoni Gomes Trivisonno (Coord.). Hans Kelsen – Teoria Jurídica e Política. São Paulo: Forense Universitária,
2013, pp.223ess.
23 Como o próprio Hans Kelsen admite este caminho histórico-constitucional de validações sucessivas pode ser
quebrado pelas vicissitudes próprias de todas as normas, mormente por via revolucionária (cfr. Teoria Pura do
Direito …, pp.223, 234, 244 e 304).
Com o mesmo fundamento, M A S  M C – «Kelsen e a Violência: Uma Leitura
Crítica das “Limitações” da Teoria Pura do Direito». In: Hans Kelsen – Teoria Jurídica e Política…, p.255, afirma
que “o grande mérito da Teoria Pura do Direito consiste em ter revelado, mediante instrumento filosófico-jurídico, o carácter
originalmente violento do direito”.
24 Também W J, já em 1913, na obra Gesetz, Gesetzesanwendung und ZweckmäBigkeitserwagung, tinha
defendido a necessidade conceptual de uma norma de encerramento do sistema, à qual não correspondia
qualquer vontade humana.
25 Para L J – «A função epistemológica e a função sistémica da norma fundamental». In: Caminhos da
Filosofia do Direito Kantiana – I Volume – de Kant ao Neo-Kantismo…, p.161: a norma fundamental é a doutrina mais
emblemática da Teoria Pura do Direito.
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A doutrina da norma completa de Hans Kelsen
JOSÉ JOAQUIM MONTEIRO RAMOS
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 2 · 1
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só o seu conhecimento científico, como também a fundamentação da cadeia de sucessivas
autorizações
26
reveladas pelo sistema jurídico
27
.
Tal norma assim pressuposta colhe o seu fundamento jurídico-filosófico na pressu-
posições lógico-transcendentais de Kant, na linha da escola de Magburgo e de Hernamn
Cohen, uma vez que, não sendo empiricamente demonstrável a sua existência, é uma
decorrência necessária da verificação de um objecto epistemológico (o sistema jurídico
e a sua normatividade ideal)
28
, razão pela qual a norma fundamental não é mero resul-
tado de um qualquer poder factual e arbitrio, mas sim da razão científica e, por essa via,
demonstrável por método válido.
Hans Kelsen descreveu o teor da grundnorm
29
como “devem ser postos actos de coer-
ção sob os pressupostos e pela forma que estatuem a primeira Constituição histórica e
as normas estabelecidas em conformidade com ela (Em forma abreviada: «devemos con-
duzir-nos como a Constituição prescreve»)”
30
. A ordem jurídica é, pois, um sistema com-
posto por normas numa relação de hierarquia em que a validade das normas se afere em
razão da norma superior que legitima a sua produção, todas colhendo validade do mesmo
fundamento (a norma fundamental); assim “Uma norma singular é uma norma jurídica
enquanto pertence a uma determinada ordem jurídica, e pertence a uma determinada
ordem jurídica quando a sua validade se funda na norma fundamental dessa ordem
31
.
26 G M S – Hans Kelsen and the Logic of Legal Sistems…, p.388.
27 Sobre a natureza e as funções da norma fundamental no âmbito da estrutura conceptual da Teoria Pura do
Direito, designadamente a existência das duas perpectivas com que Hans Kelsen teorizou a grundnorm, ver
RAMOS J J M – «A Dupla Perspectiva da Norma Fundamental em Hans Kelsen». In:
Politeia – Revista do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna. Lisboa, ano X-XI-XII, 2013, 2014, 2015,
volume 1 – studia varia, pp.213 a 233.
28 L J – «A argumentação transcendental em Kelsen». In: Caminhos da Filosofia do Direito Kantiana – I
Volume – de Kant ao Neo-Kantismo…, p.119.
29 ROSS A – Direito e Justiça. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2000, pp.92 a 97, critica a Teoria da
Norma Fundamental com o argumento que a mesma transforma Hans Kelsen num “quasi positivista” na
medida em que a assunção da existência de uma entidade normativa não positiva, como é o caso da norma
fundamental, não tem lugar numa teoria do direito positivo.
Do mesmo modo, B N – Direito e Poder…, p.166, argui contra a Teoria da Norma Fundamental
por a mesma consubstanciar uma derivação da fundamentação de direito para a matéria de facto. Também
Mario Losano e Renato Treves, criticam a norma fundamental considerando-a um retorno à sociologia, em
desconsideração da Lei de Hume, por a norma fundamental apenas ser possível em razão de operações de
matriz sociológica. Mario Losano e Renato Treves apud M A S  M C – «Kelsen
e a Violência: Uma Leitura Crítica das “Limitações” da Teoria Pura do Direito». In Hans Kelsen – Teoria Jurídica e
Política…, p.261.
30 K H – Teoria Pura do Direito …, p.223.
31 K H – Teoria Pura do Direito …, p.35.
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1.2. O Sistema Jurídico como Ordem Normativa Dotada de Coacção
Na estrutura do pensamento de Hans Kelsen o Direito é uma ordem social normativa
que se distingue das demais ordens sociais normativas (como a moral) pela sua caracte-
rística da coactividade
32
, uma vez que os seus comandos podem ser aplicados, se neces-
sário for, pelo uso da força
33
. A definição Kelseniana de Direito é realizada em razão de
três fundamentais particularidades, a saber: o Direito é uma ordem social, normativa, que
corresponde a uma técnica de motivação indirecta de condutas por cominação de sanções
coercitivas para as condutas que quer desencorajar
34
.
A especificidade do Direito não opera em razão da mera previsão de sanções uma vez
que também outras ordens normativas sociais comportam no seu sistema a existência
de sanções, porém, apenas o Direito tem a possibilidade de aplicar as sanções pela via da
coerção.
Na construção dogmático-conceptual elaborada pelo nosso autor, esta característica
da coercibilidade do Direito é essencial na medida em que permite a distinção entre o
Direito e as demais ordens normativas sociais, assim concretizando uma das suas maos
importantes aspirações epistemológicas, a saber: a definição da norma jurídica como
objecto da jurisprudência, permitindo a armação da ciência do Direto como verdadeira e
própria ciência que não se confunde com a sociologia do Direito, ciência à qual fica reserva
o estudo do factos.
A ideia da normatividade do Direito está, pois, associada à prescrição de sanções e
à possibilidade da sua imposição coactiva
35
, de tal forma que “a fórmula com a qual tra-
duzimos a norma fundamental de uma ordem jurídica estadual significa: a coacção de
um indivíduo por outro deve ser praticada pela forma e sob os pressupostos fixados pela
primeira Constituição histórica”
36
. O sistema jurídico colhe a ontológica característica da
32 A E M  – “Passos da Teoria de Kelsen Rumo à Construção da Teoria do Direito». In: Júlio
Aguiar de Oliveira e de Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno (Coord.). Hans Kelsen – Teoria Jurídica e Política São
Paulo, Forense Universitária – 2013, p.57.
33 K H – Teoria Pura do Direito …, p.41 e Teoria Geral do Direito e do Estado, pp.21 a 30.
34 L J – «O Direito como Técnica Social de Motivação Indirecta de Condutas» In: A Teoria Pura do Direito
de Kelsen…, p.69.
35 R A – Direito e Justiça…, pp.77 e 78, expressamente manifesta o seu desacordo com Hans Kelsen afirmando
que a aplicação das normas é assegurada pela força, mas as normas não são necessariamente coactivas
porquanto tal asserção equivaleria à desconsideração das normas atribuidoras de competência e das normas que
considera secundárias e que permitem a aplicação das normas reguladoras das condutas (estas que denomina
de primárias).
36 K H Teoria Pura do Direito …, p.56.
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coactividade
37
desde logo na norma fundamental
38
que legitima toda a estrutura norma-
tiva a jusante, razão pela qual apenas existe dever jurídico quando a conduta que lhe é
oposta seja pressuposto de um acto coercitivo
39
ou, numa asserção materialmente seme-
lhante, toda a obrigação, para ser qualificada como jurídica e não como meramente moral
– em caso de ilicitude no seu cumprimento – tem de estar associada a uma sanção que
pode ser imposta pela utilização da força
40
.
O Direito tende a regular os isos que comportam a utilização da força uma vez que que-
rendo evitar a utilização da força entre os membros da comunidade realiza tal desiderato
pela utilização da própria força. A esta contradição
41
responde Hans Kelsen que a mesma
é uma antinomia meramente aparente porquanto o Direito é a organização da força que
procura promover a paz, razão pela qual força e Direito não devem ser considerados anta-
gônicos, justamente porque “na regra jurídica, o emprego da força surge como delito, i.e.,
a condição para a sanção, ou como sanção, i.e., a reacção da comunidade jurídica contra o
delito”
42
. A finalidade da coercção justifica a utilização da força para a imposição de san-
ções jurídicas desde que as normas tenham sido produzidas dentro da estrutura escalo-
nada do Direito e segundo o modelo previsto na respectiva ordem jurídica.
Contudo, Hans Kelsen não desconhece que a ordem jurídica comporta normas que, de
per si, não preveem a possibilidade de sanções nem, em consequência, assumem a caracte-
rística da coercitividade, como são v.g. as normas atribuidoras de competência e as normas
que consubstanciam a previsão de cânones hermenêuticos.
37 E K Introdução ao Pensamento Jurídico. 7.ª edição. Tradução de João Baptista Machado. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p.34, estribando-se no postulado Kelseniano da coercitividade da ordem
jurídica e assumindo que todas as normas são criadoras de direitos e deveres, afirma como corolário que os
direitos e deveres dos particulares são correlativos de direitos e deveres das entidades estaduais uma vez que só
assim a coercitividade para garantia de direitos e deveres é possível.
38 H HO Conceito de Direito… pp.111 e ss, entende que o sistema jurídico está dotado de uma dupla via
para concretizar a obediência às normas: por um lado concorda com Hans Kelsen em relação à coercibilidade
intrínseca à ordem jurídica e, por outro lado, devido ao que entende por rule of recognition que tem na estrutura
do sistema jurídico por si construído função semelhante à grundnorm (cfr. nota 22), considera a existência
de um “fenómeno social complexo” uma vez que a comunidade entende e aceita as normas o que gera uma
generalizada obediência.
39 K H– Teoria Pura do Direito …, p.56.
40 B N – Teoria do Ordenamento Jurídico. 6.ª edição. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos
Santos, Brasília: UnB, 1982, pp.68 a 70, critica esta posição de Hans Kelsen por considerar que o mesmo confunde
a força do instrumento jurídico da regulação com o seu objecto, as normas estão dotadas de coercibilidade, mas
não são coercibilidade. Considera Norberto Bobbio que “o objecto de todo o legislador não é organizar a força,
mas organizar a sociedade mediante a força”.
41 S I  O – Filosofia do Direito. São Paulo: Editora Atlas, 2010, p.71.
42 K H – Teoria Geral do Direito e do Estado, p.31.
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2. A Norma Completa
A existência de normas que em si mesmas consideradas não prescrevem sanções para
a sua violação não obsta à definição do Direito como ordem normativa social dotada de
coerção na medida em que o ordenamento jurídico é composto de uma “estatuição geral
do acto de coacção” ao qual se chega pela hermenêutica jurídica
43
, sendo que a cocção não
necessita de estar expressamente prevista na norma mas apenas de estar autorizada ou de
ser permitida, sem embargo do acto coactivo estatuído de modo geral corresponder a uma
prescrição expressa.
O sistema comporta a possibilidade de, por acto legislativo e seguindo um procedi-
mento conforme à norma fundamental, se aprovar norma que determine certa conduta e
não prever sanção nem, consequentemente, a possibilidade da coacção, como é o caso da
obrigação natural
44
, porém tal norma porque não respeita o sentido objectivo de coercibi-
lidade da norma fundamental não pode ser tida como norma jurídica.
Uma análise mais aprofundada do sistema jurídico revela a existência de normas não
autónomas as quais Hans Kelsen conceptualizou como as que fixam os pressupostos que
legitimam a aplicão do acto coercivo.
São normas jurídicas não autónomas
45
todas as que não prescrevem sanções coerci-
tivas, as quais se podem cindir em cinco diferentes categorias; a) as normas secundárias
(que prescrevem condutas e que, necessariamente, estão conexas com normas que esta-
tuem a sanção coercitiva para o caso de não observância), b) as normas que facultam con-
dutas, c) as nomas revogatórias, d) as normas de atribuição de competência e e) as normas
que regulam a actividade jurídico- hermenêutica
46
.
As normas autónomas são, pois, as que estatuem o acto geral de coercção, uma vez veri-
ficados os pressupostos de que tal acto depende e que constituem o conteúdo das normas
secundárias.
A construção da proposição normativa, no entendimento de Hans Kelsen gera-se pela
relação entre a norma autónoma e as normas não autónomas que constituem os pres-
supostos de aplicação do acto coercivo naquela estatuído. Atentemos no exemplo que o
próprio Kelsen escreveu a respeito do ilícito de furto “Se os indivíduos competentes para
legislar estabelecerem uma norma geral por força da qual quem comete furto deve ser
43 K H – Teoria Pura do Direito …, p.57.
44 Que, no ordenamento jurídico português, encontra o seu regime nos artigos 402.º e 404.º do Código Civil.
45 Para uma mais aprofundada análise da noção de norma não autónoma, ver D L D –«In
Canonical Form: Kelsens Doctrine of the Complete Legal Norm».In: Luís Duarte D’Almeida, J. Gardner e L.
Green (Coord.). Kelsen Revisited. New Essays on the Pure Theory of Law. de. Edimburgo: Hart Publishing, 2013, pp.266
e ss.
46 K H – Teoria Pura do Direito …, pp.61 a 65.
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punido de certa maneira, e se o tribunal competente segundo o ordenamento processual
penal verificou, de conformidade com um procedimento fixado pelo mesmo ordenamento
processual, que determinado indivíduo cometeu um furto, e este mesmo tribunal aplicou
a pena legalmente fixada, então deve um certo órgão executar essa pena”
47
.
A proposição jurídica descritiva assim entendida corresponde à plenitude de todas as
normas – orgânicas, processuais e substantivas, independentemente do lugar que ocu-
pam na estrutura escalonada do sistema jurídico em que concretamente se encontram
– que estão funcionalmente organizadas em razão da aplicação do Direito a cada caso
concreto. Na verdade, cada norma (autónoma ou não autónoma) corresponde a um mero
fragmento
48
da norma completa que summo rigore é a proposição jurídica reveladora do
dever ser
49
.
A doutrina da norma completa adequa e harmoniza, numa relação bidireccional, as
teses da estrutura escalonada do Direito e a sua caracterização como coercivo porquanto
compatibiliza a relação normativa hierárquica, conjugando num encadeamento funcional
normas de diversos escalões da estrutura, com a característica coerciva da grundnorm que
transmite às normas individuais integrantes do escalão mais baixo da ordem jurídica.
Destarte, fica assegurada a harmonia intrassistémica da ordem jurídica que assume a
coercibilidade como característica comum a todos os seus escalões
50
.
As diversas normas autónomas e não autónomas (todo o material dado nas normas de
uma ordem jurídica) estão envolvidas num processo epistemológico tendente à fixação da
concreta norma individual que revelará o dever ser casuístico, cujo resultado depende de
critérios epistemológicos
51
. A proposição jurídica é o resultado da actividade conjunta do
47 K H– Teoria Pura do Direito …, p.63.
D L D – «In Canonical Form: Kelsen’s Doctrine of the Complete Legal Norm». In: Kelsen
Revisited. New Essays on the Pure Theory of Law…, pp.263 e ss., realiza, sob a perspectiva norma autónoma/noma não
autónoma, uma análise ao exemplo do furto.
À luz desta descrição, entende-se a posição de LAMEGO J – «O Direito como Técnica Social de Motivação
Indirecta de Condutas». In: A Teoria Pura do Direito de Kelsen…, pp.69 e 70, segundo o qual a caracterização do
Direito como ordem de coerção importa a simultânea verificação e duas teses, que são consistentemente lógicas
com a estrutura do pensamento Kelseniano, mas contra-intuitivas, a norma completa e a afirmação que os
destinatários das normas jurídicas hipotéticas individuais são os indivíduos a quem está atribuído o poder de
resolver o caso concreto (juízes e funcionários).
48 L J – «O Direito como Técnica Social de Motivação Indirecta de Condutas». In: A Teoria Pura do Direito
de Kelsen…, p.74.
49 Para Hans Kelsen a proposição jurídica é conceito diverso de norma jurídica, uma vez que a proposição
corresponde a um enunciado que descreve uma ou várias normas jurídicas. Assim N C S–
Introducción al Análisis del Derecho…, p.87.
50 Entende-se, pois, que o próprio Hans Kelsen na já referida carta a Renato Treves (cfr. notas 6 e 11) se refira à
Doutrina da Norma Completa como o cerne da Teoria Pura do Direto.
51 K H – Teoria Pura do Direito …, p.65.
Assim, M A S  M C – «A Norma Fundamental de Hans Kelsen Como Postulado
Científico». In: Revista da Faculdade de Direito UFMG. Belo Horizonte, n.º 58, janeiro/junho 2011, p.48.
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legislador e do aplicador do Direto
52
. A norma completa
53
traduz, pois, pela concatenação
entre normas autónomas e não autónomas e operada pela reconstrução que o aplicador do
Direito realiza, o juízo hipotético da relação de imputação jurídica (se A é, B deve ser
54
)
55
.
3. Norma Completa e Nomoestática/Nomodinâmica
É frequentemente apontada a Hans Kelsen a dificuldade
56
que a Doutrina da Norma Com-
pleta tem para se compatibilizar, simultaneamente, com as visões nomoestática e nomodi-
mica do Direito, uma vez que a mesma teoria foi pensada num quadro de investigação
científica que procurava identificar o objecto do Direito e diferenciá-lo de outras ordens
normativas sociais, bem como restringir as normas jurídicas a uma forma lógica comum
reveladora do dever ser. A conjugação destas preocupações epistemológicas não podia dei-
xar de ser tributária de uma ideia estática de ordem jurídica centrada no apuramento das
condições de aplicação das sanções coercitivas revelando a existência de normas autóno-
mas e não autónomas e na sua união finalisticamente orientada para a casstica aplica-
ção das mesmas sanções.
É neste ambiente científico que surge a Doutrina da Norma Completa.
A recepção por Hans Kelsen da Teoria da Estrutura Escalonada do Direito no seu edifí-
cio conceptual
57
, veio dar enfâse às normas de atribuição de competência, iniciando uma
viragem nos estudos Kelsenianos em direcção a uma visão dinâmica da ordem jurídica
58
.
Esse percurso foi acentuado com a publicação da 1ª edição da Teoria Pura do Direito (em 1934)
na qual resulta a dificuldade da bipartição entre normas autónomas e não autónomas.
52 Postulado que está de harmonia com a teoria kelseniana da interpretação jurídica, uma vez que vez a interpretação
jurídica é “uma operação mental que acompanha o processo de aplicação do Direito no seu progredir de um
escalão superior para um escalão inferior” [Teoria Pura do Direito …, p.379]. O texto sobre interpretação jurídica
que Hans Kelsen publicou, nesta 2.ª edição da Teoria Pura do Direito, é praticamente igual (mudou a expressão
“produção do Direito” para “aplicação do Direito”) ao texto publicado na 1.ª edição da mesma obra (1934) e no
artigo de 1934 Zur Theorie der Interpretation.
53 Surge pela primeira vez na tese de habilitação de Hans Kelsen Hauptprobleme der Staasrechtslehre, entwickelt aus
der Lehre vom Rechtssatze, Tübigen, 1911.
54 H M– «Introduction: The Final Form of The Pure Theory of Law». In: General Theory of Norms.
Oxford: Oxford Scholarship, 1991, p.XXii.
55 M E G– Filosofia del Derecho. 10.ª edição. Cidade do México: Porrua, 1998, p. 51 e ss.,
defende que este é, também o fundamento da distião entre o Direito e outras ordens normativas sociais,
como a religião, a moral e os usos sociais.
56 Assim, L J–, «O Direito como Técnica Social de Motivação Indirecta de Condutas». In: A Teoria Pura
do Direito de Kelsen…, p.72.
57 O que sucedeu nos anos 20 do século passado, B M–«A Doutrina da Estrutura Escalonada do
Direito de Adolf Julius Merkl e a sua Recepção em Kelsen». In: Hans Kelsen – Teoria Jurídica e Política…, p.176.
58 L J – «O método transcendental da filosofia do Direito: a polémica entre Kelsen e Sandre». In:
Caminhos da Filosofia do Direito Kantiana – I volume …, p.141.
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Com o exílio nos Estados Unidos, Hans Kelsen foi confrontado com uma nova reali-
dade gnosiológica e mostrou-se sensível aos argumentos da filosofia da linguagem e do
realismo epistemológico
59
, o que introduziu dificuldades intrasistémicas na Teoria Pura
do Direito. A publicação, em 1945, da Teoria Geral do Direito e do Estado, reflete estas novas
circunstâncias e Hans Kelsen assume uma visão nomodinância da ordem jurídica
60
, sem,
contudo, deixar de a tentar harmonizar com a nomoestática. Na segunda edição da Teoria
Pura do Direito o autor aprofunda o estudo da dimensão dinâmica do sistema jurídico
procurando manter a sua compatibilização com a nomoestática.
A nomoestática consiste no segmento da jurisprudência analítica que estuda os ele-
mentos essenciais integrantes do sistema jurídico e das suas condições para qualquer
ordenamento jurídico, de onde resulta a primazia, seguindo a conceptualização Kelse-
niana, da norma coerciva como expressão jurídica do dever ser; já a nomodimica cen-
tra-se na alise do sistema jurídico como factor de produção normativa, assumindo as
normas de atribuição de competência o lugar de destaque.
A questão nomoestática/nomodinâmica dirime-se, pois, em saber se o primacial
objecto analítico é a norma na sua forma lógica proposicional de dever ser ou na norma
como critério legal de atribuição de competência. Procurando responder à questão arma
o nosso autor que o “princípio estático e o princípio dimico estão reunidos numa e na
mesma norma quando a norma fundamental pressuposta se limita, segundo o princípio
dimico, a conferir poder a uma autoridade legisladora, e esta mesma autoridade ou uma
outra por ela instituída não só estabelecem normas pelas quais delegam noutras autorida-
des legisladoras, mas também normas pelas quais se prescreve uma determinada conduta
dos sujeitos subordinados às normas e das quais – como o particular do geral – podem ser
deduzidas novas normas através de uma operação lógica”
61
.
Hans Kelsen parece ensinar que a questão da dicotomia nomoestática/nomodimica
é mais aparente do que real na medida em que cada uma destas dimensões comporta uma
função bem precisa na produção normativa, actividade que resulta da conjugação das
duas dimensões do sistema. O princípio nomodimico tem, na estrutura escalonado do
Direito, uma função puramente eidética de validade formal da norma produzida, a qual
deve ser produzida nos termos postos pela norma de escalão superior; a norma funda-
mental fornece apenas o critério de validade e não o conteúdo da norma
62
. O princípio
59 L J–, “A Teoria Pura do Direito entre logicismo e voluntarismo». In: Caminhos da Filosofia do Direito
Kantiana – I volume …, pp.137 e ss., discute a questão de saber qual o mais relevante autor que Kelsen seguiu para
assumir o sistema jurídico como dinâmico, se Fritz Sander ou Adolf Julius Merkl (ambos discípulos de Kelsen).
60 Capítulo X, secção a. (o Direito como um sistema dinâmico de normas), pp.165 a 168.
61 K H – Teoria Pura do Direito …, pp.219 e 220.
62 K H – Teoria Pura do Direito …, pp.219.
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nomodinâmico revela apenas a atribuição de competência ao órgão para produzir a norma
e o procedimento que o mesmo órgão deve respeitar, sem abordar a dimensão material da
norma.
Já o teor da norma será revelado pelo princípio nomoestático e deduzido da norma
geral por uma operação mental de matriz lógica. Assim, da norma geral “devemos amar
o nosso próximo” podemos deduzir as normas “não devemos fazer mal ao próximo”, “não
devemos, especialmente, causar-lhe a morte”, “não devemos prejudicá-lo moral ou fisica-
mente” e “devemos ajudá-lo” quando precise de ajuda”
63
. Os limites materiais da norma
de escalão inferior na estrutura escalonada do Direito são aferidos em razão do princípio
nomoestático
64
.
Entre nomodinâmica e nomoestática gera-se, desta forma, uma relação de mútua
dependência na produção normativa não sendo possível a formulação de normas sem a
convocação simultânea de ambos os princípios, pelo que se entende a afirmação que “O
princípio estático e o princípio dinâmico estão reunidos numa e na mesma norma”
65
.
A suposta dificuldade em compatibilizar a nomodimica com a Teoria da Norma
Completa ganha novos contornos à luz do que acabámos de expor, porquanto a necessi-
dade de reunir numa mesma norma os princípios nomodimico e nomoestático para
que o sistema possa revelar o dever ser contido numa norma dotada de coercibilidade, faz
concluir que tal dificuldade não só inexiste como a nomodinâmica parece essencial à fixa-
ção do dever ser revelado pela norma completa. Mais que uma dificuldade, a recepção da
nomodinâmica no edifício conceptual da Teoria Pura do Direito parece melhor adequar todo
o modelo à Teoria da Norma Completa na exacta medida em que a proposição reveladora da
relação de imputação jurídica (se A é, B deve ser) que se aplica casuisticamente não é com-
preensível, rectius apreensível, sem a dimensão nomodinâmica do sistema.
A existência da norma, porque a realidade que integra não é perceptível pelos critérios
do espaço e/ou do tempo (a norma é entidade com natureza de dever ser e não factual), é
aferida em razão da sua validade
66
. A norma válida existe na ordem jurídica e a norma não
lida não existe na ordem jurídica; a validade é o modo particular de existência da norma
jurídica
67
. A norma é valida porque inserida num sistema vertical e recebe a sua legitimi-
63 K H – Teoria Pura do Direito …, pp.217.
64 L J – «Teoria da norma e teoria do sistema jurídico». In: Caminhos da Filosofia do Direito Kantiana – I
volume …, p.85.
65 K H – Teoria Pura do Direito …, pp.219 (cfr. supra nota 61).
66 L J – «A argumentação transcendental em Kelsen». In: Caminhos da Filosofia do Direito Kantiana – I
volume …, p.119.
67 M A S  M C– «Kelsen e a Violência: Uma Leitura Crítica das “Limitações” da
Teoria Pura do Direito». In: Hans Kelsen – Teoria Jurídica e Política…, p.256, considera que o conceito de validade é
a principal estrutura operativa da Teoria Pura do Direito.
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A doutrina da norma completa de Hans Kelsen
JOSÉ JOAQUIM MONTEIRO RAMOS
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 2 · 1
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dade, enquanto tal, de outra norma de grau superior que lhe confere validade
68
e assim
sucessivamente até se chegar à norma fundamental que valida todo o sistema do topo para
a base; em suma, a norma é válida pela sua compatibilidade vertical. O princípio nomodi-
mico traduz esta realidade da estrutura escalonada do Direito numa cadeia sucessiva
de permissões de produção normativa pelo que a omissão da sua consideração levaria, de
modo inapelável, à incapacidade de o sistema produzir normas dotadas de coercibilidade
(a coercibilidade é, desde logo, característica da grundnorm)
69
; sem a dimensão nomodinâ-
mica o sistema seria incapaz de produzir normas válidas
70
.
Sem a visão monodimica do sistema jurídico a estrutura da Teoria Pura do Direito
ficaria inacabada em aspectos essenciais (a produção e a validade normativas), razão pela
qual a recepção da nomodinâmica por Hans Kelsen, mais que uma dificuldade, corres-
ponde a uma necessidade conceptual que se adequa à Teoria Escalonada do Direito e per-
mite melhor perceber as relações normativas o que potencia o entendimento da proposi-
ção reveladora da relação de imputação jurídica como faz a Doutrina da Norma Completa.
Aceitamos, naturalmente, que a recepção da nomodimica no seu confronto com a
Doutrina da Norma Completa torna claro “que a diferenciação hierárquica ou de níveis
normativos é indissociável do reconhecimento de uma diversidade funcional entre nor-
mas e coloca no centro da alise a função normativa de atribuição de competência (Ermä-
chtigung) e não as normas que ordenam (gebieten) ou prescrevem condutas”
71
. Porém, a
questão é analítico-metodológica e não substantiva. Na verdade, a deslocação do primacial
objecto analítico da ciência do Direito da norma que prevê a conduta obrigatória ou a per-
mite, para a noma atribuidora de competência é, para a essência da Doutrina da Norma
Completa, irrelevante uma vez que a proposição jurídica reconstruída pela ciência do
Direito é constituída pelas normas autónomas e não autónomas.
Mesmo na fase inicial da construção da Doutrina da Norma Completa a nomodinâ-
mica estava já subentendida na medida em que as normas de atribuição de competência já
eram entendidas como fragmentos da proposição que resulta da reconstrução do material
dado pelo legislador nas diversas normas integrantes da ordem jurídica
72
. A mutação da
68 M A S  M C– «A Norma Fundamental de Hans Kelsen Como Postulado Científico».
In: Revista da Faculdade de Direito UFMG…, p.49.
69 K H– Teoria Pura do Direito …, p.56.
70 Para a norma ser valida não necessita de ser eficaz, porém Hans Kelsen não deixa de afirmar que sempre é
exigível um mínimo de eficácia sob pena da norma ser revogada pelo desuso. Sobre esta questão ver, M
A S  M C– «A Norma Fundamental de Hans Kelsen Como Postulado Científico». In:
Revista da Faculdade de Direito UFMG…, p.49.
71 L J – «O Direito como Técnica Social de Motivação Indirecta de Condutas». In: A Teoria Pura do Direito
de Kelsen…, p.74.
72 Atente-se no exemplo elaborado pelo próprio Kelsen a respeito do furto e já supra mencionado (cfr. nota 47).
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matriz do objecto analítico não contende com a essência da norma completa, com efeito, a
questão não é ontológica, mas sim analítica.
II. Síntese e Considerações Finais
A procura pela pureza metodológica e conceptual da ciência do Direito, entendida como
jurisprudência analítica, levou Hans Kelsen a uma reconceptualização do seu objeto.
Ocarácter normológico do Direito e o postulado de Hume conduziam o nosso autor à con-
clusão de que só as normas são susceptíveis de gerar normas e de atribuir valoração jurí-
dica aos factos.
O objecto da ciência do Direito é, pois, a norma integrada num sistema (a ordem jurí-
dica), o que permite uma clara cissão entre o objecto do Direito e o objecto da Sociologia
(factos e não normas).
A lei de Hume levou Kelsen à constatação que as normas apenas são válidas quando
integradas numa relação vertical com outras normas e recebem a sua validade na relação
de conformidade com a norma de nível superior que autoriza a sua produção. Neste qua-
dro a recepção da Teoria da Estrutura Escalonada do Direito de Adolf Julius Merkel surge
como adequada para explicar a validade sistémica das normas.
Para evitar o retorno ad infinitum na validade normativa (cada norma recebe a sua vali-
dade da norma de escalão superior e assim sucessivamente), estribando-se na filosofia
epistemológica neokantiana, na reconfiguração que lhe é conferida pela escola de Mar-
burgo, com destaque para Herman Cohen, Hans Kelsen conclui pela existência de uma
norma fundamental a qual determina a imposição de actos de coerção para cumprimento
da primeira Constituição historicamente considerada. A grundnorm não é norma posta
pelo legislatio mas pressuposta (corresponde a uma categoria logico-transcendental aprio-
stica).
A grundnorm tem natureza coerciva e transmite esta característica a toda a ordem jurí-
dica em termos tais que a conclusão de que uma norma não está dotada de coercibilidade
importa a negação da sua juridicidade. Esta característica da coercibilidade permite a dis-
tinção entre o Direito e as demais ordens normativas sociais.
A Doutrina da Norma Completa parte da ideia da existência de normas autónomas
(as que estatuem actos coercivos) e de normas não autónomas (todas as que não estatuem
actos da mesma natureza), para armar que pertence à ciência do Direito a tarefa de,
mediante critérios hermenêuticos, revelar a proposição jurídica formada pelo juízo hipo-
tético da relação de imputação (se A é, B deve ser), cristalizando a norma individual da
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estrutura escalonada do Direito. A norma completa realiza a simbiose entre a estrutura
escalonada do Direito e a sua característica da coercibilidade.
Na construção dogmática kelseniana os princípios nomodimico e nomestático têm
funções complementares na estrutura escalonada do Direito, enquanto aquele supõe a
validade formal da norma produzida (a qual deve ser produzida nos termos postos pela
norma de escalão superior), este revela, através de uma operação mental de natureza
lógica, a materialidade da norma.
A visão nomodinâmica é essencial à Doutrina da Norma Completa na medida em que,
para além de ser necessária para a fixação do dever ser revelado na norma individual, per-
mite aquilatar da sua validade vertical, logo da sua existência como norma jurídica. A des-
locação do cerne da alise jurisprudencial da norma de comportamento para a norma de
atribuição de competência – fenómeno que ocorre em razão da assunção da visão nomodi-
mica – concerne ao método da ciência do Direito e não à ontologia da norma completa.
Ao lado da normatividade ideal do Direito, da norma fundamental e da estrutura esca-
lonada do Direito, a Doutrina da Norma Completa integra o edifico conceptual da Teoria
Pura do Direito e esta só é compressível pela adesão simultânea e concatenada das quatro
asserções. Todas estas teses interagem entre si e reciprocamente comunicam, influencian-
do-se e densificando o seu conteúdo, numa tetra-relação de interdependência, em termos
tais que a desconsideração de uma das teses importaria o fim ou, pelo menos, a profunda
mutação das outras. A plenitude da Teoria Pura do Direito só se alcança pela simultânea
aquiescência com as quatro teses.
Para aquilatar da importância da Doutrina da Norma Completa no edifício conceptual
da Teoria Pura do Direito, realizemos um exercício lógico de regressão.
A desconsideração da norma completa iria colocar em causa a validade das normas
integrantes do sistema por não partilharem de um elemento caracterizador da norma
fundamental: a coercibilidade. Todas as normas não autónomas – de todos os escalões da
estrutura desde a Constituição às normas inferiores – deixariam de receber a sua validade
da norma fundamental por não reproduzirem a coercibilidade, cuja fonte é a grundnorm.
Consequentemente, as normas não autónomas não seriam juridicamente válidas, dei-
xando de cumprir a sua função de motivação indirecta de condutas, sendo expurgadas da
ordem jurídica. Entre estas estão, naturalmente, as normas de atribuição de competên-
cia que são o paradigma da norma não autónoma. Tal representaria o fim do Direito e do
Estado pela incapacidade de criação de normas jurídicas.
A alternativa de considerar, ainda assim, as normas não dotadas de sanções coercivas
como parte integrante do Direito importaria que se colocasse em causa a sua definição
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como ordem de coercção o que também equivaleria à “morte” do Direito e do Estado, como
alertou o próprio Hans Kelsen
73
.
Eis a valia da Doutrina da Norma Completa, no âmbito da Teoria Pura do Direito, per-
mitir a extensão da coercibilidade a todas as normas integrantes do sistema e, como tal,
garantir a sua plena validade.
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A relevância da epistemologia do ilícito para
a proteção de bens jurídicos e a efetividade
doprincípio ne bis in idem
Um estudo comparado entre Brasil e Portugal
The relevance of the illegal epistemology for the protection of
legal assets and the eectiveness of the ne bis in idem priciple
A comparative study between Brazil and Portugal
SANDRO LÚCIO DEZAN*1
sandro.dezan@gmail.com e sandro.dezan@ceub.edu.br
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
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July Julho–31
ST
December Dezembro 2020 · pp. 2545
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.2.2
Submitted on September 24
th
, 2020 . Accepted on 10
th
November, 2020
Submetido em 24 de setembro, 2020 . Aceite a 10 de novembro, 2020
RESUMO o presente artigo, a partir do método hipotético-dedutivo e de um estudo
comparado entre Portugal e Brasil, busca analisar os contornos jurídico-epistemológicos
do conceito de “ilícito” e a necessária carga de proteção de bens jurídicos que orienta a
sua previsão nos mais diversos ramos do direito punitivo estatal, para constatar a
abrangência dos efeitos do princípio ne bis in idem extramuros dos ramos epistemológicos.
Concluir-se-á a existência de um núcleo intangível, ontológico, entre as variações de
prescrições proibitivas, que se asseguram, necessária e adequadamente, nas espécies de
objetos protegidos pelos diversos ramos do direito sancionador, público ou privado, para
os limites de mais de uma punição pelo mesmo fato base.
PALAVRASCHAVE Direito Público Sancionador; Ontologia dos Ilícitos de Direito Público;
Proteção de Bens Jurídicos; Efetividade do Princípio Ne Bis In idem.
* Doutor em Ciências Jurídicas Públicas, pela Escola de Direito da Universidade do Minho (UMinho), Braga,
Portugal; Doutor em Direito, pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB); Doutor em Direitos e Garantias
Fundamentais, pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV) e Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais, pela
Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Professor Titular do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu, Mestrado
e Doutorado, do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), Brasília/DF; Investigador do Centro de Justiça e
Governação (JusGov), Grupo JusCrim – Justiça Penal e Criminologia, da Escola de Direito da Universidade do
Minho (UMinho), Braga, Portugal; e Coordenador do Grupo de Pesquisa Hermenêutica do Direito Administrativo
e Políticas Públicas do Programa de Pós-graduação em Direito do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB),
Brasília/DF.
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A relevância da epistemologia do ilícito para a proteção de bens jurídicos e a efetividade doprincípio ne bis in idem
SANDRO LÚCIO DEZAN
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ABSTRACT: this article, based on the hypothetical-deductive method and a comparative
study between Portugal and Brazil, seeks to analyze the legal-epistemological contours of
the concept of “illicit” and the necessary burden of protection of legal assets that guides
its prediction in the most various branches of state punitive law, to verify the scope of
the effects of the ne bis in idem principle outside the epistemological branches. The
existence of an intangible, ontological nucleus will be concluded, among the variations
of prohibitive prescriptions, which are necessary and adequately ensured in the kinds of
objects protected by the different branches of the sanctioning law, public or private, to the
limits of more punishment for the same basic fact.
KEYWORDS: Public Sanctioning Law; Ontology of Public Law Offenses; Protection of Legal
Assets; Effectiveness of the Ne Bis In idem Principle.
I. Introdução
O sistema sancionatório português é notadamente distinto do brasileiro
1/2
e, por essa razão,
a intervenção que ora nos detemos antecedente ao início dos debates de investigação faz-
-se necessária, nomeadamente com vistas à adequação de sentido entre as definições dos
ilícitos de um e de outro modelo punitivo estatal, o luso e o brasileiro, a considerar que
utilizaremos aprioristicamente como cerne de toda a pesquisa a experiência brasileira
(mormente, de lege ferenda, para um contributo ao sistema brasileiro) e não, de fato, a por-
1 Denota-se para as classes sancionatórias extrapenais de Portugal, em especial os ilícitos contraordenacionais, a
gênese de ordem germânica, por uma transposição das contravenções, após a paulatina redução de sua aplicação
a partir de 1982, com o advento do Código Penal português, ao passo que o direito sancionador brasileiro, para os
ilícitos não penais, ou extrapenais, parece-nos firmado em origem do direito sancionador espanhol, sob a especial
característica distintiva de não se tratar, o sistema brasileiro, de sistema firmado sob as bases do contencioso
administrativo. Mário Ferreira Monte ressalta a distinção ente o ilícito penal, o ilícito administrativo de sentido
estrito e os ilícitos de contraordenações. Afirma que “se em Portugal e na Alemanha, por exemplo, se alcançou um
nível de distinção aceitável, desde logo formal, ao definir-se claramente o que é contraordenação, com todo um
regime que pode dizer-se autónomo – tanto do direito penal quanto do direito administrativo –, expurgando-se
as contravenções do ordenamento jurídico, em outros países, porém, continua a não ser sequer pacífica a desig-
nação daquele tipo de infração. O que demonstra a dificuldade que, em termos de direito comparado, esta matéria
oferece. (...) Temos, por isso, um direito sancionador administrativo que, contudo, não se confunde com o direito
de mera ordenação social português nem com o Ordnungswidrigkeitenrecht alemão, inspirador do português”
(MONTE, 2014, p.20-22).
2 Sobre a influência do direito alemão para a concepção atual do sistema punitivo das contraordenações, conferir
Azevedo (2011, p.36-43).
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tuguesa, que, entretanto, será referenciada de modo expresso sempre que a abordagem
assim o exigir
3/4
.
Nessa linha de distinção entre os sistemas, por exemplo, a concepção de “ilícito
administrativo disciplinar” (categoria comum ao direito sancionador brasileiro) não é de
emprego corrente e de sentido apreensível pela legislação, doutrina e tribunais em Portu-
gal, que, por sua vez, valem-se, para a obtenção do mesmo efeito jurídico (sem embargo de
que em Portugal há o contencioso administrativo e no Brasil não há), do instituto jurídico
“ilícito disciplinar, simplesmente, diferenciando-o dos ilícitos das contraordenações e dos
ilícitos administrativos tout court; há ainda em Portugal um fecundo debate sobre os limi-
tes entre o direito penal e o direito das contraordenações, perpassando pelo direito admi-
nistrativo penal e pelas contravenções, para, em fim, firmarem a concepção de direito de
mera ordenação social e de ilícitos contraordenacionais (MONTE, 2014; DIAS
,
2007, p.155 e ss.).
O direito brasileiro, ao servir-se da expressão “administrativo” para qualificar o ilícito
disciplinar, inadvertidamente induz os juristas portugueses – e os demais aplicadores do
direito de outros países, que, por ventura, operam sistemas sancionatórios de modelos
semelhantes – ao entendimento de que todo e qualquer ilícito administrativo seria de
espectro disciplinar, desprezando, destarte, as demais espécies estabelecidas em Portugal,
referentes aos (i) ilícitos administrativos em sentido estrito, tout court, (ii) aos ilícitos das
contraordenações e (iii) aos ilícitos disciplinares privados
5
.
3 A considerar que a investigação dedica-se ao fenômeno ne bis in idem sob a perspectiva do direito brasileiro,
todavia sem olvidar das categorias jurídicas de mesma identidade ou similitudes no direito português, na
medida em que este, em muitos casos, servirá de paradigma às conclusões a que se pretendem, imprescindível
para a nossa proposta de investigação se faz proceder a um ajuste semântico para a acomodação dos
principais conceitos operacionais que serão levados a efeito, mormente os referente às categorias de ilícitos
de direito sancionador presentes no Brasil e em Portugal.
4 O sistema de direito sancionador brasileiro apresenta grande similitude com o sistema de direito sancionador espanhol,
a exceção da presença do contencioso administrativo para este último e não para o primeiro. Com efeito, as
conclusões a que chega Mário Ferreira Monte também se aplicam ao caso brasileiro e, nesse viés, afirma o autor
que “por isso, se alguma conclusão pode tirar-se do direito espanhol é que as infracções administrativas são uma
opção pela descriminalização, muito clara, desde logo porque coabitam com figuras como as contravenções que,
ainda que dentro do direito penal, todavia, não são administrativas em sentido estrito. Mas o modelo, por isto
mesmo, apresenta peculiaridades que se não registram em Portugal” (MONTE, 2014, p.30-31). Para uma análise
detida das distinções entre o sistema sancionador espanhol e o sistema sancionador português, conferir a ainda
Monte (2014, p.18-30).
5 Por exemplo, para os ilícitos contraordenacionais, Mário Ferreira Monte ressalta o problema de essa espécie
não ser comum em alguns países (como é o caso do Brasil), e, assim, a demonstrar a dificuldade que se deparam
os estudiosos do tema, para a transposição de conceitos. Assinala o autor que “se em Portugal e na Alemanha,
por exemplo, se alcançou um nível de distinção aceitável, desde logo formal, ao definir-se claramente o que é
contraordenação, com todo um regime que pode dizer-se autónomo – tanto do direito penal quanto do direito
administrativo –, expurgando-se as contravenções do ordenamento jurídico, em outros países, porém, continua
a não ser sequer pacífica a designação daquele tipo de infração. O que demonstra a dificuldade que, em termos de
direito comparado, esta matéria oferece” (MONTE, 2014, p.20).
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Do mesmo modo, a qualificação especial dessa monta, tal qual referida, também induz os
estudiosos a questionarem se há ou não no Brasil um ilícito disciplinar que não seja sub-
metido a um regime publicístico, como ocorre em Portugal com o ilícito disciplinar privado,
do Código do Trabalho.
Pois bem, diante dessas dúvidas que naturalmente surgem ao liame do debate de
direito comparado, faz-se imprescindível esclarecer que no Brasil os ilícitos administra-
tivos em sentido estrito, tout court, e os ilícitos das contraordenações são englobados por
uma só categoria jurídica, a dos “ilícitos administrativos” e estes, quando adjetivados
de “disciplinares”, formam outra espécie, também submetida ao regime jurídico de direito
público, os “ilícitos administrativos disciplinares”.
Para estes últimos, lança-se mão, também e sem maiores problemas, da expressão “ilí-
cito disciplinar, cuja omissão do vocábulo qualificativo ainda assim referencia o ilícito
disciplinar de caráter público, ou seja, o “administrativo”.
