GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 2 · 1
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July Julho – 31
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December Dezembro 2020 · pp. 25‑45 25
A relevância da epistemologia do ilícito para
a proteção de bens jurídicos e a efetividade
doprincípio ne bis in idem
Um estudo comparado entre Brasil e Portugal
The relevance of the illegal epistemology for the protection of
legal assets and the eectiveness of the ne bis in idem priciple
A comparative study between Brazil and Portugal
SANDRO LÚCIO DEZAN*1
sandro.dezan@gmail.com e sandro.dezan@ceub.edu.br
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
July Julho–31
ST
December Dezembro 2020 · pp. 2545
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.2.2
Submitted on September 24
th
, 2020 . Accepted on 10
th
November, 2020
Submetido em 24 de setembro, 2020 . Aceite a 10 de novembro, 2020
RESUMO o presente artigo, a partir do método hipotético-dedutivo e de um estudo
comparado entre Portugal e Brasil, busca analisar os contornos jurídico-epistemológicos
do conceito de “ilícito” e a necessária carga de proteção de bens jurídicos que orienta a
sua previsão nos mais diversos ramos do direito punitivo estatal, para constatar a
abrangência dos efeitos do princípio ne bis in idem extramuros dos ramos epistemológicos.
Concluir-se-á a existência de um núcleo intangível, ontológico, entre as variações de
prescrições proibitivas, que se asseguram, necessária e adequadamente, nas espécies de
objetos protegidos pelos diversos ramos do direito sancionador, público ou privado, para
os limites de mais de uma punição pelo mesmo fato base.
PALAVRASCHAVE Direito Público Sancionador; Ontologia dos Ilícitos de Direito Público;
Proteção de Bens Jurídicos; Efetividade do Princípio Ne Bis In idem.
* Doutor em Ciências Jurídicas Públicas, pela Escola de Direito da Universidade do Minho (UMinho), Braga,
Portugal; Doutor em Direito, pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB); Doutor em Direitos e Garantias
Fundamentais, pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV) e Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais, pela
Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Professor Titular do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu, Mestrado
e Doutorado, do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), Brasília/DF; Investigador do Centro de Justiça e
Governação (JusGov), Grupo JusCrim – Justiça Penal e Criminologia, da Escola de Direito da Universidade do
Minho (UMinho), Braga, Portugal; e Coordenador do Grupo de Pesquisa Hermenêutica do Direito Administrativo
e Políticas Públicas do Programa de Pós-graduação em Direito do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB),
Brasília/DF.
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A relevância da epistemologia do ilícito para a proteção de bens jurídicos e a efetividade doprincípio ne bis in idem
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ABSTRACT: this article, based on the hypothetical-deductive method and a comparative
study between Portugal and Brazil, seeks to analyze the legal-epistemological contours of
the concept of “illicit” and the necessary burden of protection of legal assets that guides
its prediction in the most various branches of state punitive law, to verify the scope of
the effects of the ne bis in idem principle outside the epistemological branches. The
existence of an intangible, ontological nucleus will be concluded, among the variations
of prohibitive prescriptions, which are necessary and adequately ensured in the kinds of
objects protected by the different branches of the sanctioning law, public or private, to the
limits of more punishment for the same basic fact.
KEYWORDS: Public Sanctioning Law; Ontology of Public Law Offenses; Protection of Legal
Assets; Effectiveness of the Ne Bis In idem Principle.
I. Introdução
O sistema sancionatório português é notadamente distinto do brasileiro
1/2
e, por essa razão,
a intervenção que ora nos detemos antecedente ao início dos debates de investigação faz-
-se necessária, nomeadamente com vistas à adequação de sentido entre as definições dos
ilícitos de um e de outro modelo punitivo estatal, o luso e o brasileiro, a considerar que
utilizaremos aprioristicamente como cerne de toda a pesquisa a experiência brasileira
(mormente, de lege ferenda, para um contributo ao sistema brasileiro) e não, de fato, a por-
1 Denota-se para as classes sancionatórias extrapenais de Portugal, em especial os ilícitos contraordenacionais, a
gênese de ordem germânica, por uma transposição das contravenções, após a paulatina redução de sua aplicação
a partir de 1982, com o advento do Código Penal português, ao passo que o direito sancionador brasileiro, para os
ilícitos não penais, ou extrapenais, parece-nos firmado em origem do direito sancionador espanhol, sob a especial
característica distintiva de não se tratar, o sistema brasileiro, de sistema firmado sob as bases do contencioso
administrativo. Mário Ferreira Monte ressalta a distinção ente o ilícito penal, o ilícito administrativo de sentido
estrito e os ilícitos de contraordenações. Afirma que “se em Portugal e na Alemanha, por exemplo, se alcançou um
nível de distinção aceitável, desde logo formal, ao definir-se claramente o que é contraordenação, com todo um
regime que pode dizer-se autónomo – tanto do direito penal quanto do direito administrativo –, expurgando-se
as contravenções do ordenamento jurídico, em outros países, porém, continua a não ser sequer pacífica a desig-
nação daquele tipo de infração. O que demonstra a dificuldade que, em termos de direito comparado, esta matéria
oferece. (...) Temos, por isso, um direito sancionador administrativo que, contudo, não se confunde com o direito
de mera ordenação social português nem com o Ordnungswidrigkeitenrecht alemão, inspirador do português”
(MONTE, 2014, p.20-22).
2 Sobre a influência do direito alemão para a concepção atual do sistema punitivo das contraordenações, conferir
Azevedo (2011, p.36-43).
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tuguesa, que, entretanto, será referenciada de modo expresso sempre que a abordagem
assim o exigir
3/4
.
Nessa linha de distinção entre os sistemas, por exemplo, a concepção de “ilícito
administrativo disciplinar” (categoria comum ao direito sancionador brasileiro) não é de
emprego corrente e de sentido apreensível pela legislação, doutrina e tribunais em Portu-
gal, que, por sua vez, valem-se, para a obtenção do mesmo efeito jurídico (sem embargo de
que em Portugal há o contencioso administrativo e no Brasil não há), do instituto jurídico
“ilícito disciplinar”, simplesmente, diferenciando-o dos ilícitos das contraordenões e dos
ilícitos administrativos tout court; há ainda em Portugal um fecundo debate sobre os limi-
tes entre o direito penal e o direito das contraordenações, perpassando pelo direito admi-
nistrativo penal e pelas contravenções, para, em fim, firmarem a concepção de direito de
mera ordenação social e de ilícitos contraordenacionais (MONTE, 2014; DIAS
,
2007, p.155 e ss.).
O direito brasileiro, ao servir-se da expressão “administrativo” para qualificar o ilícito
disciplinar, inadvertidamente induz os juristas portugueses – e os demais aplicadores do
direito de outros países, que, por ventura, operam sistemas sancionatórios de modelos
semelhantes – ao entendimento de que todo e qualquer ilícito administrativo seria de
espectro disciplinar, desprezando, destarte, as demais espécies estabelecidas em Portugal,
referentes aos (i) ilícitos administrativos em sentido estrito, tout court, (ii) aos ilícitos das
contraordenações e (iii) aos ilícitos disciplinares privados
5
.
3 A considerar que a investigação dedica-se ao fenômeno ne bis in idem sob a perspectiva do direito brasileiro,
todavia sem olvidar das categorias jurídicas de mesma identidade ou similitudes no direito português, na
medida em que este, em muitos casos, servirá de paradigma às conclusões a que se pretendem, imprescindível
para a nossa proposta de investigação se faz proceder a um ajuste semântico para a acomodação dos
principais conceitos operacionais que serão levados a efeito, mormente os referente às categorias de ilícitos
de direito sancionador presentes no Brasil e em Portugal.
