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A relevância da epistemologia do ilícito para a proteção de bens jurídicos e a efetividade doprincípio ne bis in idem
SANDRO LÚCIO DEZAN
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 2 · 1
st
July Julho – 31
st
December Dezembro 2020 · pp. 25‑45
como um sistema sancionador em sentido stricto sensu
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. Com efeito, restam, com caracterís-
ticas sancionadoras, os ilícitos disciplinares e os ilícitos contraordenacionais.
O ilícito disciplinar (i) verte-se em duas outras subclassificações: (i.a) o ilícito disciplinar
previsto no Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Função Pública
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(subme-
tido a um regime de direito público, compreendendo, e.g., o Estado e as Entidades) e (i.b) o ilícito
disciplinar previsto no Código do Trabalho português
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(submetido a um regime de direito pri-
vado – e, por este motivo especial, não se há de afirmar categoricamente ser o sistema sancio-
natório português exclusivamente público, como dito, a compreender, e.g., as pessoas jurídi-
cas, privadas ou públicas, porém regidas pelo direito privado. Idêntico fenômeno se dá para
o trato dessa espécie no caso Brasil, pelo mesmo móvel) (MONTE, 2014; AZEVEDO, 2011).
6 Nesse sentido e pela óptica de somente pertencer ao sistema sancionatório o regime regulatório (i) formado a partir
de certas garantias materiais e processuais e (ii) caracterizado pela afeição à proteção de bens jurídicos, o que podemos
compreender como uma concepção estrita da definição do conceito de sistema sancionatório, Mário Ferreira Monte ensina
que “uma coisa seria falar do ilícito administrativo tout court, de uma violação das normas do direito administrativo,
com as consequências próprias deste ramo do direito, ou seja, de uma autotutela da função administrativa . Ao
dizer isto, partimos do pressuposto de que existe na ordem jurídica portuguesa um tipo de ilícito administrativo
não contraordenacional, ou seja, aquele que corresponderia a um ‘facto ilícito tipificado numa norma jurídico-
administrativa’, ao qual se aplique uma sanção que não seja a coima, podendo ser, inclusivamente e por estranho
que possa parecer, a multa. E se bem se afirma que não existem diferenças materiais entre o ilícito administrativo
e o ilícito de mera ordenação social, a verdade é que o legislador é quem vem a fazer essa distinção, melhor, é quem
opta por um ou por outro, quando utiliza ou não a coima como sanção para o ilícito típico. Outra coisa diferente,
no entanto, seria subsumir o ilícito de mera ordenação aos princípios e critérios do direito administrativo. Não
se pense que as consequências da realização de um comportamento subsumível a um ilícito administrativo ou a
um ilícito contraordenacional são as mesmas. Desde o facto de um seguir as normas do Código de Procedimento
Administrativo e o outro o processo contraordenacional, passando pelo facto de o recurso das decisões em matéria
de ilícito administrativo caber para os tribunais administrativos ao passo que o de matéria contraordenacional
cabe para os tribunais comuns, em regra, muitas são as diferenças práticas entre os dois. (...) Importa, no entanto,
sublinhar que estas vantagens são aparentes. Quanto mais próximo do sistema penal, obviamente que maiores são
as garantias processuais. Algumas, que são apresentadas como vantagens, esquecem outros aspectos que não são
menos relevantes. (...) Dito isto, no entanto, compreende-se que não possa aceitar-se qualquer tentativa de subjugar
o direito das contraordenações aos quadros do direito administrativo e de atribuir o poder de julgar as decisões em
sede de impugnação contraordenacional aos tribunais administrativos. E, por sobre tudo, pelo que acaba de dizer-
se, discorda-se frontalmente que não se veja entre os dois ilícitos ‘diferenças substanciais’. Este é o verdadeiro
problema. É que o ilícito de mera ordenação social, já ficou dito, tem como função tutelar bens jurídicos,
não penais – ou não carentes de pena –, é certo, enquanto que o ilícito administrativo tem essencialmente
uma função de autotutela da atividade administrativa. Não compreender isto é que inquina todo o raciocínio.
A diferença entre uma função e outra é significativa. Tão grande que justifica que o direito subsidiário do direito
contraordenacional deva ser o direito e processo penal e não o direito administrativo. E de tal modo que os tribunais
competentes para apreciar as impugnações judiciais em matéria contraordenacional devam ser os comuns e não
os administrativos. Entre outras razões, salta de imediato uma: a matéria em causa não é administrativa, senão
sancionatória. (Sem grifos no original) (MONTE, 2014, p.31-38).
7 Mormente em face da ausência de uma jurisdição contenciosa administrativa brasileira, a nossa concepção de
sistema sancionatório é a de caráter amplo, sistema sancionador em sentido lato, de modo a não restringir o conceito
à (a) necessidade de proteção de bens jurídicos, passíveis ou não de aplicação de uma pena criminal, e ou de (b) ele
ser ou não dotado de certas garantias, materiais ou processuais, fundamentais aos administrados. Com efeito,
incluem-se todas as espécies de ilícitos submetidos ao regime jurídico de direito público.
8 Lei 58/2008, de 09 de setembro, revogado pela Lei 35/2014, de 20 de junho.
9 Lei 7/2009, de 12 de fevereiro, cuja última alteração foi efetivada pela Lei 28/2016, de 23 de agosto.