Para os casos submetidos ao regime jurídico de direito privado (que, em Portugal,
comumente, encontram-se no CT), afigura-se no Brasil a denominação “ilícito disciplinar
privado”. Essas questões, apesar da ausência de qualquer pretensão exauriente do tema,
devem, aqui, de plano, ser dirimidas e explicadas.
Comecemos com o sistema vigorante em Portugal.
1. As Concepções De Ilícito Em Portugal
Na ordem jurídica portuguesa há três espécies definidas majoritariamente pela doutrina
(MONTE, 2014; ALBUQUERQUE, 2011) de ilícitos pertencentes ao sistema sancionatório,
que, de início, quanto à extensão de sua natureza punitiva, ainda não se pode caracterizar-
-se exclusivamente de públicas, por motivo que se verá. São elas: (i) o ilícito disciplinar; (ii) o
ilícito das contraordenações ou contraordenacionais, ou, ainda, de mera ordenação social;
e o (iii) ilícito penal (MONTE, 2014).
Para os estudiosos do tema, o ilícito administrativo, puro e simples, em sentido estrito,
“ilícito administrativo tout court, no sistema luso, em razão de não possuir a função de
proteção de bens jurídicos (sequer a função de proteção de bens jurídicos não penais, como
no caso dos ilícitos contraordenacionais que possuem essa objetividade jurídico-prote-
tiva), não pertence à classe do direito sancionador português, a caracterizar-se, dessarte,
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como um sistema sancionador em sentido stricto sensu
6/7
. Com efeito, restam, com caracterís-
ticas sancionadoras, os ilícitos disciplinares e os ilícitos contraordenacionais.
O ilícito disciplinar (i) verte-se em duas outras subclassificações: (i.a) o ilícito disciplinar
previsto no Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Função Pública
8
(subme-
tido a um regime de direito público, compreendendo, e.g., o Estado e as Entidades) e (i.b) o ilícito
disciplinar previsto no Código do Trabalho português
9
(submetido a um regime de direito pri-
vado – e, por este motivo especial, não se há de afirmar categoricamente ser o sistema sancio-
natório português exclusivamente público, como dito, a compreender, e.g., as pessoas jurídi-
cas, privadas ou públicas, porém regidas pelo direito privado. Idêntico fenômeno se dá para
o trato dessa espécie no caso Brasil, pelo mesmo móvel) (MONTE, 2014; AZEVEDO, 2011).
6 Nesse sentido e pela óptica de somente pertencer ao sistema sancionatório o regime regulatório (i) formado a partir
de certas garantias materiais e processuais e (ii) caracterizado pela afeição à proteção de bens jurídicos, o que podemos
compreender como uma concepção estrita da definição do conceito de sistema sancionatório, Mário Ferreira Monte ensina
que “uma coisa seria falar do ilícito administrativo tout court, de uma violação das normas do direito administrativo,
com as consequências próprias deste ramo do direito, ou seja, de uma autotutela da função administrativa . Ao
dizer isto, partimos do pressuposto de que existe na ordem jurídica portuguesa um tipo de ilícito administrativo
não contraordenacional, ou seja, aquele que corresponderia a um ‘facto ilícito tipificado numa norma jurídico-
administrativa, ao qual se aplique uma sanção que não seja a coima, podendo ser, inclusivamente e por estranho
que possa parecer, a multa. E se bem se afirma que não existem diferenças materiais entre o ilícito administrativo
e o ilícito de mera ordenação social, a verdade é que o legislador é quem vem a fazer essa distinção, melhor, é quem
opta por um ou por outro, quando utiliza ou não a coima como sanção para o ilícito típico. Outra coisa diferente,
no entanto, seria subsumir o ilícito de mera ordenação aos princípios e critérios do direito administrativo. Não
se pense que as consequências da realização de um comportamento subsumível a um ilícito administrativo ou a
um ilícito contraordenacional são as mesmas. Desde o facto de um seguir as normas do Código de Procedimento
Administrativo e o outro o processo contraordenacional, passando pelo facto de o recurso das decisões em matéria
de ilícito administrativo caber para os tribunais administrativos ao passo que o de matéria contraordenacional
cabe para os tribunais comuns, em regra, muitas são as diferenças práticas entre os dois. (...) Importa, no entanto,
sublinhar que estas vantagens são aparentes. Quanto mais próximo do sistema penal, obviamente que maiores são
as garantias processuais. Algumas, que são apresentadas como vantagens, esquecem outros aspectos que não são
menos relevantes. (...) Dito isto, no entanto, compreende-se que não possa aceitar-se qualquer tentativa de subjugar
o direito das contraordenações aos quadros do direito administrativo e de atribuir o poder de julgar as decisões em
sede de impugnação contraordenacional aos tribunais administrativos. E, por sobre tudo, pelo que acaba de dizer-
se, discorda-se frontalmente que não se veja entre os dois ilícitos ‘diferenças substanciais’. Este é o verdadeiro
problema. É que o ilícito de mera ordenação social, já ficou dito, tem como função tutelar bens jurídicos,
não penais – ou não carentes de pena –, é certo, enquanto que o ilícito administrativo tem essencialmente
uma função de autotutela da atividade administrativa. Não compreender isto é que inquina todo o raciocínio.
A diferença entre uma função e outra é significativa. Tão grande que justifica que o direito subsidiário do direito
contraordenacional deva ser o direito e processo penal e não o direito administrativo. E de tal modo que os tribunais
competentes para apreciar as impugnações judiciais em matéria contraordenacional devam ser os comuns e não
os administrativos. Entre outras razões, salta de imediato uma: a matéria em causa não é administrativa, senão
sancionatória. (Sem grifos no original) (MONTE, 2014, p.31-38).
7 Mormente em face da ausência de uma jurisdição contenciosa administrativa brasileira, a nossa concepção de
sistema sancionatório é a de caráter amplo, sistema sancionador em sentido lato, de modo a não restringir o conceito
à (a) necessidade de proteção de bens jurídicos, passíveis ou não de aplicação de uma pena criminal, e ou de (b) ele
ser ou não dotado de certas garantias, materiais ou processuais, fundamentais aos administrados. Com efeito,
incluem-se todas as espécies de ilícitos submetidos ao regime jurídico de direito público.
8 Lei 58/2008, de 09 de setembro, revogado pela Lei 35/2014, de 20 de junho.
9 Lei 7/2009, de 12 de fevereiro, cuja última alteração foi efetivada pela Lei 28/2016, de 23 de agosto.
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Os ilícitos disciplinares, sejam submetidos ao regime jurídico de direito público ou ao
regime jurídico de direito privado, são previstos em lei para a proteção de deveres funcionais
(esta é, em Portugal, a cssica função do ilícito disciplinar: a proteção de deveres funcionais)
(DIAS, 2013, p.69 e ss.; SILVA, 2010; CARVALHO, 2014; e COELHO; COUTINHO, 1949, p.38
e ss.)
10
e, destarte, os infratores são submetidos a penas disciplinares em caso de descum-
primento desses deveres.
O ilícito contraordenacional (ii), por seu turno, previsto – principalmente, mas sem
se descurar de outros diplomas especiais – no Regime das Contraordenações (RGCO –
Decreto-Lei 433/82, de 27 de outubro), encerra infração de caráter nomeadamente público,
em que se faz necessária a composição de ofensa a algum bem jurídico tutelado e a existên-
cia de específica proibição legal (esta, uma mera proibição, prevista em lei)
11
, cuja desobe-
diência submete o infrator ao que se denomina em Portugal de “coima”, espécie de sanção
pecuniária
12/13
.
À vista disso, para a caracterização de um ilícito contraordenacional, deve a norma
prescritiva se importar com bens jurídicos que não possuam dignidade penal e, do mesmo
modo, não sejam carecedores de pena criminal. O ilícito contraordenacional não possui a
função atribuída ao direito penal, em que se denota neste último a função de “tutela sub-
sidiária (ou de ultima ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal (de bens jurídico-
10 Coelho e Coutinho (1949, p.38 e 41) asseveram que, em razão disso, “resulta que o ilícito disciplinar é diferente
do ilícito penal, que as sanções disciplinares são diferentes das sanções criminais e podem ou não acumular-se
entre si”.
11 Como exemplo de ilícito de contraordenação e do seu trato pelo direito português, cf. Rodrigues (2009, p.575-
606).
12 Consoante já afirmado em nota alhures, insere-se nesse contexto a definição do conceito de “coima”, como
espécie da sanção natural do regime jurídico das contraordenações, o que se presta a distinção formal entre
esta espécie de ilícito e o ilícito penal. “O RGCO opta por um critério formal de distinção entre o ilícito criminal
e o ilícito contra-ordenacional, assente na cominação de uma coima. As coimas aplicáveis são muitas vezes
consideravelmente mais graves do que as multas, admitindo mesmo o RGCO uma regra de adaptação do valor
da coima ao benefício retirado da conduta de infracção” (ALBUQUERQUE, 2011, p.27).
13 Do mesmo modo, alhures em nota referenciada, assinala Paulo Pinto de Albuquerque que “o direito de
mera ordenação social é um ramo do direito sancionatório público, com uma ‘conexão’ ao direito penal
e ao direito processual penal (acórdão do TC n.º 244/99). Esta ligação refere-se nos seguintes factos: (1) a
equiparação das garantias constitucionais da reserva de competência da AR e da retroatividade da declaração
de inconstitucionalidade (artigos 165.º,n.º 1, al.ª d) e 282.º, n.º 3, da CRP); (2) a aplicação subsidiária do direito
penal no RGCO (artigo 31.º), (3) a reprodução de regras de punição do direito penal no RGCO (artigos 1.º, a 6.º
e 8.º a 16.º), (4) a integração dos regimes das garantias do processo contra-ordenacional no mesmo preceito
constitucional das garantias do processo penal (artigo 32.º da CRP), (5) a aplicação subsidiária do direito processo
penal no RGCO (artigo 41.º, n.º 1), (6) o conhecimento das contra-ordenações no processo criminal, no caso de
concurso de contra-ordenações e crimes (artigo 38.º), (7) o reconhecimento às autoridades administrativas dos
direitos e deveres do MP durante a fase administrativa do processo contra-ordenacional (artigo 41.º, n.º 2), (8)
a incriminação da violação do segredo de justiça no processo contra-ordenacional nos termos que valem para
o processo criminal (artigo 371.º, do CP) e (9) a recorrebilidade da decisão administrativa final e das decisões
administrativas interlocutórias mais graves junto ao tribunal judicial e não do tribunal administrativo (artigo
55.º e 59.º)” (I ALBUQUERQUE, 2011, p.29).
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-penais); ou, o que é dizer o mesmo, de bens jurídicos cuja lesão se revela digna e necessitada de
pena” (DIAS, 2014, p.114).
Por outro lado, mister anotar que os ilícitos das contraordenações não se firmam como
um direito de mera bagatela penal. Não se encontram incluídos no campo protetivo do direito
penal e de suas normas direcionadas à tutela de bens jurídico-penais. Tampouco espécie do
gênero ilícito administrativo em sentido estrito. De uma e de outra destas espécies não se tratam
e possuem uma autonomia própria para a maioria da doutrina
14
, na medida em que tutelam
bens jurídicos, característica esta que não se opera diretamente para os ilícitos administra-
tivos estritos e, por outro lado, apesar de (a) possuírem dignidade penal a impor um afasta-
mento natural dos ilícitos administrativo estritos e uma aproximação dos ilícitos penais,
não necessitam de uma (b) sanção de caráter criminal, uma vez que não tutelam bens jurídicos
de natureza penal. Com efeito, “tem como função tutelar bens jurídicos, não penais – ou não
carentes de pena –, é certo, enquanto que o ilícito administrativo tem essencialmente uma
função de autotutela da atividade administrativa” (MONTE, 2014, p.37-38).
Anote-se, por oportuno e mais uma vez, que o ilícito administrativo em sentido estrito,
em que pese à sua previsão nas normas administrativas regulatórias do direito luso, não
pertence, especificamente, ao sistema sancionatório português, mas sim a um campo de
infrações, digamos, “anômalas”, dedicadas apenas à autotutela das funções administrati-
vas, cuja desobediência submete o autor da conduta a “multas administrativas” (MONTE,
2014). Grosso modo, é o que no Brasil seriam os ilícitos e as suas respectivas sanções decor-
rentes do poder de polícia administrativa.
Por outro lado, em Portugal, não se há que defender pertencerem tais classes de infra-
ção, as contraordenações, ao campo do direito penal, malgrado dedicarem-se à proteção, a
exemplo do direito penal, de bens jurídicos. Pelo que se expôs, a tendência dominante é a
14 Escreve Mário Ferreira Monte a dificuldade, para a maioria dos autores e para a legislação, de delineamento
da autonomia científica desta espécie de direito punitivo. Posiciona-se o autor, em “Lineamento de direitos
das contraordenações”, assumir “a pretensão de vincar a autonomia científica e pedagógica do direito das
contraordenações, que, no entanto, se alicerça na autonomia jurídica, de sentido e dogmática que assestamos a este
ramo do Direito. Se o fazemos ao longo do texto, não é só porque nos parece ser esse o melhor posicionamento.
É também porque continua a pairar uma certa confusão relativamente aos limites e à identidade deste ramo
do direito. Se, de um lado, a Constituição não tem dúvidas em “encostar” o ilícito de mera ordenação social
ao direito penal, tratando-o no âmbito das garantias criminais de nível constitucional, e o Regime Geral das
Contraordenações em declarar o direito penal e o direito processual penal como de aplicação subsidiária, de
outro lado, ouvem-se vozes que reivindicam o tratamento das questões contraordenacionais à luz do direito
administrativo e do procedimento administrativo, ao que se junta a recente e inusitada pretensão de levar para a
jurisdição dos tribunais administrativos algumas matérias contraordenacionais. Pode ler-se no Anteprojeto do Código
de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA): ‘optou-se por fazer ingressar na jurisdição administrativa (...)
as impugnações judiciais de decisões administrativas que apliquem coimas no âmbito dos ilícitos de mera
ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de ambiente, urbanismo,
ordenamento do território, patrimônio cultural e bens do Estado’” (MONTE, 2014, p.13-14).
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de que as contraordenações se afastam dos contornos definitórios do ilícito penal propria-
mente dito, para comporem uma classe autônoma de ilícito
15
.
O ilícito penal (iii), previsto no Código Penal português
16
e em legislações especiais, por
seu turno, possui a função subsidiária de proteção de bens jurídicos, na medida em que tais
bens dotam-se de dignidade penal e, disso, de necessidade de pena criminal quando ofendidos
(DIAS, 2014, p.114).
2. Os Ilícitos e as Suas Distinções Epistemológicas Concretas entre Brasil
ePortugal
No sistema sancionatório brasileiro, o que se denomina em Portugal de “ilícito disciplinar
do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Função Pública” (Lei 58/2008, de
09 de setembro, revogada pela Lei 35/2014, de 20 de junho), classifica-se no Brasil como
“ilícito administrativo disciplinar” – ou, simplesmente, ilícito disciplinar – (previsto, em
especial, para os servidores públicos federais do Brasil no Estatuto dos Servidores Públicos
Civis da União, Autarquias e Fundações e seguido, por simetria, pelos Estados, Distrito
Federal e Municípios)
17
, e, quando se quer referir ao que seria o similar ilícito disciplinar
privado, elencado no Código do Trabalho português (Lei 7/2009, de 12 de fevereiro, cuja
última alteração foi efetivada pela Lei 28/2016, de 23 de agosto), refere-se, no Brasil, ao ilícito
disciplinar privado (geralmente estipulado na Consolidação das Leis do Trabalho)
18/19
.
O que se denomina em Portugal de ilícito contraordenacional, ou ilícito das contraorde-
nações, ou, ainda de mera ordenação social, ingressa como espécie do gênero ilícito admi-
nistrativo em um sentido amplo, em sentido lato, do mesmo modo em que assim ingressa no
gênero o ilícito administrativo disciplinar. Destarte, no Brasil não há uma distinção entre
15 Mário Ferreira Monte aponta a tênue linha que divide essa classificação entre submeter-se ao entendimento de
tratar-se de ilícito penal, ou mesmo de ilícito administrativo em sentido estrito, ao esclarecer que “a questão da
delimitação do ilícito de mera ordenação social é, como se vê, da maior importância, num duplo sentido: primeiro,
no de que se impõe saber quando é que uma conduta é criminosa ou simplesmente contraordenacional – questão
dos limites tout court do direito das contraordenações, face ao direito penal, com o qual, por se tratar de direito
sancionatório, que deve aplicar-se subsidiariamente, partilha linhas de fronteira; depois, estando esta delimitação
feita, impõe-se qualificar o ilícito de mera ordenação social, para que também deste modo se saiba o que, embora
não sendo crime, pode ou não ser contraordenação, pode ou não ser outra realidade que não o ilícito de mera
ordenação social. Claro que a ordem poderia ser outra. Primeiro qualificar-se, para depois se delimitar. Mas parece-
nos que a aqui escolhida tem a vantagem de se partir do geral para o particular. Delimitar não exige uma qualificação
específica do ilícito, podendo, como veremos, usar-se critérios mais gerais. Ao passo que qualificar a conduta, mesmo
depois de delimitadas e distintas em geral, exige um trabalho de filigrana, mais apurado” (MONTE, 2014, p. 18).
16 Decreto-Lei 400/82, de 31 de maio, em vigor a partir de 1.º de janeiro de 1983.
17 Lei 8.112/90, de 11 de dezembro.
18 Decreto-Lei 5.4.52/43, de 1.º de maio.
19 No Brasil nada obsta a previsão de ilícitos disciplinares em relações estritamente primadas não trabalhistas,
a exemplo dos estatutos de condomínios prediais, dos estatutos de sócios de clubes esportivos, de recreio e de
outras atividades, desde que sejam lícitas.
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o que seria ilícito administrativo em sentido estrito e ilícito das contraordenações e sequer há
o uso dessa denominação, ou de qualquer regime regulatório distinto para ilícitos com
características a elas assemelhadas (as contravenções penais – o que mais se aproximaria
no Brasil ao ilícito contraordenacional português e é regida pela Lei 7.210, de julho de 1984,
Lei das Execuções Penais (LEP) –, no sistema brasileiro, submetem-se às regras do direito
penal e do direito processo penal, uma vez que, a exemplo do crime, compõe espécie do
gênero ilícito penal). O sistema alemão, com “o Ordnungswidrigkeitenrecht alemão, inspi-
rador do português” (MONTE, 2014, p.22) à migração dos ilícitos de contravenções para
os ilícitos contraordenacionais, com consequente e paulatina extinção daquela primeira
espécie (a contravenção), não se insere na realidade brasileira, que, ainda, mantém as con-
travenções como espécie de ilícito penal, malgrado quase em completo desuso
20
.
Essas infrações que em Portugal se encaixariam como contraordenacionais seriam –
se não tipificadas como contravenções penais e, com efeito, submetidas às regras penais e
processuais penais jurisdicionais – apenas mais uma espécie do gênero “ilícito adminis-
trativo”, que, por seu turno, também abarca o ilícito administrativo disciplinar, na quali-
dade de outra espécie.
Quanto à necessidade de os ilícitos administrativos brasileiros que seriam denomina-
dos em Portugal de infrações contraordenacionais, o mesmo padrão de exigência se afere,
qual seja a necessidade de bens jurídicos e a existência de uma proibição legal, mas, toda-
via, a sanção aplicada para o descumprimento da lei não se reporta a uma “coima”, mas sim
a uma sanção administrativa, desta natureza, também prevista em lei. Quanto aos ilícitos
administrativos disciplinares, estes seguem os mesmos exemplos do direito penal, apenas
a necessidade de proteção de bens jurídicos, na medida de possrem dignidade ético-moral-
-disciplinar e necessidade de pena disciplinar.
Em referência ao direito penal, Brasil e Portugal, a par de pormenores de inexpressivos
e insignificantes efeitos, nada distinguem em suas teorias essenciais do delito. Ambos
compreendem o crime sob o manto de tratar-se de espécie de ilícito dotado de dignidade
penal que, por natureza do bem protegido – pela importância do bem jurídico tutelado
pela ordem normativo-penal –, atrai a aplicação de uma pena criminal. Por todo o exposto,
20 Como ressalta Mário Ferreira Monte, a distinção entre ilícito penal e ilícito contraordenacional é meramente
formal e, todavia, em Portugal e na Alemanha, alcançou-se um nível de distinção aceitável entre um e outro, o
que se operou, pensamos, por efeito ativo do princípio da ultima ratio do direito penal. Afirma o autor que “Se
em Portugal e na Alemanha, por exemplo, se alcançou um nível de distinção aceitável, desde logo formal, ao
definir-se claramente o que é contraordenação, com todo um regime que pode dizer-se autónomo – tanto do
direito penal quanto do direito administrativo –, expurgando-se as contravenções do ordenamento jurídico, em
outros países, porém, continua a não ser sequer pacífica a designação daquele tipo de infração. O que demonstra
a dificuldade que, em termos de direito comparado, esta matéria oferece” (MONTE, 2014, p.20).
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a presente investigação se dedica a explorar o que denominamos no Brasil ilícito adminis-
trativo disciplinar (esta é a expressão conceitual utilizada no Brasil para o que em Portugal
se entende como ilícito disciplinar), que, na legislação portuguesa, reporta-se ao ilícito dis-
ciplinar do Estatuto Disciplinar da Função Pública.
Não nos deteremos ao estudo dos ilícitos disciplinares privados, assim como também não
nos deteremos ao estudo dos ilícitos contraordenacionais, ou mesmo dos ilícitos administra-
tivos em sentido estrito (estes dois últimos, os contraordenacionais e os administrativos em
sentido estrito, no Brasil, mesclam-se em uma só categoria, a do ilícito administrativo, pas-
vel de sanção administrativa(OSÓRIO, 205)). Deter-nos-emos, tão somente, à investigação
do ilícito disciplinar submetido ao regime administrativo de caráter público em confronto com o
ilícito penal, o que não impede inferências e incursões, vez ou outra, a conceitos e nuances
das demais espécies de ilícitos.
Sob esse esboço, traçamos as diretrizes, em linhas gerais, do direito sancionador público e
privado brasileiro, compreendido como um direito punitivo geral, subdividido nas espécies
proibitivas: (i) ilícito penal; (ii) ilícito disciplinar: (ii.a) ilícito administrativo disciplinar; (ii.b) ilícito
disciplinar privado; (iii) ilícito administrativo propriamente dito (em sentido estricto).
O fluxograma a seguir, em breve síntese e, assim, sem qualquer pretensão exauriente,
posto não ser este o objeto investigativo, delineia o sistema sancionador português e o sistema
sancionador brasileiro, certo de que apenas é objeto desta tese, para a alise da aplicação
ou não do princípio ne bis in idem, as relações ente os bens jurídicos (e aqui, referimo-nos à
extensão desses bens submetidos à proteção, como objetos jurídicos normativos) protegidos
pelo ilícito penal e pelo ilícito disciplinar, sob a óptica do modelo brasileiro, independente
de se tratar de bem jurídico dotado ou não de dignidade penal, bastando o papel da tipici-
dade de um e de outro ramo do direito sancionador, para a eleição do adequado valor a ser
protegido.
a. Sistema Sancionador Português:
SISTEMA
SANSIONADOR
PORTUGUÊS
ILÍCITO
DISCIPLINAR
ILÍCITO
DISCIPLINAR
BLICO
v.g. EDTFP
ILÍCITO
DISCIPLINAR
PRIVADO
v.g. CTp
ILÍCITO
CONTRAORDENACIONAL
ILÍCITO PENAL
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Sistema Sancionador Brasileiro:
SISTEMA
SANSIONADOR
BRASILEIRO
ILÍCITO
DISCIPLINAR
ILÍCITO
ADMINISTRATIVO
DISCIPLINAR
(PÚBLICO)
v.g. EGFb
ILÍCITO
DISCIPLINAR
PRIVADO
v.g. CLT
ILÍCITO ADMINISTRATIVO
DE CARÁTER GERAL
ILÍCITO PENAL
O que se reportou no quadro anterior compreende uma visão resumida do sistema
brasileiro, que comporta – assim como também comporta o sistema sancionador portu-
guês – deslindes detalhados de rol de infrações aos seus diversos sistemas sancionadores.
Em uma acepção mais detalhada do Sistema Sancionador Brasileiro – o que não o fare-
mos para o sistema sancionador português –, pode-se perceber a sua (i) face não jurisdicio-
nal, não submetida a um “contencioso administrativo”, mas tão somente à juridicidade da
Administração Pública, e uma (ii) face jurisdicional, para uma ou outra espécie de ilícitos,
a saber, os (ii.a) ilícitos penais e os (ii.b) ilícitos civis por atos de improbidade administrativa.
Com isso, a par do ilícito penal a encontrar-se em um patamar jurisdicional, inserem-
-se, porém em sede de jurisdição não penal e sim cível, os atos de improbidade adminis-
trativa, regidos pela Lei de Improbidade Administrativa, Lei 8.429/92, cujo conteúdo de
suas proibições compreende espécie de ilícito civil-administrativo, como dito, de caráter
processual jurisdicional.
Sem embargo, em razão do objeto de nossa investigação, não nos deteremos à aná-
lise de seu conteúdo pormenorizado, pois uma alise mais detida fugiria aos propósitos
desta abordagem. Entretanto, apenas os apontamos com escopo ilustrativo para dizer que,
pensamos, tratarem-se de verdadeiros ilícitos administrativos disciplinares na essência,
porém, por diferencial, submetidos a uma espécie de contencioso administrativo “à bra-
sileira”:
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SISTEMA
SANSIONADOR
BRASILEIRO
Não Jurisdicional,
mas de jurisdição
provocável
a qualquer
tempo, por ação
autônoma.
Ilícito
Administrativo
Lato Sensu
Ilícito
Administrativo
Disciplinar
Ilícito
Administrativo
Disciplinar
Estatutário
CLT
LEP
EGFb
Ilícito
Administrativo
Disciplinar
Penal (Direito
Disciplinar
Penitenciário)
Ilícito
Administrativo
Stricto Sensu
Ilícito Disciplinar
Privado
Agentes da
Administração
blicas
Submetidos a
Regime Jurídico
Privado
Agentes da
Administração
blicas
Submetidos a
Regime Jurídico
Público
Jurisdição
Civil
Atos de
Improbidade
Administrativa (LIA)
Jurisdicional
Penal
Ilícito Penal
Crime
Contravenção Penal
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i. Sistema Sancionador Brasileiro sob a harmoniosa validade do ne bis in idem, pela
óptica de bens jurídicos não afetados por sobreposições legais protetivo-independentes
21
,
entre ilícitos penais e ilícitos administrativos disciplinares:
SISTEMA
SANSIONADOR
BRASILEIRO
ILÍCITO
DISCIPLINAR
ILÍCITO
ADMINISTRATIVO
DISCIPLINAR
(PÚBLICO)
EGFb
ILÍCITO
DISCIPLINAR
PRIVADO
CLT
ILÍCITO ADMINISTRATIVO
DE CARÁTER GERAL
ILÍCITO PENAL
ii. Se há distinção de bens jurídicos protegidos (ou, apesar de se tratar do mesmo bem
jurídico, porém com distinção do nível de sua afetação protetiva), há deferência ao
princípio ne bis in idem:
21 Entendemos por sobreposições legais protetivo-independentes a ocorrência de mais de uma norma vigente de direito
sancionador, direcionada à tutela de um mesmo bem jurídico e de seu nível de afetação, a possibilitar duas ou
mais punições autônomas em razão de um mesmo fato; ao passo que, por sobreposições legais protetivo-concorrentes,
a ocorrência de mais de uma norma vigente de direito sancionador, direcionadas à tutela de um mesmo bem
jurídico e de seu nível de afetação, porém, caracterizadas pelo fato de que a primeira dotada de efetividade ou
de eficácia social exclui a segunda e eventuais outras normas de mesma característica, de modo a obstar outros
processos sancionadores e punições decorrentes – efeito de controle do jus persequendi e do jus puniendi estatal.
ILÍCITO PENAL
ILÍCITO ADMINISTRATIVO
DISCIPLINAR
BENS JURÍDICOS
DE INTERRESSE
EXCLUSIVAMENTE
DISCIPLINAR
DISTINÇÃO DE
BENS JURÍDICOS
OU DISTINÇÃO
DE AFETAÇÃO
DO MESMO BEM
JURÍDICO
DEFERÊNCIA AO
PRINCÍPIO NE BIS
IN IDEM
BENS JURÍDICOS
DE INTERRESSE
EXCLUSIVAMENTE
CRIMINAL
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iii. Se há identidade de bens jurídicos protegidos (consideram-se aqui, cumulativa-
mente, o mesmo bem jurídico e o mesmo nível de sua afetação – sobreposições legais
protetivo-independentes), há ofensa ao princípio ne bis in idem:
II. A Relação entre a Proteção de Bens Jurídicos (ou a Proteção a Deveres
Funcionais) e a Proibição de mais de uma Norma Punitiva para o Mesmo
Fato
Por oportuno, poderíamos, por bem, aceitar o que entende a doutrina pacífica portuguesa
de que os ilícitos disciplinares protegem deveres funcionais e os ilícitos penais defendem,
originariamente, bens jurídicos (DIAS, 2014; GERMANO, 2010; CARVALHO, 2014) e, em
atividade anômala, determinadas prescrições de crime possam vir a estipular, inadverti-
damente por obra de superficial debate legislativo, em seu plexo de tipicidade, tão somente
deveres funcionais, erigidos indevidamente, assim, a proteção penal (a exemplo do que
alguns sustentam em alguns crimes contra o sistema tributário ou ao sistema ambien-
tal, em que não se estaria diante de verdadeiras proteções de bens jurídicos, mas de, tão
somente, deveres funcionais); e, dessarte, também reconhecermos a incidência de bis in
idem, ou seja, de dupla punição ilegal, em razão de um mesmo fato jurídico, mas não em
face de um mesmo bem jurídico concorrentemente protegido, e sim de um mesmo dever
funcional tutelado, simultaneamente, pelo penal e pelo direito disciplinar. Diríamos: uma
tipificação de ilícito penal e uma tipificação de ilícito disciplinar a defenderem, concomi-
tantemente, um mesmo dever funcional também é caso de ofensa, em abstrato, ao princípio
ne bis in idem.
ILÍCITO PENAL
ILÍCITO ADMINISTRATIVO
DISCIPLINAR
BENS JURÍDICOS
DISCIPLINARES
IDENTIDADE DE
BENS JURÍDICOS
E IDENTIDADE
DE AFETAÇÃO
DESSES MESMOS
BENS JURÍDICOS
OFENSA AO
PRINCÍPIO NE BIS
IN IDEM
BENS JURÍDICOS
CRIMINAIS
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Poderíamos, assim, alegar a ocorrência de bis in idem em razão de proteções concomi-
tantes de um mesmo dever funcional, tipificado como objeto de proteção penal e disciplinar,
(i) em abstrato, em razão de meras previsões legais, e, outrossim, também (ii) em concreto, à
vista de (ii.a) mais de um processo sancionador em curso – um processual penal e outro
processual disciplinar – ou em face de (ii.b) nova aplicação de sanção decorrente de um
desses processos jurídicos.
Mas não é o caso, uma vez que sustentamos que os ilícitos disciplinares, a exemplo dos
ilícitos penais, na origem teleológica, devem defender bens jurídicos relevantes para cada
esfera epistemológica do direito sancionador público.
Não se trataria de defesa de deveres funcionais, mas sim, pela natureza punitiva per-
sonificada da seara penal e da seara disciplinar, de coerção indireta à inalterabilidade de
determinados bens juridicamente escolhidos como relevantes para o funcionamento
social e corporativo. Nesse momento é que se concebe a “funcionalidade” do corpo social
ou institucional como um dever funcional reflexo abrangido pela proteção do próprio bem
jurídico que o envolve.
A equivocada eleição de deveres funcionais dedicada à proteção por tipos penais não
compreende objeto da presente pesquisa e, do mesmo modo, não muda a relevância de
reconhecimento de haver, nas balizas de tipicidades penal e disciplinar, bens jurídicos dig-
nos de proteção ora penal, ora disciplinar, e, com efeito, carentes, ora de penas criminais
e ora de penas disciplinares, a depender da necessidade epistemológica de proteção: (i) a
proteção geral, subsidiária e afeta ao direito penal; e (ii) a proteção disciplinar, que perfaz
incidência local, setorial, afeta às instituições públicas, mesmo assim dedicadas à proteção
social indireta.
Para os que reconhecem a existência de proteção, em alguns casos, de deveres fun-
cionais em tipos penais (e não, necessariamente e por equívoco, de bens jurídicos dota-
dos de dignidade penal) – o que nada influi na concepção de mais de uma punição
pelo mesmo fato à luz de um sistema sancionador em sentido lato –, o fluxograma a
seguir ilustra a ofensa ao princípio ne bis in idem, mas, como advertimos, não é o caso
da presente investigação. Apontamo-la apenas de forma a demonstrar que a questão
não nos passou despercebida e, assim, para afirmar que, independentemente de se
tratarem de bens jurídicos ou de deveres funcionais, a invalidade persiste, como punição
plural ofensiva do princípio referenciado. Nesses moldes, o fluxograma a seguir ilus-
tra o que dizemos.
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iv. Se se tratasse de identidade de “deveres funcionais” protegidos (consideram-se tam-
bém aqui, cumulativamente, o mesmo dever funcional e o mesmo nível de sua afe-
tação), haveria ofensa ao princípio ne bis in idem:
O que queremos com isso dizer é que não importa se o direito penal e o direito adminis-
trativo disciplinar protegem bens jurídicos ou deveres funcionais, conquanto, a haver iden-
tidade de objetos jurídicos tutelados (bens jurídicos penais ou deveres funcionais) (PRADO,
2015; SILVA, 2013, p.64-65; OLIVEIRA, 2010)) puníveis ou punidos em decorrência de um
mesmo fato base, haver-se-á de falar em ofensa ao princípio ne bis in idem e, à vista dessa
constatação, o dever de os órgãos encarregados das decisões administrativas e jurisdicio-
nais reconhecerem a legalidade dessa atuação estatal.
Há de se verificar, pela mirada que se ora delineia, a razão jurídica arrimada na con-
cepção de que o princípio ne bis in idem deve incidir, com os seus efeitos obstativos de uma
segunda sanção ou de um segundo processo, a partir da premissa de (i) considerar-se o fato
identificado como uno, do fato-base a servir de hipótese de incidência das normas sanciona-
doras, e não de (ii) considerar-se a espécie de sanção, a sua natureza jurídico-punitiva.
Em que pese a toda essa amplitude de viabilidades de incidência do ne bis in idem e de
possibilidades de investigações variadas sobre os seus aspectos, advertimos que, nos dete-
remos aos limites da defesa da perspectiva fática e constatável de sobreposições legais prote-
tivo-independentes de bens jurídicos entre o ilícito penal e o ilícito disciplinar, cuja facticidade,
in concreto, deveras, não se apresenta com o caráter de viabilidade jurídico-constitucional,
de modo a considerar inconstitucional mais de uma punição pelo mesmo fato gerador do
processo e da sanção, por ofensa ao princípio ne bis in idem.
A seguir, em síntese do que se ora exs, apresentamos um breve quadro, com vistas a
retratar um panorama geral do sistema sancionador português e do sistema sancionador bra-
sileiro. Porta-se, assim, a incluir os tipos de ilícitos de um e de outro, assim como as suas
ILÍCITO PENAL
ILÍCITO ADMINISTRATIVO
DISCIPLINAR
SUPOSTOS “DEVERES
FUNCIONAIS”
DISCIPLINARES
IDENTIDADE
DE DEVERES
FUNCIONAIS
E IDENTIDADE
DE AFETAÇÃO
DESSES MESMOS
DEVERES
FUNCIONAIS
OFENSA AO
PRINCÍPIO NE BIS
IN IDEM
SUPOSTOS “DEVERES
FUNCIONAIS” CRIMINAIS
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principais características afetas ao regime jurídico a que se submetem
22
e, ainda, a prová-
vel correspondência tipológica comparativa entre os ilícitos desses dois sistemas.
Acautelamo-nos, porém, que se trata de uma análise sem qualquer pretensão exau-
riente, firmada apenas para situar o nosso objeto de investigação, qual seja, o ilícito admi-
nistrativo disciplinar em concorrência punitiva com o ilícito penal.
Tabela de visão geral dos Sistemas Sancionadores de Portugal e do Brasil:
COMPARÃO ENTRE OS SISTEMAS SANSIONADORES BRASILEIRO E PORTUGUÊS
SISTEMA DE DIREITO SANCIONADOR
SISTEMA SANCIONADOR
PORTUGAL BRASIL
TIPOLOGIA SANÇÃO TIPOLOGIA SANÇÃO
1.ICITO
DISCIPLINAR
• ILÍCITOS DISCIPLINARES
PÚBLICOS.
(Possuem regime jurídico
de direito público e,
especialmente, estão
previstos no Estatuto
dos Funcionários
Trabalhadores da Função
Pública).
Saões
Administrativas
Disciplinares (Penas
não criminais).
• ILÍCITOS ADMINISTRATIVOS
DISCIPLINARES, OU, ICITOS
DISCIPLINARES.
(Possuem regime jurídico de
direito público e, em sua maior
parte, no geral, no EGFb).
Saões
Administrativas
Disciplinares
(Penas não
criminais).
• ILÍCITOS DISCIPLINARES
PRIVADOS.
(Possuem regime jurídico
de direito privado,
especialmente previstos no
Código do Trabalho).
Sanções Trabalhistas
Privadas.
• ILÍCITOS TRABALHISTAS.
(Possuem regime jurídico de
direito privado e, no geral,
encontramse previstos na
CLT).
Saões
Trabalhistas
Privadas.
• ILÍCITOS DISCIPLINARES
VEIS
(Possuem regime jurídico de
direito privado e previsto no
Código Civil e Legislações Civis
Especiais).
Saões Cíveis
(do Código Civil
e de Leis Civis
Especiais).
2. ILÍCITO DAS CONTRAORDENAÇÕES Coimas • ILÍCITOS ADMINISTRATIVOS.
(Possuem regime jurídico
de direito público e
eso previstos em Leis
Administrativas Esparsas).
Saões
Administrativas
(Multas e
outras sanções
administrativas).
3. ICITO ADMINISTRATIVO TOUTCOURT Saões
Administrativas
(Multas)
3. ICITO PENAL • CRIMES OU DELITOS Penas de
Natureza Criminal,
incluindo‑se a Multa
Criminal.
• CRIMES OU DELITOS
(Possuem regime jurídico
de direito público e eso
previstos no Código Penal
brasileiro e em Leis Penais
Especiais).
• CONTRAVENÇÕES PENAIS
(Possuem regime jurídico
de direito público e eso
previstas na LCP).
Penas de
Natureza
Criminal, a
abarcar a Multa
Criminal.
Tabela 1: comparão entre o sistema sancionador português e o sistema sancionador
brasileiro.
O fato é que, para todo o cerne da pesquisa, defendemos a identidade ontológica entre,
e.g., os ilícitos penal e disciplinar, na medida em que o que acima se expôs serviu para
um início dessa demonstração. Nesse mesmo sentido são as afirmações de Llobregat, a
concluir a existência de identidade substancial para o fenômeno sancionador penal e adminis-
22 Todavia, esse panorama elaborado, por razões de corte metodológico (visto que não se trata de objeto da
tese em si), não adentrará ao fato e às características de que em Portugal vigora no sistema o contencioso
administrativo – o que, deveras, caracteriza-o como sistema jurisdicional ab initio da relação jurídica
formada entre o particular e o Estado –, ao passo que, no Brasil, ainda se contempla uma fase estanque de
juridicidade administrativa, não jurisdicional, carente dessa atuação, mas, por oportuno, com possibilidades
de intervenções jurisdicionais esporádicas, na medida em que sejam provocadas pelo direito de petição do
particular dotado de interesse jurídico.
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trativo, ocasião em que sustenta que “si de todo lo expuesto hata ahora pudiera extraerse
alguna conclusión ésta sería, sin a Duda alguna, la constatación de la homogeneidad onto-
lógica de las distintas vertientes del Derecho Sancionador” (LLOBREGAT, 2012, p.55). Por
exemplo, muito se debate em Portugal acerca da autonomia material do ilícito contraorde-
nacional frente ao direito penal e se assinala que há essa autonomia, uma vez que o ilícito
contraordenacional é ético-socialmente indiferente: a sua conduta, por si só, corresponde a
um indiferente ético-social, que depende de uma proibição legal para se apresentar etica-
mente relevante para o direito; ou seja, os ilícitos contraordenacionais dependem do des-
valor contido na ilicitude, para ser relevante para o direito. Distintamente se arma para
o direito penal, em que se entende que a própria conduta em si, independentemente da
ilicitude contida em uma norma proibitiva, um comportamento ético-socialmente relevante.
Nas palavras de Figueiredo Dias, para o direito das contraordenações, que depende de
uma proibição legal para criar a ilicitude, há uma conduta “axiologico-socialmente neu-
tra”, ao passo que para o direito penal, há uma conduta “axiológico-socialmente relevante”
(DIAS, 2014, p.161 e 162).
A distinção material entre os ilícitos penais e os ilícitos contraordenacionais, para
Figueiredo Dias, opera-se nessas balizas de reprovação ético-moral de condutas, indepen-
dentemente de prescrição legal que introduza a concepção de ilicitude, para o direito penal,
e da necessidade de proibição legal criadora da ilicitude para as condutas de natureza con-
traordenacional. A essência da distinção encontra-se na base da inata reprovação social
de umas condutas e de outras não
23
. Para o direito penal a ilicitude seria natural, afeta à
própria concepção de conduta reprovada como crime, ao passo que os demais ilícitos e,
v.g., os ilícitos contraordenacionais estão a depender de uma proibição, prescrição proibitiva
prevista em lei, supridora formal dessa “contrariedade social”, a formalizar a ilicitude, que
para o direito penal seria natural.
Por outro lado, distintamente do que ocorre com os ilícitos contraordenacionais e os
ilícitos penais, para o direito administrativo disciplinar e o seu ilícito, não vislumbramos
essa distinção material entre este último, o disciplinar, e o ilícito penal. Entendemos haver
23 Assinala Figueiredo Dias que “necessário é que a perspectiva da ‘indiferença ético-social’ se dirija não
imediatamente aos ilícitos – que supõem já realizada a valoração legal –, mas às condutas que os integram.
Existem na verdade condutas às quais, antes e independentemente do desvalor da ilicitude, corresponde,
e condutas às quais não corresponde um mais amplo desvalor moral, cultural ou social. A conduta,
independentemente da sua proibição legal, é no primeiro caso axiológico-socialmente relevante, no segundo
caso axiológico-socialmente neutra. O que no direito de mera ordenação social é axiológico-socialmente
neutro não é o ilícito, mas a conduta em si mesma, divorciada da proibição legal; sem prejuízo de, uma vez conexo
com esta, ela passa a constituir substrato idóneo de um desvalor ético-social. É este o critério decisivo que es
na base do princípio normativo fundamentador da distinção material entre ilícito penal e ilícito de mera
ordenação social” (DIAS, 2014, p.161 e 162). (Grifos do original).
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uma reprovação “axiológico-socialmente relevante” também para os casos de condutas
disciplinares, as quais são, por essência, correspondentes também, a exemplo do direito
penal, a “um mais amplo desvalor moral, cultural ou social”, consoante afirma Figueiredo
Dias para o direito penal (DIAS, 2014, p.161-162).
O que difere, sob essa óptica, o direito penal do direito disciplinar é o campo de abran-
gência do primeiro, que possui um caráter geral e abstrato sobremaneira superior ao
campo de abrangência da norma disciplinar, restrita às relações especiais de sujeição,
afetas, no Brasil, aos servidores públicos, e, em Portugal, aos trabalhadores que exercem
função pública. Esse também é o posicionamento de Figueiredo Dias, ao assinalar que
diferentemente do que sucede com o direito das contra-ordenações, os comportamentos
integrantes do ilícito disciplinar não podem dizer-se axiologicamente neutros, como
tão-pouco pode afirmar-se que o ilícito respectivo é aqui constituído pela proibição” (grifos
do original) (DIAS, 2014, p.168-169).
Com efeito, não por esse motivo teríamos uma distinção material e ontológica entre os
ilícitos penal e administrativo disciplinar.
Não obstante, Figueiredo Dias sustenta que a relação entre o agente público e o Estado
é firmada no princípio da lealdade administrativa, a se lhe assegurar, ao agente administra-
tivo, uma série de direitos decorrentes da profissão e, por outro lado, também uma série
de deveres que se lhe impõem no interesse da coletividade, da comunidade jurídica, cons-
tituindo-se, dessarte, antes de tudo, uma “relação de dever que serve o interesse público
em nome da integridade e da confiança” e os comportamentos que violem essa relação de
dever, relação especial de sujeição pública, passa a agredir a integridade e a confiança per-
tencentes ao serviço público e, assim, “comete, sob determinados pressupostos, um ilícito
disciplinar e torna-se passível de medidas (sanções) disciplinares” (DIAS, 2014, p.169).