4 O sistema de direito sancionador brasileiro apresenta grande similitude com o sistema de direito sancionador espanhol,
a exceção da presença do contencioso administrativo para este último e não para o primeiro. Com efeito, as
conclusões a que chega Mário Ferreira Monte também se aplicam ao caso brasileiro e, nesse viés, afirma o autor
que “por isso, se alguma conclusão pode tirar-se do direito espanhol é que as infracções administrativas são uma
opção pela descriminalização, muito clara, desde logo porque coabitam com figuras como as contravenções que,
ainda que dentro do direito penal, todavia, não são administrativas em sentido estrito. Mas o modelo, por isto
mesmo, apresenta peculiaridades que se não registram em Portugal” (MONTE, 2014, p.30-31). Para uma análise
detida das distinções entre o sistema sancionador espanhol e o sistema sancionador português, conferir a ainda
Monte (2014, p.18-30).
5 Por exemplo, para os ilícitos contraordenacionais, Mário Ferreira Monte ressalta o problema de essa espécie
não ser comum em alguns países (como é o caso do Brasil), e, assim, a demonstrar a dificuldade que se deparam
os estudiosos do tema, para a transposição de conceitos. Assinala o autor que “se em Portugal e na Alemanha,
por exemplo, se alcançou um nível de distinção aceitável, desde logo formal, ao definir-se claramente o que é
contraordenação, com todo um regime que pode dizer-se autónomo – tanto do direito penal quanto do direito
administrativo –, expurgando-se as contravenções do ordenamento jurídico, em outros países, porém, continua
a não ser sequer pacífica a designação daquele tipo de infração. O que demonstra a dificuldade que, em termos de
direito comparado, esta matéria oferece” (MONTE, 2014, p.20).
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Do mesmo modo, a qualificação especial dessa monta, tal qual referida, também induz os
estudiosos a questionarem se há ou não no Brasil um ilícito disciplinar que não seja sub-
metido a um regime publicístico, como ocorre em Portugal com o ilícito disciplinar privado,
do Código do Trabalho.
Pois bem, diante dessas dúvidas que naturalmente surgem ao liame do debate de
direito comparado, faz-se imprescindível esclarecer que no Brasil os ilícitos administra-
tivos em sentido estrito, tout court, e os ilícitos das contraordenações são englobados por
uma só categoria jurídica, a dos “ilícitos administrativos” e estes, quando adjetivados
de “disciplinares”, formam outra espécie, também submetida ao regime jurídico de direito
público, os “ilícitos administrativos disciplinares”.
Para estes últimos, lança-se mão, também e sem maiores problemas, da expressão “ilí-
cito disciplinar, cuja omissão do vocábulo qualificativo ainda assim referencia o ilícito
disciplinar de caráter público, ou seja, o “administrativo”.
Para os casos submetidos ao regime jurídico de direito privado (que, em Portugal,
comumente, encontram-se no CT), afigura-se no Brasil a denominação “ilícito disciplinar
privado”. Essas questões, apesar da ausência de qualquer pretensão exauriente do tema,
devem, aqui, de plano, ser dirimidas e explicadas.
Comecemos com o sistema vigorante em Portugal.
1. As Concepções De Ilícito Em Portugal
Na ordem jurídica portuguesa há três espécies definidas majoritariamente pela doutrina
(MONTE, 2014; ALBUQUERQUE, 2011) de ilícitos pertencentes ao sistema sancionatório,
que, de início, quanto à extensão de sua natureza punitiva, ainda não se pode caracterizar-
-se exclusivamente de públicas, por motivo que se verá. São elas: (i) o ilícito disciplinar; (ii) o
ilícito das contraordenações ou contraordenacionais, ou, ainda, de mera ordenação social;
e o (iii) ilícito penal (MONTE, 2014).
Para os estudiosos do tema, o ilícito administrativo, puro e simples, em sentido estrito,
“ilícito administrativo tout court”, no sistema luso, em razão de não possuir a função de
proteção de bens jurídicos (sequer a função de proteção de bens jurídicos não penais, como
no caso dos ilícitos contraordenacionais que possuem essa objetividade jurídico-prote-
tiva), não pertence à classe do direito sancionador português, a caracterizar-se, dessarte,
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como um sistema sancionador em sentido stricto sensu
6/7
. Com efeito, restam, com caracterís-
ticas sancionadoras, os ilícitos disciplinares e os ilícitos contraordenacionais.
O ilícito disciplinar (i) verte-se em duas outras subclassificações: (i.a) o ilícito disciplinar
previsto no Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Função Pública
8
(subme-
tido a um regime de direito público, compreendendo, e.g., o Estado e as Entidades) e (i.b) o ilícito
disciplinar previsto no Código do Trabalho português
9
(submetido a um regime de direito pri-
vado – e, por este motivo especial, não se há de afirmar categoricamente ser o sistema sancio-
natório português exclusivamente público, como dito, a compreender, e.g., as pessoas jurídi-
cas, privadas ou públicas, porém regidas pelo direito privado. Idêntico fenômeno se dá para
o trato dessa espécie no caso Brasil, pelo mesmo móvel) (MONTE, 2014; AZEVEDO, 2011).
6 Nesse sentido e pela óptica de somente pertencer ao sistema sancionatório o regime regulatório (i) formado a partir
de certas garantias materiais e processuais e (ii) caracterizado pela afeição à proteção de bens jurídicos, o que podemos
compreender como uma concepção estrita da definição do conceito de sistema sancionatório, Mário Ferreira Monte ensina
que “uma coisa seria falar do ilícito administrativo tout court, de uma violação das normas do direito administrativo,
com as consequências próprias deste ramo do direito, ou seja, de uma autotutela da função administrativa . Ao
dizer isto, partimos do pressuposto de que existe na ordem jurídica portuguesa um tipo de ilícito administrativo
não contraordenacional, ou seja, aquele que corresponderia a um ‘facto ilícito tipificado numa norma jurídico-
administrativa’, ao qual se aplique uma sanção que não seja a coima, podendo ser, inclusivamente e por estranho
que possa parecer, a multa. E se bem se afirma que não existem diferenças materiais entre o ilícito administrativo
e o ilícito de mera ordenação social, a verdade é que o legislador é quem vem a fazer essa distinção, melhor, é quem
opta por um ou por outro, quando utiliza ou não a coima como sanção para o ilícito típico. Outra coisa diferente,
no entanto, seria subsumir o ilícito de mera ordenação aos princípios e critérios do direito administrativo. Não
se pense que as consequências da realização de um comportamento subsumível a um ilícito administrativo ou a
um ilícito contraordenacional são as mesmas. Desde o facto de um seguir as normas do Código de Procedimento
Administrativo e o outro o processo contraordenacional, passando pelo facto de o recurso das decisões em matéria
de ilícito administrativo caber para os tribunais administrativos ao passo que o de matéria contraordenacional
cabe para os tribunais comuns, em regra, muitas são as diferenças práticas entre os dois. (...) Importa, no entanto,
sublinhar que estas vantagens são aparentes. Quanto mais próximo do sistema penal, obviamente que maiores são
as garantias processuais. Algumas, que são apresentadas como vantagens, esquecem outros aspectos que não são
menos relevantes. (...) Dito isto, no entanto, compreende-se que não possa aceitar-se qualquer tentativa de subjugar
o direito das contraordenações aos quadros do direito administrativo e de atribuir o poder de julgar as decisões em
sede de impugnação contraordenacional aos tribunais administrativos. E, por sobre tudo, pelo que acaba de dizer-
se, discorda-se frontalmente que não se veja entre os dois ilícitos ‘diferenças substanciais’. Este é o verdadeiro
problema. É que o ilícito de mera ordenação social, já ficou dito, tem como função tutelar bens jurídicos,
não penais – ou não carentes de pena –, é certo, enquanto que o ilícito administrativo tem essencialmente
uma função de autotutela da atividade administrativa. Não compreender isto é que inquina todo o raciocínio.
A diferença entre uma função e outra é significativa. Tão grande que justifica que o direito subsidiário do direito
contraordenacional deva ser o direito e processo penal e não o direito administrativo. E de tal modo que os tribunais
competentes para apreciar as impugnações judiciais em matéria contraordenacional devam ser os comuns e não
os administrativos. Entre outras razões, salta de imediato uma: a matéria em causa não é administrativa, senão
sancionatória. (Sem grifos no original) (MONTE, 2014, p.31-38).
7 Mormente em face da ausência de uma jurisdição contenciosa administrativa brasileira, a nossa concepção de
sistema sancionatório é a de caráter amplo, sistema sancionador em sentido lato, de modo a não restringir o conceito
à (a) necessidade de proteção de bens jurídicos, passíveis ou não de aplicação de uma pena criminal, e ou de (b) ele
ser ou não dotado de certas garantias, materiais ou processuais, fundamentais aos administrados. Com efeito,
incluem-se todas as espécies de ilícitos submetidos ao regime jurídico de direito público.
8 Lei 58/2008, de 09 de setembro, revogado pela Lei 35/2014, de 20 de junho.
9 Lei 7/2009, de 12 de fevereiro, cuja última alteração foi efetivada pela Lei 28/2016, de 23 de agosto.
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Os ilícitos disciplinares, sejam submetidos ao regime jurídico de direito público ou ao
regime jurídico de direito privado, são previstos em lei para a proteção de deveres funcionais
(esta é, em Portugal, a clássica função do ilícito disciplinar: a proteção de deveres funcionais)
(DIAS, 2013, p.69 e ss.; SILVA, 2010; CARVALHO, 2014; e COELHO; COUTINHO, 1949, p.38
e ss.)
10
e, destarte, os infratores são submetidos a penas disciplinares em caso de descum-
primento desses deveres.
O ilícito contraordenacional (ii), por seu turno, previsto – principalmente, mas sem
se descurar de outros diplomas especiais – no Regime das Contraordenações (RGCO –
Decreto-Lei 433/82, de 27 de outubro), encerra infração de caráter nomeadamente público,
em que se faz necessária a composição de ofensa a algum bem jurídico tutelado e a existên-
cia de específica proibição legal (esta, uma mera proibição, prevista em lei)
11
, cuja desobe-
diência submete o infrator ao que se denomina em Portugal de “coima”, espécie de sanção
pecuniária
12/13
.
À vista disso, para a caracterização de um ilícito contraordenacional, deve a norma
prescritiva se importar com bens jurídicos que não possuam dignidade penal e, do mesmo
modo, não sejam carecedores de pena criminal. O ilícito contraordenacional não possui a
função atribuída ao direito penal, em que se denota neste último a função de “tutela sub-
sidiária (ou de ultima ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal (de bens jurídico-
10 Coelho e Coutinho (1949, p.38 e 41) asseveram que, em razão disso, “resulta que o ilícito disciplinar é diferente
do ilícito penal, que as sanções disciplinares são diferentes das sanções criminais e podem ou não acumular-se
entre si”.
11 Como exemplo de ilícito de contraordenação e do seu trato pelo direito português, cf. Rodrigues (2009, p.575-
606).
12 Consoante já afirmado em nota alhures, insere-se nesse contexto a definição do conceito de “coima, como
espécie da sanção natural do regime jurídico das contraordenações, o que se presta a distinção formal entre
esta espécie de ilícito e o ilícito penal. “O RGCO opta por um critério formal de distinção entre o ilícito criminal
e o ilícito contra-ordenacional, assente na cominação de uma coima. As coimas aplicáveis são muitas vezes
consideravelmente mais graves do que as multas, admitindo mesmo o RGCO uma regra de adaptação do valor
da coima ao benefício retirado da conduta de infracção” (ALBUQUERQUE, 2011, p.27).
13 Do mesmo modo, alhures em nota referenciada, assinala Paulo Pinto de Albuquerque que “o direito de
mera ordenação social é um ramo do direito sancionatório público, com uma ‘conexão’ ao direito penal
e ao direito processual penal (acórdão do TC n.º 244/99). Esta ligação refere-se nos seguintes factos: (1) a
equiparação das garantias constitucionais da reserva de competência da AR e da retroatividade da declaração
de inconstitucionalidade (artigos 165.º,n.º 1, al.ª d) e 282.º, n.º 3, da CRP); (2) a aplicação subsidiária do direito
penal no RGCO (artigo 31.º), (3) a reprodução de regras de punição do direito penal no RGCO (artigos 1.º, a 6.º
e 8.º a 16.º), (4) a integração dos regimes das garantias do processo contra-ordenacional no mesmo preceito
constitucional das garantias do processo penal (artigo 32.º da CRP), (5) a aplicação subsidiária do direito processo
penal no RGCO (artigo 41.º, n.º 1), (6) o conhecimento das contra-ordenações no processo criminal, no caso de
concurso de contra-ordenações e crimes (artigo 38.º), (7) o reconhecimento às autoridades administrativas dos
direitos e deveres do MP durante a fase administrativa do processo contra-ordenacional (artigo 41.º, n.º 2), (8)
a incriminação da violação do segredo de justiça no processo contra-ordenacional nos termos que valem para
o processo criminal (artigo 371.º, do CP) e (9) a recorrebilidade da decisão administrativa final e das decisões
administrativas interlocutórias mais graves junto ao tribunal judicial e não do tribunal administrativo (artigo
55.º e 59.º)” (I ALBUQUERQUE, 2011, p.29).
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-penais); ou, o que é dizer o mesmo, de bens jurídicos cuja lesão se revela digna e necessitada de
pena” (DIAS, 2014, p.114).
Por outro lado, mister anotar que os ilícitos das contraordenações não se firmam como
um direito de mera bagatela penal. Não se encontram incluídos no campo protetivo do direito
penal e de suas normas direcionadas à tutela de bens jurídico-penais. Tampouco espécie do
gênero ilícito administrativo em sentido estrito. De uma e de outra destas espécies não se tratam
e possuem uma autonomia própria para a maioria da doutrina
14
, na medida em que tutelam
bens jurídicos, característica esta que não se opera diretamente para os ilícitos administra-
tivos estritos e, por outro lado, apesar de (a) possuírem dignidade penal a impor um afasta-
mento natural dos ilícitos administrativo estritos e uma aproximação dos ilícitos penais,
não necessitam de uma (b) sanção de caráter criminal, uma vez que não tutelam bens jurídicos
de natureza penal. Com efeito, “tem como função tutelar bens jurídicos, não penais – ou não
carentes de pena –, é certo, enquanto que o ilícito administrativo tem essencialmente uma
função de autotutela da atividade administrativa” (MONTE, 2014, p.37-38).