Com base nessas premissas, Figueiredo Dias assinala a distinção entre o ilícito disci-
plinar e o ilícito penal, na medida em que aquele trata de um ilícito interno, interna corporis,
“exclusivamente virado para o serviço” (DIAS, 2014, p.169), ao passo que o ilícito penal
trata de ilícitos abrangentes, extramuros do serviço público. Sem embargo, ainda assim
consideramos a ausência de distinção ontológica entre essas duas espécies de ilícitos, o
penal e o disciplinar.
III. Considerações Finais
Em conclusão, imprescindível apontar que, apesar das possíveis e variáveis classificações
epistemológicas para a concepção de ilícitos entre ordens normativas punitivas diversas,
a exemplo do que se ora pesquisou nas experiências entre Brasil e Portugal, há de se ter
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assente a existência de um núcleo intangível, ontológico, entre as variações de prescri-
ções proibitivas, que se firmam, necessariamente, nas espécies de objetos protegidos pelas
diversos ramos do direito sancionador, público ou privado.
A concepção de bem jurídico naturalmente adequado à proteção normativa de cada
ramo epistemológico, de acordo com sua essência finalística, faz-se primordial, por obra
do legislador e, sem embargo, em juízo de adequação, por obra do julgador, para dar, não
somente eficácia normativa, mas, sim, eficácia social a uma ordem punitiva estatal justa e,
exempli gratia, afastada de excessos sancionadores, sobressanções, a exemplo do bis in idem.
Para encerrar com uma ilustração afeta ao ilícito administrativo disciplinar, podemos
afirmar que não basta apenas o desinteresse do direito penal pelo fato (princípio da ultima
ratio e princípio da fragmentariedade penal), mas, sim, o interesse da Administração
Pública pelo fato rejeitado pelo ramo jurídico-criminal, a ponto de ele ir de encontro, ferir,
os interesses públicos relevantes para o Estado-administração. Com efeito, na hipótese de
desinteresse simultâneo, do direito penal e do direito disciplinar, por ausência de interesse
público sancionador em sentido amplo, mister reconhecer a atipicidade do fato em ambas
as searas sancionadoras – penal e administrativa disciplinar.
Nisso, ainda a título ilustrativo, há de se denotar que as tipificações da disciplina
interna do serviço público se relacionam primeiramente com o interesse público, não se
sujeitando, ao menos de forma direta, às razões de outros ramos do Direito.
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O paradigma indiciário na era da informação:
os desaos semióticos do processo penal
The indiciary paradigm in the information era:
thesemioticchallenges of the criminal process
ELIOMAR DA SILVA PEREIRA*1
eli.omar.vii@gmail.com
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
July Julho–31
ST
December Dezembro 2020 · pp. 4656
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.2.3
Submitted on September 28
th
, 2020 . Accepted on November 10
th
, 2020
Submetido em 28 de setembro, 2020 . Aceite a 10 de novembro 2020
RESUMO A era da informação, sobretudo em sua expressão digital, tem promovido grande
revolução nas relações sociais, viabilizando novas perspectivas interativas nos âmbitos
diversos da sociedade, política e economia, assim como no âmbito da criminalidade
comum e organizada. Ao passo que cria ambientes novos de prática de antigos crimes,
viabiliza também novos crimes que se praticam no espaço cibernético, mas também acaba
por criar novos sinais que se podem assimilar como indícios de atividades relevantes à
investigação do crime no processo penal. Este artigo tem por objetivo discutir o paradigma
indiciário que permanece relevante à compreensão desse universo de sinais digitais,
segundo uma abordagem semiótica das provas, bem como delimitar suas possibilidades
lógicas fundamentadas em inferências abdutivas, ao passo que reafirma os direitos
fundamentais de defesa que em nada devem ser abalados pela multiplicação dessas novas
fontes de informação.
PALAVRASCHAVE paradigma – informação – índice – abdução – semiótica
ABSTRACT The information age, especially in its digital expression, has promoted a great
revolution in social relations, enabling new interactive perspectives in different areas of
society, politics and economics, as well as in the scope of common and organized crime.
While it creates new environments for the practice of old crimes, it also enables new
* Doutor em Direito (Universidade Católica Portuguesa, Escola de Lisboa). Investigador Integrado do Ratio Legis
– Centro de Investigação e Desenvolvimento em Ciências Jurídicas, Universidade Autónoma de Lisboa: Corpus
Delicti – Estudos de Criminalidade Organizada Transnacional. Professor do Programa de Pós-Graduação da Escola
Superior de Polícia (Polícia Federal do Brasil). Delegado de Polícia Federal. Assessor da Casa Civil (Presidência da
República do Brasil).
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crimes that are practiced in cyber space, but it also ends up creating new signs that can
be assimilated as evidence of activities relevant to the investigation of crime in criminal
proceedings. This article aims to discuss the evidential paradigm that remains relevant
to the understanding of this universe of digital signals, according to a semiotic approach
to evidence, as well as to delimit its logical possibilities based on abductive inferences,
while reaffirming the fundamental rights of defense that in no way must be shaken by
the multiplication of these new sources of information.
KEYWORDS paradigm – information – index – abduction – semiotics
1. Introdução
A noção de paradigma já era conhecida no mundo antigo como modelo ou exemplo, con-
forme se buscasse um padrão no mundo das ideias ou no mundo da experiência
1
, mas
foi apenas no século passado que se renovou seu interesse a partir da historiograa das
ciência com a obra de Thomas Kuhn, gerando discussões que lhe exigiram melhor expli-
car-se m Posfácio (1969), para defini-lo inicialmente como aquilo que os membros de uma
comunidade cientifica partilham, explicando-o como uma “constelação dos compromis-
sos de grupo” que abrange “generalizações simbólicas”, “partes metafísicas”, valores e
exemplares compartilhados
2
. Diríamos, melhor, contudo, que certos paradigmas podem
ser compartilhados por várias comunidades, não apenas científicas, como também jurídi-
cas, a exemplo do paradigma indicrio. E de forma mais sintética, podemos compreender
o paradigma como um parâmetro ético-epismico de ação e pensamento que inclui uma visão de
mundo e do homem. E, nesse sentido, ele terá sempre algumas diversas variações e mesmo
um contra-pametro que disputa sua validade no âmbito de uma comunidade.
O paradigma indiciário, nesse sentido, embora se refira imediatamente a uma espe-
fica epistemologia, que podemos encontrar em várias comunidades, tanto científica
quanto jurídica, tem uma face ético-política, cujo contra-paradigma apodítico nos permite
compreender melhor o que está em questão e nos interessa discutir no âmbito específico
do processo penal.
A civilização ocidental sempre privilegiou o apodítico em detrimento do indiciário,
mas nunca o descartou em absoluto, pelo menos como ponto de partida, embora sempre
1 ABBAGNANO, N. – Dizionario di filosofia. Torino: UTET, 2013, p.792.
2 KUHN, T. S. – A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2009, pp.219ss.
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buscando armar-se ao final como paradigma dominante. O indiciário foi confiscado pelo
apodítico, como parte deste que evita colocar-se como seu contrário, para ao final sobrepor-
-se. Trata-se de uma estratégia cognitiva que acaba por criar uma aparência de rigor cres-
cente, na qual a fase anterior é assimilada pela posterior que se torna superior, dando-nos
mais garantias de verdade, embora abaixa da superfície aparente, subsistam as mesmas
dúvidas epistemológicas.
Nós o identificamos mais rapidamente em nosso meio jurídico na estrutura do pro-
cesso penal, em que o indicrio é tomado como necessário, na fase de inquérito – a exem-
plo do direito português, embora por vezes desconsiderado no direito brasileiro, mas em
todo caso nunca considerado como suficiente às conclusões das sentenças. Contudo, em
perspectiva epistemológica séria, bem observado e entendido, a sentença permanece
indiciária, porque não se obtém uma certeza como se postula pelo discurso jurídico tradi-
cional, embora se tenha acrescido um elemento importante à decisão: a possibilidade de
debate que é a face ético-política do mesmo paradigma.
A mesma estrutura de pensamento se encontra no desenvolvimento da ciência. As
hipóteses (indiciárias) se consolidam como teoria porque se permitiram discutir sem
refutação alcançada, mas não nos dão certezas absolutas, como se tem enfatizado pela
epistemologia popperiana que surge no final do século passado e tende a permanecer forte
no atual século
3
.
2. O apodítico na tradição filosófica
Contudo, como o dissemos, a ideia de certeza sempre foi privilegiada, com o paradigma
apodítico que se consolidou na civilização ocidental, alcançado sua rearmação moderna
na filosofia de Descartes, cujo espírito more geometrico privilegiava a demonstração como
procedimento cognitivo racional em detrimento da argumentação, deixada ao nível da
retórica
4
.
O que não fica evidente, mas precisamos entender preliminarmente, é que as estru-
turas de pensamento apoditicio viabilizam estruturas políticas autoritárias e vice-versa.
Essa compreensão se deve ao espírito do racionalismo crítico de Karl Popper, que soube
identificar as relações entre os discursos epistêmico e político de Platão, em cuja filosofia
identifica elementos autoritários, tanto no Teeteto, que trata da crença verdadeira e justi-
3 POPPER, K. – A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1975.
4 PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. – Tratado da argumentação. A nova retórica. São Paulo: Martins Fontes,
2002, pp.2ss.
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ficada, quanto na Reblica, que fala de Reis filósofos, cujas relações não evidentes são o
apoio entre um e outro
5
.
Quando falamos em paradigma apodítico, portanto, precisamos compreender como
duas faces do mesmo autoritarismo que se reforçam, um cognitivo e outro potestativo
que tendem ao dogmatismo e ao despotismo, o que no processo penal tem consequên-
cias sérias aos direitos fundamentais
6
. E, nesse sentido, será oportuno compreender que o
paradigma indiciário é o único capaz de conviver com a forma de vida democrática, por-
que se apresenta como hipótese aberta a outras interpretações, em um universo de valores
múltiplos, formas de vida e visão de mundo.
Mas o que é exatamente esse paradigma indiciário?
3. O paradigma indicrio nos pensamentos científico e penal
Atribui-se geralmente a Carlo Ginzburg ter cunhado essa expressão no final do séculoXX,
mas para referir-se a um padrão de pensamento que se pode encontrar em tempos imemo-
riais, desde caçadores que interpretavam os rastos deixados por suas presas
7
. Ocaçador é,
nesse sentido, o tipo primordial de que podemos extrair o padrão básico de pensamento
indiciário, no qual o sujeito de conhecimento se utiliza dos sinais de que dispõe, daquilo
que consegue rastrear, fazendo interpretações e algumas inferências lógicas para concluir
acerca do que lhe interessa, qual presa passou por ali, há quanto tempo e em que direção
foi. Algumas conclusões mais indicrias que outras, mas o suficiente para tomar uma
decisão sobre o que fazer em seguida a perseguição.
Mas de forma similar, podemos encontrar o mesmo padrão de raciocínio no médico e
no analista de arte. Ambos se orientam por outros tipos de sinais para concluir indiciaria-
mente acerca do que lhes interessa conhecer e decidir. O médico se orienta pelos sintomas
que pode constatar por contatos e inquirição do paciente, de cuja percepção depende para
obter um relato compatível com seu acervo semiológicos de acordo com uma ciência de
base, que nesse ponto exerce a mesma função do senso comum do caçador. O analista
de arte, por sua vez, orientando-se por padrões de traços que revelam a personalidade do
artista, que fazem de sua obra algo particularmente específico e único em comparação
com outras, como uma expressão de sua identidade individual.
5 POPPER, K. – A sociedade aberta e seus inimigos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.
6 A respeito dessa imbricação entre cognitivo e potestativo, cf. PEREIRA, E. S. – Saber e Poder. O processo de investigação
penal. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2019.
7 GINZBURG, C. – «Sinais: Raízes de um paradigma indiciário». In: Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989, pp.143-180.
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Esse mesmo padrão indiciário de pensamento se desenvolveu na área criminal, em
diversas perspectivas por Lombroso, Bertillon e Locard
8
. Cesare Lombroso, em sua antro-
pologia criminal, postulava que certas características físicas poderiam nos revelar perso-
nalidades criminosas, teoria esta que embora se tenha alterado, não se abandonou comple-
tamente a considerar a obra recente de Adrian Raine, agora focada em sinais genéticos ou
funcionamento cerebral acessível por instrumentos de imagem
9
.
Alphonse Bertillon, ainda na lógica da antropometria, desenvolve o sistema de identi-
ficação humana por digitais papilares que se tornará potente instrumento de utilização de
vestígios deixados pelo criminoso, atualmente potencializado pelos vestígios de DNA no
local, acrescido por outras formas individualizantes de sujeitos. Essa ideia fundamental
da investigação levou Edmond Locard a postular o “princípio da troca”, pelo qual “todo
contato deixa uma marca”
10
, o que poderá ser reformulado para estender-se aos contextos
da era da informação. Pelo princípio, um sujeito qualquer, ao praticar atos quaisquer, rea-
liza uma troca por contato com o ambiente, que deixa vestígios que nos permitem chegar
a certas conclusões por indícios. Essas inferências tanto se referem a sua identidade, como
se defendeu por Bertillon, quanto a características de sus atos
11
. Todas essas argumenta-
ções de raciocínio se estabeleceram sobretudo para crimes de homicídio, mas a crimina-
stica se desenvolveu para diversos âmbitos, como vemos na obra de Ceccaldi
12
, podendo
atualmente utilizar-se na era da informação.
Trata-se de um padrão epistêmico de pensamento que Gaston Bachelard soube muito
bem identificar como forma de conhecimento aproximado
13
e que C. S. Peirce fundamen-
tou adequadamente em seus estudos acerca da inferência chamada abdução a partir do
signo específico chamado índice
14
, que inspirou muitas discussões no âmbito da semiótica,
a partir de estudos relativos à lógica da investigação criminal
15
.
8 WEHNER, W. História de a criminología. Barcelona: Zeus, 1964.
9 RAINE, A. – Anatomia da violência. Porto Alegre: Artmed, 2015.
10 LOCARD, E. – A investigação criminal e os métodos científicos. São Paulo: Saraiva, 1934.
11 THORWALD, J. – El siglo de la investigacion. Barcelona: Labor, 1966.
12 CECCALDI, P. F. – A criminalística. Lisboa: Europa-America, 1988.
13 BACHELARD, G. – Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro:Contraponto, 2008.
14 PEIRCE, C. S. – Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2017, pp.32ss, pp.74ss.
15 ECO, U. e SEBEOK, T. A. – O signo de três. São Paulo: Perspectiva, 2014.
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4. Os índices da era da informação: sinais digitais
A era da informão incrementa todo esse universo de possibilidades investigativas, for-
necendo-nos sinais diversos que nos indicam algo que nos interessa a respeito do crime
16
.
Não se trata de indicações necessariamente imediatas, que nos relatam diretamente o
crime, mas nisso continua a seguir-se o padrão indiciário: ainda estamos a tratar de índices
segundo a semtica.
Os diversos sinais decorrem de forma específica da vida que a era da informação nos
disponibiliza, mas que de certa forma também no impõe como condicionamento, criando
um ambiente de troca, de rastos e vestígios de atividades que apenas representam cotidia-
nos, mas que se podem tornar objeto de investigação. Assim, para ficarmos com apenas
três exemplos, podemos falar do sinal de celular, da navegação na internet e das comuni-
cações em redes sociais:
a) Os sinais de celular se podem compreender como uma extensão da identi-
cidade individual, permitindo-nos repensar o argumento do álibi de uma forma
diversa que dispensa a testemunha de companhia. O mesmo se pode falar do local
de conexão à internet. Mas é necessário observar que, apesar da precisão de infor-
mação, este dado nos oferece indícios de que o titular da linha estava com o apare-
lho, o que precisa ser levado em conta.
b) A navegação na internet deixa vestígios que se podem interpretar como
marcas digitais de movimentação, naquele mesmo sentido primordial do caça-
dor, dando-nos informações sobre buscas, compararas e interesses que nos podem
reve3lar indícios da aquisição de instrumentos para prática do crime investigados,
propensões à pedofilia entre outras tantas coisas, a depender do tipo penal. Mas
aqui igualmente, como mais razão, essas informações podem se interpretar com
indícios de outras tantas possibilidades, representativos de atividades cotidianas
comuns a uma variedade de pessoas insuspeitas do crime.
c) O mesmo padrão se vai encontrar nas comunicações em redes sociais que se
podem interpretar na linha behaviorista
17
como sintomas da personalidade, o que
pode ser importante indícios para crimes de ódio, assim como para outros todos
os casos em que se pode agregar informação acerca da pessoas, visando ao cálculo
devido da pena.
16 A respeito do significado da expressão “era da informação”, em todas as duas relações com a sociedade, a economia
e o crime, cf. CASTELLS, M. – A Era da Informação, Volume 1: A Sociedade em Rede. Rio de Janeiro: Paz&Terrra, 1999;
especialmente, CASTELSS, Manuel – «A conexão perversa: a economia do crime global». In: A era da Informação,
Volume 3: O fim do milênio. São Paulo: Paz&Terra, 2009, pp.203-249.
17 SKINER, B. F. – Sobre o behaviorismo. São Paulo: Cultrix, 2011.
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5. Sinais, entre prova e indício
O fundamental nesses casos da era da informação, mais do que nunca, será ter uma clara
distinção entre prova e indício, tendo sempre o fato em vista, o que muitos manuais ainda
insistem em desorientar, distinguindo-os numa perspectiva equivocada. Anal, a prova
não se distingue do indício como elemento materialmente separado; não se trata de duas
coisas necessariamente. Um único objeto possui propriedades informáticas que nos per-
mitem inferir várias coisas a respeito dele, algumas em caráter indiciário, outros em cará-
ter probatório, mas mesmo nesse caso, a depender do estágio de acordo que existe acerca
do sinal de informação. O que os distingue, portanto, será o grau de probabilidade com que
estamos dispostos a aceitá-los.
Em grande medida, essa probabilidade depende muito do tipo de inferência lógica que
fazemos a partir do que temos. Rigorosamente, a prova mesmo, só a teríamos nos casos
dedutivos puros, mas cuja premissa maior não seja discutível em algum nível, o que nem
sempre é o caso para contextos de interesse de conflitos, como é o âmbito do processo
penal. É que muitas premissas maiores são dependentes verdadeiramente do tanto de
casos espeficos que se colheram para produzirmo-las, sendo aqui necessário falar em
probabilidade indutiva da premissa maior.
A questão é que a maior parte das inferências lógicas que nos interessam mais dire-
tamente na investigação criminal são do tipo abdutivo
18
, que se impõe como conclusões
indiciárias irremediavelmente, e a respeito disso a sentença não incremente nada além da
oportunidade ético-política de discutir o quão logicamente abdutiva são s as inferências
suscitadas pela investigação.
A discussão indiciária a respeito das informações obtidas, nesse sentido, instaura um
jogo de disputa semiótica, acerca dos significados que os sinais obtidos representam na
constituição tépida do crime. E aqui se situa o ambiente de desafio da investigação crimi-
nal na era da informação. A autoridade investigante, seus agentes e peritos, têm o papel
fundamental de atribuir significados indiciários, interpretando as informações obtidas
na investigação, em um jogo do tipo inicialmente similar a um quebra-cabeças, reforçando
cada sentido de uma peça com a concordância de outras que se vão ajustando em uma ima-
gem coerente que se posas sustentar em uma argumentação na disputa semiótica.
É extremamente importante ao processo penal colocar-se nessa dimensão semiótica de
disputa de atribuição de significados típicos às informações obtidas, porque estas comuni-
cam muitas coisas diversas do que interessa ao ambiente criminal. Anal, no atual estágio
18 BONFANTINI, M. A. e PRONI, G. – «Suposição: Sim ou Não?, Eis a Questão». In: ECO, U. e SEBEOK, T. A. (Org).
O signo de três. São Paulo: Perspectiva, 2014, pp.131-148.
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criminológico das organizações criminosas, a divisão de tarefas admite que um compo-
nente realize ações de suporte que são à primeira vista atividades cotidianas, corriquei-
ras mesmo, que dificilmente se percebem como criminosas imediatamente. Em outras
palavras, eles têm a aparência de legalidade, a superfície das relações sociais, mas em um
estrato mais abaixo de percepção fenomenológica, eles se podem apresentar como indícios
de participação na organização. Atribuir significados típicos a essas informações constitui
verdadeiro exercício de engenharia semiótica que se pode muito facilmente perder em ila-
ções poucos razoáveis, pouco prováveis, pouco aceitáveis ou sem qualquer sentido mesmo.
O desafio, portanto, em última alise, está na exigência natural a investigação, que
requer do investigador hipótese sempre mais criativas, mas que ele mesmo deve acau-
telar-se com a consciência de que são conjecturas, refutáveis sempre, que não se podem
antecipar e impor à revelia do direito de defesa, que nesse caso se habilita como uma outra
possível atribuição semiótica de significação.
E, nesse sentido, a era da informação, embora inove em diversidade de possibilidades
de obtenção de prova, além de inovar sobre os meios de prova, apenas renova a tradicional
exigência de garantia dos direitos fundamentais no direito penal
19
, e em especial os direi-
tos de defesa no processo penal
20
.
Esses direitos de defesa podem vir sob diversas formas, mas algumas se podem ante-
cipar pela investigação, visando a evitar problemas jurídicos recorrentes. O problema dos
falsos pers nos remete à negação da identidade. Não se trata de um problema absoluta-
mente novo e típico da era da informação, a considerar as identidades falsas para saque de
FGTS e benefícios previdenciários fraudulentos, mas os falsos perfis se tornaram muito
mais fáceis de criar do que a produção de uma nova identidade física. Atualmente prolife-
ram pers falsos, em vários sites, aplicativos e base de dados informáticos, que se utilizam
pelo agente criminoso, mas identificação neste caso se transfere a outros dados de que
dificilmente se pode desvencilhar sem a colaboração de um terceiro. Contudo, as possi-
bilidades de incerteza subsistem, devendo merecer cautela da investigação sempre que o
terminal possa ser de utilização coletiva ou mesmo compartilhada, embora os aparelhos
com acesso por digital papilar tendam a minimizar essa dúvida. Mas mesmo nesses casos
há possibilidades de dissociação entre a identificação digital de acesso e a identicidade de
19 Aqui se justificam as advertências de RODIGUES, A. M. – «Inteligência Artificial no Direito Penal – a Justiça
Preditiva entre a Americanização e a Europeização». In: RODRIGUES, A. M. (Org.). A Inteligência Artificial no
Direito Penal. Coimbra: Almedina, 2020, ao observar que: “O processo digital verificou-se sem haver confronto
entre ciência computacional, liderando a revolução digital, e os especialistas em direito penal”.
20 A respeito, são relevantes as questões jurídicas reafirmadas por BELEZA, T. P. e COSTA PINTO, F. L. – Prova
criminal e direitos de defesa. Estudos sobre a teoria da prova e garantias de defesa em processo penal. Coimbra: Almedina,
2013. E, com maior razão, torna-se então cada vez mais relevante.
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quem realizou a navegação, salvo se tivermos algum registro de imagem com que pos-
samos aproximar melhor de alguma certeza, embora levando em conta a necessidade de
confirmação da pessoa da imagem, tendo em consideração casos de erros recentes sobre a
prisão de homem que tinha alguns muitos centímetros a menos do que a imagem captada,
apesar das similaridades inicialmente indiciárias.
O problema do acesso às fontes abertas, por sua vez, continuará gerando as mesmas
dúvidas de credibilidade da prova obtida na investigação criminal sem o controle recí-
proco das partes em contraditório. O fato de que se apresentam por veículos de materiali-
dade digital, colhida no mundo virtual, não exclui a dúvida sobre o local de obtenção e sua
relação com o autor imputado, podendo exigir-se uma auditoria pericial que dê conta da
cadeia de obtenção e transmissão dessa prova, atestando o que se diz a respeito da fonte.
Esse é um problema recente que se suscitou a respeito das interceptações de comunicações
por terceiro que disponibilizou para meio de comunicação, embora se trate de fontes que
juridicamente seriam restritas.
Mas aqui ressurge a mesma questão sempre acerca dos testemunhos periciais apre-
sentadas por um documento, como há tempos Nicola F. Dei Malatesta nos advertia em sua
lógica das provas
21
. O universo de provas, por mais variedades de formas que se possam
encontrar, mesmo na era da informação, em seu conteúdo se resumem a testemunhos e
documentos, e esses se reconduzem sempre à produção humana segundo seus interesses
de momento; e quanto aos objetos, que nunca falam por si, exigem que nós falemos algo
sobre eles, por testemunha ou documentos, ainda que estes se habilitem como expertos,
é sempre uma opinião subjetiva, de alguém sobre algo. Em resumo, reafirmando, uma
disputa semiótica de atribuição de sentidos a certos sinais. A esse respeito, basta que pen-
semos no objeto perfeito por excelência no mundo da investigação criminal – o copo de
um morto, que pedirá que alguém fale por ele.
E mesmo as fontes restritas e controladas, na era da informação, não se livram dessa
limitação indiciária, anal a questão dessas fontes está no objetivo de proteção aos seus
conteúdos – geralmente em garantia da intimidade das comunicações, apesar da extensão
promovida pelo marco civil da internet no Brasil. Mas quanto à credibilidade da infor-
mação, muito pouco se acresce em relação às fontes abertas, mantendo assim seu caráter
indiciário, a considerar que, do ponto de vista lógico, em razão da intermediação por mais
um sujeito, que detém a informação, precisamos inferir que ele nos disponibiliza todas,
sem alteração, acréscimo ou exclusão, em síntese sem interesse direto no caso criminal,
21 MALATESTA, N. F. Dei – A Lógica das provas em matéria criminal. Campinas: Bookseller, 1996.
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o que ao final vai sempre nos exigir um controle da cadeia de custódia da prova
22
, cujos
princípios lógicos tendem a exigir do direito probatório contemporâneo a assimilação de
específico princípio jurídico cada vez mais relevante à era das informações digitais.
6. Considerações finais
Os desafios processuais da investigação criminal, na era da informação, embora se tenha
obtido o incremento de fontes informáticas, persistem sendo os mesmos de sempre que
se encontram na lógica do raciocínio indiciário, com suas potencialidades de descoberta
e suas limitações de justificação fundada em abduções. São desafios semióticos. Nada há
com que se espantar nessa constatação redutora da diversidade aparente de novas provas.
Essa é a lógica humana subjacente com que precisamos enfrentar as diversas questões
da vida que se nos apresentam, nos domínios virtuais da internet e suas redes sociais
que postulam ser o intermediador contemporâneo do acesso aos domínios da realidade.
Nada há de novo igualmente nisso, a considerar a estrutura semiótica da cultura humana,
construída sobre signos diversos, do mito à ciência, passando pela intermediação sempre
frequente da linguagem, mas sempre voltando a encarnar o espírito mítico em outras for-
mas simbólicas, aparentemente depuradas pela razão que apenas se embrenha nos seus
próprios labirintos
23
.
Mas nisso, portanto, não estará sozinho o processo penal, nos tempos líquidos das
informações fugidias que em todo sítio nos podem enganar, não apenas nos sites virtuais,
apresentando apenas a superfície das essências que a fenomenologia sonha encontrar
antes das objetivações científicas
24
, mas que a filosofia antiga sempre defendeu ser inaces-
sível, ao postular a ilusão do mundo, envolta por um véu de ignorância que alicia os sen-
tidos daquele que pretende enfrentar a vida apenas com os sentidos da visão, sem atentar
para os sentidos da vida
25
.
22 A respeito, torna-se cada vez mais fundamental a discussão jurídica que promove com rigor GUEDES VALENTE,
M. M. – Cadeia de Custódia da Prova. 2.ª Edição. Coimbra: Almedina, 2020.
23 A respeito das diversas formas simbólicas com que o home vive e convive, como animal symbolicum, é
fundamental a obra de CASSIRER, E. – A Filosofia das Formas Simbólicas. São Paulo: Martins Fontes, 2001 (Primeira
parte – A linguagem), 2004 (Segunda parte – O pensamento mítico), 2011 (Terceira parte) – Fenomenologia do
conhecimento), bem como a sua síntese posterior CASSIRER, E. – Ensaio sobre o Homem. Introdução a uma filosofia
da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
24 HUSSERL, E. – A ideia de fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2007.
25 ELIADE, M. – Yoga. Liberdade e imortalidade. São Paulo: Pallas Atena, 1996.
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O paradigma indiciário na era da informação: os desafios semióticos do processo penal
ELIOMAR DA SILVA PEREIRA
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December Dezembro 2020 · pp. 46‑56
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Proibição do recurso à força e legítima defesa
antiterrorista: legado normativo do combate
aoestado islâmico (ISIS)
Prohibition of the use of force and self‑defense against
terrorsim: normative legacy of ghting the islamic state (ISIS)
FELIPE AUGUSTO LOPES CARVALHO
1
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
July Julho–31
ST
December Dezembro 2020 · pp. 57‑76
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.2.4
Submitted on October 14
th
, 2020 . Accepted on 26
th
November, 2020
Submetido em 14 de outubro, 2020 . Aceite a 26 de novembro, 2020
RESUMO: O presente trabalho busca explorar, através de uma pesquisa documental, com
ênfase nas Resoluções do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, e da
análise das discussões doutrinais subjacentes, o estado atual da regulamentação jurídica
internacional do recurso à força em ações militares contra o terrorismo, com vistas
a refletir se, e em que medida, as ações e ameaças do grupo terrorista Estado Islâmico
(ISIS) desencadearam novos contornos à regulamentação da legítima defesa. Conclui-se
de maneira armativa, no sentido do surgimento de normas que estabelecem que um
Estado pode usar a força legalmente, a título de legítima defesa, contra atores não-estatais
de cunho terrorista, presentes no território de outro Estado, ainda que independente de
seu apoio ou cumplicidade, se este revelar-se incapaz ou relutante em suprimir a ameaça
representada por aqueles atores. Os resultados e efeitos dessa mudança no degringolar de
novos conflitos restam incertos, o que demandará constante avaliação e exploração pelos
estudiosos do tema.
PALAVRASCHAVE: Recurso à Força. Legítima Defesa. Terrorismo. Estado Islâmico. Daesh
ABSTRACT: This article seeks to explore, through documental research, with an emphasis
on United Nations Security Council Resolutions, and by analyzing the underlying
doctrinal discussions, the current state of international legal regulation of the use of
force in military actions against terrorism, with a view to reflecting on whether, and
to what extent, the actions and threats of the Islamic State terrorist group (ISIS) have
1 Doutorando em Direito Público pela Universidade de Coimbra.
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Proibição do recurso à força e legítima defesa antiterrorista: legado normativo do combate aoestado islâmico (ISIS)
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triggered new contours in the regulation of self-defense. It concludes in an affirmative
manner, in the sense of the emergence of norms that establish that a State can use the
force as a legitimate self-defense against non-state actors of a terrorist nature, present in
the territory of another State, although independent of their support or complicity, if they
prove unable or unwilling to suppress the threat posed by those actors. The results and
effects of this change in the emergence of new conicts remain uncertain, which will
demand constant evaluation and exploration by the researchers on this topic.
KEYWORDS: Use of Force. Self-Defense. Terrorism. Islamic State. Daesh
I. INTRODUÇÃO
O direito internacional estabelece uma complexa regulamentação relativa ao recurso à
força pelos Estados. A Carta das Nações Unidas fornece a base para esse sistema na atua-
lidade, consolidando a evolução do paradigma da restrição do uso da força, que emerge no
século XX, em contraposição ao paradigma anterior, caracterizado pela liberdade e discri-
cionariedade do recurso à força pelos Estados.
Nesse cenário de proibição, o direito de legítima defesa é tratado na Carta como
uma das exceções que justificam o uso da força frente à ocorrência de ataques armados,
podendo ser considerado um princípio que preserva, mesmo que de maneira limitada, as
prerrogativas decorrentes da soberania do Estado de preservar a integridade de seu terri-
tório, de seus cidadãos e de suas instituições.
O fenômeno do terrorismo internacional, especialmente a partir dos ataques do 11 de
setembro nos Estados Unidos, fez emergir novos problemas para o sistema de segurança
coletiva estabelecido na Carta. Com efeito, os Estados têm adotado, ao longo das últimas
décadas, diversas medidas de repressão e prevenção aos atos de grupos terroristas. No
entanto, observa-se que ainda há dificuldades interpretativas da aplicação do direito de
legítima defesa em relação a esse fenômeno. Podemos citar, por exemplo, a problemática
da caracterização dos ataques perpetrados por grupos terroristas como “ataque armado”,
nos termos da Carta, e a possibilidade da justificação do recurso à força na chamada legí-
tima defesa preventiva.
O presente trabalho busca explorar, através de uma pesquisa documental, com ênfase
nas Resoluções do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, e da análise
das discussões doutrinais subjacentes, o estado atual da regulamentação jurídica interna-
cional do recurso à força em ações militares contra o terrorismo, com vistas a refletir se e
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em que medida as ações e ameaças do grupo terrorista Estado Islâmico (ISIS) desencadea-
ram novos contornos à regulamentação da legítima defesa.
Em termos de estruturação, a primeira parte do trabalho trata do direito internacional
regulamentador do uso da força, inicialmente através de uma breve perspectiva histórica
dos documentos que regulam o tema, passando-se à apresentação do arcabouço normativo
atual, momento em que será conferida especial atenção às provisões da Carta das Nações
Unidas e à atuação do Conselho de Segurança da ONU.
Em seguida, será objeto de estudo a temática da legítima defesa antiterrorista, ou seja,
a possibilidade de os Estados utilizarem da força militar como resposta a ataques perpe-
trados por grupos terroristas. Nessa segunda parte, além de apresentadas as dificuldades
conceituais que circundam o terrorismo internacional, serão apreciadas questões funda-
mentais para uma possível adequação do direito de legítima defesa frente à atuação de
grupos terroristas, como os pressupostos e condicionantes do direito de legítima defesa,
o conceito e o alcance de ataque armado apto a desencadear o exercício desse direito e os
debates que circundam o emprego da chamada legítima defesa antecipatória ou preven-
tiva.
Por fim, o trabalho explorará de que maneira a ascensão do grupo terrorista Estado
Islâmico (ISIS), e as reações internacionais por ele desencadeadas, trouxeram novos para-
digmas à legitimidade do recurso à força por parte dos Estados, a título de legítima defesa,
contra atores não-estatais responsáveis por atos terroristas.
1. Proibição do Recurso à Força no Direito Internacional: Breve Historiograa
Até o Século XX, o quadro das relações internacionais se construiu num regime de acei-
tação do uso da força pelos Estados, considerado um exercício normal da soberania
1
. No
século XX, porém, se estabelece a armação jurídico-internacional da proscrição do uso
da força, em um processo gradual distribuído por quatro momentos, sobre os quais tece-
remos alguns comentários a seguir: a) A Convenção Drago-Porter e a proibição do uso da
força para a cobrança de dívidas; b) O Pacto da Sociedade das Nações e a moratória de
guerra; c) O Pacto Briand-Kellog e a renúncia geral ao uso da força; d) A Carta das Nações
Unidas e a proibição contundente do uso da força.
1 TORRIJO, Ximena Fuentes – «La prohibición de la amenaza y del uso de la fuerza por el derecho internacional».
In: Revista Iberoamericana de Filosofía, Política y Humanidades, v. 16, n. 32, 2014, p.256.
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1.1 A Convenção Drago-Porter
Aos fins do século XIX, num contexto em que comumente os Estados utilizavam a
força para cobrar dívidas não pagas de um Estado terceiro no âmbito de uma relação obri-
gacional, e seguindo-se ao momento histórico onde o Reino Unido, a Alemanha e a Itália
usaram da força contra a Venezuela por dívidas não pagas, Luís Drago, à época Ministro
dos Negócios Estrangeiros da Argentina, e Horace Porter, o delegado dos Estados Unidos,
conseguiram, em meio a intensas negociações diplomáticas envolvendo esses e outros
países, extinguir os antigo direito de os Estados poderem cobrar dívidas contra os seus
nacionais valendo-se do recurso à força contra os Estados devedores.
A Convenção Drago-Porter, como ficou conhecida, surge no âmbito da 2ª Conferência
da Haia de 1907, e estabelece, portanto, uma limitação processual ao uso da força, segundo
a qual “as partes contratantes não devem utilizar a força armada para a cobrança de dívi-
das contratuais”
2
. Este foi o primeiro tratado internacional proibindo o uso da força nas
relações internacionais, ainda que de forma precária e pontual. Vale considerar, contudo,
que a Convenção não negava o uso da força em dois casos: quando o Estado devedor se
recusasse a submeter a controvérsia à arbitragem ou se, após aceitá-la, negasse cumpri-la
3
.
1.2. Pacto da Sociedade das Nações
Consumada a I Guerra Mundial, diante dos abusos perpetrados durante o conflito, os
Estados uniram-se para celebração do Tratado de Versalhes e do seu corolário, o Pacto da
Sociedade das Nações, com o propósito de evitar conflitos bélicos para resolução de futu-
ras disputas entre Estados. Seu texto reflete, sobretudo, uma obrigação mútua assumida
pelos membros da Sociedade de respeitar e preservar a integridade territorial e indepen-
dência política.
O próprio preâmbulo do Pacto expressava que os Estados membros deviam aceitar
“certas obrigações de não recorrer à guerra” e desenvolver suas relações internacionais
com fundamento na justiça e na honra. Temos aqui o período denominado por Antônio
Pereira como a “busca da paz pelo Direito”
4
.
O marco jurídico internacional trazido pelo Pacto ficaria conhecido por moratória de
guerra porque, não sendo uma proibição propriamente dita ao ius ad bellum, impunha o
retardamento do uso da força por três meses, com a finalidade de permitir ao Conselho
2 GOUVEIA, Jorge Bacelar – «O Uso da Força no Direito Internacional Público». In: Revista Brasileira de Estudos
Políticos, n. 107, 2013, pp.156 ss.
3 COSTA, Larissa Maria Lima – Arbitragem Internacional e Investimento Estrangeiro. Florianópolis, 2006, p.57.
4 PEREIRA, Antônio Celso Alves – «A Legítima Defesa no Direito Internacional Contemporâneo». In: Revista
Interdisciplinar de Direito, v. 7, n. 1, 2010. p.3 ss.
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pronunciar-se e fazer com que as partes em conflito chegassem a um acordo, de modo que
apenas se este procedimento de solução pacífica não resultasse, seria possível o recurso à
guerra. Formou-se, assim, a convicção de que a decisão de iniciativa da guerra, relevante
à comunidade internacional no seu conjunto, deveria ser filtrada por uma instância inter-
nacional
5
.
1.3. Pacto Briand-Kellogg
Um dos marcos mais importantes do período entre guerras em relação a proibição do
recurso à força para resolução de litígios entre Estados constitui o Tratado Geral de Renún-
cia à Guerra, também conhecido como Pacto de Paris ou Pacto Briand-Kellogg, o primeiro
de proibição geral do uso da força nas relações internacionais, ao nível substantivo, pondo
termo à competência discricionária da guerra.
Celebrado em 1928, prevê nos artigos 1.º e 2.º a condenação do “recurso à guerra para a
solução das controvérsias internacionais”, bem como reconhece que “o regulamento ou a
solução de todas as controvérsias ou conflitos, de quaisquer natureza ou origem que pos-
sam surgir entre elas, jamais deverá ser procurado senão por meios pacíficos”.
Desenhado inicialmente como um tratado bilateral entre os EUA e a França
6
, tendo por
negociadores o Ministro dos Negócios Estrangeiros Francês Aristide Briand e o Secretário
de Estado Norte-Americano Frank Kellog, o instrumento acabou por ser aberto à vincula-
ção de outros Estados, dando origem a um Tratado do qual tornaram-se parte mais de 60
Estados.
Dentro dessa sistemática, leciona Valério Mazzuoli, “com exceção da legítima defesa,
que continuaria sendo garantida aos Estados agredidos, qualquer outra forma de agres-
são armada seria considerada ilegal per se”
7
. A partir desse tratado, o direito internacional
rompe com a ideia de “guerra justa” e passa a condenar explicitamente a guerra enquanto
instrumento de política internacional, ao admiti-la somente como medida de ultima ratio,
de modo que o uso da força passa a ser considerado permitido apenas como legítima defesa
ou como medida de coerção para repelir as mais graves violações do Direito Internacional
Público
8
.
5 GOUVEIA, Jorge Bacelar – «O Uso da Força no Direito …». In: Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 107, . p.158.
6 Importante assinalar que, por não terem ratificado o Tratado de Versalhes, os Estados Unidos acabaram não
ingressando na Sociedade das Nações. O Pacto Briand-Kellog foi, portanto, negociado e firmado fora do contexto
da Sociedade. Para maiores desenvolvimentos sobre o processo de constituição do Pacto, PEREIRA, Antônio Celso
Alves – «A Legítima Defesa no Direito …». In: Revista Interdisciplinar de Direito, v. 7, n. 1, . pp.4 ss.
7 MAZZUOLI, Valério Curso de Direito Internacional Público. 9.ª edição. São Paulo: Malheiros, 2015, p.1189.
8 PEREIRA, Antônio Celso Alves – «A Legítima Defesa no Direito …». In: Revista Interdisciplinar de Direito, v. 7, n.º1,
. pp.4 ss.
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Todavia, o Tratado não trazia previsões sobre as consequências da violação desta proi-
bição, bem como não interditava o uso da força em situações que não fossem juridica-
mente entendidas como guerra.
2. O Sistema da Carta das Nações Unidas
2.1 Princípio da Proibição do Recurso à Força
A Carta das Nações Unidas estabelece a proibição mais abrangente do uso da força.
Nesse sentido, seu Art. 2.º n.º. 4 afirma que “Todos os Membros deverão evitar em suas
relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a
dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Pro-
pósitos das Nações Unidas”
9
. Esta constitui uma norma imperativa de direito internacio-
nal (jus cogens).
Um ponto que merece destaque desde logo é a substituição das referências à “guerra”
ou “o recurso à guerra”, dando lugar à “ameaça de uso da força”. Isto porque não há um con-
senso internacional sobre a definição de guerra. Por um lado, há aqueles que enquadram
a guerra como uma categoria dentro de conflitos armadas, no qual dois ou mais Estados
emitem uma prévia declaração formal de guerra, enquanto outros optam por uma concep-
ção alargada, compreendendo todas as hostilidades armados entre Estados ou entre gru-
pos em um determinado Estado que não tenham um caráter esporádico ou isolado. Assim,
o texto da Carta evita as dificuldades técnicas que tinham sido levantadas em documen-
tos anteriores a respeito do significado do termo “guerra”.
Com efeito, necessário considerar que a Carta rompe com os paradigmas estabelecidos
pela ordem westfaliana, tornando a guerra um ilícito internacional
10
, determinando que,
somente nas situações apontadas pela própria Organização das Nações Unidas, os Estados
podem recorrer ao uso da força em suas relações internacionais.
9 Jónatas Machado esclarece que se prescinde, para os propósitos da Carta da ONU, a existência de uma declaração
de guerra. MACHADO, Jonatas – Direito Internacional. Do Paradigma Clássico ao Pós-11 de Setembro. 4.ª edição, 2013,
pp.397 ss.
10 Para Valéruo Mazzuoli, “a transformação da guerra num ato internacionalmente ilícito deu-se também em
virtude da transferência do foro das controvérsias internacionais para as organizações internacionais de vocação
universal (cujo exemplo mais marcante é a ONU) ocorrida no século XX, o que acabou por deixar aos Estados
a única opção de resolverem suas contendas por meios pacíficos de solução de controvérsias”. Cf. MAZZUOLI,
Valério – Curso de Direito Internacional …, p.1191.
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2.2 Exceções à proibição do recurso à força
Apesar da proibição do recurso à força funcionar como regra geral no sistema das
Nações Unidas, trata-se de um princípio que comporta exceções, algumas das quais são de
aceitação geral, enquanto outras mostram-se controversas.
Uma vez que a Organização das Nações Unidas detém o monopólio do poder bélico
público internacional (artigo 24.º, n.º1 da Carta das Nações Unidas), é também a Carta que
estabelece as suas exceções, respectivamente no seu capítulo VII e no seu artigo 51.º. Serão
analisadas a seguir as duas exceções literais à proibição do recurso à força previstas na
Carta, quais sejam: a autorização do Conselho de segurança e o direito de legítima defesa.
2.2.1. Autorização do Conselho de Segurança
O Conselho de Segurança (CS) da ONU é o órgão nuclear da manutenção da paz e segu-
rança internacionais. Dentre as prerrogativas conferidas pela Carta, cita-se o seu poder
de ordenar medidas pacíficas para assegurar a paz, a possibilidade de utilizar medidas
de coerção econômicas
11
, além da possibilidade de utilizar meios forçosos contra ameaças
à paz e seguranças internacionais
12
. Merece destaque, ainda, que as decisões do Conse-
lho têm caráter vinculante
13
e as suas Resoluções têm precedência sobre quaisquer outras
obrigações internacionais dos Estados
14
.