Anote-se, por oportuno e mais uma vez, que o ilícito administrativo em sentido estrito,
em que pese à sua previsão nas normas administrativas regulatórias do direito luso, não
pertence, especificamente, ao sistema sancionatório português, mas sim a um campo de
infrações, digamos, “anômalas”, dedicadas apenas à autotutela das funções administrati-
vas, cuja desobediência submete o autor da conduta a “multas administrativas” (MONTE,
2014). Grosso modo, é o que no Brasil seriam os ilícitos e as suas respectivas sanções decor-
rentes do poder de polícia administrativa.
Por outro lado, em Portugal, não se há que defender pertencerem tais classes de infra-
ção, as contraordenações, ao campo do direito penal, malgrado dedicarem-se à proteção, a
exemplo do direito penal, de bens jurídicos. Pelo que se expôs, a tendência dominante é a
14 Escreve Mário Ferreira Monte a dificuldade, para a maioria dos autores e para a legislação, de delineamento
da autonomia científica desta espécie de direito punitivo. Posiciona-se o autor, em “Lineamento de direitos
das contraordenações”, assumir “a pretensão de vincar a autonomia científica e pedagógica do direito das
contraordenações, que, no entanto, se alicerça na autonomia jurídica, de sentido e dogmática que assestamos a este
ramo do Direito. Se o fazemos ao longo do texto, não é só porque nos parece ser esse o melhor posicionamento.
É também porque continua a pairar uma certa confusão relativamente aos limites e à identidade deste ramo
do direito. Se, de um lado, a Constituição não tem dúvidas em “encostar” o ilícito de mera ordenação social
ao direito penal, tratando-o no âmbito das garantias criminais de nível constitucional, e o Regime Geral das
Contraordenações em declarar o direito penal e o direito processual penal como de aplicação subsidiária, de
outro lado, ouvem-se vozes que reivindicam o tratamento das questões contraordenacionais à luz do direito
administrativo e do procedimento administrativo, ao que se junta a recente e inusitada pretensão de levar para a
jurisdição dos tribunais administrativos algumas matérias contraordenacionais. Pode ler-se no Anteprojeto do Código
de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA): ‘optou-se por fazer ingressar na jurisdição administrativa (...)
as impugnações judiciais de decisões administrativas que apliquem coimas no âmbito dos ilícitos de mera
ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de ambiente, urbanismo,
ordenamento do território, patrimônio cultural e bens do Estado’” (MONTE, 2014, p.13-14).
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de que as contraordenações se afastam dos contornos definitórios do ilícito penal propria-
mente dito, para comporem uma classe autônoma de ilícito
15
.
O ilícito penal (iii), previsto no Código Penal português
16
e em legislações especiais, por
seu turno, possui a função subsidiária de proteção de bens jurídicos, na medida em que tais
bens dotam-se de dignidade penal e, disso, de necessidade de pena criminal quando ofendidos
(DIAS, 2014, p.114).
2. Os Ilícitos e as Suas Distinções Epistemológicas Concretas entre Brasil
ePortugal
No sistema sancionatório brasileiro, o que se denomina em Portugal de “ilícito disciplinar
do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Função Pública” (Lei 58/2008, de
09 de setembro, revogada pela Lei 35/2014, de 20 de junho), classifica-se no Brasil como
“ilícito administrativo disciplinar” – ou, simplesmente, ilícito disciplinar – (previsto, em
especial, para os servidores públicos federais do Brasil no Estatuto dos Servidores Públicos
Civis da União, Autarquias e Fundações e seguido, por simetria, pelos Estados, Distrito
Federal e Municípios)
17
, e, quando se quer referir ao que seria o similar ilícito disciplinar
privado, elencado no Código do Trabalho português (Lei 7/2009, de 12 de fevereiro, cuja
última alteração foi efetivada pela Lei 28/2016, de 23 de agosto), refere-se, no Brasil, ao ilícito
disciplinar privado (geralmente estipulado na Consolidação das Leis do Trabalho)
18/19
.
O que se denomina em Portugal de ilícito contraordenacional, ou ilícito das contraorde-
nações, ou, ainda de mera ordenação social, ingressa como espécie do gênero ilícito admi-
nistrativo em um sentido amplo, em sentido lato, do mesmo modo em que assim ingressa no
gênero o ilícito administrativo disciplinar. Destarte, no Brasil não há uma distinção entre
15 Mário Ferreira Monte aponta a tênue linha que divide essa classificação entre submeter-se ao entendimento de
tratar-se de ilícito penal, ou mesmo de ilícito administrativo em sentido estrito, ao esclarecer que “a questão da
delimitação do ilícito de mera ordenação social é, como se vê, da maior importância, num duplo sentido: primeiro,
no de que se impõe saber quando é que uma conduta é criminosa ou simplesmente contraordenacional – questão
dos limites tout court do direito das contraordenações, face ao direito penal, com o qual, por se tratar de direito
sancionatório, que deve aplicar-se subsidiariamente, partilha linhas de fronteira; depois, estando esta delimitação
feita, impõe-se qualificar o ilícito de mera ordenação social, para que também deste modo se saiba o que, embora
não sendo crime, pode ou não ser contraordenação, pode ou não ser outra realidade que não o ilícito de mera
ordenação social. Claro que a ordem poderia ser outra. Primeiro qualificar-se, para depois se delimitar. Mas parece-
nos que a aqui escolhida tem a vantagem de se partir do geral para o particular. Delimitar não exige uma qualificação
específica do ilícito, podendo, como veremos, usar-se critérios mais gerais. Ao passo que qualificar a conduta, mesmo
depois de delimitadas e distintas em geral, exige um trabalho de filigrana, mais apurado” (MONTE, 2014, p. 18).
16 Decreto-Lei 400/82, de 31 de maio, em vigor a partir de 1.º de janeiro de 1983.
17 Lei 8.112/90, de 11 de dezembro.
18 Decreto-Lei 5.4.52/43, de 1.º de maio.
19 No Brasil nada obsta a previsão de ilícitos disciplinares em relações estritamente primadas não trabalhistas,
a exemplo dos estatutos de condomínios prediais, dos estatutos de sócios de clubes esportivos, de recreio e de
outras atividades, desde que sejam lícitas.
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A relevância da epistemologia do ilícito para a proteção de bens jurídicos e a efetividade doprincípio ne bis in idem
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o que seria ilícito administrativo em sentido estrito e ilícito das contraordenações e sequer há
o uso dessa denominação, ou de qualquer regime regulatório distinto para ilícitos com
características a elas assemelhadas (as contravenções penais – o que mais se aproximaria
no Brasil ao ilícito contraordenacional português e é regida pela Lei 7.210, de julho de 1984,
Lei das Execuções Penais (LEP) –, no sistema brasileiro, submetem-se às regras do direito
penal e do direito processo penal, uma vez que, a exemplo do crime, compõe espécie do
gênero ilícito penal). O sistema alemão, com “o Ordnungswidrigkeitenrecht alemão, inspi-
rador do português” (MONTE, 2014, p.22) à migração dos ilícitos de contravenções para
os ilícitos contraordenacionais, com consequente e paulatina extinção daquela primeira
espécie (a contravenção), não se insere na realidade brasileira, que, ainda, mantém as con-
travenções como espécie de ilícito penal, malgrado quase em completo desuso
20
.