O capítulo VII é o fundamento para o Conselho de Segurança autorizar operações de
manutenção da paz ou intervenções militares. Ao CS cabe declarar o que constitui uma
ameaça ou ofensa à paz e à segurança internacionais e ordenar os Estados a cumprirem
com as medidas cabíveis. Assim, se o Conselho entender que certa conduta configura uma
ameaça ou ofensa, pode autorizar ou ordenar o uso da força em exceção à proibição geral
prevista na Carta. Nesses casos, os Estados são os responsáveis imediatos pelas decisões
estratégicas relativas à operação militar, mas o CS mantém o poder de controle e comando
sobre a generalidade da operação.
Parte da doutrina critica esse poder do Conselho, por revestir-se de um alto grau de dis-
cricionariedade na alise dos casos em concreto, além de o CS não precisar se ater a casos
de legítima defesa ou de consentimento. Por outro lado, tem sido alvo de críticas também
o formalismo rígido que sustenta a necessidade absoluta de uma autorização do CS para o
recurso à força, à luz de princípios extremos de necessidade e emergência
15
.
11 Artigo 41.º da Carta das Nações Unidas.
12 Artigo 42.º da Carta das Nações Unidas.
13 Artigos 25.º e 48.º da Carta das Nações Unidas.
14 Artigo 103.º da Carta das Nações Unidas.
15 Para Jónatas Machado, em casos como esse, podemos verificar um choque entre a legalidade formal e a
legitimidade moral, recordando-nos dos ensinamentos de Hugo Grócio, segundo o qual todas as normas
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2.2.2. Exercício do Direito de Legítima Defesa
A principal exceção literal à proibição do uso da força no sistema das Nações Unidas
é o direito à legítima defesa, que encontra sua regulamentação no artigo 51 da Carta. Este
artigo prevê o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer
um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segu-
rança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança
internacionais.
De acordo com Giancarlo Gómez
16
, a legítima defesa pode ser classificados em três
categorias, a saber: a legítima defesa individual, quando o próprio Estado é a vítima direta
de um ataque armado; defesa legítima coletiva, ou seja, a possibilidade de que um grupo
de Estados exerça harmoniosamente esse direito quando um de seus membros está sujeito
a um ataque armado, geralmente exigindo a existência de um tratado internacional pelo
qual os Estados Partes acordem com um sistema de ajuda mútua em caso de ataque
armado; e, finalmente, a legítima defesa preventiva, segundo a qual poderiam usar a força
não só na defesa contra um ataque armado real e já em curso, mas também no caso de um
ataque previsível e iminente, mas que ainda não foi desencadeado. Esta última categoria
de legítima defesa, tem sido objeto de intensos debates, que serão analisados posterior-
mente.
Nos termos da Carta, para que possamos armar a legitimidade da defesa, esta precisa
revestir-se de certas características essenciais, como a (i) provisoriedade, ou seja, até que
o CS tome as medidas necessárias; (ii) subsidiariedade, já que o recurso à força defensiva
deve ser utilizado apenas como ultima ratio; (iii) dever de notificação de todas as medidas
tomadas ao CS; (iv) proporcional à gravidade do ataque impetrado. Para além disso, desta-
cam-se ainda o princípio da legitimidade do meio, adequação e proporcionalidade em sen-
tido estrito na relação meio/m, sem prejuízo do respeito às demais normas imperativas
do direito internacional.
17
Imperioso destacar que o artigo 51 prevê apenas a hipótese de um “ataque armado” e
não a ameaça de um ataque. Ainda assim, o artigo não oferece respostas completas à pro-
blemática do conteúdo e escopo da expressão “ataque armado”, que desencadeia o recurso
à força no seu caráter defensivo, em especial as questões sobre (a) quem poderia cometê-lo,
ou seja, somente estados ou também atores não estatais, (b) qual o nível de violência neces-
humanas têm que ser ajustadas de modo a que não sejam vinculativas em caso de necessidade. MACHADO,
Jonatas – Direito Internacional…, 4.ª edição, pp.475 e ss.
16 GÓMEZ, Giancarlo Mosciatti – Uso de la Fuerza y Terrorismo en el Derecho Internacional. Santiago do Chile, 2010,
p.209.
17 MACHADO, Jonatas – Direito Internacional …, 4.ª edição, p.476.
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sário para considerar que uma ação militar constitui um ataque marcado e (c) a possibili-
dade de legítima defesa preventiva, ou seja, contra ataques que ainda não ocorreram
18
. A
análise dessas três questões é imprescindível para determinarmos se é possível funda-
mentar, à luz do sistema das Nações Unidas, o recurso à força contra ataques terroristas
com base na exceção da legítima defesa.
Em primeiro lugar, a Carta é silente no que se refere a quem pode ter cometido um
ataque armado ensejador do direito inerente à legítima defesa. Contudo, o direito inter-
nacional moderno aceita que além das forças militares “tradicionais” do Estado, há atores
não-estatais, como bandos armados e grupos paramilitares, que também podem cometer
ataques para fins de desencadeamento da legítima defesa.
Com efeito, Pereira
19
apresenta três correntes acerca da responsabilização de um Estado
por atos terroristas cometidos por atores não-estatais. Por um lado, há aqueles que defen-
dem a necessidade de um alto grau de envolvimento do Estado para que atores não-esta-
tais sejam considerados responsáveis por um ataque armado. Temos aqui o chamado teste
do “controle efetivo”, e isso significa que para que haja responsabilização de um Estado por
atos de violência militar, o grau de envolvimento entre Estado e atores não-estatais deve
ser suficientemente forte para que estes sejam considerados seus “órgãos de fato”. Nesse
caso, não basta que haja financiamento, fornecimento de armas ou treinamento, mas as
próprias ordens para o cometimento dos atos tem que ser dadas pelo Estado em questão.
Uma segunda corrente entende que um ataque armado, para os efeitos de justificar o
direito de legítima defesa, pode ser cometido por atores não-estatais, desde que estejam
sob o “controle geral” de um Estado. Seguindo esse entendimento, seria necessário que as
milícias recebessem financiamento, armas e treinamento para fins de responsabilização.
Por fim, a terceira vertente defende que se pode agir em legítima defesa contra atores não-
-estatais, pois estes seriam capazes de cometer um ataque armado independentemente do
apoio de um ou múltiplos Estados.
Um elemento que não pode ser deixado de lado nessa discussão é o fato de que no con-
texto histórico da elaboração da Carta em 1945, o conceito de ataque armado dificilmente
poderia ser concebido aparte das forças armadas regulares de um Estado que enfrentavam
o exército de um Estado terceiro. Isso significa que os próprios critérios de determinação
da existência de um ataque armado, bem como sua classificação, extensão e e intensidade
mudaram desde o fim da Segunda Guerra. Nesse sentido, percebe-se que as caracterísiti-
18 RATNER, Steven – «Self Defense Against Terrorists: The Meaning of Armed Attack». In: Public Law and Legal
Theory Working Paper Series, 2012.
19 PEREIRA, Luíza Leão Soares – Jus ad Bellum, “Guerra ao Terror” e legítima defesa contra atores não-estatais, Porto
Alegre, 2013, pp.31 ss.
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cas dos ataques terroristas atuais repousam sobretudo na imprevisibilidade do seu início,
seu término e intensidade
20
.
Cabe destacar que o Tribunal Internacional de Justiça tem adotado, nos últimos anos,
uma posição restritiva quanto à interpretação do conceito de ataque armado. No caso das
atividades militares e paramilitares na e contra a Nicarágua, por exemplo (Nicarágua v.
Estados Unidos), o Tribunal afirmou que o exercício da legítima defesa se encontra sujeito
a que o estado em causa tivesse sido a própria vítima de um ataque armado. Voltaremos
à discussão sobre o conceito e alcance de “ataque armado” ao analisarmos o instituto da
legítima defesa antiterrorista.
Conforme se verá adiante, as Resoluções emitidas pelo Conselho de Segurança da ONU
pós 11 de setembro asseguraram progressivamente a legítima defesa contra ataques come-
tidos por grupos terroristas, de modo que hoje percebe-se claramente que o sistema das
Nações Unidas abarca a possibilidade do emprego da força em legítima defesa contra ata-
ques armados cometidos por grupos não-estatais e que não dependem de nenhum Estado.
3. O Direito de Legítima Defesa Antiterrorista
3.1 Notas conceituais e manifestações do Terrorismo Internacional
A primeira grande dificuldade que se nos apresenta é a falta de uma definição consen-
sual sobre o terrorismo. Até mesmo a legislação internacional em vigor não fornece uma
definição abrangente e exaustiva do que seria o terrorismo internacional. Essa falta de
definição deve-se ao fato de que as ideias de “terrorismo” ou “terrorista” apresentam uma
tendência de evolução constante e rápida. Além disso, na base destes conceitos residem
ideias com forte teor negativo, de conteúdo emocional, associando-os rapidamente com
noções de morte, violência e guerra sobre as pessoas acusadas de tais atos
21
.
De forma geral, o terrorismo pode ser compreendido como uma estratégia de violência
utilizada para instalar o terror no seio de um segmento da sociedade, de forma a atingir
um objetivo de poder, divulgar uma causa ou levar a cabo uma vingança política
22
. O fenô-
meno do terrorismo é marcadamente, um ato multifacetado, visto que não possui defini-
ção exata, expressa-se de variadas formas e atravessa muitas perspectivas de significado,
nomeadamente: forma de governo, ato de Estado e atos praticados contra o Estado
23
.
20 RODRIGUEZ, Luis Ignacio Sánchez – Una cara oscura del Derecho Internacional: Legítima defensa y terrorismo
internacional, 2012, p.277.
21 GÓMEZ, Giancarlo Mosciatti – Uso de la Fuerza y Terrorismo …, p.212.
22 MACHADO, Jonatas. Direito Internacional …, 4.ª edição, p.490.
23 MELO, Milena Barbosa eLUCENA, Elis Formiga – «A Cooperação Internacional como Instrumento de
enfrentamento ao Terrorismo: Uma Análise Do Caso Boko Haram». In: Direito internacional. CONPEDI, 2015.
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Callistar Obi compreende o terrorismo como uma dimensão da insegurança
24
. Para o
autor, trata-se de um uso premeditado de ameaça ou violência por grupos subnacionais
para obter objetivos políticos ou de interesse próprio por meio da intimidação de pessoas,
ataque de estados, territórios por bombardeios, sequestros, ataques suicidas, entre outros.
Em outras, palavras, significa uma violência premeditada, baseada em motivos políticos,
perpetrada contra alvos não combatentes por grupos subnacionais ou agentes clandesti-
nos.
Mais importante que uma definição perfeita e de aplicação universal sobre o terro-
rismo, é apontar as suas características intrínsecas e essenciais, de modo a determinar se
é possível considerar uma ação em concreto como terrorista ou não. Neste sentido, Louise
Richardson apud Gómez
25
fornece sete características essenciais e necessárias quando da
qualificação de uma ação como terrorista:
1. O ato terrorista tem uma inspiração notadamente política, que se destina à reali-
zação de mudanças ou manutenção do governo.
2. Os atos terroristas envolvem necessariamente o uso ou ameaça de violência.
3. O terrorismo não procura derrotar seu inimigo através de seus atos, mas procura
enviar uma mensagem.
4. O ato e a vítima normalmente têm um significado simbólico (exemplo: ataque de
11/09 sobre as torres gêmeas).
5. O terrorismo corresponde a atos de grupos subestatais, ou seja, não se refere aos
Estados – embora se considere que alguns Estados usam o terrorismo como instru-
mento nas relações internacionais.
6. As vítimas dos ataques e o público que procuram alcançar os terroristas não são
os mesmos, sendo este último, geralmente o governo, embora às vezes pode ser
escolhido como representante de um grupo maior.
7. Os atos terroristas são deliberadamente alvos civis. Isto é o que distingue o terro-
rismo de outras formas de violência política como a guerrilha.
Nessa seara, dois tipos de terrorismo têm sido identificados, o interno e o transnacio-
nal. O terrorismo interno envolve as atividades de terroristas em seu país de acolhimento
24 Por seu turno, a insegurança é vista como uma ameaça crônica à vida humana, territórios, estados, crenças
religiosas, propriedades e instituições, entre outros. Entre as suas fontes, pode-se destacar: Resposta emocional
interna a uma súbita ameaça externa; Situação externa ameaçadora relativamente constante; terna; Ameaça às
crenças, especialmente religião. OBI, Callistar – «Challenges of Insecurity and Terrorism in Nigeria: Implication
for National Development». In: OIDA International Journal of Sustainable Development, v. 8, n. 2, 2015, pp.11 ss.
25 GÓMEZ, Giancarlo Mosciatti – Uso de la Fuerza y Terrorismo …, pp.214-215.
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e os seus alvos são os seus concidadãos, suas propriedades e as instituições de seu próprio
país. Temos como exemplos as atividades dos grupos terrorista Boko Haram na Nigéria, e
Tamils no Sri Lanka. Por outro lado, como o próprio nome afirma, o terrorismo transnacio-
nal envolve mais de um país, seja em relação às vítimas, metas, instituições e apoiadores,
ou implicações. Um bom exemplo de terrorismo transnacional é o ataque dos EUA do 11/9
e a atuação do Estado Islâmico (ISIS).
3.2. Direito Internacional do Combate ao Terrorismo Pós-11 de setembro
Os atentados do 11 de setembro de 2001 às torres gêmeas dos Estados Unidos repre-
sentaram um “divisor de águas” na regulamentação da proibição do recurso à força no
Direito Internacional. Nesse sentido, Jónatas Machado considera que o ataque aproximou-
-se materialmente da noção de “crime de guerra”, além de ter resultado numa reavaliação
do risco a nível internacional, fazendo com que o combate ao terrorismo tornasse o novo
fio de prumo com base no qual toda a realidade internacional passou a ser reavaliada.
26
A resposta dos Estados Unidos aos ataques foi rápida e ostensiva, através da coordena-
ção e mobilização de recursos políticos e militares para o combate à Al Qaeda. Do mesmo
modo foi a reação da comunidade internacional. Em 12 de setembro de 2001, um dia após
o atentado, o Conselho de Segurança aprovou a Resolução 1368, que descreveu os ataques
como uma ameaça à paz e segurança internacionais, declarando-se o Conselho disposto a
tomar todas as medidas necessárias para restabelecê-las, apelando à comunidade interna-
cional que perseguisse não só os terroristas, mas todos os que com eles colaboram, finan-
ciam ou acolhem.
Em seguida, foi aprovada a Resolução 1373
27
, onde o Conselho permite, de forma
expressa, a legítima defesa individual ou coletiva prevista na Carta para combate ao ter-
rorismo, e reafirma a necessidade de combater, por todos os meios, a ameaça representada
pelo terrorismo internacional, com vistas ao restabelecimento da paz e segurança das
nações. Destaca-se ainda, no âmbito desta Resolução, a criação de um Comitê de Combate
ao Terrorismo (CCT), dotado do objetivo de verificar a aplicação das disposições da Reso-
lução pelos Estados
28
.
Antes do 11/9, estava claro para a comunidade internacional que o direito de usar a
força em legítima defesa contra ataques terroristas era controverso. Porém, o apoio quase
26 MACHADO, Jonatas – Direito Internacional …, 4.ª edição, p. 494.
27 Publicada em 28 de setembro de 2011.
28 Em março de 2004, criou-se o Counter Terrorism Committe Executive Directorate (CTED). O CTED foi criado com a
função inicial de revitalizar o trabalho do CCT ao prover aconselhamento especializado, facilitar a assistência
técnica relativa a medidas de combate ao terrorismo e promover uma maior cooperação e coordenação entre os
diferentes órgãos da ONU e entre as diversas organizações regionais e intergovernamentais.
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universal que os países demonstraram à possibilidade de os EUA exercerem esse direito
em resposta aos ataques sofridos, e a mudança ocorrida no quadro jurídico internacional
quanto à extensão do direito de legítima defesa leva-nos à reflexão acerca do impacto deste
acontecimento na regulação internacional do recurso à força. Para alguns, as mudanças
trazidas em decorrência do ataque foram apenas uma continuação do amplo direito à legí-
tima defesa prevista na Carta; para outros, no entanto, trata-se de um novo direito baseado
numa reinterpretação do artigo 51; há, ainda, aqueles que consideraram a aceitação como
meramente política e, assim sendo, não serviu para criar um direito de legítima defesa
alargado
29
.
Importa salientar que para justificar a permissão do instituto de legítima defesa no
combate ao terrorismo, o Conselho de Segurança, através dessas Resoluções, concedeu a
esses ataques o caráter de “ataque armado”. Esta caracterização levanta debates sobre uma
questão preliminar pontuada previamente em nosso estudo, qual seja, determinar se os
atos de grupos terroristas, muitas vezes atores não-estatais independentes do controle e
suporte de um ou mais Estados específicos, constituem um ataque armado e, por conse-
guinte, podem legitimar o direito de legítima defesa individual ou coletiva nos termos do
artigo 51. Esses aspectos serão considerados em detalhes a seguir.
3.2 Significado e alcance de “ataque armado”
No âmbito da regulamentação do direito à legítima defesa enquanto exceção à proibi-
ção do recurso à força, a Carta das Nações Unidas, e seu Artigo 51 em especial, não deixam
claro se o ataque armado precisa ser perpetrado por um estado ou se pode ser estendido a
atores não estatais, mesmo quando há pouca ou nenhuma participação de um Estado. Tra-
dicionalmente, o entendimento dos Estados foi no sentido de que o termo “ataque armado”
se aplicava apenas a ataques de Estados, embora também se considerava que os Estados
por vezes poderiam realizar ataques armados por meio de atores não estatais. Com efeito,
pode-se dizer que o Artigo 51 sempre incluiu ataques de grupos terroristas, mas sempre
presumindo que esses atos seriam imputáveis aos Estados.
Nesse sentido, a abordagem do Tribunal Internacional de Justiça, no caso Nicarágua
vs Estados Unidos (1986), onde a Corte não considerou a atividade militar da Frente Fara-
bundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN) como um ataque armado. No entendi-
mento do Tribunal, as ações poderiam ser imputadas apenas aos Estados da Nicarágua ou
Estados Unidos.
29 GRAY, Christine – International Law and the Use of Force. 3.ª edição. Oxford: Oxford University Press 2008, pp.198ss.
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Nos últimos anos, porém, pressionados pelo elevado número de ataques terroristas
registrados e a necessidade de oferecerem uma resposta urgente a esse fenômeno, a comu-
nidade internacional começou a lidar com a alegação de que os ataques de atores não-esta-
tais poderiam constituir ataques armados, independentemente da atuação de um Estado
(ou Estados) em específico. Nesse sentido, vale recordar que as resoluções analisadas ante-
riormente (1368, de 12 de setembro de 2001, e 1373, de 28 de setembro de 2001) tiveram como
objetivo principal responder a um incidente terrorista, conduzido por um ator não-estatal,
num momento em que nenhum Estado afirmou que os atos haviam sido realizados por
algum Estado.
Atrelado a isso, temos também as constantes referências dos Estados aos denomina-
dos ataques da Al Qaeda ou do Talibã
30
, o que nos leva a admitir que foi estabelecida uma
interpretação do artigo 51 segundo a qual o termo ataque armado inclui ações de atores
não-estatais, sem a necessidade, portanto, de demonstrar a atribuição, ainda que apenas a
título de cumplicidade, a um Estado
31
.
3.3 Legítima Defesa Preventiva
O direito de legítima defesa, nos contornos observados até aqui, justifica-se, den-
tre outros pressupostos, perante a ocorrência de um ataque armado. No entanto, dado
o potencial destrutivo massivo das investidas militares por grupos terroristas, alguns
entendem que existem situações em que a necessidade, por parte de um Estado que se
sente ameaçado, de levar a cabo um ataque preventivo, constitui uma justificação aceitável
para o recurso à força
32
. Para isso, argumenta-se que há situações, quando por exemplo um
Estado tem evidências que um grupo terrorista detém armas químicas capazes de provo-
carem danos e perdas irreparáveis, em que simplesmente não é razoável esperar uma uti-
lização dessas armas para que, posteriormente, o Estado possa justificar o recurso à força
30 Cf., por exemplo, o discurso do Secretárgio-Geral do NATO à época, Sr. Lord Robertson. Disponível em: http://
www.nato.int/docu/speech/2001/s011002a.htm.
31 Steven Ratner afirma, ainda, que ocorreram diversas outras situações, desde 2001, de reações internacionais às
reivindicações de legítima defesa contra atores não estatais, incluindo a Turquia contra os guerrilheiros do PKK
operando a partir do Iraque, a Rússia contra os guerrilheiros chechenos operando a partir da Geórgia e Israel
contra os guerrilheiros do Hezbollah operando a partir do Líbano. Tudo isso aponta, no mínimo, para um certo
grau de aceitação da alegação geral de que a legítima defesa pode ser invocada, em princípio, contra tais atores,
independentemente de seus vínculos com outros Estados. RATNER, Steven – «Self Defense Against Terrorists:
The Meaning of Armed Attack». In: Public Law and Legal Theory Working Paper Series. University of Michigan Law
School, 2012.
32 Por exemplo, em 1981 Israel atacou um reator nuclear iraquiano ainda em fase de construção, invocando a
legítima defesa preventiva. Esta ação valeu-lhe uma condenação pelo Conselho de Segurança da Organização
das Nações Unidas.
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pelo direito de legítima defesa. Temos diante de nós, portanto, a teoria da legítima defesa
preventiva ou antecipatória.
Para aqueles que defendem o uso dessa doutrina na luta contra o terrorismo, a ameaça
deve ser iminente, séria e intensa. Isso significa que não é suficiente um Estado alegar a
mera posse de armas ou a simples realização de exercícios militares como fundamentos
para a legítima defesa. Em outras palavras, o Estado deve buscar evidências aptas a funda-
mentar a sua atuação militar, de modo a estabelecer um consenso lógico e racional de que
realmente enfrenta um perigo iminente e intenso.
Por outro lado, embora amplamente utilizada pela Bush Doctrine, essa concepção não
tem sido adotada pelo corpo iuris internacional, e é alvo de inúmeras críticas, de certo modo
lógicas e razoáveis, especialmente de que se trata de uma concepção facilmente sujeita a
arbitrariedade e manipulação. Na prática, argumentam os críticos, qualquer Estado pode-
ria alegar a existência de uma ameaça futura capaz de legitimar o uso da força. Destaca-
-se, ainda, a impossibilidade de calcular a proporcionalidade em um ataque preventivo em
vista da incerteza do risco que a alegada ameaça representa.
Para que exista um ato terrorista juridicamente relevante para os fins da legítima
defesa, é imperativo que no uso da força esteja envolvido, direta ou indiretamente, um
ou mais Estados estrangeiros, nos termos do artigo 51 da Carta. Assim, apenas como um
exemplo das suas implicações, a polícia, medidas penais e judiciais pelo governo dos Esta-
dos Unidos que foram adotadas em solo americano contra o grupo terrorista Al Qaeda não
correspondem ao exercício da legítima defesa, em sentido técnico. Para ativar esse meca-
nismo contra um Estado, é essencial que o Estado em causa esteja provadamente envol-
vido em atividades terroristas. De fato, grupos ou movimentos terroristas estão sempre,
por definição, no território de um Estado, e podem atuar no território desse Estado (terro-
rismo doméstico) ou de outro (terrorismo internacional). Se um Estado permite que seu
território seja usado para atos terroristas contra outro Estado, torna-se cúmplice, e esta
é a primeira condição prévia para conceber teoricamente o exercício de legítima defesa.
4. Novos Paradigmas frente ao Estado Islâmico (ISIS)
Em meados de 2014, o grupo militante autodenominado Estado Islâmico (ISIS)
33
rapida-
mente assumiu mais de trinta por cento do território da Síria e do Iraque. No processo,
capturou bilhões de dólares de campos de petróleo e refinarias, ativos bancários e arma-
33 O nome Estado islâmico reflete a meta declarada do grupo de estabelecer um califado islâmico em todo o
Mediterrâneo Oriental. Nas terras que controla, o ISIS impôs editos e condições repressivas aos habitantes,
semelhante ao antigo regime do Taliban no Afeganistão. O ISIS já decapitou milhares de cristãos, curdos e xiitas,
destruiu santuários xiitas e sítios arqueológicos em áreas sob seu domínio na Síria e no Iraque.
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mentos, tornando-se assim uma das maiores ameaças à paz e à segurança no Oriente
Médio
34
.
Com o propósito de eliminar o ISIS, a partir de agosto de 2014, os Estados Unidos incia-
ram uma campanha de bombardeamentos e ataques no Iraque e na Síria, ajudados por
outros países ocidentais e árabe. Com efeito, os primeiros ataques aéreos dos EUA contra o
ISIS foram em resposta a uma catástrofe humanitária que se desenrolou no norte do Ira-
que em agosto de 2014. Depois de capturarem as proximidades de Mosul, as forças do ISIS
atacaram várias cidades na região de Sinjar, assassinando milhares de homens, mulheres
e crianças Yazidis. A pedido do Primeiro-Ministro do Iraque, os Estados Unidos lançaram
a operação Inherent Resolve, consistindo de ataques aéreos generalizados contra alvos do
ISIS no Iraque em agosto de 2014. Em setembro de 2014, a França e o Reino Unido se jun-
taram aos Estados Unidos no bombardeio do ISIS no Iraque
35
.
Destaca-se que embora o governo iraquiano tenha consentido em ações militares
estrangeiras contra o ISIS no Iraque
36
, o governo sírio não o fez. Pelo contrio, a Síria, com
o apoio da Rússia
37
, protestou que os ataques aéreos em seu território constitam uma
violação injustificável do direito internacional. Os Estados Unidos defenderam-se, ale-
gando, inicialmente, que os ataques aéreos contra o ISIS eram justificados por um direito
de intervenção humanitária, pelo direito de usar a força no território de Estados falidos,
e como exercício do dirieto de legítima defesa coletiva em nome do governo do Iraque
38
.
Assim, mesmo sem o consentimento da Síria ou autorização do Conselho de Segurança,
34 Não se pretende, no escopo do presente trabalho, explorar os acontecimentos histórico-políticos e as bases
filosófico-religiosas que deram origem ao ISIS. Para esses esclarecimentos, SCHARF, Michael P. – «How the
War Against ISIS Changed International Law». In: Case Western Reserve Journal of International Law, n.º 48, 2016;
CALDARARO, Niccolo – m«Al-Qaeda, ISIS, Boko Haram and Forms of Rebellion in the 21st Century in the
Vacuum of Ottoman Soviet ‘Collapse’». In: Journal of Socialomics, v. 5, n.º 2, 2016; TAUSCH, Arno –«Estimates on
the Global Threat of Islamic State Terrorism in the Face of the 2015 Paris and Copenhagen Attacks». In: Middle
East Review of International Aairs, Rubin Center, Research in International Aairs. v. 19, n.º 1, 2015.
35 SCHARF, Michael P. – «How the War Against ISIS Changed International Law». In: Case Western Reserve Journal
of International Law. n.º 48, 2016, p.10.
36 Para maiores desenvolvimentos sobre os argumentos jurídicos sobre intervenção por convite ocorrida no
Iraque, Síria e Líbia, vide BANNELIER, Karine – «Military Interventions Against ISIL in Iraq, Syria and Libya
and the Legal Basis of Consent». In: Leiden Journal of International Law, v. 29, n.º 3, 2016.
37 Vale destacar que a Rússia, com seu poder de veto dentro do Conselho de Segurança, vetou a autorização do CS
para uso da força pelos Estados Unidos na Síria.
38 Nesse sentido, a Carta de Samantha J. Power, representante dos Estados Unidos na ONU, ao Secretário-Geral
Ban Ki-moon em 23 de setembro de 2014: “(...) o Governo do Iraque solicitou que os Estados Unidos liderassem
os esforços internacionais para atacar os locais do ISIS na Síria, com o objetivo de pôr fim aos contínuos ataques
ao Iraque, proteger os cidadãos iraquianos e, em última instância, desempenhar a sua tarefa de recuperar o
controlo das fronteiras iraquianas. (...) O ISIS e outros grupos terroristas na Síria são uma ameaça não só para
o Iraque, mas também para muitos outros países, incluindo os Estados Unidos e nossos parceiros na região.
(tradução nossa). Disponível em: https://www.justsecurity.org/15436/war-powers-resolution-article-51-letters-force-syria-
isil-khorasan-group/. Acesso em 19 ago. 2020.
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em 23 de setembro de 2014 os Estados Unidos iniciaram ataques aéreos contra alvos do
ISIS na Síria. Mais tarde, a Jordânia e o Canadá, juntaram-se aos ataques
39
.
O Estado Islâmico reagiu aos ataques sofridos, e em 31 de outubro de 2015 bombardeou
um jato russo sobre o deserto do Sinai, matando 224 passageiros
40
; em seguida, no dia 13 de
novembro de 2015, atacou um concerto de rock e um evento esportivo em Paris, matando
130 pessoas e ferindo centenas de indivíduos.
Em resposta, o Conselho de Segurança da ONU aprovou por unanimidade, no dia 2
de dezembro de 2015, a Resolução 2249, na qual afirmou que o ISIS constitui uma ameaça
global e sem precedentes à paz e à segurança internacionais, e urgiu a Comunidade Inter-
nacional a adotar todas as medidas necessárias para erradicar o domínio que o ISIS havia
estabelecido na Síria. Nesse sentido, essa Resolução acabou por esclarecer e confirmar que
o recurso à força em sede de legítima defesa é admissível contra atores não-estatais, nos
casos em que o Estado territorial é incapaz ou não deseja suprimir a ameaça perpetrada
por esses agentes
41
.
Assistimos, portanto, à criação de um novo paradigma no regime jurídico internacio-
nal do recurso à força contra grupos terroristas, ou, conforme as lições de Michael Scharf,
o surgimento de um novo “Momento Grociano”
42
, onde há a rápida formação de uma
nova regra do direito costumeiro internacional, nesse caso o reconhecimento de que o
Estado pode legalmente usar a força, a título de legítima defesa, contra atores não-estatais
de cunho terrorista, presentes no território de outro Estado, ainda que independente de
seu apoio ou cumplicidade, se este revelar-se incapaz ou relutante em suprimir a ameaça
representada por aqueles atores.
A postura adotada pelo Conselho de Segurança reverberou em alterações normativas
em outros domínios, para além da legítima defesa e uso da força, como por exemplo no
Direito do Mar. A Resolução n. 2.292/2016, nesse sentido, dá ensejo à realização do direito
de visita em alto-mar sobre embarcação suspeita do tfico de “armas inseguras” sem
autorização do Estado de bandeira
43
.
39 SCHARF, Michael P. – «How the War Against ISIS Changed International Law». In: Case Western Reserve Journal
of International Law, n.º 48, 2016, p.12.
40 The Guardian. Egypt plane crash: Russia says jet was bombed in terror attack. 17 de novembro de 2015. Disponível em:
https://www.theguardian.com/world/2015/nov/17/egypt-plane-crash-bomb-jet-russia-security-service. Acesso em 10 jun.
2017.
41 Para maiores desenvolvimentos sobre o tema, vide DEEKS, Ashley – «‘Unwilling or Unable’: Toward an
Normative Framework for Extra-Territorial Self-Defense». In: Virginia Journal of International Law, v. 52, n.º 3,
2012, p.483 ss.
42 SCHARF, Michael P. – «How the War Against ISIS Changed International Law». Case Western Reserve Journal of
International Law, n.º 48, 2016, p.52.
43 A Resolução suscitou discussões quanto à compatibilidade de seu conteúdo com a Convenção das Nações
Unidas sobre o Direito do Mar. Para Ulisses Reis e Tarin Mont’Alverne Alverne, “o Conselho regulou matéria
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Proibição do recurso à força e legítima defesa antiterrorista: legado normativo do combate aoestado islâmico (ISIS)
FELIPE AUGUSTO LOPES CARVALHO
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Conclues
Os ataques terroristas contra o World Trade Center e o Pentágono em 11 de setembro, os
ataques subsequentes do ISIS contra o avião russo e à casa de shows em Paris em 2015, e
as reações políticas da comunidade internacional a esses ataques levaram ao surgimento
de uma nova regra do direito internacional consuetudinário acerca do uso da força contra
atores não-estatais, no qual se inclui o ISIS/Daesh. Nesse sentido, a Resolução 2249 do
Conselho de Segurança estabeleceu a possibilidade do exercício de legítima defesa contra
atores não-estatais, nos casos em que o Estado territorial é incapaz ou irresoluto em supri-
mir a ameaça perpetrada.
A implicação desta mudança recentemente aceita no regime jurídico internacional da
legítima defesa é que qualquer Estado pode, legalmente, usar a força contra atores terro-
ristas não-estatais – questiona-se se essa previsão poderia se estender a outros tipos de
grupos paramilitares como rebeldes, piratas, cartéis de drogas, etc. – presentes no territó-
rio de outro Estado, se este mostrar-se incapaz ou relutante em suprimir a ameaça repre-
sentada por aqueles agentes.
Não obstante, importa considerar que o direito do recurso à força contra grupos ter-
roristas está sujeito a várias limitações previstas na Carta das Nações Unidas, que impe-
dirão, em tese, a possibilidade de abuso. Nesse sentido, as ações dos grupos terroristas
devem equivaler a um ataque armado, nos termos da Carta, para desencadear o direito
de legítima defesa; as investidas militares devem ser dirigidas contra os próprios grupos
terroristas, e não ao Estado ou à população civil, a menos que se verifique que o Estado
exerce um controlo efetivo sobre as forças terroristas; e a ação militar deve cumprir ainda
os requisitos da última ratio, necessidade, proporcionalidade, adequação e dever de noti-
cação ao Conselho de Segurança.
Em março de 2019, as Forças curdo-árabes anunciaram a queda do último bastião do
ISIS na Síria, representando o fim do califado do Estado Islâmico depois de quase cinco
anos de combates no país
44
. Embora ainda haja, atualmente, ações terroristas do Daesh
e de suas “sucursais”
45
, é certo afirmar que combate a este grupo provocou mudanças no
quadro normativo global da proibição do recurso à força. Os resultados e efeitos dessa
alheia ao alcance das suas atribuições, ainda que para isso se tenha valido da retórica da manutenção da paz
e da segurança internacionais delineada no Capítulo VII da Carta de São Francisco (1945)”. REIS, Ulisses Levy
Silvério dos e MONT’ALVERNE, Tarin Cristino Frota – «Terrorismo Internacional e Armas de Destruição em
Massa: relativizando a liberdade de navegação, a soberania e o direito de visita em alto-mar». In: Seqüência, n.º
82, 2019, p.113ss.
44 EL PAÍS. Forças curdo-árabes anunciam a queda do último bastião do ISIS na Síria. Disponível em: https://brasil.
elpais.com/brasil/2019/03/23/internacional/1553329466_793785.html. Acesso em 17 ago. 2020.
45 PÚBLICO. A luta contra o Daesh e as suas sucursais não acabou. Disponível em: https://www.publico.pt/2019/03/23/
mundo/noticia/califado-acabou-luta-daesh-nao-1866578. Acesso em 18 ago. 2020.
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mudança no degringolar de novos conflitos restam incertos, o que demandará constante
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Cooperação judicial em matéria criminal
nomercosul: reconhecimento mútuo
emodelohorizontal de cooperação
Judicial cooperation in criminal matters in mercosur:
mutualrecognition and horizontal model of cooperation
NEREU JOSÉ GIACOMOLLI*1
nereu@giacomolli.com
CAÍQUE RIBEIRO GALÍCIA**2
caique.ribeiro@ufms.br
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
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July Julho–31
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DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.2.5
Submitted on October 30
th
, 2020 . Accepted on November 10
th
, 2020
Submetido em Outubro, 2020 . Aceite a 10 de Novembro, 2020
RESUMO: A carência de normatividade consistente e uniforme acerca da cooperação
judicial internacional em matéria criminal, no Brasil, produz uma série de problemas,
mormente em face das reservas constitucionais e legais. Tal situação pode diminuir o
âmbito de proteção dos direitos fundamentais e dificultar a solidariedade internacional na
prestação da tutela jurisdicional efetiva. O artigo problematiza o reconhecimento mútuo
no âmbito do MERCOSUL, cuja integração regional não evoluiu como a existente no espaço
europeu. A harmonização legislativa é um fator de efetivação do reconhecimento mútuo
e aprimoramento dos mecanismos de cooperação judicial internacional. Para os países
doMERCOSUL já está consolidado um padrão mínimo de respeito a direitos fundamentais
tendo como parâmetro o sistema interamericano de proteção (Convenção, Comissão
eCorte), o qual deverá ser implementado e aplicado. A perspectiva de descentralização
* Doutor pela Universidad Complutense de Madrid. Professor do Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor convidado no Mestrado em
Direito da Universidade Autónoma de Lisboa/IURJ. Investigador do Ratio Legis, da UAL/Lisboa: Corpus Delicti
– Estudos de Criminalidade Organizada Transnacional. Orcid: 0000-0003-1753-0334. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/5969235847033808.
** Doutorado e mestrado em Ciências Criminais pela PUCRS com estágio de pesquisa sanduíche na Universitá degli
studi di Bologna. Estágio Pós-doutoral em andamento em Antropologia Social (PPGAS/UFMS). Professor adjunto
da UFMS. Professor Titular da FACSUL.
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e horizontalidade na cooperação judicial internacional possibilita um equilíbrio entre a
persecutio criminis e a proteção dos direitos fundamentais.
PALAVRASCHAVE: Cooperação judicial internacional. Matéria Criminal. MERCOSUL.
Reconhecimento mútuo.
ABSTRACT: The absence of consistent and uniform norms on international judicial
cooperation in criminal issues in Brazil leads to a series of problems, especially in the face
of constitutional and legal reservations. This situation can reduce the scope of protection
of fundamental rights and hinder international solidarity in the execution of effective
judicial protection. This paper will discuss mutual recognition within MERCOSUL,
whose regional integration has not evolved in the same way as the European area.
Legislative harmonization is a factor for the effectiveness of reciprocal recognition and
the improvement of international judicial cooperation mechanisms. For MERCOSUL
countries, a minimum standard of fundamental rights respect has already been
consolidated, with the Inter-American system of protection (Convention, Commission,
and Court) as a parameter, which should be implemented and applied. The perspective
of decentralization and horizontality in international judicial cooperation allows for a
balance between the persecution criminis and the protection of fundamental rights.
KEYWORDS: International judicial cooperation. Criminal Matters. MERCOSUL. Mutual
Recognition.
I. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Ao abordar-se o tema da cooperação judicial internacional, independentemente de sua
delimitação temática, temporal e espacial, indispensável refletir acerca dos fenômenos da
globalização, do incremento da migração, das novas tecnologias que aumentam a veloci-
dade das comunicações entre pessoas e Estados, da importância dos tratados internacio-
nais, bem como dos binômios soberania nacional e solidariedade internacional, repressão
da criminalidade e preservação dos direitos fundamentais.Não se trata de simples comi-
tasgentium, mas de uma obrigação jurídica, havendo uma obrigação jurídica de cooperar
com os demais Estados, de modo a afirmar a soberania, com o reconhecimento do Estado
de Direito e não de abdicação da soberania doméstica.
O Brasil, como os demais países do MERCOSUL, insere-se no contexto internacional
da globalização, o qual aumenta a circulação de pessoas, de bens e serviços, com intera-
ções imediatas e simultâneas. Tal fenômeno atinge a esfera criminal, na medida em que a
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criminalidade passou a atuar em redes, produzindo efeitos em diversos países e, muitas
vezes, de forma concomitante. Por isso, a investigação do delito,o processo e o julgamento
de crimes passarama necessitar da cooperação de outros países, tanto na perspectiva da
produção de diversos meios de prova, quanto na execução de decisões. Mesmo a prática de
ilícitos não mais se restringe aos limites territoriais de determinado país e a determinada
pessoa, mas envolve uma organização empresarial com intercâmbio internacional dinâ-
mico, sem fronteiras e com redes protetivas de interação e comunicação.
O fenômeno da transnacionalização do crime exige, cada vez mais, o aulio de outros
países. A cooperação na investigação e na incidência da potestade punitiva se insere na
solidariedade internacional e na armação e preservação da soberania estatal da autori-
dade requerente da cooperação jurídica, na medida da existência de interesse na preserva-
ção do Estado de Direito, de sua ordem jurídica e de sua justiça. A tutela jurisdicional efe-
tiva, em matéria criminal, somente ocorre no processo e pelo processo penal, conduzido
por um órgão oficial, com exclusividade em aplicar a pena. Essas especificidades atribuem
à cooperação judicial internacional em matéria criminal características próprias em rela-
ção ao âmbito civil ou privado.
Os três princípios básicos a serem seguidos na cooperação judicial internacional são
a verificação de possível conito entre o tratado internacional e a lei interna do país,
incluída a ordem constitucional (discussão da hierarquia entre tratados e a ordem consti-
tucional e infraconstitucional interna); o dever de reciprocidade (tratamento isonômico) e
a aplicação dopacta sunt servanda(cumprimento obrigatório do acordado). Esses princípios
recebem uma interpretação conforme a ordem interna e, no caso da cooperação judicial
internacional em matéria criminal, a importantes reservas constitucionais (reserva legal,
reserva jurisdicional,v.g.).
A transnacionalidade do crime exige um consistente arcabouço legislativo e institui-
ções fortes, com blocos regionais e internacionais, na perspectiva de harmonização e soli-
dez da cooperação judicial internacional. O amplo debate e os inúmeros problemas afetos
à cooperação judicial internacional, o presente artigo delimita a temática ao MERCOSUL,
mormente na incipiente e deficiente integração regional e no reconhecimento mútuo,
como mecanismo integrador. Para tanto, em um primeiro momento serão traçadas algu-
mas reflexões acerca do reconhecimento mútuo na problemática da integração regional
do MERCOSUL. Nesse apartado, merece comparação, ainda que limitada, os pontos de
distanciamento que há do MERCOSUL com a integração no espaço europeu, bem como os
aspectos que se identificam.
Num segundo momento, o artigo enfrenta a harmonização legislativa como justifica-
tiva à cooperação internacional. No Case MERCOSUL, desde o Tratado de Assunção (1991)
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existe um compromisso dos países em harmonizar suas legislações para fortalecer o pro-
cesso de integração (art. 1, TA). Por último, o artigo borda o modelo horizontal de coope-
ração judicial internacional em matéria criminal, no MERCOSUL.
1. Reflexões sobre o reconhecimento mútuo no contexto do MERCOSUL:
aproblemática integração regional
Reconhecendo-se que a cooperação jurídica internacional em matéria criminal assume
diversos significados ao longo do tempo, o estabelecimento de laços institucionais volta-
dos à persecutio criminis é uma demanda alinhada à contemporaneidade do fenômeno da
criminalidade transnacional. Muitos desafios se apresentam, na medida em que a coope-
ração internacional envolve uma gama normativa e institucional, muitas vezes assimétri-
cas e diferenciadas, de tal modo a dificultar a efetiva produção de elementos à persecução
penal.
Nesse cenário, o espaço europeu se constitui em um modelo de interação internacional
a indicar tendências, as quais podem servir de norte aos demais blocos de países. A criação
do espaço comum europeu é uma importante mudança à consolidação da ideia de que “o
conceito de espaço não exclui o conceito de território nacional, mas acrescenta a ideia de
que os territórios que compõem a União constituem uma unidade geográfica comum
1
.
Isso porque, o espaço comum fomenta também o compartilhamento do dever de garantir a
segurança dos cidadãos, além de fundamentalmente instigar ressignificações em relação
ao princípio da territorialidade em matéria penal e processual penal.
Isso significa o compartilhamento, na contemporaneidade, tanto dos riscos quanto
das soluções dos problemas. Assim se infere na acepção de Daniel Bell, quando afirma: “a
nação se torna não só pequena demais para resolver os grandes problemas
2
, como também
grande demais para resolver os pequenos”
3
. De forma mais abrangente, Beck arma que
a ideia de que em época de riscos globalizados seria possível agir segundo o lema ‘conse-
guimos resolver o problema sozinhos’ revela-se uma ilusão fatal”
4
. Anal, não é simples,
1 No original, em WEYEMBERGH, Anne – «La cooperazione giudiziaria e di polizia». In: KOSTORIS, Roberto E.
Manuale di procedura penale europea. Milano: Giuffrè Editore, 2017, p.204: “… così il concetto di Spazio non abolisce
il concetto di territorio nazionale, ma si aggiunge ad esso per chiarire che i territori nazionali che compongono
l’Unione costituiscono un’unità geografica comune”.
2 Vale expor os inúmeros problemas de ordem interna e externa que o Reino Unido enfrentou durante o processo
da sua saída da União Europeia (BREXIT) e as incongruências e incertezas quanto aos reflexos sociais, financeiros
e políticos dessa decisão.
3 Em GIDDENS, Anthony – Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2011,
p.23.
4 Em BECK, Ulrich – A Europa alemã de Maquiavel a Merkievel: estratégias de poder na crise do euro. Lisboa: Edições 70,
2013, p.33.
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ou sequer possível a distinção clara entre o que é política interna ou externa
5
, daí a impor-
tância da cooperação
6
entre Estados.
No caso do espaço europeu, embora seu processo de integração possa ser associado
à Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA-1952), é de fato com o Tratado de Lis-
boa (2007) que se dá uma reorganização estrutural com a distribuição de competências da
União europeia e a extinção do método intergovernamental de cooperação para a forma
comunitária
7
. Assim, o Tratado de Lisboa não inova apenas no plano institucional e deci-
sório, mas altera o conteúdo da atividade cooperacional ao consagrar o princípio do reco-
nhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciárias, buscando a aproximação da base
jurídica legislativa comum, reforçando os poderes do Eurojust e da Europol, bem como lan-
çando os alicerces ao Ministério Público Europeu
8
.
Desta forma, a ideia do espaço de liberdade, segurança e justiça é garantido pela atua-
ção conjunta da harmonização legislativa, do princípio do reconhecimento mútuo e da
cooperação operacional
9
. Nessa estrutura há o compartilhamento de competências entre
a União e os Estados membros, agora englobando todos os âmbitos do espaço de liberdade,
segurança e justiça, permitindo a racionalização e sistematização de cada um desses seto-
res
10
.
Na prática, a estrutura da cooperação internacional no espaço europeu pensada a par-
tir do paradigma do princípio do reconhecimento mútuo resultou em dois mecanismos de
cooperação muito importantes. O primeiro deles é o mandado de detenção europeu (euro-
pean arrest warrant), que pretendia substituir o processo de extradição dentro do espaço
5 Segundo ZAKARIA, Fareed – The post-american world. New York: W. W. Norton & Company, 2008, p.31: “num
mundo globalizado, quase todos os problemas ultrapassam as fronteiras. Seja o terrorismo, seja a proliferação
nuclear, as doenças, a degradação ambiental, as crises econômicas ou a escassez de água, não há questão que possa
ser resolvida sem coordenação e cooperação entre muitos países. Contudo, enquanto a economia, a informação
e mesmo a cultura se globalizaram, o poder político formal permanece firmemente nas mãos do estado-nação,
apesar de o estado-nação se ter tornado menos capaz de resolver estes problemas de forma unilateral. E os estados
estão a revelar cada vez menos vontade de se juntarem para resolver problemas comuns. À medida que o número
de atores – governamentais e não governamentais – aumenta e o poder e a confiança nestes atores cresce, a
probabilidade de acordo e de ação comum diminui. Este é o desafio principal levantado pela ascensão dos demais
– evitar que as forças do crescimento global se tornem as forças da desordem e da desintegração globais”.
6 Segundo BECK, Ulrich – A europa alemã. De Maquiavél a Merkievel…, p. 50: “muitas coisas poderiam ser mais
fáceis se as pessoas, as organizações que defendem determinados interesses e os políticos deixassem cair a ideia
antiquada da soberania nacional e compreendessem que a soberania só poderá ser reconquistada a nível europeu
– com base na cooperação, no acordo e na negociação”.
7 Em WEYEMBERGH, Anne – «La cooperazione giudiziaria e di polizia». In:: KOSTORIS, Roberto E. Manuale di
procedura penale ...., p.212.
8 Em WEYEMBERGH, Anne – «La cooperazione giudiziaria e di polizia». In: KOSTORIS, Roberto E. Manuale di
procedura penale ..., p.215.
9 Em MOREDA, Nicolás Alonso – Cooperación judicial em matéria penal em la Unión Europea: la “euro-ordem,
instrumento privilegiado de cooperación. Pamplona: Thomson Reuters, 2016, p.48.
10 Em MOREDA, Nicolás Alonso – Cooperación judicial em matéria penal em la Unión Europea..., p.48-49.
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europeu e simplificar a entrega de pessoas condenadas
11
. O segundo deles é a decisão euro-
peia de investigação (european investigation order) em matéria criminal. Cada um desses
mecanismos possui identidades próprias e por si só merecem estudo destacado, mas que
foge do objeto pretendido no presente artigo. Contudo, vale assentar que se constituem
em mecanismos de cooperação que partem da relação de reconhecimento mútuo entre as
autoridades no contexto de integração regional, pois esse é justamente o contraponto e
uma das especificidades próprias da realidade do MERCOSUL.
De maneira abrangente, o reconhecimento mútuo produz, juridicamente, dois efeitos
principais: (i) cumprimento automático e sem controle de mérito de decisões judiciais
decorrentes de um outro país, com (ii) o mínimo possível de hipóteses de denegação do
cumprimento de medidas solicitadas. Esses dois efeitos, por si só, já geram na doutrina
mais cssica do processo penal um grande receio, posto que desaam os conceitos de
soberania, território e jurisdição
12
.
Contudo, mesmo que a ideia do reconhecimento mútuo seja aceita como estratégia
apta a equilibrar o devido processo penal e a persecução penal da criminalidade transna-
cional, existem aspectos controversos que merecem enfrentamento mais aprofundado.
Dentre eles, a barreira da previsão normativa em comum é o primeiro desafio que se apre-
senta, já que enfrenta a própria concepção clássica de Estado-nação no que diz respeito à
ideia de soberania estatal. Sem dúvida, tratando-se de direito internacional, é inconce-
vel a imposição de norma internacional ao sistema interno sem a anuência por meio dos
mecanismos formais e materiais
13
.
De maneira geral, nos blocos regionais de países, a internalização das normas depen-
derá, em primeiro lugar, do estágio de integração, influenciando diretamente no método
de internalização com as regras espeficas de acordo com a realidade de cada sistema
jurídico. No caso da União Europeia, pela própria natureza jurídica (direito comunitário)
e estrutura de funcionamento com diversas categorias de atos jurídicos (Regulamentos,
Diretivas, Decisões, Recomendações e Pareceres) e fontes normativas (Parlamento, Con-
selho e Comissão), é de extrema relevância a identificação do instrumento normativo
adequado. Só assim é possível saber quais os potenciais efeitos ao direito interno e comu-
nitário, além da questão relacionada com a distribuição de competência da União ou dos
Estados-membros.
O reconhecimento mútuo foi sendo construído ao longo dos anos junto com a integra-
ção regional dos sistemas jurídicos europeus, inicialmente mais abstratos até o presente
11 Em APRILE, Ercole – Diritto Processuale Penale Europeo e Internazionale. Padova: CEDAM, 2007, p.60.
12 Em VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Do Mandado de Detenção Europeu. Coimbra: Almedina, 2006, p.22.
13 Em REZEK, Francisco – Direito internacional público. Curso elementar. São Paulo: Saraiva, 2011, p.102.
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momento com a previsão expressa (art. 67,3, TFUE). Referida norma está contida no capí-
tulo do espaço de liberdade, segurança e justiça. Assim, há uma clara relação entre a cons-
trução jurídica desse espaço comum com o reconhecimento mútuo das decisões judiciais
em matéria criminal, um dependendo do desenvolvimento do outro.
Assim, possível conflito entre a norma da União e a Constituição interna de cada Estado
membro resolve-se a partir de um dos princípios fundantes da União Europeia, segundo
o qual há primazia do direito da União em detrimento ao direito interno, conforme rati-
cado pela Corte de Justiça
14
. Inclusive, tal premissa ficou firmada no julgamento do caso
Advocaten voor de Wereld vs. Leden van de Ministerraad (C-303/05, CJ, 03/05/2007) que colocou
em debate a Decisão-Quadro 2002/584/JAI (Mandado de Detenção Europeu) no que diz
respeito a possibilidade de execução do MDE quando o fato não for considerado crime no
Estado executor.
O Case MERCOSUL se apresenta bastante diferente, já que ainda há primazia da rela-
ção intergovernamental, demandando a internalização das normas a cada país do bloco.
Ademais, não há um órgão com competência jurisdicional comum. Desta forma, o Pro-
tocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais, norma regulamentadora da
cooperação judicial internacional em âmbito regional, necessitou ser internalizada pelos
países signatários, conforme as especificidades de cada país
15
.
A este respeito, os órgãos com competência para produzir normas jurídicas no espaço
do MERCOSUL são o Conselho do Mercado Comum (CMC), o Grupo Mercado Comum
(GMC) e a Comissão de Comércio do Mercosul (CCM) que utilizam, respectivamente, as
“Decisões”, as “Resoluções” e as “Diretivas” (art. 41, POP) como fontes jurídicas de caráter
obrigatório aos países parte (art. 9, POP), normalmente dependendo da internalização. De
maneira geral, a tomada de decisões dos órgãos requer consenso e a presença de todos paí-
ses-parte, havendo obrigação (art. 38, POP) para que os próprios países tomem as medidas
necessárias para cumprir as normas do MERCOSUL
16
.
14 Vid. SPENCER, John R. – «Mutuo Riconoscimento, armonizzazione e tradizionali modelli intergovernativi». In:
KOSTORIS, Roberto E. Manuale di procedura penale europea. Milano: Giuffrè Editore, 2017, p.325.
15 Datas de Aprovação: Argentina (-); Brasil (26/01/2000); Paraguai (23/12/1997); Uruguai (09/08/1999).
Datas de Ratificação: Argentina (09/12/1999); Brasil (28/03/2000); Paraguai (20/01/1998); Uruguai
(07/07/2000). (Disponível em <http://www.mre.gov.py/tratados/public_web/DetallesTratado.
aspx?id=MXsvPjUvqV+T8s+Xsz78Zg==&em=lc4aLYHVB0dF+kNrtEvsmZ96BovjLlz0mcrZruYPcn8=> acesso
em 28 jan 2021).
16 Dispõe o art. 40, do Protocolo de Ouro Preto: “Com a finalidade de garantir a vigência simultânea nos Estados
Partes das normas emanadas dos órgãos do MERCOSUL previstos no artigo 2 deste Protocolo, deverá seguir o
seguinte procedimento: i) Uma vez aprovada a norma, os Estados Parte adotarão as medidas necessárias para
sua incorporação ao ordenamento jurídico nacional e comunicarão as mesmas à Secretaria Administrativa do
Mercosul; ii) Quando todos os Estados Parte tiverem informado a incorporação a seus respectivos ordenamentos
jurídicos internos, a Secretaria Administrativa do Mercosul comunicará o feito a cada Estado Parte; iii) As
normas entrarão em vigor simultaneamente nos Estados Parte 30 dias depois da data de comunicação efetivada
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Este panorama geral revela que, inobstante apresentarem caminhos e metodologias
normativas diferentes, tanto a União Europeia quanto o MERCOSUL possuem um espaço
de consenso e decisão para formulação de normas comuns. Embora em cada um dos exem-
plos seja diferente o mecanismo normativo, o resultado final (elaboração de uma norma
com vinculação a todos os membros) independentemente se o processo formal de incorpo-
ração se deu mediante ratificação (caso do MERCOSUL), ou direto (algumas hipóteses no
caso da União Europeia).
Logo, situando a divergência no plano político-internacional, o tensionamento acaba
sendo mitigado, pois o resultado principal é que haja a vinculação da norma aos países
e a respectiva vigência em cada um dos ordenamentos jurídicos internos. Independen-
temente da forma em que é internalizada, a norma internacional ratificada pelo proce-
dimento formal é suficiente para garantir um standard comum de validade/vigência ao
conteúdo normativo internacional.
Não se pode olvidar, é claro, o problema que envolve o conflito interno entre a norma
internacional ratificada e a previsão normativa interna de cada país. Contudo, esse pro-
blema não tem uma solução jurídica exclusiva, mas depende das forças políticas em ação
em cada país. De fato, o fortalecimento ou não das normas internacionais de um bloco
regional como o caso do MERCOSUL ainda exige esse componente.
2. A harmonização legislativa como justificativa à cooperação internacional
Outro ponto controverso ainda dentro do aspecto normativo é a necessidade de harmo-
nização legislativa como condição à efetivação do princípio do reconhecimento mútuo e
o consequente aprimoramento dos mecanismos de cooperação internacional jurídica em
matéria criminal.
Mais uma vez a problematização se dá porque as premissas jurídicas em que estão
assentados o reconhecimento mútuo e a cooperação judicial internacional não são com-
partilhadas pela maioria dos juristas. Aliás, importante ressaltar que a cooperação judi-
cial internacional em matéria penal e seus desdobramentos compartilham uma zona de
intersecção entre o direito internacional, direito criminal e as relações internacionais, de
maneira que os institutos jurídicos nem sempre possuem a mesma lógica dogmática cs-
sica (hertica).
A própria noção do princípio da territorialidade em matéria penal não tem mais a
mesma aderência prática para solucionar problemas contemporâneos, diante de como se
pela Secretaria Administrativa do MERCOSUL, nos termos anteriormente estabelecidos. Com este objetivo, os
Estados Partes, dentro do prazo mencionado, darão publicidade do início da vigência das referidas normas, por
intermédio de seus respectivos diários oficiais”.
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apresenta a lógica da criminalidade transnacional, especialmente pensando a realidade
dos blocos de integração regional. Resultado disso não precisa ser uma unificação, signifi-
cando a imposição da mesma ordem jurídica, mas verdadeira “harmonização e coordena-
ção da pluralidade” que “faça face à diversidade de sistemas jurídicos e das suas referên-
cias de valores’
17
.
Mais do que unificar um único instrumento, a contemporaneidade requer espaços de
consenso para soluções conjuntas e coordenadas, aí residindo a harmonização
18
. Acerca da
realidade do MERCOSUL, Raul Cervini já alertava acerca das impossibilidades teóricas e
práticas do desenvolvimento de um eventual direito penal supranacional comunitário e,
descartada, ao menos momentaneamente, toda a possibilidade jurídica, tanto do ponto de
vista substantivo quanto adjetivo, de uma regulação penal supranacional comunitária.
19
Essa posição se dá, principalmente, desde a constatação da (i) ausência de instâncias
supranacionais no processo de tomada de decisões de parte dos órgãos do MERCOSUL;
(ii) a não previsão de controle de legalidade dos atos editados pelos órgãos do MERCOSUL;
(iii) um controle de controvérsias ainda precário; (iv) a ausência de controle parlamentar,
claro e objetivo, das tomadas de decisão; e (v) a necessidade de internalização das normas,
ou seja, falta de supranacionalidade dos atos normativos; entre outras críticas
20
. Todavia, é
importante destacar que muito se avançou nos pontos críticos apontados, nos últimos 20
anos, embora a falta de órgão normativo supranacional e solução de controvérsias pela via
judicial, ainda são problemáticos no âmbito regional.
A unificação em um único estatuto penal é, de fato, inviável de ser operado na prática
regional da América Latina. Contudo, é certo que a tutela dos bens jurídicos mais relevan-
tes, os quais demandariam a operacionalização da cooperação judicial internacional já é
compartilhada por todos os países, embora com alguma variação normativa quanto aos
limites do núcleo, sujeitos, preceito secundário, etc.
A principal repercussão nesse aspecto se dá na possível necessidade de dupla incri-
minação como um dos requisitos à cooperação internacional. A primeira dificuldade já
se estabelece na medida em que definir os limites de um tipo penal incriminador é uma
tarefa bastante complexa e, compará-la com outro sistema jurídico resultaria em emprei-
17 Em VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Do Mandado de Detenção ., p.27.
18 Em VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Do Mandado de Detenção …, p.55, se pode ver que “a harmonização –
que difere da unificação – ganha relevância por ser a via mais adequada à construção progressiva de uma política
criminal europeia, além de que não podemos admitir a concretização do reconhecimento mútuo isoladamente
sem que exista a diminuição de divergências das legislações penais(...)”.
19 Em CERVINI, Raúl e TAVARES, Juarez – Princípios de cooperação judicial penal internacional no Protocolo do Mercosul.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.25.
20 Em CERVINI, Raúl e TAVARES, Juarez – Princípios de cooperação judicial penal internacional …, p.26-36.
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tada hercúlea. Anal, quais seriam os pametros para definir a equivalência dos tipos
penais entre países diferentes? Todavia, vale a constatação de que a construção da ideia da
necessidade de dupla incriminação nasce justamente para ser uma ferramenta impeditiva
da cooperação, ainda na lógica fundada na noção de soberania estatal como classicamente
concebida
21
. De fato, a ideia de dupla incriminação consiste na “exigência de que o fato
objeto da cooperação seja qualificado como infração penal na legislação dos Estados coo-
perantes, bastando a convergência dos elementos essenciais, pouco importando o nomen
iuris e a presença de outros elementos”
22
.
Com isso, privilegia-se a estrutura geral (tutela de um bem jurídico relevante) às
características específicas e elementos adjacentes. E essa é a tendência a ser seguida no
porvir da cooperação jurídica internacional, considerando a alteração substancial de uma
cooperação de modelo requisitório para modelo ordenativo. Isso abarca a concepção de
confiança entre os países como um dos sustentáculos da cooperação judicial contempo-
nea, especialmente pensando o espaço compartilhado de um bloco regional. Assim, a
ideia da dupla incriminação, ou a necessidade de normas penais materiais compartilhadas
nos mesmos termos, não encontra supedâneo prático. Por outro lado, do ponto de vista da
norma processual, a ideia de harmonização ou coordenação pode se dar, alternativamente,
por meio da cooperação judicial internacional, estruturada a partir do reconhecimento
mútuo. A esse respeito, o espaço de diálogo dentro de blocos regionais de integração é bas-
tante produtivo para se estabelecer novos mecanismos, justamente porque compartilham
dificuldades e pretendem elaborar soluções conjuntas.
A harmonização legislativa, de modo geral, é uma aspiração que sempre teve lugar no
direito internacional, mas cuja implementação tem se revelado problemática, especial-
mente no campo criminal, principalmente pela ausência de representatividade democrá-
tica
23
. No Case MERCOSUL, desde o Tratado de Assunção (1991) existe um compromisso
dos países em harmonizar suas legislações para fortalecer o processo de integração
(art.1.º, TA)
24
.
21 Vid. BONDT, Wendy De – «Double criminality in international cooperation in criminal matters». In:
VERMEULEN, G.; BONDT, W.; RYCKMAN, C.(eds.) Rethinking international cooperation in criminal matters in the EU.
Antwerpen: Maklu, 2012, p.109.
22 Em BECHARA, Fábio Ramazzini – Cooperação jurídica internacional em matéria penal. Eficácia da prova produzida no
exterior. São Paulo: Saraiva, 2011, p.154.
23 Referida crítica é apontada por Raúl Cervini há bastante tempo. De fato, o déficit democrático é um fator muito
relevante no desenvolvimento da integração no MERCOSUL, já que, embora exista um Parlamento (PARLASUL),
não há ainda uma aderência dos cidadãos com o sentimento de pertencimento a esse espaço, além, é claro, da
falta de escolha por meio de sufrágio universal.
24 Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0350.htm> acesso em 28/01/ 2021.
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Contudo, harmonização legislativa não significa, necessariamente, que a mesma
norma deva existir em todos os países, mas que compartilhem – talvez em níveis diferen-
tes, dependendo da área a que se refere – padrões normativos (standards) estabelecidos em
conjunto e em nível internacional para orientar as normas internas. No que diz respeito às
normas tributárias, por exemplo, essa aproximação acaba facilitada em razão da cultura e
vontade política dentro do bloco de estabelecer padrões nesse âmbito.
Para os países parte do MERCOSUL já está consolidado um padrão mínimo de respeito
a direitos fundamentais tendo como parâmetro o sistema interamericano de proteção
25
.
A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica, 1969) é
a norma para tutela de direitos fundamentais, vinculante a todos os países membros do
MERCOSUL, apresentando um sistema de jurisdição e interpretação de competência da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
26
e da Corte Interamericana de
Direitos Humanos (CorteIDH)
27
. Além disso, vale destacar o compromisso democrático fir-
mado entre os países parte do MERCOSUL e também a Bolívia e o Chile por meio do Proto-
colo de Ushuaia (1998), ao estabelecer que a “plena vigência das instituições democráticas
é condição essencial para o desenvolvimento do processo de integração”
28
. O referido pro-
tocolo é complementado pelo Protocolo de Assunção sobre compromisso com a promoção
e proteção dos direitos humanos do MERCOSUL (2005)
29
e pelo Protocolo de Montevideo
(2011)
30
, o qual reforça o compromisso democrático no âmbito do MERCOSUL.
A controvérsia da falta de um regime normativo penal único, no atual estágio de
desenvolvimento do MERCOSUL, não se resolve pela criação de um órgão supranacional
com competência legislativa, mas pode se dar pela via da coordenação e harmonização de
padrões comuns em todos os países parte. O dever de respeito à CADH é a linha que deve
guiar as decisões judiciais em todos os países (controle constitucional e convencional),
25 Normativamente o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos é composto: (i) pela Carta da
Organização dos Estados Americanos, 1948; (ii) pela Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem,
1948; (iii) pela Convenção Americana de Direitos Humanos, 1969; e (iv) pelo Protocolo Adicional à Convenção
Americana em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 1988. Vid., também, em MAZZUOLI,
Valerio de Oliveira – Os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos. Uma análise comparativa dos sistemas
interamericano, europeu e africano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.19.
26 Examina as demandas individuais ou coletivas que dizem respeito a violações de direitos humanos constantes
na CADH e que estejam sendo violados em algum Estado que a tenha ratificado.
27 Com competência consultiva e contenciosa, sua atuação está restrita aos Estados que reconhecem sua jurisdição,
que é definitiva e inapelável nos termos da CADH em matéria contenciosa.
28 Disponível em <http://www.mre.gov.py/tratados/public_web/DetallesTratado.aspx?id=ktUNNjkHcd6x6b
SnkufaDA%3d%3d&em=lc4aLYHVB0dF+kNrtEvsmZ96BovjLlz0mcrZruYPcn8%3d> acesso em 28/01/ 2021.
29 Disponível em <http://www.mre.gov.py/tratados/public_web/DetallesTratado.aspx?id=1%2frUWpYuZNnue7PI
seEbYg%3d%3d&em=lc4aLYHVB0dF+kNrtEvsmZ96BovjLlz0mcrZruYPcn8%3d> acesso em 28/01/2021.
30 Disponível em <http://www.mre.gov.py/tratados/public_web/DetallesTratado.aspx?id=dxmiRrluWRS5wpK1la
x3qw%3d%3d&em=lc4aLYHVB0dF+kNrtEvsmZ96BovjLlz0mcrZruYPcn8%3d> acesso em 28/01/2021.
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razão pela qual, os padrões mínimos ali estabelecidos já são exigíveis em todos os países
parte. Vale ressaltar que com esse posicionamento quer-se referir que existe já consolidado
um mecanismo compartilhado por todos os membros do MERCOSUL de controle de direi-
tos fundamentais. Isso não significa que tal controle não pode/deve ser aprimorado em
vários sentidos, mas que é um padrão comum a que todos os países devem observar, sendo
possível alternativa a guiar ao estabelecimento do reconhecimento mútuo das decisões
judiciais nesse âmbito regional.
3. O modelo horizontal de cooperação judicial internacional em matéria criminal,
no MERCOSUL
No contexto geral apresentado, vale ainda destacar que a cooperação jurídica internacio-
nal classicamente se estabelecia por intermediação das relações diplomáticas entre os
países, orientada principalmente pela reciprocidade
31
e por uma burocracia típica de um
momento ainda pautado pela desconfiança entre os Estados, reforçando as respectivas
soberanias. A intensificação das interações internacionais e dos mecanismos de coopera-
ção (carta rogatória e extradição, v.g.), fez com que se aprimorasse a máquina burocrática
(técnica e jurisdicional) destinada exclusivamente ao processamento dos pedidos passivos
e ativos. Essa realidade, marcada por um aumento exponencial de pedidos, especialmente
na última década do século XX, implicou na concentração das atividades relacionadas à
cooperação em órgãos administrativos, normalmente ligados ao poder executivo (Autori-
dades Centrais).
Os tratados internacionais passaram a prever a existência de Autoridades Centrais
como forma de auxiliar e agilizar o processamento dos pedidos, centralizando em órgãos
administrativos, os quais, após receberem os pedidos, os encaminhava às autoridades
competentes ao cumprimento da medida (auxílio direto)
32
. De maneira geral, a atribuição
das Autoridades Centrais se relaciona com o “recebimento e transmissão dos pedidos de
cooperação jurídica, a alise da adequação destas solicitações quanto à legislação estran-
geira e ao tratado que a fundamenta”
33
, constituindo-se em instância de controle adminis-
31 Em RUSSOWSKY, Iris Saraiva – O mandado de detenção na União Européia: um modelo para o Mercosul. Porto Alegre:
Verbo Jurídico, 2012, p.23-24.
32 Cf. SAADI, Ricardo A. e BEZERRA, Camila C. – «A autoridade central no exercício da cooperação jurídica
internacional». In: DEPARTAMENTO DE RECUPERAÇÃO DE ATIVOS E COOPERAÇÃO JURÍDICA
INTERNACIONAL. Manual de Cooperação jurídica internacional e recuperação de ativos: cooperação em matéria penal.
Brasília: Ministério da Justiça, 2012, p.22. Cf. Também a Convenção de Haia de Comunicação de Atos Processuais
(1965).
33 Em SAADI, Ricardo A. e BEZERRA, Camila C. – «A autoridade central no exercício da cooperação jurídica
internacional». In: DEPARTAMENTO DE RECUPERAÇÃO DE ATIVOS E COOPERAÇÃO JURÍDICA
INTERNACIONAL. Manual de Cooperação jurídica internacional …, p.23.
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trativo dos pedidos. Esse é o modelo mais comum e adotado pelo Brasil, embora o órgão
destinado a ser Autoridade Central possa variar conforme estabelecido em cada acordo
34
firmado. Como regra, a função desempenhada pelas Autoridades Centrais procura facili-
tar o cumprimento dos pedidos, tornando o procedimento mais célere. Ocorre que a men-
cionada celeridade só faz sentido quando comparada com o trâmite da carta rogatória e
da extradição, que são procedimentos muito mais morosos e que já foram as principais
formas de cooperação internacional em matéria penal.
Não se ignora o avanço, especialmente na celeridade do processamento dos pedidos
que o auxílio direto, por meio das Autoridades Centrais, teve na virada do século XXI. Con-
tudo, permitir com que os sujeitos que estejam diretamente interessados na solicitação e
execução das medidas intermedeiem os pedidos proporcionará maior eficácia no cumpri-
mento do objeto do pedido, além de reduzir ao mínimo a intervenção por parte das autori-
dades do Poder Executivo
35
(controle político). Essas são as linhas de desenvolvimento da
cooperação horizontal, cuja marca principal é a descentralização das tomadas de decisões,
dando preponderância à interação entre as autoridades interessadas no cumprimento do
pedido e excluindo, ao máximo, hipóteses de controle político/administrativo. Permitir o
estabelecimento de cooperação internacional diretamente entre as autoridades interessa-
das, judiciais ou administrativas (Ministério Público, Polícias, etc.), contando com o auxí-
lio – quando necessário – das Autoridades Centrais, fortificará o processo de celeridade e
efetividade na execução das medidas.
Anal, a simples celeridade sem atingir os objetivos propostos nos pedidos resulta, na
verdade, em ineficácia das medidas cooperacionais. Na prática, a descentralização fornece
o conteúdo claro do pedido e, por se tratar de órgãos da mesma classe (entre jurisdições,
por exemplo), permite que a execução do pedido seja feita de forma mais adequada
36
.
Existem duas razões principais à implementação dessa forma de cooperação descen-
tralizada na contemporaneidade. A primeira é que a descentralização permitirá a exclusão
da dimensão política e intergovernamental do escopo da cooperação em matéria criminal.
Isso representará o mínimo desvio possível da finalidade contida na proposta de coopera-
ção entre os atores jurídicos, fomentando o estabelecimento de confiança entre os Estados
com menos interferência política
37
. Em segundo lugar, o desenvolvimento da cooperação
34 Genericamente conhecidos como MLAT (Mutual Legal Assistance Treaty – Tratado de Assistência Jurídica Mútua).
35 Em MARTINEZ, Rosa Ana Morán – «La cooperación judicial internacional en el siglo XXI». In: MINISTÉRIO
PÚBLICO FEDERAL. Temas de cooperação internacional. Brasília: MPF, 2016, p.112.
36 Em BECHARA, Fábio Ramazzini – Cooperação jurídica internacional em matéria penal…, p.28.
37 Em BONDT, Wendy, RYCKMAN, Charlotte e VERMEULEN, Gert – «Horizontalisation and decentralisation:
Future perspectives on communication and decisión making». In: VERMEULEN, G.; BONDT, W.; RYCKMAN,
C.(eds.) Rethinking international cooperation in criminal matters in the EU. Antwerpen: Maklu, 2012, p.185.
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internacional na forma horizontal/descentralizada tem como vantagem a comunicação
direta entre as autoridades envolvidas no pedido, o que proporciona maior rapidez e efi-
ciência no cumprimento do objeto proposto
38
.
Importante ressaltar que a ideia da descentralização e horizontalidade da cooperação
não implica na extinção do papel das Autoridades Centrais, mas na restrição no proces-
samento de pedidos de cooperação ao assessoramento e suporte às autoridades executo-
ras. Assim, a estrutura geral da cooperação internacional continua sendo composta pelas
Autoridades Centrais, mas com funções limitadas aos aspectos técnicos e não como canais
obrigatórios por onde devam tramitar todos os pedidos.
A perspectiva de cooperação horizontal entre as autoridades nacionais, no caso, entre
os países parte do MERCOSUL, possui alguns aspectos potencialmente dificultadores que
merecem atenção na viabilização das medidas
39
. Esses aspectos podem ser concentrados
em (i) dificuldade na identificação da contraparte competente para execução do pedido;
(ii) linguagem e tradução dos termos pedidos e respostas; e (iii) entraves técnicos na ope-
racionalizão dos pedidos.
Acerca da identificação da contraparte competente, além da possibilidade de contar
com a assistência das Autoridades Centrais (como já mencionado), uma possibilidade é
a especialização de grupos destinados a lidar com a cooperação e com competência para
executar os pedidos. No caso do Brasil, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região fixou, por
meio da Resolução n.º 101, de 15 de agosto de 2014, que “Os pedidos de cooperação jurídica
passiva em matéria penal, tanto por meio de carta rogatória quanto por meio de coopera-
ção direta com intervenção judicial, encaminhados à Justiça Federal da 4ª Região serão
processados, no âmbito da respectiva Seção Judiciária, pelos juízos da 7ª Vara Federal de
Porto Alegre, da 7ª Vara Federal de Florianópolis e da 13ª Vara Federal de Curitiba”
40
. Isso
permite que a dimica do fluxo de comunicação seja ágil e apta a executar as medidas
solicitadas. No exemplo citado, trata-se de medida dependente da chancela judicial, o que
nem sempre ocorre, já que existe a possibilidade de pedidos para o cumprimento de medi-
das administrativas que poderiam ficar a cargo do Ministério Público ou das Polícias,
diretamente.
No caso do MERCOSUL, com o processo de integração para a coordenação de ações
na área criminal, essa dificuldade pode ser minimizada. A esse respeito, o Sistema de
38 Em BONDT, Wendy, RYCKMAN, Charlotte e VERMEULEN, Gert – «Horizontalisation and decentralisation...».
In: VERMEULEN, G.; BONDT, W.; RYCKMAN, C.(eds.) Rethinking international cooperation in criminal …, p.185.
39 AMICIS, Gaetano De – «La cooperacione orizzontale». In: KOSTORIS, Roberto E. Manuale di procedura penale
europea. Milano: Giuffrè Editore, 2017, p.271.
40 Disponível em <https://www2.trf4.jus.br/trf4/diario/visualiza_documento_adm.php?orgao=1&id_materia=
21511 &reload=false> acesso em 28 jan 2021.
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Cooperação judicial em matéria criminal no mercosul: reconhecimento mútuo e modelo horizontal de cooperação
NEREU JOSÉ GIACOMOLLI, CAÍQUE RIBEIRO GALÍCIA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 2 · 1
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Intercâmbio de Informação de Segurança do MERCOSUL (SISME), criado pela MERCO-
SUL/CMC/DEC N.º 36/04 e atualizado conforme CMC/DEC N.º 17/17, considera “que para
enfrentar as atividades do crime transnacional organizado é essencial contar com um
ágil e oportuno intercâmbio de informação” (preâmbulo)
41
, e que o SISME se constitui em
ferramenta ao intercâmbio de dados sobre bens (apreensão de veículos e armas), pessoas
(pedidos de prisão, proibições e autorizações de entrada e saída de pessoas nacionais ou
estrangeiras, etc.), podendo expandir-se para dados vinculados ao crime organizado trans-
nacional, informações sobre embarcações, etc.
42
O SISME pode ser alimentado com dados
relacionados à cooperação judicial internacional, estabelecendo as contrapartes em cada
um dos países, de acordo com a necessidade pontual dos pedidos de cooperação. Assim,
essa ferramenta já pode solucionar, em grande parte, a dificuldade identificada, criando
esquemas organizacionais das partes envolvidas na cooperação, facilitando o encaminha-
mento direto dos pedidos.
O segundo entrave diz respeito à linguagem e tradução dos documentos e pedidos.
Ora, no contexto regional esse é um entrave de pouca repercussão pois, com a exceção
do Brasil, os demais países adotam a língua espanhola (com variações locais). Para sanar
essa dificuldade, o auxílio das Autoridades Centrais pode ser fundamental, embora o
corpo especializado dos órgãos, como mencionado anteriormente, deveria ser composto
por equipe que tenha aptidão nos dois idiomas oficiais do MERCOSUL, ou ainda, investi-
mento na capacitação específica nessa área.
O benefício de ter apenas dois idiomas oficiais correntes, e com isso operacionalizar
os pedidos a eles restritos, não é, a priori, compartilhado pela União Europeia, composta
por 28 Estados Membros com 24 línguas oficiais diferentes
43
. Assim, o intercâmbio acabou
sendo concentrado, na prática, na língua inglesa, padronizando a forma de se comunicar
44
.
Outra proposta que pode auxiliar na redução de ruídos de comunicação entre os países
parte do MERCOSUL é a tradução, por meio de um corpo técnico especializado, das legis-
lações pertinentes (Códigos de Processo Penal, Códigos Penais, etc.). Essa medida, para o
futuro, também contribui ao intercâmbio técnico, integração e harmonização das legisla-
ções, aspirações contidas no Tratado de Assunção. De fato, o problema da tradução não se
revela impeditivo, mas faz parte do processo de integração regional. O caminho natural
41 Disponível em <https://www.mercosur.int/documentos-y-normativa/normativa/> acesso em 28 jan 2021.
42 Anexo – Sistema de Intercâmbio de Informação de Segurança do MERCOSUL. GMC/RES N.º 26/01 – ART. 4.º,
com atualização de 22/11/2018.
43 Disponível em <https://publications.europa.eu/pt/publication-detail/-/publication/715cfcc8-fa70-11e7-b8f5-
01aa75ed71a1> acesso em 28/01/2021.
44 Em BONDT, Wendy, RYCKMAN, Charlotte e VERMEULEN, Gert – «Horizontalisation and decentralisation…».
In: VERMEULEN, G.; BONDT, W.; RYCKMAN, C.(eds.) Rethinking international cooperation in criminal …, p.189.
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com a maior integração nesse tema será a compreensão mais ou menos igualitária dos
dois idiomas, mas até lá, as Autoridades Centrais podem fornecer o suporte técnico neces-
sário para este desiderato.
Por último, os entraves técnicos (recursos humanos, treinamento e equipamentos) cor-
respondem a uma dificuldade que está afeita a maior parte dos setores burocráticos na
realidade regional. Tais dificuldades podem se dar no campo da disponibilidade de recur-
sos humanos, na qualificação desses recursos (especialização e treinamento) e na limita-
ção técnica propriamente dita (recursos informáticos, telefônicos, internet, etc.).
Importante destacar que, como já afirmado, o papel das Autoridades Centrais não é
descartado no processo de cooperação internacional descentralizada. Aliás, exatamente
nos entraves técnicos é que ela tem um papel fundamental para auxiliar o desenvolvi-
mento das atividades e de tomadas de decisões, que devem permanecer com as autorida-
des descentralizadas.
Por razões óbvias, as questões técnicas à implementação da cooperação descentrali-
zada deverá ser foco de investimento por parte dos países parte do MERCOSUL nas várias
dimensões citadas. Mas isso é um desdobramento usual de qualquer aparelhamento buro-
crático, que no caso da cooperação internacional em matéria criminal, ainda poderá ter o
suporte das Autoridades Centrais, que devem monitorar os pedidos, levantar dados esta-
sticos para auxiliar todo o processo.
No geral, o quadro proposto é favorável à implementação de uma cooperação inter-
nacional em matéria criminal na forma descentralizada, fundada no princípio do mútuo
reconhecimento. Contudo, não se pode ignorar que existem alguns pedidos cooperacio-
nais que demandam outro tratamento, constituindo, neste aspecto, exceções à regra da
descentralização. Uma dessas exceções, pode ser a transferência de pessoas condenadas.
Anal, existe uma carga muito maior de responsabilidade no acolhimento ou não de pedi-
dos de cooperação neste aspecto. Sem embargo, reconhecendo a possibilidade de exceções
à regra da descentralização, a cooperação internacional em matéria criminal, de forma
horizontal (diretamente entre autoridades nacionais), é a forma mais adequada e eficiente
em alguns aspectos. No caso da busca e coleta de elementos probatórios, se constitui em
mecanismo adequado ao desenvolvimento de atos cooperacionais.
É certo que a cooperação internacional ainda demanda muitas reflexões para sua efe-
tiva expansão como um mecanismo seguro e confiável na persecução penal no âmbito
do MERCOSUL. Em razão da dinâmica da criminalidade transnacional, requer-se esfor-
ços conjuntos e compartilhados para, superando a ideia de uma concepção hermética de
Estado, viabilizar a solidariedade internacional na afirmação do Estado de Direito e na
tutela dos direitos fundamentais.
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II. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo buscou apresentar um aparto geral sobre a cooperação jurídica inter-
nacional em matéria criminal no contexto do MERCOSUL. Por se inserir na dimica
da criminalidade transnacional, naturalmente deve se mostrar como tema com muitas
variáveis – além da velocidade da contemporaneidade – e com menor “estabilidade” do
que os temas clássicos do Direito Criminal. Conscientes da limitação da abordagem e do
recorte apresentado, buscou-se apresentar algumas reflexões sobre a realidade do MER-
COSUL a partir de uma leitura do reconhecimento mútuo e da harmonização da legisla-
ção. Essa constatação é importante na medida em que evidenciam-se as características
regionais próprias em contraponto ao modelo europeu. De fato, o processo de integração
do MERCOSUL é bastante diferente do que acontece no espaço europeu, mas a realidade
de permeabilidade das fronteiras, somada à expansão da criminalidade transnacional,
impõe medidas compartilhadas pelos países. A persecução penal necessita se equilibrar
nessa tênue linha entre integração de mercados e intersecção de jurisdições para dar uma
resposta que seja condizente com os parâmetros democráticos e de respeito dos direitos
humanos.
Nessa perspectiva é viável a harmonização da legislação criminal dos países a par-
tir do respeito ao eixo comum: Convenção Americana dos Direitos Humanos (CADH).
Naturalmente, há diversos fatores complicadores, especialmente relacionados com uma
concepção clássica de Estado nação, fechado, já não mais adequado à realidade contem-
porânea. A esse respeito, preconiza-se a desnecessidade ou a redução ao mínimo possí-
vel das hipóteses de limitação da cooperação judicial internacional com base na ideia de
dupla incriminação, apenas. Isso porque os sistemas de justiça do MERCOSUL já tute-
lam (com ressaltas específicas e alguns critérios diferentes) a grande maioria dos bens
jurídicos relacionados com a criminalidade transnacional. Por isso, se faz mister reduzir
ao máximo as possibilidades controle político das hipóteses de denegação de pedidos de
cooperação, não raras vezes tranvestidas de “técnicos”, mas que, na verdade, representam
“tecnicismos” acríticos.
Assim, defende-se a viabilização de alternativas para que a cooperação se dê no espaço
do MERCOSUL de forma horizontal e descentralizada, sem desprezar o relevante papel
das Autoridades Centrais, mormente no que pertine à facilitação do processamento dos
pedidos. Faz-se mister, porém, buscar a racionalização da cooperação judicial como ins-
trumento da persecutio criminis, mas também da proteção dos direitos fundamentais, para
além do controle político. São reflexões que estão abertas ao diálogo crítico-construtivo,
representando ideias desenvolvidas a partir de pesquisa científica consciente da finitude
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e limitação metodologia, temporal e prática. E por isso, pretende trazer o tema à tona para
discussão e contribuição de novas pautas de pesquisa que possam surgir.
REFERÊNCIAS
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Paridade e género: uma nova
igualdadenodesporto
Parity and gender: a new equality in sport
PATRÍCIA CARDOSO DIAS*1
padias@autonoma.pt
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
July Julho–31
ST
December Dezembro 2020 · pp. 95‑143
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.2.6
Submitted on September 22
th
, 2020 . Accepted on November 10
th
, 2020
Submetido em 22 de setembro, 2020 . Aceite a 10 de novembro, 2020
RESUMO: A organização das competições desportivas encontra-se subordinada a um
critério birio de género. Esta disposição é o reflexo heteronormativizado e hierarquizado
socialmente construído que, conforme se verá, encontra respaldo na discursividade
igualitária formal. A igualdade de género dita que se acautelem as diferenças que
caraterizam a espécie humana, por oposição a um modelo persecutório de neutralidade que
não assegura as diversas manifestações do exercício do direito fundamental à diferença
que, em bom rigor, é expressão do princípio da igualdade material. A discriminação
indireta que se infere do resultado eminentemente exclusivo e segregador das atletas
transgénero femininas e com diferenças no desenvolvimento sexual é premissa para uma
compreensão alargada do conceito de género e do papel fundamental que a paridade pode
significar na concretização da igualdade material no âmbito das competições desportivas
profissionais. A eliminação das categorias birias desportivas, enformada pelo substrato
da paridade para uma real igualdade de género com recurso a um sistema de handicap para
determinação dos fatores relevantes em cada modalidade desportiva, é assim promotora
de uma justiça distributiva meritocrática no desporto, promovendo simultaneamente
a desconstrução misógina que subjaz ao padrão hetero birio socialmente instituído,
que responde à preocupação das atletas transgénero femininas e com diferenças no
desenvolvimento sexual apresentarem uma vantagem injusta em relação às atletas
cisgénero.
PALAVRASCHAVE: Género; Igualdade; Paridade; Transgénero.
* Mestre em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa “Luís de Camões”. Doutoranda em Direito na
Universidade Autónoma de Lisboa “Luís de Camões”.
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ABSTRACT: The organization of sports competitions is subject to a binary gender criterion.
This disposition is the heteronormatized and socially constructed hierarchical reflex that,
as will be seen, finds support in formal egalitarian discourse. Gender equality dictates
that the differences that characterize the human species be guarded against, as opposed
to a persecutory model of neutrality that does not ensure the various manifestations of the
exercise of the fundamental right to difference, which, strictly speaking, is an expression
of the principle of material equality. The indirect discrimination that can be inferred
from the eminently exclusive and segregating result of female transgender athletes and
with differences in sexual development is a premise for a broader understanding of the
concept of gender and the fundamental role that parity can play in the realization of
material equality in the context of competitions professional sports. The elimination of
binary sports categories, shaped by the substrate of parity for real gender equality using
a handicap system to determine the relevant factors in each sport, is thus promoting
meritocratic distributive justice in sport, while promoting deconstruction misogynist
that underlies the socially instituted hetero binary pattern, which responds to the concern
of female transgender athletes and with differences in sexual development, present an
unfair advantage over cisgender athletes.
KEYWORDS: Gender; Equality; Parity; Transgender.
INTRODUÇÃO
A solução que se encontrar para a inclusão das atletas transgénero e com diferenças no
desenvolvimento sexual nas competições desportivas irá definir nos enquanto sociedade.
Será, de igual forma, o reflexo do Estado Democrático de Direito que reputamos harmoni-
zado com o quadro multidimensional de proteção jurídica de direitos humanos.
O que carateriza a pessoa humana, na sua incomensurável diversidade, é a pertença
à espécie humana. A natureza intrínseca da pessoa é a humanidade, é a pertença a esta
espécie que não admitirá, a breve ou mais extenso trecho, a sua subordinação categorizada
ou hierarquizada em todos os domínios fácticos em que se reflete o livre desenvolvimento
da personalidade humana. A pessoa é, per se, liberdade. O livre exercício desta não carece
pois de justificação. Justificadas terão de ser sim quaisquer restrições à projeção da pessoa.
Porque o sexo anatómico não determina a identidade pessoal, este tem assim de ser
entendido no quadro do direito à identidade de género. Semelhante correspondência
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encerraria a pessoa humana a uma dimensão morfológica que desconsideraria a innita
diferença que ela própria encerra em si.
A emergência de um direito fundamental à diferença é, neste sentido, expressão da
igualdade material que desconhece a hegemonia heteronormativa hierarquizada. Esta
apenas é conhecida pelas construções sociais que a edificam e que são reproduzidas pela
ordem normativa objetiva.
A igualdade que se procura alcançar necessariamente terá de atender aos destinatá-
rios ilimitadamente diversos na sua existência e convivência, consigo próprios e com os
outros, atenta a natureza eminentemente social da pessoa, adensando-se a precisão de
preservação da diferença.