Essas infrações que em Portugal se encaixariam como contraordenacionais seriam –
se não tipificadas como contravenções penais e, com efeito, submetidas às regras penais e
processuais penais jurisdicionais – apenas mais uma espécie do gênero “ilícito adminis-
trativo”, que, por seu turno, também abarca o ilícito administrativo disciplinar, na quali-
dade de outra espécie.
Quanto à necessidade de os ilícitos administrativos brasileiros que seriam denomina-
dos em Portugal de infrações contraordenacionais, o mesmo padrão de exigência se afere,
qual seja a necessidade de bens jurídicos e a existência de uma proibição legal, mas, toda-
via, a sanção aplicada para o descumprimento da lei não se reporta a uma “coima”, mas sim
a uma sanção administrativa, desta natureza, também prevista em lei. Quanto aos ilícitos
administrativos disciplinares, estes seguem os mesmos exemplos do direito penal, apenas
a necessidade de proteção de bens jurídicos, na medida de possuírem dignidade ético-moral-
-disciplinar e necessidade de pena disciplinar.
Em referência ao direito penal, Brasil e Portugal, a par de pormenores de inexpressivos
e insignificantes efeitos, nada distinguem em suas teorias essenciais do delito. Ambos
compreendem o crime sob o manto de tratar-se de espécie de ilícito dotado de dignidade
penal que, por natureza do bem protegido – pela imporncia do bem jurídico tutelado
pela ordem normativo-penal –, atrai a aplicação de uma pena criminal. Por todo o exposto,
20 Como ressalta Mário Ferreira Monte, a distinção entre ilícito penal e ilícito contraordenacional é meramente
formal e, todavia, em Portugal e na Alemanha, alcançou-se um nível de distinção aceitável entre um e outro, o
que se operou, pensamos, por efeito ativo do princípio da ultima ratio do direito penal. Afirma o autor que “Se
em Portugal e na Alemanha, por exemplo, se alcançou um nível de distinção aceitável, desde logo formal, ao
definir-se claramente o que é contraordenação, com todo um regime que pode dizer-se autónomo – tanto do
direito penal quanto do direito administrativo –, expurgando-se as contravenções do ordenamento jurídico, em
outros países, porém, continua a não ser sequer pacífica a designação daquele tipo de infração. O que demonstra
a dificuldade que, em termos de direito comparado, esta matéria oferece” (MONTE, 2014, p.20).
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A relevância da epistemologia do ilícito para a proteção de bens jurídicos e a efetividade doprincípio ne bis in idem
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a presente investigação se dedica a explorar o que denominamos no Brasil ilícito adminis-
trativo disciplinar (esta é a expressão conceitual utilizada no Brasil para o que em Portugal
se entende como ilícito disciplinar), que, na legislação portuguesa, reporta-se ao ilícito dis-
ciplinar do Estatuto Disciplinar da Função Pública.
Não nos deteremos ao estudo dos ilícitos disciplinares privados, assim como também não
nos deteremos ao estudo dos ilícitos contraordenacionais, ou mesmo dos ilícitos administra-
tivos em sentido estrito (estes dois últimos, os contraordenacionais e os administrativos em
sentido estrito, no Brasil, mesclam-se em uma só categoria, a do ilícito administrativo, pas-
vel de sanção administrativa(OSÓRIO, 205)). Deter-nos-emos, tão somente, à investigação
do ilícito disciplinar submetido ao regime administrativo de caráter público em confronto com o
ilícito penal, o que não impede inferências e incursões, vez ou outra, a conceitos e nuances
das demais espécies de ilícitos.
Sob esse esboço, traçamos as diretrizes, em linhas gerais, do direito sancionador público e
privado brasileiro, compreendido como um direito punitivo geral, subdividido nas espécies
proibitivas: (i) ilícito penal; (ii) ilícito disciplinar: (ii.a) ilícito administrativo disciplinar; (ii.b) ilícito
disciplinar privado; (iii) ilícito administrativo propriamente dito (em sentido estricto).
O fluxograma a seguir, em breve síntese e, assim, sem qualquer pretensão exauriente,
posto não ser este o objeto investigativo, delineia o sistema sancionador português e o sistema
sancionador brasileiro, certo de que apenas é objeto desta tese, para a alise da aplicação
ou não do princípio ne bis in idem, as relações ente os bens jurídicos (e aqui, referimo-nos à
extensão desses bens submetidos à proteção, como objetos jurídicos normativos) protegidos
pelo ilícito penal e pelo ilícito disciplinar, sob a óptica do modelo brasileiro, independente
de se tratar de bem jurídico dotado ou não de dignidade penal, bastando o papel da tipici-
dade de um e de outro ramo do direito sancionador, para a eleição do adequado valor a ser
protegido.
a. Sistema Sancionador Português:
SISTEMA
SANSIONADOR
PORTUGUÊS
ILÍCITO
DISCIPLINAR
ILÍCITO
DISCIPLINAR
BLICO
v.g. EDTFP
ILÍCITO
DISCIPLINAR
PRIVADO
v.g. CTp
ILÍCITO
CONTRAORDENACIONAL
ILÍCITO PENAL
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A relevância da epistemologia do ilícito para a proteção de bens jurídicos e a efetividade doprincípio ne bis in idem
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Sistema Sancionador Brasileiro:
SISTEMA
SANSIONADOR
BRASILEIRO
ILÍCITO
DISCIPLINAR
ILÍCITO
ADMINISTRATIVO
DISCIPLINAR
(PÚBLICO)
v.g. EGFb
ILÍCITO
DISCIPLINAR
PRIVADO
v.g. CLT
ILÍCITO ADMINISTRATIVO
DE CARÁTER GERAL
ILÍCITO PENAL
O que se reportou no quadro anterior compreende uma visão resumida do sistema
brasileiro, que comporta – assim como também comporta o sistema sancionador portu-
guês – deslindes detalhados de rol de infrações aos seus diversos sistemas sancionadores.
Em uma acepção mais detalhada do Sistema Sancionador Brasileiro – o que não o fare-
mos para o sistema sancionador português –, pode-se perceber a sua (i) face não jurisdicio-
nal, não submetida a um “contencioso administrativo”, mas tão somente à juridicidade da
Administração Pública, e uma (ii) face jurisdicional, para uma ou outra espécie de ilícitos,
a saber, os (ii.a) ilícitos penais e os (ii.b) ilícitos civis por atos de improbidade administrativa.
Com isso, a par do ilícito penal a encontrar-se em um patamar jurisdicional, inserem-
-se, porém em sede de jurisdição não penal e sim cível, os atos de improbidade adminis-
trativa, regidos pela Lei de Improbidade Administrativa, Lei 8.429/92, cujo conteúdo de
suas proibições compreende espécie de ilícito civil-administrativo, como dito, de caráter
processual jurisdicional.
Sem embargo, em razão do objeto de nossa investigação, não nos deteremos à aná-
lise de seu conteúdo pormenorizado, pois uma alise mais detida fugiria aos propósitos
desta abordagem. Entretanto, apenas os apontamos com escopo ilustrativo para dizer que,
pensamos, tratarem-se de verdadeiros ilícitos administrativos disciplinares na essência,
porém, por diferencial, submetidos a uma espécie de contencioso administrativo “à bra-
sileira”:
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SISTEMA
SANSIONADOR
BRASILEIRO
Não Jurisdicional,
mas de jurisdição
provocável
a qualquer
tempo, por ação
autônoma.