O princípio da igualdade percorreu um longo e tortuoso caminho que conduziu ao
reconhecimento da igualdade de género. Igualdade que ainda não se encontra verdadei-
ramente alcançada formal e materialmente, mas que convoca concomitantemente o reco-
nhecimento de um direito à diferença, que deve ser integrado em políticas de direito anti
discriminatório, e que necessariamente terá de adensar-se na sua matriz fundante de res-
peito social coletivo.
Compete ao Direito, em relação de reciprocidade com as demais áreas da ciência, con-
formar-se e acompanhar a evolução do conhecimento, oferecendo o seu manifesto contri-
buto para a desconstrução das identidades heteronormativas.
O Direito e os direitos são os mesmos para todas as pessoas, são assexuados. O impulso
legiferante em questões de género terá, assim, de criar ou recriar as condições necessárias
para o exercício dos mesmos considerando esta matriz fundante que é génese dos direitos
fundamentais da personalidade que, em bom rigor, são a razão de ser do Direito.
A concretização do princípio da dignidade da pessoa humana está assim intrinseca-
mente ligada aos mecanismos operativos do livre desenvolvimento da personalidade, do
qual é expoente no objeto de análise deste texto o direito à identidade e autodeterminação
de género.
O exercício concreto deste fundamental direito pode ter expressões materiais difusas,
entre as quais o exercício do direito ao desporto e ao exercício físico, designadamente,
no desporto profissional de competição que, em resultado eminentemente oposto ao que
seria o paradigma de justiça desportiva, se tem evidenciado segregador para as atletas
transgénero femininas e com diferenças no desenvolvimento sexual.
A proposta de reflexão subjacente ao texto é de eliminar as categorias de género biná-
rio nas competições desportivas, o que se impõe por força da própria tutela geral da perso-
nalidade, partindo da premissa de que a igualdade material de resultado é alcançada por
via da atualização da interpretação da paridade, resultante de uma sincrónica e diacrónica
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adequação ao conceito de género no quadro de proteção dos direitos humanos contempo-
neo.
Em ordem a alcançar o objetivo geral de justificar a eliminação das categorias birias
de género na organização das competições desportivas, partimos da necessária compreen-
são da humanidade assexuada e da incompatibilidade com o poder de autodeterminação
que é a própria pessoa com a sua redução a um sexo pré-determinado e objetivo mera-
mente morfológico.
Resulta, para este efeito, ser necessário legitimar o direito fundamental à identidade e
autodeterminação pessoal de género, radicado do direito fundamental à diferença, à luz do
contributo transdisciplinar científico que enforma as criações normativo-jurídicas.
Neste desiderato, o princípio da igualdade e a sua concretização não poderá ser conci-
liado com a estigmatização, segregação e desigualdade em resultados práticos, pelo que a
igualdade formal e material não se poderá adstringir a instrumentos transitórios que não
considerem a perpetuidade da espécie humana assexuada e innitamente diversa.
Convoca-se, assim, a paridade enquanto nova forma de igualdade para acautelar a
tutela diferenciada que urge ser reconhecida às atletas transgénero femininas e com dife-
renças no desenvolvimento sexual e que, concomitantemente, promoverá o desporto de
competição a sede de verdadeira justiça inclusiva, porquanto permitirá de igual forma a
elegibilidade de atletas de género não binário.
Na verdade, conforme se demonstrará, o tradicional argumento da testosterona, que
até ao presente tem consistido no “melhor” argumento de discriminação indireta, não
é aceitável à luz da sistemática dos direitos humanos fundamentais, porquanto não se
poderá admitir que um/a atleta apenas possa competir se estiver em igualdade condições
de perder a competição.
É a igual dignidade de todas as pessoas que determina que se reconheça a lotaria gené-
tica natural e o livre desenvolvimento da personalidade de género no desporto profissio-
nal de competição, que não se pode furtar, no âmbito de uma boa governança desportiva,
ao cumprimento integral do desiderato do primado da pessoa humana.
É esta a razão de ser do Direito: proteção da pessoa e criação de condições para que se
desenvolva livremente. Este paradigma poderá ser alcançado com a eliminação de catego-
rias nas competições desportivas com recurso a um proporcional sistema de handicap que
atenda às caraterísticas efetivamente relevantes para cada modalidade desportiva.
O modelo proposto poderá conduzir a que muitas competições, do ponto de vista do
resultado, sejam organizadas binariamente, mas já não será este o kick o de origem, admi-
tindo-se por esta via a participação de todo/as atletas de acordo com um modelo de merito-
cracia como impõe a própria verdade desportiva.
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A pessoa humana é muito mais que um corpo, é ser em devir, exige-se por isso ao
Direito a conformação normativa com a dimensão ética, ontológica e axiológica da pes-
soa. Um verdadeiro Estado Democrático de Direito não autocompraz com uma igualdade
meramente formal: a paridade é por isso uma das vias para a igualdade material nas ques-
tões de género.
1. Da (des)construção da identidade jurídica de sexo bio-anatómico ao
género: a crónica de uma humanidade sexuada
O Direito, enquanto ordem objetiva, é o meio de produção e reprodução das construções
sociais, é um fenómeno humano e social (daqui decorre o brocado latino ubi ius ibi societas)
1
.
Por conseguinte, o próprio Direito objetivo tem contribuído significativamente para a
construção das relações de género heteronormativas, orientadas pelo pressuposto de sexo
binário (feminino e masculino) que, tendencialmente, evidenciam uma assimetria social
entre o homem e a mulher.
É, por isso, particularmente relevante a definição da UNESCO quanto ao género: «Gen-
der roles and expectations are learned. They can change over time and they vary within
and between cultures. Systems of social differentiation such as political status, class, eth-
nicity, physical and mental disability, age and more, modify gender roles. The concept of
gender is vital because, applied to social analysis, it reveals how womens subordination
(or men’s domination) is socially constructed. As such, the subordination can be changed
or ended. It is not biologically predetermined nor is it fixed forever»
2
.
A valoração endereçada à diferenciação na construção da identidade jurídica feminina
e masculina promoveu a justificação clássica para o tratamento desigual das pessoas radi-
cado na sua diferença biológica e anatómica
3
4
5
.
1 ASCENSÃO, José de Oliveira – O Direito. Introdução e Teoria Geral. Coimbra: Almedina, 2008, pp.23-29.
2 UNESCO – Unesco’s Gender Mainstreaming Implementation Framework for 2002-2007 – Basic Definitions of
Key Concepts and Terms,p. 17.
3 Veja a este propósito a redação do art.º 1605.º do Código Civil, revogado recentemente pela Lei N.º 85/2019, de
3 de setembro, que considerava lícito à mulher contrair novas núpcias passados cento e oitenta dias apenas, e
se, obtivesse uma declaração judicial de que não se encontrava grávida ou que tivesse tido algum filho depois
da dissolução, declaração de nulidade ou anulação do casamento anterior; se os cônjuges estivessem separados
judicialmente de pessoas e bens e o casamento se dissolvesse por morte do marido, podia ainda a mulher celebrar
segundo casamento decorridos cento e oitenta dias sobre a data em que transitou em julgado a sentença de
separação, se obtivesse uma declaração judicial de que não se encontrasse grávida ou tivesse tido algum filho
depois daquela data.
4 BELEZA, Teresa Pizarro – Direito das Mulheres e da Igualdade Social. A Construção Jurídica das Relações de Género.
Coimbra: Edições Almedina, 2010, p.88.
5 Vera Lúcia Raposo identifica três etapas fundamentais na compreensão dos conceitos de igualdade e
desigualdade. Na primeira, relacionando-se a diferença com a desigualdade, operou-se uma verdadeira
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A heteronormatividade parte da premissa que homens e mulheres são intrinsecamente
diferentes, encontrando-se, todavia, subjacente a esta conceção a tradicional prevalência
do “homem” em relação à “mulher, devendo esta adaptar-se às regras de regime criadas
sob a égide do padrão masculinizado
6
.
O paradigma igualitário, nas declarações que sobre o mesmo versam, fornecem arti-
ficialmente os termos de comparação da discursividade heteronormativa
7
se não se apre-
sentarem densificados por um critério de igualdade fáctica.
Em bom rigor, a discursividade igualitária formal das mais diversas áreas – v.g. jurí-
dica
8
, médica
9
, religiosa
10
– reforça a criação de identidades normativas binárias, vislum-
brando-se a estigmatização, mais ou menos velada, face às diversas perceções sociais e
hierarquização valorativa entre seres superiores e inferiores, entendendo-se, rectius, as mulheres como seres
negativamente diferentes; na segunda, a igualdade relacionou-se com a identidade, passando a entender-se que
todos tinham direito a ser tratados como iguais na exata medida em que cumprissem os critérios da identidade,
realçando-se nesta fase as semelhanças entre as pessoas como forma de obstar às desigualdades suscitadas na
primeira etapa; na terceira etapa a diferença assume-se como um fator correlativo com a igualdade, assumindo-
se por princípio que todos gozam do direito a ser tratados de forma igual, proporcionalmente às suas diferenças,
de forma a promover a realização de cada necessidade pessoal. Cfr. RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade,
a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias; Económicas; Empresariais; Filosóficas; Históricas;
Políticas; Processuais. Coimbra: Edições Almedina, 2005,p. 572.
6 A hegemonia masculina no desporto, suportada por uma desigualdade socialmente construída, é em bom rigor
tolerada conforme resulta da recessão crítica a Sex Segregation in Sports: Why Separate is Not Equal. «(…) a wrester
[sic] in 2011 who refused to compete against a girl in a collegiate tournament; he did so purely based on her
sex. Their question was, why would a male wrestler be applauded for refusing to compete against a woman,
when would have been condemned for his choice were it based on race, sexual orientation, or nationality?».
SAPPENFIELD, Kourtney – Adrienne Miller and Jomills Braddock II: Sex Segregation in Sports: Why Separate is
Not Equal,p. 2479.
7 A igualdade de género é, assim, uma das prioridades globais da UNESCO, encontrando-se em curso o designado
UNESCO Priority Gender Equality Action Plan for 2014-2021, cuja construção e garantia da igualdade de género como
princípio de direitos humanos e fundamento da democracia, tem como objetivo o alcançar de uma igualdade
substantiva (na vertente jurídica e de facto).
8 A identidade jurídica de acordo com o sexo bio anatómico é atribuída à nascença, conforme resulta das disposições
conjugadas no n.º 1 do art.º 101.º – A (requisitos gerais) e alínea b) do n.º 1 do art.º 102.º (requisitos especiais), às
quais acresce a exigência prevista na alínea a) do n.º 2 do art.º 103.º (todos do Código do Registo Civil) em relação
à composição do nome próprio, que não deve suscitar dúvidas sobre o sexo do registando.
9 SCHWEND, Amets Suess – «Trans Health Care from a Despathologization and Human Rights Perspective».
In: Public Health Reviews. Vol. 41, N.º 3, (2020), pp.2-3; «No geral, os médicos e alunos de medicina assumem que
têm pouca ou nenhuma preparação no que concerne à abordagem em contexto clínico da orientação sexual e de
assuntos relacionados com a identidade de género. (…). O facto de nos movimentarmos numa sociedade hétero e
cisnormativa cria desigualdades importantes para todos aqueles que se sentem excluídos desta «normalidade».
No contexto clínico o tema é tanto mais importante quanto pode condicionar o grau de exposição e de confiança
do doente perante os profissionais de saúde, o que em última análise nos afasta de uma saúde centrada no doente
e nos coloca perante uma situação de não respeito pelo princípio da equidade.». Cfr. MACEDO, Ana – Identidade
de Género e Orientação Sexual na Prática Clínica. Lisboa: Edições Sílabo, 2018, pp.66 e 68.
10 Em 2019 o Vaticano publicou um documento da Congregação para a Educação Católica, cujo título é “Homem
e Mulher os Criou”, cuja matriz antropológica cristã conservadora apela, naturalmente, à manutenção adstrita
da identidade pessoal à diferença biológica entre masculino e feminino. Cfr. CONGREGAÇÃO para a Educação
Católica – Homem e Mulher os Criou.
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culturais da diferença (v.g. raça, etnia, religião, hábitos de vida) entre seres humanos em
relação à padronização do género feminino e masculino.
Com efeito, e não obstante a profícua promoção enquanto tarefa fundamental do
Estado
11
, o reforço da heteronormativização binária encontra imediatamente amparo nos
fundamentos constitucionais na prossecução da igualdade entre homens e mulheres.
A norma constitucional impõe, neste sentido, a eliminação de desigualdades formais e
materiais por via do impulso legislativo, o que apenas se alcança com a continua densi-
cação da igualdade de género enquanto vertente do princípio da igualdade.
Com Ana Macedo arma-se que «Alargando este conceito podemos dizer que os
padrões heteronormativos transcendem a orientação sexual e são também cisnormati-
vos dado que incluem a identidade de género (cisgénero) e a definição binária de género,
mesmo nas sociedades que se assumem como tolerantes e abertas à diversidade, quer em
termos sociais quer em termos legais.»
12
.
A hegemonia heteronormativa comporta, assim, duas consequências imediatas: a pri-
meira, promove a discriminação por via da estigmatização daquilo que se afasta do padrão
socialmente normalizado; a segunda, reifica a reprodução cíclica de padrões normaliza-
dos, determinando um “esforço acrescido” de (aparente) tolerância para com caraterísticas
diferenciadas que não são incorporadas ab initio no desenvolvimento social e cultural da
pessoa humana
13
.
As declarações sobre a igualdade são, nestes termos, estranhas à perceção da diferença
constitutiva dessa mesma diferença, porquanto partem de uma homogeneidade binária
heteronormativa dirigida a destinatários innitamente diferentes
14
.
Com efeito, cremos que o “caminho a percorrer” pelo princípio da igualdade hodier-
namente, implicará abandonar o tradicional paradigma igualitário de neutralidade (que
atende particularmente ao que une as pessoas entre si e não ao que as separa), para se apro-
ximar de um paradigma diferenciado, preservando a diferença, rectius, por via da criação
de regimes jurídicos adequados à preservação das particularidades de cada ser humano.
Neste sentido, delineando uma política de direito anti discriminatório e visando sal-
vaguardar o direito à autodeterminação pessoal com o consequente reconhecimento dos
direitos dele decorrentes em relação às pessoas transgénero (tais como o reconhecimento
11 Alínea h) do n.º 1 do art.º 9.º da Constituição da República Portuguesa.
12 MACEDO, Ana – Identidade de Género e Orientação …, p.65.
13 «A heteronormatividade pressupõe uma visão do mundo na qual há padrões clássicos de feminino e masculino e
onde a orientação sexual de referência é a heterossexual, sendo a relação e tratamento das pessoas homossexuais
adaptado daquilo que é assumido para as pessoas heterossexuais.». Cfr. MACEDO, Ana – Identidade de Género e
Orientação …, p.. 65.
14 BELEZA, Teresa Pizarro – Direito das Mulheres e da Igualdade Social…, pp.90-91.
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da sua identidade de género e o direito a ser tratada e identificada de acordo com ela),
a Resolução 2048 do Conselho Europeu de 2015 recomendava que cada Estado Membro
ponderasse o desenvolvimento de procedimentos céleres e transparentes em relação ao
procedimento de mudança de menção de sexo e nome próprio no registo civil, a elimina-
ção de requisitos prévios quanto à esterilização ou quaisquer outros tratamentos médicos
de afirmação de género, diagnósticos de saúde mental ou a possibilidade de inclusão de
um terceiro género nos documentos de identificação daqueles que assim o desejassem
15
16
.
Não é, nestes termos, de estranhar que um direito fundamental à diferença venha a
ganhar expressão reforçada em alguns ordenamentos jurídicos, designadamente, no que
concerne ao direito à autodeterminação da identidade e expressão de género e do direito
à proteção das caraterísticas sexuais
17
que, com a inerente garantia jurídica, assegura que
a pessoa não abdique de o ser em liberdade e de se transformar naquilo que é ou naquilo
que vai sendo.
Nem todos os seres humanos, atendendo ao conhecimento científico de outras áreas,
são necessariamente homens e mulheres enquadrados em categorias objetivas e pré-de-
terminadas
18
, tratando-se de um fenómeno humano comum e culturalmente diverso.
Assinala-se assim o potencial e pertinência das normas, particularmente as consti-
tucionais, na constrão da perceção coletiva da igualdade de género, assegurando um
direito à diferença, enquanto dimensões fundamentais do princípio da igualdade.
Na verdade, é a experiência histórica que demonstra que a proclamação e a consagra-
ção constitucional do princípio da igualdade dependem da realidade constitucional viven-
ciada em cada cultura cívica, pelo que a sua realização legislativa e aplicação prática pade-
cem das refrações decorrentes do âmbito social e valores pré adquiridos.
Daqui resulta a importância da precisão dos conceitos. Os conceitos, ainda que não
consolidados ou suscetíveis de reformulação, exercem a pertinente função de conduzir o
pensamento, indicando de igual forma a realidade social e valores que “observam” para a
sua constrão.
15 CONSELHO Europeu – Recomendação 2048.
16 Na Nova Zelândia, nos casos em que não é possível determinar o sexo à nascença, o registo civil prevê a
possibilidade de inscrição com “sexo indeterminado”, sendo que em 2012 foi incluída a designação “X” nos
documentos de identificação de pessoas em processo de afirmação de género; na Austrália, desde 2003, é
possível a designação de género “X” para todas as pessoas adultas e não só para pessoas com sexo indeterminado;
na Alemanha, em 2017, o Tribunal Constitucional pronunciou-se quanto à existência de um terceiro género,
decidindo que o registo civil e a identidade civil apenas são expressão da identidade pessoal se coincidirem entre
si, pelo que o terceiro género é baseado na identidade pessoal e não no sexo biológico.
17 A título de exemplo, em Portugal, a LEI N.º 38/2018, de 7 de agosto, que estabelece o direito à autodeterminação
da identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das caraterísticas sexuais de cada pessoa.
18 Neste mesmo sentido a WORLD Professional Association for Transgender Health – Standarts of Care for the Health of
Transsexual, Transgender, and Gender-Nonconforming People, pp.4-5.
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2. Relencia do rigor terminológico: sexo, género, identidade de género,
transgénero
A igualdade, abstrata e concreta, não se tem alcançado da mera consagração constitucional
enquanto princípio, mas do equilíbrio que vem sendo encontrado entre a justiça concreta
e o direito à diferença que resultou reconhecido por via das lutas travadas pela igualdade
por aqueles que se encontravam (ou encontram) marginalizados.
Se, como refere Jorge Miranda, os direitos são os mesmos para todos, mas nem todos se
encontram em igualdade de condições para os exercer «(…) é preciso que essas condições
sejam criadas ou recriadas através da transformação da vida e das estruturas dentro das
quais as pessoas se movem»
19
.
A criação ou recriação destas condições, no desiderato da equidade para o exercício de
direitos que se prossegue na ponderação da (re)construção do género no desporto encon-
tra, necessariamente, a sua matriz fundante no rigor terminológico que se alcança trans-
disciplinarmente das cncias médica, ética, sociológica e jurídica.
É o complexo destas áreas do conhecimento que permitem o desenvolvimento da capa-
cidade individual e coletiva anti discriminatória
20
– conceito elástico e mutável, que varia
diacronicamente e sincronicamente – minorando-se a conhecida clivagem intolerante em
relação ao transgenismo.
O sexo, feminino e masculino, é o resultado expresso da observação dos órgãos sexuais
externos
21
(caraterísticas sexuais primárias). É definido de acordo com as caraterísticas
biológicas, anatómicas, genéticas e reprodutivas da pessoa. Neste sentido, regra geral, o
cariótipo consistente com o sexo feminino apresenta-se com a designação 46 XX e o mas-
culino 46 XY
22
.
19 MIRANDA, Jorge – Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. Direitos Fundamentais. 4.ª Edição. Coimbra: Coimbra
Editora, 2008, p.241.
20 O direito anti discriminatório é aplicável em diversas situações, como seja o ingresso em estabelecimento
de ensino ou no mercado de trabalho, relevando de igual forma neste domínio que particularmente nos
interessa agora analisar. Originariamente o conceito de discriminação significava distinguir ou diferenciar de
forma neutra. Hodiernamente é expressão de intolerância, associada a preconceitos e conotações pejorativas,
significando o discriminar uma diferenciação negativa. RAPOSO, Vera Lúcia – O Poder de Eva. O Princípio
da Igualdade no Âmbito dos Direitos Políticos; Problemas Suscitados pela Discriminação Positiva. Coimbra: Edições
Almedina, 2004, pp.. 291-299.
21 Seja no momento do nascimento, seja em momento anterior através dos meios de diagnóstico pré-natal.
22 HIRSCHBERG, Angelica Lindén – Female Hyperandrogenism and elite sports. Endocrine Connections Review.
P. 84-85; Contudo, existem composições cromossomáticas inferiores a 46, tais como as pessoas diagnosticadas
com a Síndrome de Turner, cuja variação consiste num cariótipo 45 XO, bem como composições superiores a 46,
como é o caso da Síndrome de Klinefelter em que o cariótipo é 47 XXY. Cfr. SCHULTZ, Jamie – «Caster Semenya
and the “Question of Too”: Sex Testing in Elite Womens Sport and the Issue of Advantage». In: Quest. N.º 63,
(2011), pp.230-231.
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A este propósito cumpre convocar as situações de diferenças no desenvolvimento
sexual (DDS)
23
, nas quais se enquadram as pessoas que apresentam variações na anatomia
das caraterísticas sexuais pririas e secundárias, inicialmente designadas hermafrodi-
tas, posteriormente intersexo
24
. As DDS compreendem assim atipicidades do sexo morfo-
lógico, bem como situações congénitas respeitantes ao desenvolvimento cromossómico e
das gónadas (ovários e testículos)
25
.
Se uma atipicidade da anatomia das caraterísticas sexuais primárias externas é rela-
tivamente apreensível, o mesmo não se poderá afirmar em relação às demais DDS cujas
variações podem consistir em alterações cromossómicas e hormonais.
Com efeito, algumas mulheres e homens nascem com diferenças no desenvolvimento
sexual, diagnóstico que tanto se pode verificar precocemente à nascença ou na infância,
como na adolescência ou durante a vida adulta. A forma de apresentação precoce resulta,
regra geral, de casos de ambiguidade genital, mas pode ser observada em apresentações
tardias variáveis
26
.
A DDS de desconformidade do fenótipo e de cariótipo masculino 46 XY de gónadas
não descendentes, mas funcionais, na correspondência com o sexo morfológico femi-
nino podem, assim, resultar de variações cromossomáticas e hormonais que determinam
um nível de produção endógena de testosterona idêntica à das pessoas com morfologia
humana masculina não diagnosticadas com DDS. Neste caso, se os recetores de andro-
génio forem funcionais, o desenvolvimento da massa muscular, da glândula maria, a
alteração da voz ou a distribuição da gordura corporal tornar-se-ão semelhantes aos veri-
23 Esta nomenclatura sucedeu a diversos termos que, além de pouco precisos cientificamente, socialmente
eram alvo de associações pejorativas, tais como pseudo-hermafroditas, sexo reverso, intersexo. Cfr. LEE, Peter
A., HOUK, Christopher P., AHMED, S. Faisal; [et. al.] – «Consensus Statement on Management of Intersex
Disorders. Pediatrics». In: Pediatrics. N.º 118, (2006), p.488. Inerente a todas as ciências é a evolução diacrónica
pelo que desde 2016 se tem vindo a discutir a adoção de um termo médico que reflita as sensibilidades das
pessoas com DDS, flexível para receber e conformar-se com os resultados dos estudos que se vão desenvolvendo
e que simultaneamente contribua para a consolidação do conhecimento científico nesta área. Cfr. LEE, Peter A.;
NORDENSTRÖM, Arlene; HOUK, P. Christopher P. – «Global Disorders of Sex Development Update since 2006:
Perceptions, Approach and Care». In: Hormone Research in Pediatrics. N.º 85/3, (2016), pp.159-160.
24 «Em termos de desenvolvimento sexual ao nível biológico a maioria das pessoas nasce com uma anatomia
e fisiologia típica de sexo feminino ou de sexo masculino. No entanto, cerca de 1% das pessoas nasce com
características atípicas, seja ao nível genético, ao nível dos órgãos sexuais ou do desenvolvimento das gónadas».
Cfr. MACEDO, Ana – Identidade de Género e Orientação …, pp.22 e 73; Em relação à especificidade das pessoas
intersexo a nível cromossomático, cfr. SAX, Leonard – «How Common is Intersex? A Response to Anne Fausto-
Sterling». In: The Journal of Sex Research. Vol. 39, N.º 3.
25 HIRSCHBERG, Angelica Lindén – «Female Hyperandrogenism and elite sports». In: Endocrine Connections
Review. N.º 9. (2020), p.83.
26 MACEDO, Ana – Identidade de Género e Orientação …, p.77.
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cados num corpo humano masculino, pese embora o fenótipo se identifique com o género
feminino
27
.
Outra tipologia de DDS a ser considerada é a provocada pela deficiência da enzima
5α-reductase do tipo 2, resultante de uma mutação cromossomática que não permite a
transformação da testosterona em di-hidrotestosterona. Neste caso, ainda que se verifique
a presença de gónadas não descendentes, bem como a produção de níveis de testosterona
comuns num corpo morfologicamente masculino sem DDS, atento o não desenvolvi-
mento do órgão sexual masculino por força da deficiência enzimática, a identificação tem
por referência o género feminino
28
.
Em ambos os casos de DDS, indivíduos morfologicamente femininos, revelam uma
virilização progressiva que pode ser mais ou menos acentuada.
Há ainda que considerar a síndrome de insensibilidade ao androgénio que pode ser
total (CAIS
29
) ou parcial (PAIS
30
). Esta é causada por uma mutação do gene recetor de
androgénio no cromossoma X, que determina em grau diverso a acentuação da viriliza-
ção nas pessoas com cromossoma XY. Nos casos de insensibilidade total, ainda que se
identifiquem gónadas não descendentes e níveis de testosterona considerados regulares
num corpo humano masculino médio, a ausência de resposta androgénica determina um
diminuto nível de virilização, identificando-se o indivíduo regularmente por referência ao
género feminino; já nos casos de insensibilidade parcial, o desenvolvimento do fenótipo
poderá variar, pelo que poder-se-ão observar indivíduos do género feminino mais mascu-
linizadas e indivíduos do género feminino mais efeminados
31
.
Os casos descritos não podem ser confundidos com situações de não conformidade de
género. Em bom rigor, o denominador comum que se encontra para a não conformidade
de género e as diferenças no desenvolvimento sexual é apenas a ausência de fatores exó-
genos.
27 HIRSCHBERG, Angelica Lindén – «Female Hyperandrogenism ...». In: Endocrine Connections Review, p.84.
28 HIRSCHBERG, Angelica Lindén – «Female Hyperandrogenism …». In: Endocrine Connections Review, pp.84-85;
Mutação cromossomática relevante é também a observável na ineptidão da conversão da androstenediona em
testosterona em resultado do défice apresentado na enzima 17β-hidroxisteroide desidrogenase do tipo 3. Nestes
casos a morfologia externa é variável, sendo que tipicamente estes indivíduos são cromossomaticamente XY,
mas apenas durante a puberdade, com a produção endógena mais acentuada de androgénio se processa a
progressão, ou não, da virilização, não obstante ser-lhes comumente atribuído o género feminino à nascença.
29 Síndrome de insensibilidade completa aos androgénios.
30 Síndrome de insensibilidade parcial aos androgénios.
31 Diagnosticada com esta condição médica foi a atleta espanhola María José Martínez-Patiño cuja anatomia
corporal, órgãos sexuais primários e identidade de género eram tipicamente femininas, mas que geneticamente
foi considerada um homem, porquanto o cariótipo cromossomático identificado foi 46XY. Cfr. SCHULTZ, Jamie
– «Caster Semenya and the “Question of Too”: Sex Testing in Elite Womens Sport and the Issue of Advantage»,
In: Quest, p.234; HIRSCHBERG, Angelica Lindén – «Female Hyperandrogenism …». In: Endocrine Connections
Review, p.84.
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As diferenças no desenvolvimento sexual definem-se como situações congénitas
nas quais o desenvolvimento cromossomático, das gónadas ou da anatomia morfológica
sexual é atípica.
A identidade de género corresponde ao género com o qual a pessoa se identifica, radi-
cando de uma vivência eminentemente interna e individual, e através da qual se expressa,
ou não, diariamente (expressão de género, por exemplo, através da roupa, do corte de
cabelo, dos desportos praticados, comportamentos)
32
33
.
Esclarecendo «A identidade de género é definida pelo sentimento próprio e subjetivo
relativamente a pretender um determinado género para si próprio (…). Em termos de iden-
tidade de género um indivíduo pode assumir-se como feminino ou masculino, no espe-
tro feminino ou no espetro masculino, ou genderqueer. As pessoas podem assumir uma
identidade de género indefinida, uma identidade que se sobrepõe ao género masculino e
feminino, uma identidade sem um género ou terem uma identidade de género fluida, que
se movimenta através do espetro do género, num contínuo entre o feminino e o masculi-
no»
34
35
36
37
.
32 O acrónimo LGBTQI integra uma diversidade de indivíduos e de manifestações de personalidade, incluindo
populações cuja identidade se baseia na orientação sexual e na identidade de género, compreendendo
atualmente as pessoas intersexo e gender queer.
33 «La cualidad de trans, que las/os diferencia de mujeres y varones cis, consiste en la falta de correspondência
entre el género autopercibido y el assignado conforme a la anatomia genital en el nacimiento (). Para las/
os entrevistadas/os el género de una persona puede ser feminino o masculino, pero esto depende de la
autopercepción de cada individuo y no de la anatomia genital. La presencia de genitales que no se corresponden
com el género autopercibido, así como el haber realizado una transición desde el género assignado hacia el
autopercibido, sólo cualifican el género de un individuo como «trans»». Cf. GODOY, Gabriel César – «La
Identidad de Género Trans: Una Construcción Relacional y Contextualizada (San Luiz, Argentina, 2013-2015)».
In: Athenea Digital. ISSN 1578-8946. Vol. 19, N.º 3, (2019), p.10.
34 ««Gender has been described as a persons internal sense of “gendered self” and place in the world. Gender
differs from physiological sex traits and is not defined by external genitalia. Rather, gender is a construct of an
individual’s own gender identity.». BASS, Megan; GOZALEZ, Luis J.; COLIP, Leslie; [et. al] – «Rethinking Gender:
The Nonbinary Approach». In: AM J Health-Syst Pharm. [sl]. Vol. 75, N.º 22, (2018), p.1821.
35 MACEDO, Ana – Identidade de Género e Orientação …, p.21.
36 Espectro de género é a classificação que considera que o género se estabelece num continuo entre feminino e
masculino, opondo-se à classificação binária, é comummente designada género fluido ou queergender; a pessoa
que se defina como não tendo género ou de género neutro designa-se agénero, tratando-se de uma forma de
identidade de género não binária; a disforia de género consiste no diagnóstico DSM-5 atribuído a pessoas
cuja identidade de género não corresponde ao sexo e género atribuídos à nascença provocando sofrimento
ou desconforto causado por aquela discordância. BASS, Megan; GOZALEZ, Luis J.; COLIP, Leslie; [et. al] –
«Rethinking Gender: The Nonbinary Approach». In: AM J Health-Syst Pharm. [sl]. Vol. 75, N.º 22, (2018), p.1821;
MACEDO, Ana – Identidade de Género e Orientação …, p.43.
37 Sustentando que a identidade de género transgénero consiste numa construção relacional, que requer um
trabalho consistente e permanente de auto perceção e que se encontra socioculturalmente condicionada,
por oposição à concetualização da identidade de género transgénero enquanto produção e processo volitivo
eminentemente pessoal, conferir GODOY, Gabriel César – «La Identidad de Género Trans: Una Construcción
Relacional y Contextualizada (San Luiz, Argentina, 2013-2015)». In: Athenea Digital. Vol. 19, N.º 3, (2019).
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Designam-se cisgénero as pessoas que se identificam com a categoria de género que
corresponde às caraterísticas anatómicas sexuais que determinaram a especificação do
sexo no modelo binário
38
.
Já o termo transgénero é empregue para descrever diversas identidades e expressões
de género que não se identificam com as caraterísticas biológicas visíveis, não se confor-
mando com o estereotipo social de homem e mulher
39
, não sendo relevante a pessoa ter
iniciado ou pretender iniciar o processo de transição ou cirurgia de afirmação de género.
O adjetivo transsexual, que na verdade consiste numa designação desadequada por-
que muitas pessoas não experimentam um processo de transição porque nunca reputa-
ram para si o género consignado à nascença, refere-se às pessoas transgénero feminino
ou masculino que tenham realizado tratamento hormonal ou cirúrgico de afirmação de
género.
Os procedimentos médicos de afirmação de género estão assim vocacionados para pes-
soas com identidade de género diferente do sexo atribuído à nascença, mas com identidade
binária, pelo que os tratamentos (alguns reversíveis e outros irreversíveis) prosseguem
alcançar as caraterísticas sexuais pririas e secundárias do género com o qual a pessoa
se identifica
40
.
Por conseguinte, importa ter presente que a pessoa transgénero não tem necessaria-
mente de experimentar um processo de afirmação de género
41
com recurso a terapias
hormonais ou intervenções cirúrgicas
42
, o que é als reforçado com o reconhecimento de
identidades de género não birias.
O género pode ser definido como o conjunto de caraterísticas psicológicas, sociais,
culturais e comportamentais normalmente associadas ao sexo anatómico feminino ou
masculino
43
.
38 BIANCHI, Andria – Something Got to Give: Reconsidering the Justification for a Gender Divide in Sport. In:
Philosophies. [sl]. Vol. 4, N.º 23, (2019).p. 2.
39 «A transgender person identifies with a gender that differs from their sex, where a person´s sex is usually
assigned at birth and based on factor such as hormones and reproductive systems». BIANCHI, Andria –
«Something Got to Give: Reconsidering the Justification for a Gender Divide in Sport». In: Philosophies, p.2.
40 WORLD Professional Association for Transgender Health – Standarts of Care for the Health of Transsexual,
Transgender, and Gender-Nonconforming People, pp.12-25, 37-52.
41 SCHWEND, Amets Suess – «Trans Health Care from a Despathologization and Human Rights Perspective». In:
Public Health Reviews. Vol. 41, N.º 3, (2020), p.6.
42 WORLD Professional Association for Transgender Health – Standarts of Care for the Health of Transsexual,
Transgender, and Gender-Nonconforming People, pp.9-11.
43 «Gender refers to the roles and responsibilities of men and women that are created in our families, our societies
and our cultures.The concept of gender also includes the expectations held about the characteristics, aptitudes
and likely behaviours of both women and men (femininity and masculinity).». Cfr. UNESCO – Unescos Gender
Mainstreaming Implementation Framework for 2002-2007 – Basic Definitions of Key Concepts and Terms,
p.17.
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Concretizando, por um lado «O género é composto pela identidade individual, pela
expressão dessa identidade e pela forma como tanto a identidade auto percecionada como
a sua expressão se relacionam com os papéis de género tradicionais de cada sociedade»,
por outro lado, o sexo biológico (coordenado com a anatomia visível), atribuído à nascença,
respeita ao corpo e à componente genética que o integra
44
.
Encontra-se por isso alguma imprecisão em António Menezes Cordeiro ao afirmar que
«O ser humano é uma espécie sexuada. Os indivíduos de cada um dos sexos distinguem-
-se, fácil e imediatamente, pelo aspecto geral, pela postura, pelos gestos. (…) A diferencia-
ção dos sexos constitui um dos grandes sortilégios da humanidade»
45
, atenta a adstrição
ao facto anatómico que revela.
Não é líquido que os indivíduos de cada sexo se distingam fácil e imediatamente, tra-
tando-se por isso de uma armação imprecisa que não corresponde à realidade fáctica,
porquanto a frequente associação entre a não conformidade de género e a cirurgia de afir-
mação de género não se verifica em todas as pessoas. Na verdade, esta associação resulta
de uma padronização biria da medicina que estabelece uma associação entre o corpo
e o sexo anatómico, desconsiderando as diversas opções quanto ao corpo no qual a não
conformidade de género se vivência, e que parece não atender à fluidez do espectro de
género
46
.
A cirurgia de armação de género, com a inerente alteração das caraterísticas sexuais
primárias e secundárias, bem como as terapias hormonais, consistem em procedimentos
médicos enquadrados, não raras vezes, no âmbito do diagnóstico da disforia de género
47
,
que nem sempre são observados em todas as pessoas transgénero
48
, uma vez que consis-
44 MACEDO, Ana – Identidade de Género e Orientação Sexual na Prática Clínica. P. 19, 43; Em relação aos conceitos
de sexo e género ver também BELEZA, Teresa Pizarro – Direito das Mulheres e da Igualdade Social…, pp.63-66.
45 CORDEIRO, António Menezes – Tratado do Direito Civil Português. Tomo IV. Parte Geral. 5.ª ed. Coimbra: Almedina,
2019, p.417.
46 SCHWEND, Amets Suess – «Trans Health Care from a Despathologization and Human Rights Perspective».
In: Public Health Reviews, p.6.
47 «Gender dysphoriainvolves a conflict between a persons physical or assigned gender and the gender with
which he/she/they identify. People with gender dysphoria may be very uncomfortable with the gender they
were assigned, sometimes described as being uncomfortable with their body (particularly developments during
puberty) or being uncomfortable with the expected roles of their assigned gender.
People with gender dysphoria may often experience significant distress and/or problems functioning associated
with this conflict between the way they feel and think of themselves (referred to as experienced or expressed
gender) and their physical or assigned gender». Cfr. AMERICAN Psychiatric Association – Help With Gender
Dysphoria.
48 WORLD Professional Association for Transgender Health – Standarts of Care for the Health of Transsexual,
Transgender, and Gender-Nonconforming People, pp.8-9.
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tem em cuidados de saúde que podem ser adotados de forma individualizada ou em con-
junto de acordo com o destinatário concreto dos mesmos
49
.
Esta hegemonia conceptual acentuadamente binária encontra-se de igual forma em
Mafalda Miranda Barbosa que, aparentemente, tolerando específicas “situações patológi-
cas” de não conformidade de género, não admite o reconhecimento pelo ordenamento jurí-
dico do direito à identidade de género como parte integrante do direito ao livre desenvol-
vimento da personalidade, sustentando, num raciocínio que se tem por necessariamente
equivocado, que «(…) um direito à autodeterminação e à identidade de género conduz à
destruição da pessoa, (…) o suposto direito (…) que se invoca (apenas alicerçado num que-
rer arbitrio) inexiste»
50
.
Parece neste argumento ficar quedado ao esquecimento o árduo caminho percorrido
pela despatologização do transgenismo, rectius do transsexualismo, particularmente na
última década, que conduziu a uma alteração do modelo de cuidados de saúde e da confor-
mação jurídico-normativa que se exige em relação às pessoas transgénero.
A premência da criação de um quadro internacional de princípios ético orientadores
de um plano de proteção multidimensinal de direitos humanos fundamentais respeitan-
tes à orientação sexual, identidade e expressão de género e salvaguarda das caraterísticas
sexuais, determinou a adoção de instrumento de soft law, The Yogykarta Principles
51
, con-
siderando o profícuo contributo que um quadro de proteção ético-legal apresenta para a
desconstrução dos preconceitos culturalmente instituídos e para a despatolização da não
conformidade de género
52
.
49 «Gender-affirmative health care can include any single or combination of a number of social, psychological,
behavioural or medical (including hormonal treatment or surgery) interventions designed to support and
affirm an individual’s gender identity». Cfr. WORLD Health Organization – WHO/Europe brief – transgender
health in the context of ICD-11; Não obstante a remoção do catálogo de transtornos mentais na 10.ª edição do
ICD, o processo de afirmação de género figura ainda como transtorno de saúde mental no DSM-5 da American
Psychiatric Association; SCHWEND, Amets Suess – Trans Health Care from a Despathologization and Human
Rights Perspective. Public Health Reviews, pp.2, 9; Em sentido próximo, mas não totalmente coincidente, mas
reforçando a dissociação entre a incongruência de género e a cirurgia de afirmação de género Sharon Cowan
refere que «Forcing subjects to live in a binary and dichotomous sex and gender system leads to a discourse
of “mistakes”. Developing a legal and social framework that does not attempt to “freeze” sex and gender, is the
only way to recognise the complexity of sexual subjectivity». Cfr. COWAN, Sharon – «“Gender is No Substitute
for Sex”: A Comparative Human Rights Analysis of the Legal Regulation of Sexual Identity». In: Feminist Legal
Studies. N.º 13, (2005), p.93.
50 BARBOSA, Mafalda Miranda e ÁLVAREZ, Tomás Prieto – O Direito ao Livre Desenvolvimento da Personalidade.
Coimbra: GestLegal, 2020, pp.111 e 114. Admitem , contudo, o reconhecimento de um direito à identidade sexual
em casos muito particulares.
51 The Yogykarta Principles foi adotada em 2007, a última atualização verificou-se em 2017, sendo conhecida como
The Yogykarta Principles Plus 10.
52 SCHWEND, Amets Suess – «Trans Health Care from a Despathologization and Human Rights Perspective». In:
Public Health Reviews, pp.3-4.
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Sob este propósito, a incongruência de género constava do capítulo reservado às pato-
logias de saúde mental e comportamentais do International Classification of Diseases
(ICD) desde 1975, todavia em 2018 transitou para o capítulo de condições relacionadas com
a saúde sexual
53
, promovendo a diminuição do estigma associado a um grupo de pessoas
que enformam uma população diversificada e não inerentemente doente.
O sexo, enquanto elemento biológico determinado e objetivo foi ultrapassado pela
construção sociológica de género. Reclama-se por isso a intervenção do ordenamento jurí-
dico, não apenas a título residual, mas a título constitutivo do acolhimento de uma pers-
petiva não binária do sexo e do género de acordo com a auto perceção da pessoa sobre si
mesma.
A igualdade de género não pode assim ser reduzida a uma igualdade morfologica-
mente sexuada. A sua proclamação e alcance material exige, assim, que se considere a
diversidade de género, sendo esta a única via de cumprimento substantivo do primado da
pessoa humana, referencial ético e axiológico da dignidade que lhe é imanente.
O apanágio da igualdade aplicada ao género, no seu sentido pririo, cumpre a sua
finalidade enquanto não sustentar a estigmatização, a segregação e a desigualdade. Ora,
pessoas transgénero são expostas a reiteradas violações da sua integridade que radicam
dos padrões heteronormativos instituídos, pelo que se impõe o reconhecimento e consa-
gração da existência de outras manifestações do reduto último de privacidade da pessoa
humana e livre desenvolvimento da sua personalidade para além do artificial dualismo
sexuado.
O conceito de igualdade de género terá assim de evoluir e adaptar-se sincronicamente
ao conceito de género, harmonizado com o reconhecimento da diversidade e expressão de
género enquanto direito humano e do qual radica uma dimensão protetiva que desloca a
perspetiva muito adstrita à pessoa sexuada para o repúdio dos comportamentos sociais
e culturalmente construídos discriminadores da diferença individual em que consiste a
pessoa ser em devir.
3. Do direito à identidade pessoal ao direito à autodeterminação de género:
anatomia assexuada do direito matriz ao livre desenvolvimento da personalidade
humana
O direito à identidade pessoal enquanto garantia de identificação de cada pessoa como
indivíduo, singular e irrepetível, não deve deixar de ser interpretado em harmonia com o
53 WORLD Health Organization – International Classification of Diseases.
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direito ao livre desenvolvimento da personalidade, enquanto manifestação da dignidade
intrínseca que é reconhecida à pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana, valor anterior à própria ideia de Estado de Direito
Democrático, é por isso referencial pririo de direitos fundamentais que lhe asseguram
uma expressão mais definida.
A consagração constitucional do direito ao livre desenvolvimento da personalidade
54
representa sobretudo a consagração de um direito à liberdade da pessoa em relação à sua
individualidade, donde no bem jurídico tutelado necessariamente se encontram as dife-
renças dessa individualidade
55
.
Não se cinge, contudo, à dimensão individual da diferença, porquanto lhe é inerente
uma dimensão social que resulta de uma interação com as outras pessoas. A natureza
social do desenvolvimento da personalidade exige, assim, o estabelecimento de um qua-
dro normativo que materialize as condições de desenvolvimento da personalidade, não se
bastando enquanto garantia de não ingerência na liberdade individual de estabelecimento
de diferenças, mas sobretudo enquanto exigência ao legislador de tutela da integridade da
liberdade geral de ação da pessoa
56
consistente com a garantia de desenvolvimento de uma
individualidade autónoma e livre.
O princípio geral de respeito pela dignidade da pessoa humana e desenvolvimento da
sua personalidade são por isso a sede fundamental do direito geral de personalidade que
assegura uma proteção absoluta da pessoa, proteção que se opera não apenas por via da
tutela da personalidade, mas também da realização efetiva da personalidade.
O direito geral de personalidade é, assim, um direito à pessoa no seu todo, «(…) não
apenas como ser mas como ser em devir e, por consequência, no seu próprio poder de
autodeterminação (
57
, um verdadeiro direito à liberdade e à existência, atenta a sua
dimensão dinâmica (não estática), inesgotável e ilimitável. A ilimitabilidade e inesgotabili-
dade da personalidade exigem, desta forma, a garantia de condições essenciais para que o
indivíduo seja verdadeiramente pessoa, que não se auto comprazem apenas com o direito
geral de personalidade e os direitos especiais da personalidade
58
enquanto mecanismos
operativos dos direitos fundamentais.