Ilícito
Administrativo
Lato Sensu
Ilícito
Administrativo
Disciplinar
Ilícito
Administrativo
Disciplinar
Estatutário
CLT
LEP
EGFb
Ilícito
Administrativo
Disciplinar
Penal (Direito
Disciplinar
Penitenciário)
Ilícito
Administrativo
Stricto Sensu
Ilícito Disciplinar
Privado
Agentes da
Administração
blicas
Submetidos a
Regime Jurídico
Privado
Agentes da
Administração
blicas
Submetidos a
Regime Jurídico
Público
Jurisdição
Civil
Atos de
Improbidade
Administrativa (LIA)
Jurisdicional
Penal
Ilícito Penal
Crime
Contravenção Penal
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i. Sistema Sancionador Brasileiro sob a harmoniosa validade do ne bis in idem, pela
óptica de bens jurídicos não afetados por sobreposições legais protetivo-independentes
21
,
entre ilícitos penais e ilícitos administrativos disciplinares:
SISTEMA
SANSIONADOR
BRASILEIRO
ILÍCITO
DISCIPLINAR
ILÍCITO
ADMINISTRATIVO
DISCIPLINAR
(PÚBLICO)
EGFb
ILÍCITO
DISCIPLINAR
PRIVADO
CLT
ILÍCITO ADMINISTRATIVO
DE CARÁTER GERAL
ILÍCITO PENAL
ii. Se há distinção de bens jurídicos protegidos (ou, apesar de se tratar do mesmo bem
jurídico, porém com distinção do nível de sua afetação protetiva), há deferência ao
princípio ne bis in idem:
21 Entendemos por sobreposições legais protetivo-independentes a ocorrência de mais de uma norma vigente de direito
sancionador, direcionada à tutela de um mesmo bem jurídico e de seu nível de afetação, a possibilitar duas ou
mais punições autônomas em razão de um mesmo fato; ao passo que, por sobreposições legais protetivo-concorrentes,
a ocorrência de mais de uma norma vigente de direito sancionador, direcionadas à tutela de um mesmo bem
jurídico e de seu nível de afetação, porém, caracterizadas pelo fato de que a primeira dotada de efetividade ou
de eficácia social exclui a segunda e eventuais outras normas de mesma característica, de modo a obstar outros
processos sancionadores e punições decorrentes – efeito de controle do jus persequendi e do jus puniendi estatal.
ILÍCITO PENAL
ILÍCITO ADMINISTRATIVO
DISCIPLINAR
BENS JURÍDICOS
DE INTERRESSE
EXCLUSIVAMENTE
DISCIPLINAR
DISTINÇÃO DE
BENS JURÍDICOS
OU DISTINÇÃO
DE AFETAÇÃO
DO MESMO BEM
JURÍDICO
DEFERÊNCIA AO
PRINCÍPIO NE BIS
IN IDEM
BENS JURÍDICOS
DE INTERRESSE
EXCLUSIVAMENTE
CRIMINAL
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iii. Se há identidade de bens jurídicos protegidos (consideram-se aqui, cumulativa-
mente, o mesmo bem jurídico e o mesmo nível de sua afetação – sobreposições legais
protetivo-independentes), há ofensa ao princípio ne bis in idem:
II. A Relação entre a Proteção de Bens Jurídicos (ou a Proteção a Deveres
Funcionais) e a Proibição de mais de uma Norma Punitiva para o Mesmo
Fato
Por oportuno, poderíamos, por bem, aceitar o que entende a doutrina pacífica portuguesa
de que os ilícitos disciplinares protegem deveres funcionais e os ilícitos penais defendem,
originariamente, bens jurídicos (DIAS, 2014; GERMANO, 2010; CARVALHO, 2014) e, em
atividade anômala, determinadas prescrições de crime possam vir a estipular, inadverti-
damente por obra de superficial debate legislativo, em seu plexo de tipicidade, tão somente
deveres funcionais, erigidos indevidamente, assim, a proteção penal (a exemplo do que
alguns sustentam em alguns crimes contra o sistema tributário ou ao sistema ambien-
tal, em que não se estaria diante de verdadeiras proteções de bens jurídicos, mas de, tão
somente, deveres funcionais); e, dessarte, também reconhecermos a incidência de bis in
idem, ou seja, de dupla punição ilegal, em razão de um mesmo fato jurídico, mas não em
face de um mesmo bem jurídico concorrentemente protegido, e sim de um mesmo dever
funcional tutelado, simultaneamente, pelo penal e pelo direito disciplinar. Diríamos: uma
tipificação de ilícito penal e uma tipificação de ilícito disciplinar a defenderem, concomi-
tantemente, um mesmo dever funcional também é caso de ofensa, em abstrato, ao princípio
ne bis in idem.
ILÍCITO PENAL
ILÍCITO ADMINISTRATIVO
DISCIPLINAR
BENS JURÍDICOS
DISCIPLINARES
IDENTIDADE DE
BENS JURÍDICOS
E IDENTIDADE
DE AFETAÇÃO
DESSES MESMOS
BENS JURÍDICOS
OFENSA AO
PRINCÍPIO NE BIS
IN IDEM
BENS JURÍDICOS
CRIMINAIS
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Poderíamos, assim, alegar a ocorrência de bis in idem em razão de proteções concomi-
tantes de um mesmo dever funcional, tipificado como objeto de proteção penal e disciplinar,
(i) em abstrato, em razão de meras previsões legais, e, outrossim, também (ii) em concreto, à
vista de (ii.a) mais de um processo sancionador em curso – um processual penal e outro
processual disciplinar – ou em face de (ii.b) nova aplicação de sanção decorrente de um
desses processos jurídicos.
Mas não é o caso, uma vez que sustentamos que os ilícitos disciplinares, a exemplo dos
ilícitos penais, na origem teleológica, devem defender bens jurídicos relevantes para cada
esfera epistemológica do direito sancionador público.
Não se trataria de defesa de deveres funcionais, mas sim, pela natureza punitiva per-
sonificada da seara penal e da seara disciplinar, de coerção indireta à inalterabilidade de
determinados bens juridicamente escolhidos como relevantes para o funcionamento
social e corporativo. Nesse momento é que se concebe a “funcionalidade” do corpo social
ou institucional como um dever funcional reflexo abrangido pela proteção do próprio bem
jurídico que o envolve.
A equivocada eleição de deveres funcionais dedicada à proteção por tipos penais não
compreende objeto da presente pesquisa e, do mesmo modo, não muda a relevância de
reconhecimento de haver, nas balizas de tipicidades penal e disciplinar, bens jurídicos dig-
nos de proteção ora penal, ora disciplinar, e, com efeito, carentes, ora de penas criminais
e ora de penas disciplinares, a depender da necessidade epistemológica de proteção: (i) a
proteção geral, subsidiária e afeta ao direito penal; e (ii) a proteção disciplinar, que perfaz
incidência local, setorial, afeta às instituições públicas, mesmo assim dedicadas à proteção
social indireta.
Para os que reconhecem a existência de proteção, em alguns casos, de deveres fun-
cionais em tipos penais (e não, necessariamente e por equívoco, de bens jurídicos dota-
dos de dignidade penal) – o que nada influi na concepção de mais de uma punição
pelo mesmo fato à luz de um sistema sancionador em sentido lato –, o fluxograma a
seguir ilustra a ofensa ao princípio ne bis in idem, mas, como advertimos, não é o caso
da presente investigação. Apontamo-la apenas de forma a demonstrar que a questão
não nos passou despercebida e, assim, para afirmar que, independentemente de se
tratarem de bens jurídicos ou de deveres funcionais, a invalidade persiste, como punição
plural ofensiva do princípio referenciado. Nesses moldes, o fluxograma a seguir ilus-
tra o que dizemos.