54 N.º 1 do artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa.
55 PINTO, Paulo da Mota – Direitos de Personalidade e Direitos Fundamentais – Estudos. Coimbra: GestLegal, 2018, p.17.
56 PINTO, Paulo da Mota – Direitos de Personalidade e Direitos Fundamentais – Estudos, pp.21-25.
57 CARVALHO, Orlando de – Teoria Geral do Direito Civil. 3.ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p.106.
58 «(…) o direito geral da personalidade é o seu direito-matriz fundante, aquele em que esses direitos enraízam,
pois os «objectos» deles são antes projecções do objecto verdadeiro desta tutela jurídica, que é a personalidade
no seu todo», vide, CARVALHO, Orlando de – Teoria Geral do Direito Civil, p.206.
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Os direitos de personalidade enformam posições jurídicas fundamentais da pessoa
pelo simples facto de o ser, são aspetos imediatos de exigência de integração da pessoa,
da sua dimensão individual e social dimica, revelando emanações do conteúdo essen-
cial da sua personalidade humana agénero, não se tratando já a identidade de género e a
não conformidade de género de liberdades inominadas, mas antes de direitos de exigir de
outrem o respeito pela própria personalidade.
Com Jorge Miranda, referindo-se aos direitos de personalidade, entendemos que, de
igual forma, a identidade e a não conformidade de género «(…) têm por objecto, não algo
de exterior ao sujeito, mas modos de ser físicos e morais da pessoa ou bens da personali-
dade física, moral e jurídica ou manifestações particulares da personalidade humana ou
da defesa da própria dignidade»
59
.
O direito à identidade pessoal, integrado no núcleo dos direitos da personalidade, cara-
teriza o ser humano enquanto pessoa individualizada, diferenciando-a de todas as outras,
com uma historicidade e vivência pessoal, que são expressão do direito a que cada pes-
soa viva em concordância consigo mesma. Ora, esta concordância é também expressão
do direito à liberdade de consciência que se manifesta nas suas opções e manifestações
particulares de vivência.
Compreende-se, assim, a imanente dependência entre o direito à identidade pessoal
e o direito à autodeterminação e expressão de género, porquanto aquela será a manifes-
tação exterior de uma vivência interna, eminentemente pessoal. A auto perceção da pes-
soa sobre si mesma é progressiva e, por isso, dinâmica, impondo-se não só um modelo de
tutela diferenciado que acompanhe o desenvolvimento da personalidade humana, mas de
igual forma a criação de condições que assegurem materialmente a dimensão legal, social
e física do corpo e da identidade de género que dele radica
60
.
O ser humano na sua vivência pessoal, consigo mesmo e com os outros, é infinita-
mente diversificado, sendo a variabilidade de género uma manifestação desta diversidade.
Os estereótipos de género e o estigma associados à não conformidade de género variam de
acordo com a padronização de normas sociais e culturais, donde o preconceito e discrimi-
nação associados à marginalização também se apresentam em grau diverso, refletindo-se
nas pessoas de forma mais ou menos acentuada. Daqui resulta o facto de a disforia de
género não ser comum a todos as pessoas que experimentam uma vivência de não confor-
midade de género.
59 MIRANDA, Jorge – Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. Direitos Fundamentais, pp.66-67.
60 CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital – Constituição da República Portuguesa Anotada – Volume 1. 4.ª Edição.
Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p.464.
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A disforia de género consiste no sofrimento ou desconforto sistemático causado pela
discordância entre a identidade de género auto percecionada e o papel ou função atribuído
socialmente ao sexo atribuído à nascença de acordo com a caraterísticas sexuais pririas
e secundárias
61
.
Importa por isso ter presente que a experimentação da discriminação social
62
é ele-
mento compulsório do desenvolvimento de patologias de saúde mental, nas quais se inclui
a disforia de género ou a transfobia internalizada
63
, e não a própria não conformidade de
género.
Não se encontram, assim, razões contrias atendíveis para que a pessoa seja identi-
cada por subsunção a uma categorização binária de sexo anatómico uma vez que seja auto
percecionada a não concordância com a sua identidade de género.
O direito ao livre desenvolvimento da personalidade, dimensão daquele direito geral
de personalidade e postulado axial de respeito pela dignidade da pessoa humana, implica
o reconhecimento de um espaço de liberdade e realização pessoal que convoca a criação de
condições efetivas para realização da personalidade
64
.
Justifica-se, neste sentido, que a identidade civil, compreendida na identidade pessoal,
postule o reconhecimento jurídico da identidade de género por via da mudança de sexo
e nome próprio inscrito no registo civil, sem a antecedência de cirurgia de armação de
género
65
, porquanto a identidade civil só será expressão da identidade pessoal se com ela
coincidir.
61 WORLD Professional Association for Transgender Health – Standarts of Care for the Health of Transsexual,
Transgender, and Gender-Nonconforming People, pp.4-6, 95-97.
62 SCHWEND, Amets Suess – «Trans Health Care from a Despathologization and Human Rights Perspective». In:
Public Health Reviews, p.5.
63 A transfobia internalizada consiste no desconforto pessoal com a auto perceção sobre a não conformidade
de género de acordo com as expetativas sociais normativizadas em relação ao género. WORLD Professional
Association for Transgender Health – Standarts of Care for the Health of Transsexual, Transgender, and
Gender-Nonconforming People, p.97.
64 «O direito ao desenvolvimento da personalidade recolhe, assim, no seu âmbito normativo de protecção, duas
dimensões: (a) formação livre de personalidade, sem planificação ou imposição estatal de modelos de personalidade;
(b) protecção da liberdade de acção de acordo com o projecto de vida e a vocação e capacidades próprias e (c)
protecção da integridade da pessoa para além do art. 25.º, tendo sobretudo em vista a garantia da esfera jurídico-
pessoal no processo de desenvolvimento». Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital – Constituição da
República Portuguesa… – Volume 1, p.463.
65 A cirurgia de afirmação de género, também designada de redesignação de género, modifica as caraterísticas
sexuais primárias e secundárias, encontrando-se integrada no processo de transição entre o género associado ao
sexo morfológico que foi atribuído à nascença para o género com o qual a pessoa se identifica, consistindo num
ato médico fundamental para mitigar a disforia de género. O processo de transição é variável e individualizado
não incluindo necessariamente a cirurgia de afirmação de género, podendo apenas consistir na feminilização
ou masculinização do corpo através de terapias hormonais. WORLD Professional Association for Transgender
Health – Standarts of Care for the Health of Transsexual, Transgender, and Gender-Nonconforming People,
pp.95-97; Para efeitos de reconhecimento do direito à identidade pessoal de género cumpre ainda assinalar a
jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), que no âmbito do processo n.º 13343/87
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Trata-se, com efeito da passagem da igualdade formal programática para uma igual-
dade material precetiva, assente numa integração normativa de igualdade constitutiva de
uma estrutura social alicerçada na ideia de justa real.
Não se trata, pois, de imputar ao Direito o acolhimento de uma ideologia de género
que visa subverter a natural diferenciação sexual, conforme sustenta Mafalda Miranda
Barbosa
66
, porquanto entendemos que é a própria posição ético-axiológica que radica da
pessoa humana que convoca a disciplina normativa do Direito e que se impõe pela neces-
sária tutela geral da personalidade no que concerne a direitos humanos fundamentais.
4. Do princípio da igualdade à critica do paradigma igualitário
São pilares do sistema de direitos humanos a liberdade, a igualdade e a solidariedade
enquanto mecanismos de garantia contra quaisquer formas de discriminação no gozo
dos direitos humanos
67
, assumindo o princípio da igualdade a qualidade de princípio jurí-
dicofundamental densificador do próprio conceito de Estado de Direito Democrático e
Social
68
69
.
Não se tratando de um instrumento juridicamente vinculativo, a Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos (DUDH) não deixa de enunciar e precisar paradigmáticos
princípios de respeito pela pessoa e pela sua dignidade, de tal forma que alguns deles ele-
varam-se a princípios de ius cogens
70
71
. É, para todos os efeitos que aqui relevam, o caso do
princípio da igualdade.
que opunha uma cidadã transgénero feminina à república francesa decidiu em 1992, pela primeira vez, que a
recusa dos Tribunais franceses em autorizarem a alteração do género e nome inscrito no registo civil consistia
numa violação do direito sobre a reserva da intimidade da privada, em virtude da disparidade entre o sexo
constante daquele registo e o “sexo” vivido pela recorrente, colocando-a frequentemente em circunstâncias
humilhantes que provocavam sofrimento psicológico.
66 BARBOSA, Mafalda Miranda e ÁLVAREZ, Tomás Prieto – O Direito ao Livre Desenvolvimento da Personalidade, p.111.
67 MOREIRA, Vital e GOMES, Carla de Marcelino (Coord.) – «Compreender os Direitos Humanos: Manual de
Educação para os Direitos Humanos». [Consult. 28 janeiro 2020]. Disponível em http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-
e-conteudos-de-apoio/publicacoes/direitos-humanos/livro-compreender-os-direitos-humanos, p.44.
68 CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital – Constituição da República Portuguesa … – Volume 1. pp.336-337.
69 «Não existe ordenamento jurídico (ao menos no mundo civilizado) que não proclame fundamentar-se no
princípio da igualdade, enquanto núcleo densificador da própria ideia de justiça e de Direito. Por conseguinte,
todos os seres humanos são, ao menos teoricamente, iguais.». Cf. RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade,
a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias; Económicas…, pp.571-572; «Porque todos têm a
mesma dignidade social (outra maneira de referir a dignidade da pessoa humana, base da República), a lei tem
de ser igual para todos.», vide, MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui – Constituição Portuguesa Anotada. Tomo I.
Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p.120.
70 MIRANDA, Jorge – Curso de Direito Internacional Público. 4.ª ed. Lisboa: Principia, 2009, pp.126, 297-299.
71 Não obstante as regras jurídicas, por via de regra, apresentarem as caraterísticas enunciadas ao Direito Cogente
de imperatividade e vinculatividade, a expressão latina pretende evidenciar que se trata de regras que estão para
além da vontade ou do acordo de vontades dos sujeitos de Direito Internacional, revestindo-se de uma força
jurídica imanente ao primado dos direitos das pessoas. MIRANDA, Jorge – Curso de Direito Internacional Público,
pp.119-120.
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O conceito de igualdade, enquanto princípio jurídico, não significa uma igualdade
absoluta, não proibindo por isso tratamento diferenciados. Com efeito, se por um lado uma
interpretação simplista pode significar a supressão de quaisquer formas de discrimina-
ção (situações de desvantagem) ou privilégios (situações de privilégios), uma análise mais
atenta evidencia a complexidade do princípio.
Ora, porque existem desigualdades de facto (v.g.sicas), exige-se ao legislador que
crie ou recrie oportunidades e condições para que a todos se admita usufruir dos mesmos
direitos e, bem assim, cumprir os mesmos deveres. Assim, a igualdade jurídico-material
complementa a igualdade jurídico-formal
72
, porquanto é dirigida à igualdade jurídica real
ou de resultado.
É, nestes termos, a dimensão social do princípio que convoca a eliminação das desi-
gualdades de facto, impondo-se ao legislador a criação de uma verdadeira igualdade atra-
vés da lei, conferindo ao princípio sentido positivo
73
.
Por conseguinte, a igualdade, enquanto conceito e princípio jurídico, não opera dia-
cronicamente apenas para proibir discriminações. É também operante na proteção das
pessoas contra discriminações resultantes de desigualdades de direito em consequência
de desigualdades de facto, concedendo-se liberdade constitutiva ao legislador para corrigir
situações que se reputem concretamente iguais
74
.
Com Vera Lúcia Raposo «(…) a igualdade exige também que: a) as situações iguais
sejam tratadas de forma igual na medida dessa igualdade; b) as situações diferentes sejam
tratadas de modo diferente, na medida dessa diferença (excepto quando tais situações
tenham sido artificialmente criadas pelo legislador, porquanto nesse caso o princípio da
igualdade reclama a compensação das desigualdades legislativamente instituída[s]); c)
se admitam medidas de discriminação positiva nas situações em que estas sejam instru-
mento necessário e adequado à colmatação de desigualdades fácticas previamente exis-
tentes.»
75
.
O sentido positivo do princípio da igualdade não pode, por isso, considerar-se mera-
mente artificial, dele radicando a obrigação de adoção de medidas de ação afirmativas
tendentes a mitigar ou corrigir desigualdades reais que se traduzam em tratamentos ou
considerações sociais discriminatórias
76
.
72 MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui – Constituição Portuguesa Anotada. Tomo I, p.120.
73 CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital – Constituição da República Portuguesa AnotadaVolume 1, p.337.
74 MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui – Constituição Portuguesa Anotada. Tomo I, pp.120, 125-126.
75 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…, p.572.
76 CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital – Constituição da República Portuguesa AnotadaTomo I, pp.337-338.
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A necessidade de adoção de medidas de ação afirmativas resulta assim da consideração
da pessoa humana enquanto sujeito de direito, estatuto que no plano normativo, acom-
panhando de perto Jorge Reis Novais, cumpre um elementar sentido de justiça, com três
consequências imediatas: o reconhecimento integral da pessoa como sujeito de direito
pressupõe o reconhecimento de autonomia para determinar o seu caminho de vida, sem
controlos ou dominações heterónomos; reconhecimento da liberdade de não ser bloqueada
na conformação das decisões fundamentais da sua vida; criação de condições materiais
para participar com liberdade e igualdade na escolha e deliberação coletivas
77
.
4.1. A igualdade material enquanto desiderato de recuperação da igualdade
formalutópica
A igualdade formal padece de uma subversiva patologia atento o lacónico e impessoal nor-
mativizar geral e abstrato que desconsidera as qualidades específicas dos destinatários,
acentuando por esta via a subsistência de desigualdades, que encontram suporte no obso-
leto princípio da lei ser igual para todos. «A igualdade formal pressupõe uma disciplina
uniforme e interdita regimes personalizados»
78
.
A igualdade material preconiza um regime diferenciado no qual a lei não tem de
ser igual para todos, mas antes justa para todos. A presunção de constitucionalidade do
regime diferenciador não é arbitrária, porquanto a aleatoriedade num regime diferenciado
seria eminentemente discriminatória violando o próprio princípio da igualdade.
Um regime diferenciado radica de um critério juridicamente fundamentado, assu-
mindo as diferenças que o justificam verdadeira relevância jurídica, podendo condicionar
o regime jurídico aplicável em matéria de direitos e deveres para grupos determinados de
pessoas. «Neste caso, as pessoas serão tratadas equally [e não as equalls], de forma equita-
tiva, inclusive de forma desigual quando tal necessário para repor a verdadeira igualdade,
entretanto perdida
79
.
77 NOVAIS, Jorge Reis – A Dignidade da Pessoa Humana. Vol. II. Dignidade e Inconstitucionalidade. Coimbra: Almedina,
2016, pp.106-107.
78 Como bem ressalva Vera Lúcia Raposo a igualdade formal remete à época do liberalismo que atendendo à
aparente perfeição da construção daquele brocado, edificou dogmas que encontravam suporte apenas neste
período porquanto o valor do ser humano encontrava-se dependente de atributos como a raça, a religião, a cor
da pele, o sexo, o título ou o rendimento. Cfr. RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade».
In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias; Económicas; Empresariais…, pp.573-574; CANOTILHO, J. J. Gomes e
MOREIRA, Vital Constituição da República Portuguesa Anotada – Tomo I, pp.336-338.
79 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…, p.574.
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É o conteúdo normativo positivo do princípio que convoca a equidade no tratamento
das situações não só como existem, mas como devem existir, alcançando-se através da lei
a igualdade e não apenas perante a lei.
Significa isto que a igualdade, enquanto conceito objetivo e fundamentado na lei,
aponta para um resultado, enquanto a equidade
80
será um meio para atingir aquele resul-
tado, justificando-se por força de necessariamente ter de se reconhecer que, mais do que
tratar as pessoas de forma igual, é indispensável tratá-las de forma justa
81
.
Ora a igualdade material ou de resultado determina a apreciação material da diferença
atendendo à conformação normativa a que fica sujeita e que, naturalmente, tem de se
encontrar justificada de acordo com uma análise valorativa não arbitria.
Acompanhamos por isso Simona Giordano e John Harris na sua conclusão de que
«(…) we need to celebrate the differences that obtain between human beings and ensure
that, despite these differences, individuals are not disadvantages. We simply should not
attempt to eradicate those “inequalities” that are not intrinsically harmful and that many
of us regard aa making life more rather than less worthwhile»
82
.
4.2. Da dialética perdida entre igualdade, desigualdade e diferença
Na dialética entre os conceitos de igualdade e desigualdade é frequentemente tomada por
sinónimo desta última a diferença. São, em bom rigor, antónimos que exprimem signi-
cados diferentes.
A desigualdade exprime uma construção hierarquizada e de subordinação, não se
tratando de uma mera dissemelhança. A diferença, em sentido oposto, exprime uma não
semelhança entre pessoas distintas, que pode fundamentar um tratamento diferenciado
legitimo em função de certas particularidades, em relação ao qual não se poderá coorde-
nar uma noção pejorativa, tratando-se a diferença de um reflexo de uma sociedade demo-
crática
83
.
80 «(…) a Equidade é um conceito condicionado por critérios subjetivos e direcionado para uma resposta justa
e proporcionada a situações particulares ou a necessidades especiais.». CNECV – Relatório e Parecer sobre a
Proposta de Declaração Universal sobre Igualdade de Género. P. 4.
81 «Gender Equity is the process of being fair to men and women. To ensure fairness, measures must often be
put in place to compensate for the historical and social disadvantages that prevent women and men from
operating on a level playing field. Equity is a means. Equality is the result.». Cfr. UNESCO – Unesco’s Gender
Mainstreaming Implementation Framework for 2002-2007 – Basic Definitions of Key Concepts and Terms,p. 17.
82 GIRODANO, Simona e HARRIS, John – «What is Gender Equality in Sports?». In: Genetic Technology and Sport:
Ethical Questions, p.213.
83 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – O Poder de Eva…, pp.260-261.
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Concretizando, à diferença não equivale a desigualdade. A diferença consiste numa
expressão neutra
84
de não semelhança entre indivíduos, já a desigualdade consiste numa
expressão de sociedade hierarquizada negativamente.
Com Teresa Pizzaro Beleza «O que está em causa não é tornar as pessoas iguais (no
sentido de semelhantes, isto é, não diferentes) mas desfazer a criação, em boa parte legal,
de uma hierarquia entre pessoas.»
85
.
Assim, mais que garantir um tratamento igual independentemente do sexo, hodierna-
mente, pretende-se assegurar um direito à diferença, em nome do paradigma igualitário,
que ultrapasse o caráter negativo que se encontra eminentemente cunhado na polarização
dos sexos.
«A igualdade serviu os interesses da justiça enquanto funcionou como arma contra
privilégios feudais. A partir do momento em que começou a ser sinónimo de identidade,
de rejeição, de diferenciações legítimas, deixou de cumprir a justiça. Uma igualdade que
aprisiona, que mutila a verdadeira identidade das pessoas, não é um ideal lícito e justo. A
verdadeira liberdade não se compadece com igualizações forçadas. O direito à diferença é
condição sine qua non de um direito justo e livre.»
86
.
A obrigação de assegurar o direito à diferença é expressão da dimensão social do prin-
cípio da igualdade em resultado material ou real. Enforma assim o dever de, por um lado
legislar sempre que se revele necessário acautelar o livre exercício do direito à diferença
em todas as suas manifestações, por outro lado legislar sempre que seja necessário comba-
ter quaisquer formas de discriminação.
4.3. Do princípio da igualdade à discriminação positiva: um caminho percorrido
pelo direito anti discriminatório
4.3.1. O princípio da igualdade e o princípio da não discriminação
Com Teresa Pizarro Beleza, pode-se afirmar que «Os fenómenos sociais de discrimina-
ção têm uma dupla face: por um lado, consistem em práticas de domínio e rejeição de pes-
soas com base (com pretexto) em certas caraterísticas. Por outro, essas práticas são acom-
panhadas e fundadas em construções de identidade(s) baseadas nessas características
pretensamente (vistas como) diferenciadoras. Ambos os processos se alimentam mutua-
mente, alicerçando-se no senso comum que por sua vez os reconstrói continuamente.»
87
.
84 Portanto sem conotação positiva ou negativa.
85 BELEZA, Teresa Pizarro – Direito das Mulheres e da Igualdade Social…, p.88.
86 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – O Poder de Eva…, p.262.
87 BELEZA, Teresa Pizarro – Direito das Mulheres e da Igualdade Social…, p.96.
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Trata-se hodiernamente da representação da mitologia grega do titã Prometeu que
amarrado eternamente a uma rocha via o seu fígado, que se regenerava todos os dias, ser
comido por uma águia.
A discriminação consiste, assim, numa prática social reiterada com conotação pejo-
rativa, encontrando-se associada a preconceitos, intolerância ou favoritismos, consubs-
tanciando uma diferenciação negativa, uma expressão de sentido negativo, não deixando,
contudo, de ser um conceito dinâmico
88
.
O princípio da igualdade é, nestes termos, orientador de um duplo conteúdo que se
pode assacar ao conceito de discriminação. «Poder-se-á distinguir entre um conceito
amplo de discriminação, enquanto toda a infracção ao princípio da igualdade, e um con-
ceito mais restrito, emergente quando a igualdade seja violada com base em fundamentos
expressamente proibidos nos textos constitucionais (…).»
89
.
Assim, o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) proíbe o tratamento
desigual entre pessoas, enunciando fundamentos ilegítimos de distinção (v.g. ascendên-
cia, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas,
instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual)
90
.
Parece, todavia, que duas consequências imediatas poder-se-ão assacar: a primeira, de
que a criação e desconstrução de categorias discriminatórias não podem colocar-se à parte
da reflexão à luz de outras ciências sociais; a segunda, de que à própria ciência jurídica
compete dar o seu contributo para a desconstrução daquelas, partindo do pressuposto
que participa na edificação destas atenta a dimensão jurídica da estrutura social que aqui
releva.
A discriminação encontra a sua matriz conceptual na distinção operada pela perceção
diferenciada em relação a categorias específicas, podendo verificar-se sob a forma de res-
trição, exclusão ou preferência fundada em certas características da pessoa (v.g. género,
raça, idade, orientação sexual, confissão religiosa)
91
, sempre que a finalidade ou efeito se
subsuma à «(…) destruição ou comprometimento do reconhecimento, gozo ou exercício
dos direitos humanos e das liberdades fundamentais em condições de igualdade»
92
.
A proibição de discriminação radica assim daquilo que se tem entendido consistir em
situações de desigualdade qualificada (cujo elenco meramente enunciativo se encontra no
n.º 2 do art.º 13.º da CRP), proibindo qualquer forma de tratamento diferenciado ilegítimo,
88 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – O Poder de Eva…, p.297.
89 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – O Poder de Eva…, p.298.
90 BELEZA, Teresa Pizarro – Direito das Mulheres e da Igualdade Social…., p.103.
91 BELEZA, Teresa Pizarro – Direito das Mulheres e da Igualdade Social…, p.102.
92 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…, pp.576-577.
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cujo referencial fundamental se encontra intrinsecamente ligado à dignidade da pessoa
humana, que não se compadece com o desfavorecimento da pessoa por força da sua per-
tença a determinados grupos com caraterísticas particulares
93
.
A ilegitimidade e a inconstitucionalidade das práticas discriminatórias encontram-se,
por isso, proibidas pela norma constitucional, mas não já a diferenciação, cuja expressão
jurídica pode resultar de uma imposição de justiça no caso concreto.
Todavia, não se poderá compreender esta norma apenas enquanto comando proibitivo
de discriminações. Em bom rigor, da norma constitucional também se alcança um uma
dimensão protetora
94
da integridade da pessoa humana contra quaisquer discriminações.
A obrigação de diferenciação reveste-se, nestes termos, de um conteúdo subjetivo de
proteção, consistindo num vetor do princípio da igualdade que adstringe o legislador à
compensação de situações de desigualdade, permitindo ou impondo, diferenciações que
sejam materialmente justificadas e legítimas à luz de critérios de justiça, proporcionali-
dade, solidariedade e segurança jurídica
95
.
A proibição de arbítrio consiste num controlo negativo, exprimindo um repúdio por
tratamentos diferenciados que não encontrem fundamento em valores objetivos e cons-
titucionalmente relevantes, condenando em simultâneo o tratamento diferenciado de
situações iguais
96
.
O princípio da igualdade compreende, assim, um limite material interno quanto à dis-
cricionariedade em relação aos fundamentos legítimos da diferenciação e que subjazem
ao direito anti discriminatório.
O direito anti discriminatório surge, por conseguinte, para mitigar as insuficiências
do princípio da igualdade, dirigindo-se a um resultado material que ultrapasse políticas
ou procedimentos aparentemente neutros, mas cujos efeitos revelem uma categorização
de pessoas consistente em discriminações ilícitas ou ilegítimas.
Por conseguinte, na prossecução da finalidade do direito anti discriminatório, o crité-
rio diferenciador – porquanto não se poderá deixar de considerar que, regra geral, a norma
não compreende no texto uma diferenciação constitucionalmente permitida – será o da
produção do resultado que afete um determinado grupo de pessoas e não na referência
expressa ao critério diferenciador
97
.
93 O princípio da não discriminação é um dos vetores do princípio da igualdade, atentas as suas três dimensões
fundamentais: a proibição de arbítrio e de discriminação e a obrigação de diferenciação. RAPOSO, Vera Lúcia
Carapeto – O Poder de Eva…, pp.263-264.
94 MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui – Constituição Portuguesa Anotada. Tomo I, p.121.
95 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – O Poder de Eva…, pp.263-264.
96 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – O Poder de Eva…, p.263.
97 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – O Poder de Eva…, p.301.
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Expressão do direito anti discriminatório é a discriminação positiva que se destina
precisamente ao combate a regimes discriminatórios radicados do próprio plano jurídi-
co-normativo
98
.
Aproximando-nos do conceito de discriminação positiva, com Jorge Miranda e Rui
Medeiros, subsumem-se «(…) a situações de vantagem fundadas, desigualdades de direito
em resultado de desigualdades de facto e tendentes à superação destas e, por isso, em
geral, de carácter temporário.»
99
.
Uma aparente contradição nos termos: “discriminação” expressa, comummente, um
sentido negativo de tratamento diferenciado, enquanto “positiva” expressa precisamente
o oposto do termo que adjetiva.
Cremos, por isso, que a expressão deverá ficar reservada a situações muito bem deli-
mitadas e justificadas à luz da CRP, porquanto o desiderato da igualdade jurídica de direi-
tos e oportunidades deverá ser presidido pelo critério de proibição de qualquer forma de
discriminação. Não obstante, e atendendo a que a expressão “discriminação positiva” é
tradicional no ordenamento jurídico português, é esta a empregue neste no texto.
4.3.2. A discriminação positiva
A discriminação pode apresentar-se segundo três modelos: discriminação direta, dis-
criminação indireta e discriminação positiva.
Considera-se discriminação direta
100
todas as situações em que, designadamente, em
função do sexo, as pessoas se encontram sujeitas a um tratamento menos favorável do que
aquele que é, tenha sido, ou possa vir a ser dado a uma pessoa em situação comparável
101
.
Entende-se por discriminação indireta a situação de desfavor decorrente de uma disposi-
ção, critério ou prática aparentemente neutros, mas que determinam um resultado parti-
cularmente desfavorável a um grupo determinado de pessoas
102
.
Distinguem-se na exata medida em que na primeira a norma cria diferenciações assen-
tes em critérios proibidos, enquanto na segunda a norma cria requisitos, impedimentos ou
proibições que, pese embora se apresentem aplicáveis a todos, determinam a emergência
98 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…., pp.575-576.
99 MIRANDA, Jorge eMEDEIROS, Rui – Constituição Portuguesa Anotada. Tomo I, p.120.
100 MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui – Constituição Portuguesa Anotada. Tomo I, p.120.
101 Alínea a) do art.º 3.º da Lei N.º 14/2008, de 12 de março, que proíbe e sanciona a discriminação em função do
sexo no acesso a bens e serviços e que transpõe a Diretiva N.º 2004/113/CE para o ordenamento jurídico interno.
102 Alínea b) do art.º 3.º da Lei N.º 14/2008, de 12 de março, que proíbe e sanciona a discriminação em função do
sexo no acesso a bens e serviços e que transpõe a Diretiva N.º 2004/113/CE para o ordenamento jurídico interno.
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de grupos que, à partida, encontrar-se-ão excluídos de cumprir as exigências, ultrapassar
os obstáculos ou evitar as proibições
103
.
A discriminação positiva, contrariamente à negativa (à qual seriam subsumíveis tanto
a discriminação direta como a indireta), é um instrumento de combate aos regimes discri-
minatórios, radicando na valoração que deve ser endereçada a determinadas caraterísticas
pessoais
104
, sem que daqui resulte um tratamento preferencial ou mais vantajoso.
Com efeito, a discriminação positiva visa combater a discriminação tour court, designa-
damente, através de medidas transitórias que visam compensar lacunas que, de alguma
forma, se revelam atentatórias da dignidade de destinatários de grupos específicos
105
.
Em bom rigor, funciona como impulso de uma verdadeira igualdade substantiva,
criando oportunidades iguais para grupos específicos que reclamam uma tutela diferen-
ciada do ordenamento jurídico.
Trata-se de medidas em que «O benefício que aportam para o colectivo não lesa tercei-
ros de forma direta e imediata, mantendo-se nos limites ditados pelo princípio da igual-
dade em sentido material, mas superando, com o seu carácter radical, a igualdade em sen-
tido formal
106
, partindo de disposições, critérios ou práticas objetivamente justificáveis
à luz da legitimidade do fim prosseguido e assentes em meios adequados, necessários e
proporcionais para atingir aquele fim.
As medidas de discriminação positiva operam, assim, com recurso a regimes diferen-
ciados, mas não discriminadores, porquanto visam satisfazer o princípio da igualdade em
sentido material, que convoca, em situações particulares, tratamentos desiguais (à par-
tida) enquanto via de alcançar a igualdade como resultado (à chegada)
107
.
A este propósito esclarece Vera Lúcia Raposo que «Fala-se em igualdade de oportuni-
dades para exprimir aquela primeira e em igualdade de resultados para expressar esta
segunda. A realização da igualdade à chegada apenas pela discriminação positiva pode ser
103 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – O Poder de Eva…, p.301.
104 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…, pp.575-576.
105 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – O Poder de Eva…, pp.304-312; RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Quotas de
Género: os prós e os contras de uma solução polémica». In: Direitos Humanos das Mulheres. Coimbra: Coimbra
Editora, 2005, p. 112; RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas
Civilísticas: Comunitárias; Económicas; Empresariais…, p.579.
106 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…, p.579.
107 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – O Poder de Eva…, pp.313-320; RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Quotas de
Género: os prós e os contras de uma solução polémica». In: Direitos Humanos das Mulheres, p.112; RAPOSO,
Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias; Económicas;
Empresariais…, p.579.
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garantida. As restantes medidas de igualdade são insuficientes para a realizar, ficando-se,
mais modestamente, pela igualdade à partida.»
108
.
Ora, a discriminação positiva tem caráter transitório/temporário, subsistindo
enquanto se verifiquem os handicaps de grupos específicos. São, neste sentido, medidas de
promoção destinadas a grupos específicos que apresentam determinadas caraterísticas
particulares e que em função destas encontram obstáculos à sua livre e autónoma evolu-
ção social (v.g. deficientes)
109
.
Daqui resulta o paradoxo do emprego de medidas de discriminação positiva no que
respeita ao género. Os seres humanos, de acordo com a categorização biria, não enfor-
mam um grupo ou categoria, representam sim a humanidade, seja numa dimensão quan-
titativa seja numa dimensão qualitativa
110
.
Facto que é transversal à humanidade, e ao qual ninguém se pode furtar, é o de ser
integrada por seres humanos. Ora, a caraterística do genoma humano
111
, enquanto ele-
mento que nos conduz à pertença da espécie humana, não constitui per se um handicap
que justifique medidas de discriminação positiva atento o caráter transitório e temporário
destas. A existirem, seriam sim perpétuas, o que contrariava a natureza intrínseca destas
medidas.
Com efeito, não é legitima qualquer sexualização do princípio da igualdade da qual se
inra uma correspondente sexualização dos direitos, porquanto os direitos reconhecidos
à pessoa humana não conhecem género, não distinguem o género humano.
Um verdadeiro Estado de Direito Democrático Social, no contexto de uma sociedade
plural, não é reflexo de uma sociedade padronizada, homogénea, uniforme, é antes expres-
são de uma sociedade heterogénea que se compromete com a promoção do gozo e do exer-
cício dos direitos a todos os indivíduos, que reclamam medidas não artificializadas de
promoção de uma igualdade efetiva e que sejam expressão do reconhecimento de um ver-
dadeiro direito à diferença.
108 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…, pp.579-580.
109 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…, p.584
110 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…., p.584.
111 Por genoma entende-se «a totalidade do material genético presente em cada organismo. () Todos os seres
humanos têm um genoma idêntico, contudo, entre cada um de nós, existem variações fisiológicas e patológicas
que tornam o genoma individual único». Cf. SANTOS, Heloísa G. e PEREIRA, André Dias – Genética para Todos.
De Mendel à Revolução Genómicas do Século XXI: a prática, a ética, as leis e a sociedade. Lisboa: Gradiva, 2019, pp.18-20.
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4.4 De cisgénero para transgénero: paridade, a nova igualdade agénero
Pense-se na paridade enquanto nova forma de igualdade. Na verdade, a igualdade material
surge como formar de corrigir as lacunas apresentadas pela igualdade formal, apresentan-
do-se a paridade como a teoria aplicada pura da igualdade
112
.
A paridade, por oposto às quotas, não tem como objetivo a compensação provisória de
desigualdades, mas antes a definição perpétua de uma representação igualitária.
A paridade consiste num fim em si mesma e não um instrumento para um fim, por-
quanto é a própria paridade que perfaz a igualdade, ao contrário das quotas são um instru-
mento para a realizar a igualdade.
Neste sentido, a paridade apresenta-se como um fim que concretiza um resultado
material ou real de igualdade, por via de uma abordagem diferenciada à diferença, congre-
gando em si mesma o reconhecimento de que a humanidade é innitamente diversa nas
suas caraterísticas, heterogeneidade que se há de aferir por referencial a todas as pessoas
que a integram.
Impõe-se, assim, uma reconfiguração ou adequação do conteúdo substantivo da pari-
dade. Por conseguinte, partindo-se do pressuposto de que inicialmente «A paridade existe
na medida em que se defenda que a diferença sexual é a mais decisiva classificação da
espécie humana. Ou seja, cada um é aquilo que é em função do respectivo sexo, sendo
também este a demarcar a porção a que cada um tem direito no leque de bens disponíveis,
porção essa que há de ser rigorosamente igual para ambos os sexos.»
113
, cremos que é pos-
sível avançar paulatinamente para um equilíbrio sinalagmático entre as diferenças das
pessoas e as caraterísticas que lhe são comuns, alcançando-se a definição permanente de
uma igualdade material.
Acompanhando Teresa Pizarro Beleza «No processo de negociação permanente que é
a criação da nossa identidade, a nossa auto-identificação como, por exemplo, homens ou
mulheres está inevitavelmente condicionada pela nossa interiorização ou rejeição crítica
das expectativas sociais, morais, jurídicas quanto ao nosso comportamento (…)
114
, pelo que
importa ter presente que um aspeto fundamental da dimensão subjetiva do princípio da
dignidade da pessoa humana é a sua integridade que, não só mas também, se desenvolve
por referência à proibição de alienação identitária como garantia de controlo sobre a iden-
tidade, da sua vivência pessoal e da sua apresentação em público
115
.
112 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…, p.587.
113 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…, p.588.
114 BELEZA, Teresa Pizarro – Direito das Mulheres e da Igualdade Social…, p.71.
115 NOVAIS, Jorge Reis – A Dignidade da Pessoa Humana. Volume II…, p.107.
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Em relação de assimilação recíproca com princípio da dignidade da pessoa humana e
o livre desenvolvimento da personalidade, encontramos as garantias de expressão, desen-
volvimento e proteção da pessoa enquanto pessoa concreta, que daqueles princípios radi-
cam. Tais garantias são os direitos de fundamentais de personalidade, que se fundam na
própria existência do indivíduo, consistindo por isso na mais direta concretização mate-
rial de exigência de conformação e observância da dignidade da pessoa humana
116
.
Sendo certo que o direito à identidade pessoal de género pertence ao núcleo essencial
das garantias de expressão da pessoa enquanto pessoa, a proibição de alienação identitária
impõe a adoção de medidas materialmente afirmativas de apresentação do ser da pessoa
interno e externo, que não se podem reduzir apenas à identidade civil.
Resulta assim que a dimensão individual do ser na sua relação com a sociedade con-
voca uma jusfundamentalização de direitos específicos que possibilitem o desenvolvi-
mento da sua personalidade e identidade, que reputem uma harmonização entre a sua
verdade pessoal e a sua apresentação pública, enquanto forma de observância da digni-
dade da pessoa humana.
Em bom rigor é consensual que a igual dignidade que a ordem jurídica reconhece a
cada pessoa é reiteradamente desrespeitada na sua igual condição humana por via da
estigmatização endereçada a quem se afasta da padronização socialmente construída –
leia-se que o mesmo é aplicável às caraterísticas pessoais endógenas – limitando a auto-
determinação pessoal do indivíduo nas diversas manifestações externas da sua vivência
internalizada.
Com Jorge Reis Novais entende-se que toda a pessoa tem «(…) direito a ser tratada
como um igual (as equal), o direito a beneficiar de uma igual consideração e respeito por
parte do Estado e da comunidade política (equal concern), ou, como defende Singer, o direito
a uma igual consideração dos interesses de cada u
117
.
Por conseguinte a paridade enquanto fim para a verdadeira igualdade material ou de
resultado assume particular relevância no desporto porquanto permite e legitima a defi-
nição permanente de um modelo de participação nas competições desportivas individuais
que encontra a sua matriz fundante nas diferenças das pessoas e as caraterísticas que lhe
são comuns.
Esta igualdade material ou se resultado, alcança-se por via de uma equiponderação que
permitirá obstar a distinções desqualificantes reiteradas que consubstanciam uma recusa
116 Mecanismos operativos dos direitos fundamentais e que protegem bens jurídicos da personalidade tais como a
vida, a integridade física e psíquica, a liberdade geral de ação e a privacidade. NOVAIS, Jorge Reis – A Dignidade
da Pessoa Humana. Volume IDignidade e Direitos Fundamentais. 2.ª edição. Coimbra: Almedina, 2018, …, p.193.
117 NOVAIS, Jorge Reis – A Dignidade da Pessoa Humana. Volume II…, p.133.
126
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prática de igual dignidade, cumprindo a obserncia e conformação com o paradigma que
deve presidir a quaisquer regulamentações normativas, ou seja, o respeito pela humani-
dade intrínseca, que se justifica pela inadmissibilidade de uma «(…) discriminação des-
qualificante (…) em função do ser, da natureza da pessoa ou da presença de características
independentes da sua vontade e da responsabilidade do próprio (…
118
, como o género ou
sexo anatómico.
No desporto de competição a discriminação de atletas transgénero e diferenças no
desenvolvimento sexual não se traduz apenas na desqualificação. Em bom rigor, a discri-
minação é estigmatizante e violadora do primado da pessoa humana, entrando em conflito
com a sua autodeterminação pessoal, que foi subjetivada em direito para que justamente
se assegure à pessoa humana a manifestação externa do poder de autodeterminação que é.
Não se trata de uma mera violação ao princípio da igualdade. Trata-se, sim, de uma
violação qualificada em função do sexo por via da estigmatização assente num precon-
ceito socialmente edificado, dirigido a destinatários específicos em função da sua vivên-
cia pessoal e de caraterísticas particulares que encontra respaldo num argumento, ainda
por consolidar cientificamente, de vantagem biológica em relação a atletas cisgénero.
Fica assim, de resto, por esclarecer a partir de que momento é que as caraterísticas
genéticas, biológicas e físicas naturais passaram a ser injustas e assim subsumíveis ao
argumento da justiça como ponto de partida no desporto.
5. Atletas transgénero e com diferenças no desenvolvimento sexual: a do direito
àidentidade pessoal de género controvérsia da lotaria genética natural
5.1. Crónicas de discriminação (in)direta no desporto pela representação
ereprodução sexuada da justiça
Se do ponto de vista do quadro de proteção internacional ou interno de direitos huma-
nos é possível afirmar que os direitos das pessoas transgénero se encontram formalmente
tutelados, quanto aos resultados materiais da eficácia destes instrumentos não se pode
afirmar o equivalente.
Um dos setores com maior incidência de impedimentos de participação de atletas
transgénero femininas ou com diferenças de desenvolvimento sexual é precisamente o do
desporto individual de competição
119
, em resultado da maioria dos eventos realizados se
118 NOVAIS, Jorge Reis – A Dignidade da Pessoa Humana. Volume II…, p.134.
119 Neste conteúdo cumpre assinalar que o objeto em relação ao qual se desenvolve o texto é o da participação de
atletas em competições individuais e não em grupo que, por razões relativas à delimitação do objeto do texto,
não são aqui tidas em consideração.
127
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organizarem de acordo com a categorização binária de sexo (não obstante a consideração
de outros fatores como a idade e peso).
A premissa fundamental é, nestes termos, que o género é uma caraterística da huma-
nidade e que a humanidade é sexuada de acordo com o modelo binário.
Coloca-se, assim, um obstáculo às atletas que pretendam participar de acordo com a
identidade de género auto percecionada ou de acordo com caraterísticas endógenas ima-
nentes.
Com maior ou menor destaque na comunicação social alguns casos controversos
quanto à participação de atletas transgénero femininas ou DDS foram discutidos em
instâncias jurisdicionais desportivas e órgãos responsáveis pelo sistema desportivo no
estrangeiro, pelo que enunciamos abreviadamente alguns dos mais paradigmáticos.
Em 1976 foi solicitado um teste de determinação de sexo biológico a Renee Richards,
uma atleta transgénero feminina que se encontrava endereçada a participar na categoria
feminina da modalidade. O teste foi recusado e a atleta foi afastada da competição
120
. Nesta
sequência o caso foi levado ao United States Supreme Court que reconheceu que a exigência
de realização de um teste para determinação do sexo biológico consistia numa ingerência
discriminatória e não justificada na privacidade e sobre o próprio corpo e sexualidade da
atleta
121
. A atleta foi assim admitida a participar no US Open, sendo que vinte e cinco atle-
tas cisgénero femininas retiraram-se de um futuro torneio argumentando que «(…) Dr.
Richards’s presence was unfair, that despite her operation and resulting feminine appear-
ance, she still retained the muscular advantages of a male and genetically remained a
male»
122
.
Dutee Chand, atleta hiperandrogénica
123
indiana de sprint, após ganhar a medalha de
ouro em 200 e 400 metros respetivamente em 2014, viu a sua participação na Asian Junior
Athletics ser alvo de escrutínio devido ao seu elevado nível de testosterona. Com o objetivo
de determinar o seu género biológico foi sujeita a testes de sangue, alises aos cromosso-
mas, um MRI
124
e um exame ginecológico. Na sequência destes foi banida das competições
120 SCHULTZ, Jamie – «Caster Semenya and the “Question of Too”: Sex Testing in Elite Womens Sport and the
Issue of Advantage». In: Quest, p.235.
121 BIANCHI, Andria – «Transgender Women in Sports». In: Journal of the Philosophy of Sport, p.232; SCHULTZ,
Jamie – «Caster Semenya and the “Question of Too”: Sex Testing in Elite Women’s Sport and the Issue of
Advantage». In: Quest, p.235.
122 SCHULTZ, Jamie – «Caster Semenya and the “Question of Too”: Sex Testing in Elite Womens Sport and the
Issue of Advantage». In: Quest, p.236.
123 O hiperandrogenismo carateriza-se por uma condição endógena consistente numa produção superior de
testosterona, assumida regularmente como uma condição médica, que poderá conferir uma vantagem em
relação aos restantes atletas.
124 Magnetic resonance imaging.
128
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na categoria feminina, recebendo concomitantemente a advertência de que deveria medi-
car-se com supressores hormonais ou submeter-se a uma cirurgia de forma que os níveis
de testosterona fossem reduzidos ou, pelo menos, atenuados
125
.
Em 2015, a atleta recorreu ao Court of Arbitration for Sport (CAS) invocando a invalidade
dos regulamentos da International Association of Atheletics Federation (IAAF) relativos ao
hiperandrogenismo com as seguintes motivações: tratarem-se de regulações discrimina-
tórias em função de caraterísticas naturais e em função do sexo; inexistência de funda-
mentos científicos relativamente ao critério fundado nos níveis de testosterona; e, violação
do princípio da proporcionalidade na distinção entre atletas femininos e masculinos
126
.
O CAS suspendeu a aplicação dos regulamentos da federação internacional relativos
ao hiperandrogenismo por dois anos, determinando que neste prazo fossem apresentadas
evidências científicas que demonstrassem a relação entre o nível de testosterona e a van-
tagem na performance dos/as atletas
127
.
Não tendo apresentado evidências científicas que comprovassem a vantagem que
fundava a discriminação que desqualificava a atleta até à verificação do prazo, a IAAF
aprovou, contudo, nova regulamentação a 23 de abril de 2018 que estabelece as condições
de elegibilidade de atletas com diferenças no desenvolvimento sexual, ainda que circuns-
critas às competições entre os 400 e 1600 metros e eventos equiparados
128
.
Com efeito, e de acordo com o IAAF Explanatory Notes, a vantagem atlética na ordem
dos 10 a 12% dos atletas cisgénero masculinos em relação às atletas cisgénero femininas
resulta, entre outros fatores, da largura da estrutura óssea, da superioridade percentual de
massa muscular magra e força desta resultante, dos níveis de circulação de hemoglobina,
que são potenciados pelo nível de testosterona que intensifica a superioridade no desem-
penho
129
, o que se deu por comprovado em diversos estudos científicos endocrinológicos
que sustentaram a adoção da nova regulamentação
130
.
125 A regulação do hiperandrogenismo pela IAAF foi introduzida em 2011; COOPER, Jonathan – «Testosterone: “the
Best Discriminating Factor”». In: Philosophies, p.2.
126 COURT of Arbitration for Sport – CAS 2014/A/3759, Dutee Chand vs. AFI & IAAF, p.10.
127 COURT of Arbitration for Sport – CAS 2014/A/3759, Dutee Chand vs. AFI & IAAF, pp.154-156, 158.
128 IAAF – Eligibility Regulations for the Female Classification (Athlets With Differences of Sex Development).
129 IAAF – Elibibility Regulations for the Female Classification (Athletes With Differences of Sex Development)
Explanatory Note. P. 1-2; Note-se que na prática esta regulação exclui automaticamente atletas como Caster
Semenya.
130 «However, there is also an additional concern raised about how the IAAF has made use of scientific evidence
as a basis for justifying the Testosterone Regulations. () Bermon and Garnier, may be scientifically flawed,
both in terms of what it is capable of showing (only correlation not cause) and in terms of the data resulting
in a lack of scientific integrity». Cf. COOPER, Jonathan – «Testosterone: “the Best Discriminating Factor”». In:
Philosophies, p.13.
129
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A regulação do hiperandrogenismo consiste, assim, numa forma de exclusão de atletas
das competições assente em vantagens genéticas decorrentes da produção endógena de
testosterona
131
.
O requisito que suscitou maior celeuma foi, com efeito, a regra 2.2. que impõem às
atletas a redução dos níveis de testosterona a um valor inferior a 5 nanomols por litro
de sangue (nmol/L) de forma permanente enquanto houver pretensões de participar nas
competições, designadamente, com o recurso a contracetivos, concomitantemente com o
reconhecimento em termos legais da categorização binária feminina, como intersexo ou
equivalente
132
.
Em bom rigor, o que resulta desta regulamentação é que lhe está imanente uma con-
ceptualização de patologia do hiperandrogenismo que por isso deve ser objeto de uma
intervenção terapêutica de forma que as atletas possam cumprir os requisitos de elegibi-
lidade para competir na categoria feminina com as demais atletas cisgénero. Encontra-se
por isso claramente em oposição ao princípio 18 – que reforça a proibição de tratamentos
médicos sem o consentimento da pessoa – e ao princípio 32 – que reitera a consolidação
do direito à integralidade da pessoa física e psíquica, vertidos na Yogykarta Principles
133
.
Paradigmático é, de igual forma, o caso da atleta Caster Semenya, bicampeã olímpica
de 800 metros em atletismo, que tendo suscitado dúvidas quanto à sua elegibilidade para
competir na categoria feminina em resultado da sua virilização e aparência ambígua, a
solicitação da IAAF foi submetida a testes de verificação de género, bem como aos níveis
de testosterona que se revelaram substancialmente elevados em virtude do hiperandro-
genismo
134
.
Em 2017 Laurel Hubbard, atleta transgénero feminina da Nova Zelândia da modali-
dade de levantamento de peso superior a 90 quilogramas na categoria feminina, venceu
uma competição internacional, cuja participação foi antecedida pela realização de testes
de sangue pelo período consecutivo de doze meses por forma a demonstrar que os seus
131 Note-se que, em circunstâncias competitivas similares, as vantagens genéticas de Usain Bolt nunca foram
colocadas em causa. No mesmo sentido, «Whilst dedication and training was, of course, part of Usain Bolt’s
success, it would be hard to maintain that his recent domination of sprinting was not due, in part, to natural
genetic advantages he enjoyed over his competitors. It has been suggested that Bolt, like many other top
sprinters, has the “sprinting gene”, meaning he may have particulary fast-twitch muscle reflexes and longer
fibers than most. Unlike most of sprinters, however, he is 6 ft. 5 inches tall. These genetic advantages almost
certainly contributed to what makes him especially adept at sprint». Cf. COOPER, Jonathan – «Testosterone:
“the Best Discriminating Factor”». In: Philosophies, p.2.
132 IAAF – Eligibility Regulations for the Female Classification (Athlets With Differences of Sex Development). P. 3.
133 SCHWEND, Amets Suess – «Trans Health Care from a Despathologization and Human Rights Perspective».
In: Public Health Reviews, p.7.
134 SCHULTZ, Jamie – «Caster Semenya and the “Question of Too”: Sex Testing in Elite Womens Sport and the
Issue of Advantage». In: Quest, pp.228-233.
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níveis de testosterona não eram superiores aos de quaisquer outras atletas cisgénero que
integravam a mesma categoria naquela modalidade
135
– não obstante, a ideia de que a
atleta beneficiava de uma vantagem de ordem biológica permanece
136
.
5.2. Em busca da discriminação indireta no princípio the skill thesis
Atenta a igual dignidade de todas as pessoas, sendo proibida qualquer forma direta ou
indireta de discriminação, designadamente, por força do exercício do direito à identidade
e expressão de género
137
, verifica-se ainda no desporto algumas manifestações de carater
discriminatório quanto à participação de atletas transgénero femininas e DDS
138
que se
antagonizam ao princípio vertido no art.º 5.º da Lei N.º 30/2004, de 21 de julho
139
.
Princípio ético de governança no desporto é o princípio the skill thesis, segundo o qual
os resultados das competições desportivas devem ser determinados pela performance dos/
as atletas para os/as quais são dadas as mesmas oportunidades de competir. Em ordem a
alcançar este desiderato que remete para uma justiça de resultado é consensual que a uti-
lização de fatores externos que possam ter influência naquele sejam de rejeitar
140
.
Atentemos na organização binária dos/as atletas nas competições desportivas (v.g.
ciclismo feminino/masculino, natação feminina/masculina, levantamento de pesos femi-
nino/masculino). A categorização que determina a elegibilidade para cada segmento tem
por referencial aos 46 cromossomas organizados em pares, sendo que o 23 cromossoma
que determina o sexo identifica a pessoa como mulher na sequência 46 XX e homem na
correspondência 46 XY
141
.
135 International Olympic Committee – IOC Consensus Meeting on Sex Reassignment and Hyperandrogenism
November 2015.
136 BIANCHI, Andria – «Something Got to Give: Reconsidering the Justification for a Gender Divide in Sport». In:
Philosophies, p.4.
137 Neste sentido o art.º 2.º da Lei N.º 38/2018, de 7 de agosto que estabelece o direito à autodeterminação da
identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das caraterísticas sexuais de cada pessoa.
138 Ter-se-á em consideração tanto atletas DSD como transgénero femininas porque a crítica, designadamente,
quanto ao nível de testosterona, é comum. «Although these differences are significant, it is important to
consider intersex persons because they are often criticized for having too much testosterone to compete in
female categories, which is the thought to give them an unfair advantage. This is the same criticism that is
applied to trans*women.» Cfr. BIANCHI, Andria – Transgender Women in Sports. Journal of the Philosophy
of Sport. P. 231.
139 Princípio da Não Discriminação – Lei de Bases do Desporto.
140 Os equipamentos utilizados pelos atletas terão assim de ser os mesmos de forma a afastar quaisquer influências
exógenas nos resultados, o controlo de doping permite combater a administração de composições promovam
uma melhor performance desportiva por via exógena. São, neste sentido, também compreensíveis as críticas
apontadas à utilização de próteses de fibra de carbono por Oscar Pistorius nas competições com atletas que
não deficientes físicos. Neste sentido, COOPER, Jonathan – «Testosterone: “the Best Discriminating Factor”».
In: Philosophies, p.3.
141 «Whilst dedication and training was, of course, part of Usain Bolt’s success, it would be hard to maintain that
his recent domination of sprinting was not due, in part, to natural genetic advantages he enjoyed over his
131
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Duas consequências são imediatamente assacáveis: por um lado, que não se reconhece
neste sistema birio a possibilidade de atletas transgénero poderem livremente optar por
uma categoria conciliável com a identidade e expressão de género por si auto percebidas
142
e, por outro lado, que as atletas transgénero femininas não devem competir na respetiva
categoria, porquanto encontrar-se-ão numa posição eminentemente vantajosa em virtude
de possrem caraterísticas físicas e fisiológicas, em contraposição com as demais atletas
cisgénero, que determinariam uma injustiça como ponto de partida, consequência igual-
mente observável em relação a atletas com DDS.
A justificação imediata que resulta para a imposição de limites à participação destas
atletas é rapidamente apreensível atendendo ao argumento da vantagem física, porquanto
os homens cisgénero apresentam uma massa muscular, em média, 30% superior às mulhe-
res cisgénero, além de regra geral mais altura. A superioridade percentual da massa mus-
cular confere assim mais robustez e potência. Já a elasticidade das fibras musculares das
mulheres cisgénero conferem caraterísticas físicas que favorecem os resultados em deter-
minadas modalidades desportivas
143
.
Daqui resulta a tautologia, discriminação generalizadamente tolerada, de não se sus-
citar celeuma em relação à participação de atletas transsexuais masculinos, atendendo
ao pressuposto de que naturalmente se encontram em desvantagem por força das suas
caraterísticas físicas e fisiológicas.
É consabido que a terapêutica hormonal de armação de género feminino consiste na
administração exógena de estrogénio que tem como efeitos clínicos alterações substanti-
vas na composição física e fisiológica que, e para os efeitos que aqui relevam, se traduzem
num significativo aumento e redistribuição da gordura corporal, bem como na diminui-
ção acentuada da força e massa muscular
144
. Ora, atendendo a que se trata de uma terapêu-
competitors. It has been suggested that Bolt, like many other top sprinters, has the “sprinting gene”, meaning
he may have particulary fast-twitch muscle reflexes and longer fibers than most. Unlike most of sprinters,
however, he is 6 ft. 5 inches tall. These genetic advantages almost certainly contributed to what makes him
especially adept at sprint». Cf. COOPER, Jonathan – «Testosterone: “the Best Discriminating Factor”». In:
Philosophies, pp.3-4; BIANCHI, Andria – «Transgender Women in Sports». In: Journal of the Philosophy of Sport,
p.232.
142 Naturalmente encontram-se aqui apenas consideradas as atletas que não iniciaram ou não pretendem iniciar
a terapêutica hormonal ou recorrer à cirurgia de afirmação de género.
143 IAAF – Elibibility Regulations for the Female Classification (Athletes With Differences of Sex Development)
Explanatory Note, p.2; GLEAVES, John e LEHRBACH, Tim – «Beyond Fairness: The Ethics of Inclusion for
Transgender and Intersex Athletes». In: Journal of The Philosophy of Sport, pp.315-317; MACEDO, Ana – Identidade
de Género e Orientação …, p.107.
144 As hormonas de estrogénio são as correspondentes ao género com o qual se identifica. A terapia inclui ainda
antiadrogénicos que visam suprimir as hormonas que o corpo produz endogenamente por via da inibição dos
recetores androgénios, cfr. MACEDO, Ana – Identidade de Género e Orientação …, p.86-87; «Anedoctal evidence
from the few athletes who discuss their postsurgical and posthormonally transitioned selves assert that their
bodies are “greatly weakened” and their testosterone levels are well bellow those of “normal women”». Cf.
132
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tica ad eternum a clivagem que resultaria em relação às atletas cisgénero encontrar-se-ia
mitigada, porquanto a significativa diferença da constituição corporal encontra-se inn-
davelmente comprometida.
Não se encontrando pacificada a controvérsia nas competições desportivas relativa-
mente à participação de atletas transgénero femininas por esta via, há que assinalar que a
testosterona é o argumento que tem perpetuado a discriminação nas competições despor-
tivas, dirigindo-se de igual forma às atletas com diferenças no desenvolvimento sexual.
Com efeito, e atenta a falibilidade dos testes de verificação cromossomática do sexo
por força das variações cromossomáticas que determinam que mulheres não sejam neces-
sariamente 46 XX e homens 46 XY, reuniram-se os pressupostos para a elevação da tes-
tosterona a melhor argumento de discriminação indireta sob o pretenso paradigma de
assegurar uma justiça artificial numa área em que precisamente as vantagens físicas e
fisiológicas genéticas distinguem os atletas nos resultados.
O argumento da injustiça é regularmente empregue no que concerne à participação
de atletas transgénero femininas e DDS enquanto mecanismo de impedimento de par-
ticipação nas categorias femininas, porquanto se entende que, regra geral, apresentando
níveis mais elevados de testosterona ficam imediatamente colocadas numa situação de
vantagem do ponto de vista da aptidão física
145
.
Note-se, contudo, de as atletas cisgénero com síndrome de ovários poliquisticos apre-
sentam de igual forma níveis superiores de produção endógena de testosterona em relação
à média das restantes atletas, mas quanto a estas o resultado da regulação é tendencial-
mente inclusivo, por oposição ao resultado de eminente segregação das atletas transgé-
nero femininas e DDS
146
.
Ora, partindo da consideração dos fatores de ordem biológica e genética e atenta a
importância da consistência para o desenvolvimento de uma regulamentação adequada
a tutelar e garantir a participação das atletas transgénero femininas e com diferenças no
desenvolvimento sexual, é necessário adstringir-nos à evidência dos estudos incidentes
SCHULTZ, Jamie – «Caster Semenya and the “Question of Too”: Sex Testing in Elite Womens Sport and the
Issue of Advantage». In: Quest, p.235; GLEAVES, John; LEHRBACH, Tim – «Beyond Fairness: The Ethics of
Inclusion for Transgender and Intersex Athletes». In: Journal of The Philosophy of Sport, p.313.
145 «Critics often believe that having, on average, more testosterone gives them an unfair advantage that makes
them perform immensely better than their female-born counterparts.». Cfr. BIANCHI, Andria – «Transgender
Women in Sports». In: Journal of the Philosophy of Sport, pp.229-230; Confirmando as vantagens relitivamente
a algumas provas na modalidade de atletismo, cfr, IAAF – Elibibility Regulations for the Female Classification
(Athletes With Differences of Sex Development) Explanatory Note, p.6.
146 HIRSCHBERG, Angelica Lindén – «Female Hyperandrogenism and elite sports». In: Endocrine Connections
Review, pp.83, 88-89.
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sobre potenciais vantagens atléticas que aquelas atletas possam apresentar em relação às
cisgénero.
Na verdade, não existe qualquer resultado científico que evidencie que estas atletas
beneficiam de alguma vantagem na sua performance em todas as modalidades desporti-
vas
147
, sendo certo que ainda há que ponderar o facto de, não obstante, em abstrato o nível
de testosterona ser suscetível de se considerar relevante, a aptidão e performance de um/a
atleta depende, de igual forma, de um conjunto de fatores externos e internos, tais como
a aptidão natural para a modalidade, a sua composição genética, a motivação pessoal, o
treino adequado, a alimentação e nutrição, que não podem ser menosprezados.
Em bom rigor, os níveis de testosterona, que têm constituído um verdadeiro impedi-
mento impediente porquanto têm fundado a exclusão de atletas transgénero femininas e
com DDS das competições, não garantem por si só que o/a atleta tenha um nível de per-
formance significativamente superior aos restantes atletas em todas as modalidades des-
portivas.
Não existindo assim raes atendíveis que levem a uma adstrição absoluta aos níveis
de testosterona per se, ter-se-á que, concomitantemente, considerar a resposta do corpo
do/a atleta ao nível de testosterona para aferir a relevância desta no caso particular
148
.
O termo “testosterona efetiva” remete, precisamente, para o nível de testosterona efe-
tivamente utilizado pelo corpo do/a atleta para incremento da sua aptidão e performance
na modalidade desportiva concreta
149
.
Se a resposta concreta do corpo da atleta ao nível de testosterona for relevante, é legí-
timo afirmar-se que o nível de testosterona enquanto fator determinante de uma perfor-
mance superior em relação às atletas cisgénero encontra respaldo na justiça de resultado
147 O que se permite inferir, em bom rigor, da regulação da IAAF em relação ao hiperandrogenismo é precisamente
que o nível de testosterona é apenas significativo em algumas provas de atletismo, designadamente as provas
entre 400 a 1600 metros. Cfr. IAAF – Elibibility Regulations for the Female Classification (Athletes With
Differences of Sex Development) Explanatory Note, p.3-4; O emprego do verbo transitivo “pode” indicia a
possibilidade, não a dando por isso por assente. HIRSCHBERG, Angelica Lindén – «Female Hyperandrogenism
and elite sports». In: Endocrine Connections Review, pp. 86-89; GLEAVES, John; LEHRBACH, Tim – «Beyond
Fairness: The Ethics of Inclusion for Transgender and Intersex Athletes». In: Journal of The Philosophy of Sport,
pp.313-314.
148 SCHULTZ, Jamie – «Caster Semenya and the “Question of Too”: Sex Testing in Elite Womens Sport and the
Issue of Advantage». In: Quest, pp.233-234; No mesmo sentido, BIANCHI, Andria – «Transgender Women in
Sports». In: Journal of the Philosophy of Sport, p.233. «According to the fairness argument, transgender women
should not be allowed to compete in female categories in sports since they possess unfair advantages due
to high levels of testosterone. One explanation for this argument is the skill thesis, which says that sports are
meant “to determine which opponent is more skilfull”».
149 SCHULTZ, Jamie – «Caster Semenya and the “Question of Too”: Sex Testing in Elite Womens Sport and the
Issue of Advantage». In: Quest, pp.238-239; BIANCHI, Andria – «Transgender Women in Sports». In: Journal of
the Philosophy of Sport, p.233; BIANCHI, Andria – «Something Got to Give: Reconsidering the Justification for a
Gender Divide in Sport». In: Philosophies, p.6.
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que o princípio the skill thesis pretende alcançar, não se traduzindo por isso numa violação
ao princípio da igualdade.
Contudo, ter-se-á que ter presente que a lotaria genética natural por si só sempre basta-
ria para relativizar o princípio the skill thesis porquanto as caraterísticas genéticas sempre
serão suscetíveis de determinar uma maior vantagem para alguns atletas quando e se
comparados entre si apenas atletas cisgénero
150
.
Tomemos como exemplo a síndrome de Marfan, que consiste numa condição médica
que torna a pessoa particularmente alta. Terá esta condição médica relencia ao ponto
de excluir um atleta de uma equipa de basketball ou volleyball? Julgamos que não, pese
embora a evidência de que quando comparado com outros atletas da mesma modalidade
sempre se encontrará em vantagem em relação ao resultado por força da sua altura. Exem-
plo modelar de caraterísticas genéticas naturais que revelam uma predisposição para
alcançar melhores resultados quando comparado com outros atletas cisgénero é também
o do atleta é o Michael Phelps
151
.
Em bom rigor, em ambos os exemplos, o que se evidencia é que se tratam de caraterís-
ticas genéticas naturais que não se encontram facilmente nos demais atletas, pelo que se
tratam de diferenças que se revestem de potencial para que não se considerem subsu-
veis à justiça desportiva radicada da interpretação tradicional do princípio the skill thesis e
da qual se alcança a igualdade meramente formal.
Todavia, a elevada percentagem de massa muscular, bem como a inerente força, robus-
tez e agilidade de atletas como Caster Semenya têm suscitado particular atenção por força
de uma vantagem genética que determina a diferença em relação a outras atletas cisgé-
nero (níveis endógenos de testosterona) e que por isso tem sido considerada uma vanta-
gem desproporcional e injusta, ao contrário do que sucede com os atletas dados a exemplo,
aos quais se associa um sentido positivo de vantagem enquanto “talento natural”.
Com efeito, não de poderá deixar de entender que o argumento da testosterona é, na
verdade, um pressuposto da organização binária das competições desportivas que resulta
150 Acompanhamos, por isso, Simona Giordano e John Harris na rejeição à proposta de recurso à engenharia
genética de melhoramento de Torbjörn Tännjsö e Claudio Tamburrini para alcançar uma verdadeira igualdade
de género nas competições desportivas. Cfr. GIRODANO, Simona; HARRIS, John – «What is Gender Equality
in Sports?». In: Genetic Technology and Sport: Ethical Questions, pp.209-216; TÄNNSJÖ, Torbjörn e TAMBURRINI,
Claudio (Coord.) – «Gender Equality and Gene Technology in Sport». In: Genetic Technology and Sport: Ethical
Questions, pp.181-195.
151 COOPER, Jonathan – «Testosterone: “the Best Discriminating Factor”». In: Philosophies, p.2; Para uma análise
mais detalhada sobre os testes de verificação de género, cfr, COOPER, Emely J. – «Gender Testing in Athletic
Competitions – Human Rights Violations: Why Michael Phelps is Praised and Caster Semenya is Chastised».
In: The Journal of Gender, Race & Justice; e sobre a regulação da vantagem genética, POLEZ, Sarah e LEWIS, anna –
«Regulating Genetic Advantage». In: Harvard Journal of Law & Technology.
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da desigual e discriminatória conceptualização em relação às variações genéticas decor-
rentes do cromossoma sexual e às variações cromossomáticas que determinam outras
vantagens físicas, que radicam da edificação socialmente elaborada de hierarquização
entre homem e mulher.
Importa por isso ponderar quando é que se torna possível armar que determinado
desempenho é significativamente superior para que não se possa considerar legítimo
numa mulher.
Proposta a ser desconsiderada, pese embora com algumas reservas, é a de Torbjörn
Tännsjö e Claudio Tamburrini quanto à eliminação de categorias birias por referência
ao sexo morfológico. Partindo da premissa de que qualquer forma de discriminação sexual
é moralmente rejeitável independentemente do contexto e motivações em que se verifi-
que
152
, pretende resgatar o primário desiderato das competições desportivas, segundo o
qual os atletas devem competir em igualdade de circunstâncias, sem referência a uma
categoria, determinando-se assim por via da performance fáctica e de resultado quem
seria o/a melhor atleta.
Não obstante a bondade da proposta, note-se que a categorização biria poderá não
consistir numa forma de discriminação sexual injustificada stricto sensu, desde logo por
não considerar a possibilidade científica de fatores biológicos (v.g. testosterona) susten-
tarem a manutenção das categorização binária de género em modalidades específicas,
por outro lado não pondera a dimensão social da construção de igualdade de género e do
tortuoso caminho que levou à inclusão das mulheres nas competições desportivas que,
inicialmente, se encontravam reservadas aos homens
153
.
No âmbito das competições desportivas, o sucesso dos resultados dos/as atletas encon-
tra-se estritamente ligado à maximização das aptidões biológicas naturais. Significa isto
que as próprias caraterísticas físicas e fisiológicas que enformam o património genético
que é o corpo têm relevância imediata na robustez, resistência, potência e aptidão do/a
atleta.
152 TÄNNSJÖ, Torbjörn e TAMBURRINI, Claudio – «The Genetic Design of a New Amazon». In: Genetic Technology
and Sport: Ethical Questions, pp.181 e 185; «For virtually as long as women have been allowed to compete in Athletics
(and indeed other sports), there have been rules to segregate competition into male and female categories, a
distinction that as historically been made by reference to biological sex. The rational for segregation was, no
doubt, initially based on observations, assumptions and generalizations about the athletic ability of men and
woman, the perceived “weakness” of the feminine form and cultural stereotypes about the role of women». Cf.
COOPER, Jonathan – «Testosterone: “the Best Discriminating Factor”». In: Philosophies, p.3.
153 SAPPENFIELD, Kourtney – «Adrienne Miller and Jomills Braddock II: Sex Segregation in Sports: Why Separate
is Not Equal. In: J Youth Adolescence. California: Praeger, 2016, pp.2480-2481; GLEAVES, John e LEHRBACH, Tim
– «Beyond Fairness: The Ethics of Inclusion for Transgender and Intersex Athletes». In: Journal of The Philosophy
of Sport, p.315.
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A utopia de justiça que se pretende assacar ao princípio e que sustenta a categorização
binária com recurso ao argumento do nível de testosterona, ter-se-á que ter por necessaria-
mente errónea, porquanto a individualidade endógena sempre poderá colocar alguns atle-
tas numa posição eminentemente vantajosa que outros tantos jamais poderão alcançar,
concluindo-se pela relativa expressão do princípio em relação ao ponto de partida iguali-
rio na organização biria das competições desportivas
154
.
Resta assim, apreciar duas alternativas: a primeira, que se prescinda do princípio the
skill thesis em relação à participação destes/as atletas nas competições ainda que os níveis
de testosterona efetiva sejam determinantes no resultado; a segunda, não se prescindindo
do princípio, que se atendam às vantagens genéticas de todos os atletas (cisgénero e trans-
género e DDS) na organização das competições desportivas, de forma a mitigar as vanta-
gens resultantes da lotaria genética natural
155
.
Conclusão
Conforme resulta das disposições conjugadas do artigo 1.º e do artigo 10.º da UNESCO Inter-
national Charter of Physical Education, Physical Activity and Sports, é princípio fundamental de
governança desportiva no acesso à prática desportiva, incluindo as competições profissio-
nais, a não discriminação
156
.
Este instrumento que necessariamente tem de ser interpretado em conjugação com o
quadro legal de proteção internacional de direitos humanos tem, por conseguinte, que se
traduzir na criação de condições para o cumprimento integral do desiderato de respeito
pela dignidade da pessoa humana, livre desenvolvimento da personalidade, privacidade
e integridade.
A organização binária das competições desportivas tem suscitado particular atenção
no que concerne à participação das atletas transgénero femininas e com diferenças no
desenvolvimento sexual porquanto tem potenciado a violação de um catálogo de direitos
imanentes à dimensão ética e ontológica da pessoa humana, que não se compadecem com
154 «I draw on a couple of examples to illustrate this point, such as the case of Michael Phelps, whose genetic
attributes provide him with many advantages that is competitors probably lack (e.g. size 14 feet, the fact that
he is double jointed, his large ‘wingspan’)». Cf. BIANCHI, Andria – «Something Got to Give: Reconsidering the
Justification for a Gender Divide in Sport». In: Philosophies, p.6; GLEAVES, John; LEHRBACH, Tim – «Beyond
Fairness: The Ethics of Inclusion for Transgender and Intersex Athletes». In: Journal of The Philosophy of Sport,
p.315.
155 BIANCHI, Andria – «Something Got to Give: Reconsidering the Justification for a Gender Divide in Sport». In:
Philosophies, p.6.
156 UNESCO – International Charter of Physical Education, Physical Activity and Sports.
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a ausência de transparência e consolidação das motivações que presidem à definição de
critérios de elegibilidade das atletas.
A justiça de resultado que se pretende alcançar com o princípio the skill thesis é assim
meramente formal e não material. A proporcionalidade que se encontra inerente ao argu-
mento da vantagem física destas atletas em comparação com as atletas cisgénero, está
longe de justificar as restrições que têm sido colocadas às atletas transgénero femininas e
com diferenças no desenvolvimento sexual.
Com efeito, não se poderá aceitar que exista proporcionalidade quando a desvanta-
gem radica apenas de uma potencial redução das possibilidades de ganhar. A proteção
conferida pelo complexo de direitos humanos fundamentais torna assim difícil justificar
a abstrata vantagem consignada às atletas transgénero femininas e com diferenças no
desenvolvimento sexual face ao potencial da lesão dos direitos e liberdades de que estas
são também titulares, atendendo ao primado de justiça do resultado material que se pros-
segue no desporto.
Em bom rigor, trata-se de uma desadequada interpretação do princípio the skill thesis
157
que tem promovido o impedimento da participação de atletas transgénero femininas e
com diferenças de desenvolvimento sexual
em diversas competições desportivas ou, não
se verificando ab initio o impedimento, suscitado posteriormente decisões que colidem
com o direito à autodeterminação de género e ao livre desenvolvimento da personalidade,
desde logo porque se refletem no contexto de uma atividade que é central nas suas vidas,
mas de igual forma porque faz indiciar o acolhimento da patalogização
158
das questões
relativas ao género .
O princípio não sugere que é a categorização binária e os métodos indiciários que
levam à sua subsunção que deverá ser o critério orientador. Na verdade, a meritocracia
desportiva não sugere sequer que os/as atletas sejam tratados de forma absolutamente
igual, porquanto a diversidade, e consequentemente a diferença, são caraterísticas da
espécie humana. O que sugere é que os/as atletas preencham requisitos de elegibilidade
para participarem nas competições que tenham por referência as suas caraterísticas bio-
lógicas e genéticas naturais que, naturalmente, têm de ser maximizadas, de forma que a
competição acolha os/as atletas equally e não as equalls.
157 Este princípio sugere que é a própria prática/execução da modalidade desportiva que deve determinar o/a atleta
com maior aptidão, e consequentemente melhores resultados, por via de um ponto de partida justo que coloque
os/as atletas em competição numa posição equilibrada entre si.
158 O que resulta aliás bastante evidente na subtil imposição constante das Elibibility Regulations for the Female
Classification (Athletes With Differences of Sex Development) da IAAF.
138
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A verdade desportiva, que decorre do princípio da ética desportiva
159
, tem reforçado a
interpretação do princípio the skill thesis quanto à necessidade de atender à aptidão física
do atleta no domínio da força, rapidez, agilidade, que pode ser influenciada pelos níveis de
testosterona. Ora, a aptidão/habilidade do atleta não pode ser considerada isoladamente,
porquanto não se poderá deixar de ter presente que as vantagens genéticas (além da tes-
tosterona leia-se) são um facto inarredável no desporto, pelo que a defesa de um ponto
de partida equivalente ou justo nas competições sempre consistirá num objetivo utópico.
Encontrando-se as vantagens genéticas dadas por assentes no desporto
160
, não obstante
a consagração e projeção prática daquele princípio, e não se pretendendo abdicar deste,
terá chegado a altura de ponderar a legitimidade do argumento em relação aos níveis de
testosterona para exclusão das atletas transgénero femininas e com diferenças de desen-
volvimento sexual.
Tratando-se de caraterísticas genéticas naturais, conforme é o caso do nível de produ-
ção de testosterona destas atletas, dificilmente se encontra um critério ético racional para
que se atenda particularmente a esta caraterística e outras sejam ignoradas, relativamente
a todos/as os/as atletas (cisgénero, transgénero e DDS), justamente numa área em que as
vantagens genéticas naturais se encontram em estrita ligação com o resultado e que por
isso são maximizadas.
A proposta é, nestes termos, de não abdicar do princípio the skill thesis, mas ponderar
a adoção de um modelo de conformidade paritário que, partindo do pressuposto que os
resultados desportivos devem basear se na habilidade física das atletas, progrida para a
eliminação de categorias por referência ao género binário
161
, cumprindo-se por um lado o
conteúdo substantivo do princípio da não discriminação e por outro lado promovendo a
inclusão de todos os/as atletas numa competição que cumpra o desiderato igualitário de
justiça material.
Com efeito, reconhecendo-se as profícuas finalidades do princípio the skill thesis, é a
equidade do resultado da aplicação prática do princípio que conduz à necessidade de miti-
gar potenciais vantagens por um critério de justiça nas competições desportivas.
159 Particularmente n.º 1 e 2 do art.º 3.º da Lei N.º 5/2007, de 16 de janeiro, que define as bases das políticas de
desenvolvimento da atividade física e desportiva, bem como o n.º 1 e 2 do art.º 40.º da Lei N.º 30/2044, de 21 de
julho, que define as bases gerais do sistema desportivo.
160 IAAF – Elibibility Regulations for the Female Classification (Athletes With Differences of Sex Development)
Explanatory Note. P. 6.
161 No mesmo sentido, SILVA, Artur Flamínio da – «Hiperandrogenismo». In: Enciclopédia de Direito do Desporto,
p. 214. «(…) uma das soluções para evitar as críticas de discriminação de atletas com hiperandroginismo,
podia passar pela criação de uma terceira categoria (a categoria neutra), esbatendo-se, assim, a categorização
dicotómica de homem/mulher. Nada impede que o Desporto evolua para uma total eliminação de categorias».
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A típica organização das competições desportivas baseada no género feminino ou mas-
culino traduz-se numa forma de discriminação indireta, aferida pelo resultado, relativa-
mente às atletas transgénero femininas ou com diferenças no desenvolvimento sexual,
atenta a relevância dos níveis de testosterona que podem determinar uma vantagem real
em relação aos atletas cisgénero, considerando as razões de ordem física e fisiológicas que
determinam diferenças entre homens e mulheres.
Uma forma de mitigar as vantagens imanentes de ordem genética seria a criação de
um sistema de handicap centrado na resposta do corpo ao nível de testosterona efetivo
para a prática da modalidade concreta, atendendo a que os níveis de testosterona efetiva
possam ser determinantes no resultado
162
.
Todavia, não existindo evidências científicas que sustentem de forma consolidada
a manutenção da segmentação binária generalizada, particularmente por referência ao
nível de testosterona e de igual forma que a eventual vantagem conferida pelo nível de tes-
tosterona seja distinta de qualquer outra vantagem genética natural independentemente
da modalidade desportiva concreta, atendendo ao atual resultado material da aplicação
do princípio the skill thesis eminentemente discriminatório, a eliminação de categorias por
género binário apresenta-se como uma forma de alcançar a igualdade material por via da
paridade.
Tendo em vista o desiderato do princípio, em alternativa à segmentação de atletas por
sexo anatómico, melhor se afigura a consideração de outros fatores para cada modalidade
que, de facto, podem contribuir significativamente para a determinação do vencedor da
competição de acordo com o paradigma da justiça desportiva.
Nestes termos, não abdicando da aplicação do princípio the skill thesis e do profícuo
resultado inclusivo que ao mesmo se pode assacar, de forma a obstar à segregação das atle-
tas transgénero ou com diferenças no desenvolvimento sexual, entende-se que a criação
de um sistema de handicap que considere as vantagens genéticas, fisiológicas e físicas de
todos os atletas (cisgénero, transgénero e com diferenças no desenvolvimento sexual) rele-
vantes em cada modalidade desportiva, alcançará o profícuo resultado de mitigar trans-
versalmente as vantagens resultantes da lotaria genética natural
163
.
É, nestes termos, de afastar a opção de criação de uma terceira categoria neutra por-
quanto, no limite, o resultado de exclusão poder-se-ia verificar nestas circunstâncias por
força das atletas não terem nenhuma outra atleta transgénero feminina ou com diferenças
de desenvolvimento sexual.
162 BIANCHI, Andria – «Transgender Women in Sports». In: Journal of the Philosophy of Sport, pp.237-239.
163 BIANCHI, Andria – «Something Got to Give: Reconsidering the Justification for a Gender Divide in Sport». In:
Philosophies, p.6.
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Partindo do conteúdo substantivo da paridade, uma reinterpretação contemporânea
permite avançar paulatinamente para a armação de que esta existe na medida em que
se defenda que a diferença sexual não é decisiva na classificação da espécie humana. O
pressuposto é o de a pessoa não é aquilo que é em função do sexo morfológico
164
.
A eliminação de categorias por referência ao género binário permite obstar a discri-
minações arbitrias, designadamente por força do sexo, bem como promove o resultado
prosseguido pelo princípio the skill thesis de justiça material.
Se a demarcação da porção a que cada pessoa tem direito no leque de bens disponí-
veis, leia-se iguais oportunidades de participar nas competições desportivas, porção essa
que há de ser rigorosamente igual para todos os indivíduos, não se encontrar adstrita à
organizações reducionistas das potencialidades do ser em devir que é a pessoa humana,
promove-se um ambiente mais inclusivo e não estigmatizante no desporto que permite o
estabelecimento perpétuo de uma participação materialmente igualitária.
Por conseguinte, a possibilidade de se alcançar um equilíbrio entre as diferenças das
pessoas e as caraterísticas que lhe são comuns com a eliminação das categorias binárias
deve-se, sobretudo, ao facto de a organização das competições encontrar fundamento em
caraterísticas especificamente relevantes para a modalidade desportiva concreta.
Um sistema de organização assente neste pressuposto é mais inclusivo, não apenas
por acolher as vantagens decorrentes genética natural, mas de igual forma por criar condi-
ções materiais de elegibilidade para atletas de género não binário, e que não tenham inten-
ção de recorrer a terapias hormonais ou à cirurgia de armação de género, alcançando-se
desta forma a definição permanente de uma igualdade material.
De resto, este sistema meritocrático não significará que não se venham a verificar
competições em que atletas cisgénero masculino ou feminino competirão com atletas do
mesmo género e sexo, contudo o paradigma que presidirá à organização das competições
desportivas, com a eliminação total de categorias por referência ao género, será o endere-
çar as caraterísticas relevantes para a modalidade desportiva para alcançar a justiça real
ou de resultado de acordo com as competências físicas e fisiológicas do/a atleta.
164 Afastamo-nos assim da conceptualização de paridade apresentada por RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto –
«Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias; Económicas; Empresariais…, p.588.
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PATRÍCIA CARDOSO DIAS
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APRESENTAÇÃO DO LIVRO A CADEIA DE CUSTÓDIA DA PROVA
NO PROCESSO PENAL DE GERALDO PRADO
PRESENTATION OF THE BOOK THE TEST CUSTODY CHAIN IN THE CRIMINAL
PROCESS BY GERALDO PRADO
MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE*
manuelmonteirovalente@gmail.com
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
January Janeiro–30
TH
June Junho 2020 · pp. 145‑147
DOI: https//doi.org./10.26619/2184‑1845.XXI.2.1.01
Submitted on October 14
th
, 2020 . Accepted on November 26
th
, 2020
Submetido em 14 de outubro, 2020 . Aceite a 26 de novembro, 2020
* Doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa. Professor Associado da Universidade Autónoma de
Lisboa. Presidente do Instituto de Cooperação Jurídica Internacional. Professor do Programa de Mestrado e
Doutoramento em Ciências Criminais da PUC-RS e Professor Convidado da ESP/ANP – Polícia Federal – Brasil.
Advogado e Jurisconsulto.
1 P G – A Cadeia de Custódia de Prova no Processo Penal. São Paulo/Madrid/Barcelona/Buenos Aires:
Marcial Pons, 2019.
Iniciamos com cumprimentos dirigi-
dos ao autor, Doutor G P, que
nos presenteia com mais uma obra
1
de ele-
vada qualidade científica, à Doutora Maria
João Antunes, que connosco partilha a
responsabilidade de apresentar a obra, ao
Dr. João Calado, que representa a Marcial
Pons, a Juíza Desembargadora Giselle
Bondim, esposa do autor e, com singeleza,
na sua pessoa cumprimentar toda a famí-
lia e amigos aqui presentes neste momento
de alegria.
Gostaríamos, se seguida, agradecer o
amável convite para apresentar uma obra
de um dos mais ilustres juristas do Brasil,
da América Latina e com cimentação na
comunidade jurídica europeia, em espe-
cial portuguesa, cuja defesa do devido pro-
cesso legal e da efetiva defesa e garantias
do processo penal tem marcado a sua obra.
Apresentar um livro é uma tarefa
muito difícil, em especial um livro como
o que o Doutor Geraldo Prado nos brinda,
que reflete parte dos seus estudos, pesqui-
sas e debates dos últimos anos, e um livro
com um tema como este, atual e muito
pertinente para a comunidade jurídica e
comunidade penal, por se prender com
o mais elevado valor de justiça: a Liber-
dade. A Cadeia de Custódia de Prova
tem reflexo na decisão final de condenar
ou não condenar, ou seja, na liberdade
como maior bem e como o valor que a pes-
soa humana mais aprecia. Muitos para-
béns pelo maravilhoso livro que submete à
crítica dos pares e de todos os que estudam
direito [processual penal].
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O livro apresenta uma trilogia que ora
se estatizam ora se dinamizam conforme
o tempo e o espaço em que nos encon-
tramos: prova-facto; prova-verdade; e pro-
va-poder. A esta trilogia relacional que
gravita no tempo e no espaço do Direito,
acrescentamos a prova-Direito e a prova-
-liberdade. Poder-se-ia falar em pentagonia
relacional estática e dimica numa cons-
trução de saber e poder como limite do
Direito de punir de forma que as funções
do Direito penal se possam concretizar:
função de garantia, função de segurança,
função de coesão social e a magnima
função de equilíbrio. A cadeia de custódia
da prova marca a pentagonia elencada e
assume importância por ser essencial a
originalidade e integridade da prova que
integra o objeto do processo conducente
a uma decisão final: condenação ou de
absolvição. Poder-se-ia afirmar que o livro
reflete esta preocupação que se manifesta
na pugna por uma justiça livre de qual-
quer maculação.
Ressalta do livro o inconformismo com
a insistente “mania” em confirmar a olhar
para os tópicos jurídicos com cânones pró-
prios de Constituições antidemocráticas [pp.
13, 18, 37, 49, 97] e a continua não subordina-
ção da interpretação normativa aos Coman-
dos de uma Constituão democrática (1988).
A continua insistência de que é pos-
sível obter a verdade real, própria dos
demonstrativistas que, por isso, sacrali-
zam e mitificam a prova pericial [p. 97],
quando a epistemologia nos ensina que o
conhecimento humano tem limites ou o
seu alcance é finito e não absoluto [produ-
zido pela perícia], pela testemunha, por ser
finito e falível como nos elucidou Popper.
O autor, ao longo das 148 pp. inquie-
tantes e provocantes, procura elucidar-nos
de que não há verdade real, sendo que a
verdade fáctica é uma constrão do conheci-
mento dos sujeitos processuais e dos parti-
cipantes processuais [pp. 39, 49, 56-57, 59,
60-62], sendo, por isso, favel, mas que os
tribunais supremos teimam em não assu-
mir, como demonstra o pequeno número
de revisões de sentença [p. 37].
Também nos elucida de que a facili-
dade com que se sana e ‘salta’ a violação da
cadeia de custódia – limitando (anulando) o
contraditório à prova íntegra e autêntica, à
prova fonte e intacta, assim como promo-
vendo as sucessivas surpresas e a violação
do fair trial – é demonstrativo de uma ten-
dência em minimizar a dimensão axioló-
gica constitucional do princípio do acusa-
tório e o processo de estrutura acusatória.
A persecução criminal deve, desde a
notícia do crime, perpassando pela inves-
tigação criminal promovida pela polícia,
deve estar subordinada ao devido processo
legal [p. 101], sendo que a persecução da
Cadeia de custódia de prova – integridade
e autenticidade da prova [p. 95] – se afirma
como pilar central adequado a assegurar
todas as garantias constitucionais proces-
suais penais [p. 128-131], porque o Direito
processual penal é, como escreveu Henkel,
direito constitucional aplicado.
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O Direito Processual Penal – como
temos defendido, direito por excelência
dos inocentes, no quadro da “prova”, não
deve ser nem nunca deve ter uma “função
ritual” [p. 63], cujas recolha, conservação,
tratamento da prova devem sujeitar-se
a uma standard [nimo] de prova pró-
prio de um Estado de direito e, na nossa
opinião, como a do Autor, a um standard
ximo probatório, por estarmos num
Estado Constitucional democrático.
Este Estado impõe a efetividade, mais
do que do princípio da legalidade [igual-
dade], do princípio da constitucionalidade
da prova que, enquanto fonte epistemoló-
gica, axiológica, teológica de limitação do
poder – saber/poder –, exige a negação da
verdade real, a negação de mera ritualidade da
prova, a negação da admissibilidade de prova
viciada [ilegal/ilícita], a negação da violação
do devido processo legal [p. 128], que se
impõe que seja justo e equitativo, sob pena
de negarmos a pessoa humana e a sua dig-
nidade, por nela residir a medula da solida-
riedade, de justiça e da liberdade.
O Autor, garantista não positivista,
não propugna um regime de impunidade
[NÃO], proe-nos uma persecução criminal
assente no conhecimento – epistemologia
onde a verdade processual, prática, material,
judicial e válida [enquanto conhecimento
edificado ao longo do processo com uma
contrariedade processual democrática]
não seja o resultado do arbítrio, mas antes
o produto do exercício de um poder legí-
timo, válido, vigente e efetivo subordinado
ao Direito, enquanto princípios gerais do
direito, princípios gerais de cada ramos do
direito, direito positivo, jurisprudência e
doutrina.
Para que possamos, com santo Agosti-
nho, armar “que não nos vença, a sede de
vingança”.
Muito Obrigado.
Lisboa, 24 de julho de 2019