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iv. Se se tratasse de identidade de “deveres funcionais” protegidos (consideram-se tam-
bém aqui, cumulativamente, o mesmo dever funcional e o mesmo nível de sua afe-
tação), haveria ofensa ao princípio ne bis in idem:
O que queremos com isso dizer é que não importa se o direito penal e o direito adminis-
trativo disciplinar protegem bens jurídicos ou deveres funcionais, conquanto, a haver iden-
tidade de objetos jurídicos tutelados (bens jurídicos penais ou deveres funcionais) (PRADO,
2015; SILVA, 2013, p.64-65; OLIVEIRA, 2010)) puníveis ou punidos em decorrência de um
mesmo fato base, haver-se-á de falar em ofensa ao princípio ne bis in idem e, à vista dessa
constatação, o dever de os órgãos encarregados das decisões administrativas e jurisdicio-
nais reconhecerem a legalidade dessa atuação estatal.
Há de se verificar, pela mirada que se ora delineia, a razão jurídica arrimada na con-
cepção de que o princípio ne bis in idem deve incidir, com os seus efeitos obstativos de uma
segunda sanção ou de um segundo processo, a partir da premissa de (i) considerar-se o fato
identificado como uno, do fato-base a servir de hipótese de incidência das normas sanciona-
doras, e não de (ii) considerar-se a espécie de sanção, a sua natureza jurídico-punitiva.
Em que pese a toda essa amplitude de viabilidades de incidência do ne bis in idem e de
possibilidades de investigações variadas sobre os seus aspectos, advertimos que, nos dete-
remos aos limites da defesa da perspectiva fática e constatável de sobreposições legais prote-
tivo-independentes de bens jurídicos entre o ilícito penal e o ilícito disciplinar, cuja facticidade,
in concreto, deveras, não se apresenta com o caráter de viabilidade jurídico-constitucional,
de modo a considerar inconstitucional mais de uma punição pelo mesmo fato gerador do
processo e da sanção, por ofensa ao princípio ne bis in idem.
A seguir, em síntese do que se ora expôs, apresentamos um breve quadro, com vistas a
retratar um panorama geral do sistema sancionador português e do sistema sancionador bra-
sileiro. Porta-se, assim, a incluir os tipos de ilícitos de um e de outro, assim como as suas
ILÍCITO PENAL
ILÍCITO ADMINISTRATIVO
DISCIPLINAR
SUPOSTOS “DEVERES
FUNCIONAIS”
DISCIPLINARES
IDENTIDADE
DE DEVERES
FUNCIONAIS
E IDENTIDADE
DE AFETAÇÃO
DESSES MESMOS
DEVERES
FUNCIONAIS
OFENSA AO
PRINCÍPIO NE BIS
IN IDEM
SUPOSTOS “DEVERES
FUNCIONAIS” CRIMINAIS
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principais características afetas ao regime jurídico a que se submetem
22
e, ainda, a prová-
vel correspondência tipológica comparativa entre os ilícitos desses dois sistemas.
Acautelamo-nos, porém, que se trata de uma análise sem qualquer pretensão exau-
riente, firmada apenas para situar o nosso objeto de investigação, qual seja, o ilícito admi-
nistrativo disciplinar em concorrência punitiva com o ilícito penal.
Tabela de visão geral dos Sistemas Sancionadores de Portugal e do Brasil:
COMPARAÇÃO ENTRE OS SISTEMAS SANSIONADORES BRASILEIRO E PORTUGS
SISTEMA DE DIREITO SANCIONADOR
SISTEMA SANCIONADOR
PORTUGAL BRASIL
TIPOLOGIA SAÃO TIPOLOGIA SAÃO
1.ILÍCITO
DISCIPLINAR
• ILÍCITOS DISCIPLINARES
PÚBLICOS.
(Possuem regime jurídico
de direito público e,
especialmente, estão
previstos no Estatuto
dos Funcionários
Trabalhadores da Função
Pública).
Sanções
Administrativas
Disciplinares (Penas
não criminais).
• ILÍCITOS ADMINISTRATIVOS
DISCIPLINARES, OU, ICITOS
DISCIPLINARES.
(Possuem regime jurídico de
direito público e, em sua maior
parte, no geral, no EGFb).
Sanções
Administrativas
Disciplinares
(Penas não
criminais).
• ILÍCITOS DISCIPLINARES
PRIVADOS.
(Possuem regime jurídico
de direito privado,
especialmente previstos no
Código do Trabalho).
Sanções Trabalhistas
Privadas.
• ILÍCITOS TRABALHISTAS.
(Possuem regime jurídico de
direito privado e, no geral,
encontram‑se previstos na
CLT).
Sanções
Trabalhistas
Privadas.
• ILÍCITOS DISCIPLINARES
VEIS
(Possuem regime jurídico de
direito privado e previsto no
Código Civil e Legislações Civis
Especiais).
Sanções Cíveis
(do Código Civil
e de Leis Civis
Especiais).
2. ILÍCITO DAS CONTRAORDENAÇÕES Coimas • ILÍCITOS ADMINISTRATIVOS.
(Possuem regime jurídico
de direito público e
estão previstos em Leis
Administrativas Esparsas).
Sanções
Administrativas
(Multas e
outras sanções
administrativas).
3. ICITO ADMINISTRATIVO TOUTCOURT Sanções
Administrativas
(Multas)
3. ICITO PENAL • CRIMES OU DELITOS Penas de
Natureza Criminal,
incluindo‑se a Multa
Criminal.
• CRIMES OU DELITOS
(Possuem regime jurídico
de direito público e estão
previstos no Código Penal
brasileiro e em Leis Penais
Especiais).
• CONTRAVENÇÕES PENAIS
(Possuem regime jurídico
de direito público e estão
previstas na LCP).
Penas de
Natureza
Criminal, a
abarcar a Multa
Criminal.
Tabela 1: comparação entre o sistema sancionador português e o sistema sancionador
brasileiro.
O fato é que, para todo o cerne da pesquisa, defendemos a identidade ontológica entre,
e.g., os ilícitos penal e disciplinar, na medida em que o que acima se exs serviu para
um início dessa demonstração. Nesse mesmo sentido são as afirmações de Llobregat, a
concluir a existência de identidade substancial para o fenômeno sancionador penal e adminis-
22 Todavia, esse panorama elaborado, por razões de corte metodológico (visto que não se trata de objeto da
tese em si), não adentrará ao fato e às características de que em Portugal vigora no sistema o contencioso
administrativo – o que, deveras, caracteriza-o como sistema jurisdicional ab initio da relação jurídica
formada entre o particular e o Estado –, ao passo que, no Brasil, ainda se contempla uma fase estanque de
juridicidade administrativa, não jurisdicional, carente dessa atuação, mas, por oportuno, com possibilidades
de intervenções jurisdicionais esporádicas, na medida em que sejam provocadas pelo direito de petição do
particular dotado de interesse jurídico.
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trativo, ocasião em que sustenta que “si de todo lo expuesto hata ahora pudiera extraerse
alguna conclusión ésta sería, sin a Duda alguna, la constatación de la homogeneidad onto-
lógica de las distintas vertientes del Derecho Sancionador” (LLOBREGAT, 2012, p.55). Por
exemplo, muito se debate em Portugal acerca da autonomia material do ilícito contraorde-
nacional frente ao direito penal e se assinala que há essa autonomia, uma vez que o ilícito
contraordenacional é ético-socialmente indiferente: a sua conduta, por si só, corresponde a
um indiferente ético-social, que depende de uma proibição legal para se apresentar etica-
mente relevante para o direito; ou seja, os ilícitos contraordenacionais dependem do des-
valor contido na ilicitude, para ser relevante para o direito. Distintamente se afirma para
o direito penal, em que se entende que a própria conduta em si, independentemente da
ilicitude contida em uma norma proibitiva, um comportamento ético-socialmente relevante.
Nas palavras de Figueiredo Dias, para o direito das contraordenações, que depende de
uma proibição legal para criar a ilicitude, há uma conduta “axiologico-socialmente neu-
tra”, ao passo que para o direito penal, há uma conduta “axiológico-socialmente relevante”
(DIAS, 2014, p.161 e 162).
A distinção material entre os ilícitos penais e os ilícitos contraordenacionais, para
Figueiredo Dias, opera-se nessas balizas de reprovação ético-moral de condutas, indepen-
dentemente de prescrição legal que introduza a concepção de ilicitude, para o direito penal,
e da necessidade de proibição legal criadora da ilicitude para as condutas de natureza con-
traordenacional. A essência da distinção encontra-se na base da inata reprovação social
de umas condutas e de outras não
23
. Para o direito penal a ilicitude seria natural, afeta à
própria concepção de conduta reprovada como crime, ao passo que os demais ilícitos e,
v.g., os ilícitos contraordenacionais estão a depender de uma proibição, prescrição proibitiva
prevista em lei, supridora formal dessa “contrariedade social”, a formalizar a ilicitude, que
para o direito penal seria natural.
Por outro lado, distintamente do que ocorre com os ilícitos contraordenacionais e os
ilícitos penais, para o direito administrativo disciplinar e o seu ilícito, não vislumbramos
essa distinção material entre este último, o disciplinar, e o ilícito penal. Entendemos haver
23 Assinala Figueiredo Dias que “necessário é que a perspectiva da ‘indiferença ético-social’ se dirija não
imediatamente aos ilícitos – que supõem já realizada a valoração legal –, mas às condutas que os integram.
Existem na verdade condutas às quais, antes e independentemente do desvalor da ilicitude, corresponde,
e condutas às quais não corresponde um mais amplo desvalor moral, cultural ou social. A conduta,
independentemente da sua proibição legal, é no primeiro caso axiológico-socialmente relevante, no segundo
caso axiológico-socialmente neutra. O que no direito de mera ordenação social é axiológico-socialmente
neutro não é o ilícito, mas a conduta em si mesma, divorciada da proibição legal; sem prejuízo de, uma vez conexo
com esta, ela passa a constituir substrato idóneo de um desvalor ético-social. É este o critério decisivo que está
na base do princípio normativo fundamentador da distinção material entre ilícito penal e ilícito de mera
ordenação social” (DIAS, 2014, p.161 e 162). (Grifos do original).
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uma reprovação “axiológico-socialmente relevante” também para os casos de condutas
disciplinares, as quais são, por essência, correspondentes também, a exemplo do direito
penal, a “um mais amplo desvalor moral, cultural ou social”, consoante afirma Figueiredo
Dias para o direito penal (DIAS, 2014, p.161-162).
O que difere, sob essa óptica, o direito penal do direito disciplinar é o campo de abran-
gência do primeiro, que possui um caráter geral e abstrato sobremaneira superior ao
campo de abrangência da norma disciplinar, restrita às relações especiais de sujeição,
afetas, no Brasil, aos servidores públicos, e, em Portugal, aos trabalhadores que exercem
função pública. Esse também é o posicionamento de Figueiredo Dias, ao assinalar que
diferentemente do que sucede com o direito das contra-ordenações, os comportamentos
integrantes do ilícito disciplinar não podem dizer-se axiologicamente neutros, como
tão-pouco pode armar-se que o ilícito respectivo é aqui constituído pela proibição” (grifos
do original) (DIAS, 2014, p.168-169).
Com efeito, não por esse motivo teríamos uma distinção material e ontológica entre os
ilícitos penal e administrativo disciplinar.
Não obstante, Figueiredo Dias sustenta que a relação entre o agente público e o Estado
é firmada no princípio da lealdade administrativa, a se lhe assegurar, ao agente administra-
tivo, uma série de direitos decorrentes da profissão e, por outro lado, também uma série
de deveres que se lhe impõem no interesse da coletividade, da comunidade jurídica, cons-
tituindo-se, dessarte, antes de tudo, uma “relação de dever que serve o interesse público
em nome da integridade e da confiança” e os comportamentos que violem essa relação de
dever, relação especial de sujeição pública, passa a agredir a integridade e a confiança per-
tencentes ao serviço público e, assim, “comete, sob determinados pressupostos, um ilícito
disciplinar e torna-se passível de medidas (sanções) disciplinares” (DIAS, 2014, p.169).
Com base nessas premissas, Figueiredo Dias assinala a distinção entre o ilícito disci-
plinar e o ilícito penal, na medida em que aquele trata de um ilícito interno, interna corporis,
“exclusivamente virado para o serviço” (DIAS, 2014, p.169), ao passo que o ilícito penal
trata de ilícitos abrangentes, extramuros do serviço público. Sem embargo, ainda assim
consideramos a ausência de distinção ontológica entre essas duas espécies de ilícitos, o
penal e o disciplinar.
III. Considerações Finais
Em conclusão, imprescindível apontar que, apesar das possíveis e variáveis classificações
epistemológicas para a concepção de ilícitos entre ordens normativas punitivas diversas,
a exemplo do que se ora pesquisou nas experiências entre Brasil e Portugal, há de se ter
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assente a existência de um núcleo intangível, ontológico, entre as variações de prescri-
ções proibitivas, que se firmam, necessariamente, nas espécies de objetos protegidos pelas
diversos ramos do direito sancionador, público ou privado.
A concepção de bem jurídico naturalmente adequado à proteção normativa de cada
ramo epistemológico, de acordo com sua essência finalística, faz-se primordial, por obra
do legislador e, sem embargo, em juízo de adequação, por obra do julgador, para dar, não
somente eficácia normativa, mas, sim, eficácia social a uma ordem punitiva estatal justa e,
exempli gratia, afastada de excessos sancionadores, sobressanções, a exemplo do bis in idem.
Para encerrar com uma ilustração afeta ao ilícito administrativo disciplinar, podemos
afirmar que não basta apenas o desinteresse do direito penal pelo fato (princípio da ultima
ratio e princípio da fragmentariedade penal), mas, sim, o interesse da Administração
Pública pelo fato rejeitado pelo ramo jurídico-criminal, a ponto de ele ir de encontro, ferir,
os interesses públicos relevantes para o Estado-administração. Com efeito, na hipótese de
desinteresse simultâneo, do direito penal e do direito disciplinar, por ausência de interesse
público sancionador em sentido amplo, mister reconhecer a atipicidade do fato em ambas
as searas sancionadoras – penal e administrativa disciplinar.
Nisso, ainda a título ilustrativo, há de se denotar que as tipificações da disciplina
interna do serviço público se relacionam primeiramente com o interesse público, não se
sujeitando, ao menos de forma direta, às razões de outros ramos do Direito.
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