GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 2 · 1
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Paridade e género: uma nova
igualdadenodesporto
Parity and gender: a new equality in sport
PATRÍCIA CARDOSO DIAS*1
padias@autonoma.pt
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
July Julho–31
ST
December Dezembro 2020 · pp. 95‑143
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.2.6
Submitted on September 22
th
, 2020 . Accepted on November 10
th
, 2020
Submetido em 22 de setembro, 2020 . Aceite a 10 de novembro, 2020
RESUMO: A organização das competições desportivas encontra-se subordinada a um
critério binário de género. Esta disposição é o reflexo heteronormativizado e hierarquizado
socialmente construído que, conforme se verá, encontra respaldo na discursividade
igualitária formal. A igualdade de género dita que se acautelem as diferenças que
caraterizam a espécie humana, por oposição a um modelo persecutório de neutralidade que
não assegura as diversas manifestações do exercício do direito fundamental à diferença
que, em bom rigor, é expressão do princípio da igualdade material. A discriminação
indireta que se infere do resultado eminentemente exclusivo e segregador das atletas
transgénero femininas e com diferenças no desenvolvimento sexual é premissa para uma
compreensão alargada do conceito de género e do papel fundamental que a paridade pode
significar na concretização da igualdade material no âmbito das competições desportivas
profissionais. A eliminação das categorias binárias desportivas, enformada pelo substrato
da paridade para uma real igualdade de género com recurso a um sistema de handicap para
determinação dos fatores relevantes em cada modalidade desportiva, é assim promotora
de uma justiça distributiva meritocrática no desporto, promovendo simultaneamente
a desconstrução misógina que subjaz ao padrão hetero birio socialmente instituído,
que responde à preocupação das atletas transgénero femininas e com diferenças no
desenvolvimento sexual apresentarem uma vantagem injusta em relação às atletas
cisgénero.
PALAVRASCHAVE: Género; Igualdade; Paridade; Transgénero.
* Mestre em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa “Luís de Camões”. Doutoranda em Direito na
Universidade Autónoma de Lisboa “Luís de Camões”.
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ABSTRACT: The organization of sports competitions is subject to a binary gender criterion.
This disposition is the heteronormatized and socially constructed hierarchical reflex that,
as will be seen, finds support in formal egalitarian discourse. Gender equality dictates
that the differences that characterize the human species be guarded against, as opposed
to a persecutory model of neutrality that does not ensure the various manifestations of the
exercise of the fundamental right to difference, which, strictly speaking, is an expression
of the principle of material equality. The indirect discrimination that can be inferred
from the eminently exclusive and segregating result of female transgender athletes and
with differences in sexual development is a premise for a broader understanding of the
concept of gender and the fundamental role that parity can play in the realization of
material equality in the context of competitions professional sports. The elimination of
binary sports categories, shaped by the substrate of parity for real gender equality using
a handicap system to determine the relevant factors in each sport, is thus promoting
meritocratic distributive justice in sport, while promoting deconstruction misogynist
that underlies the socially instituted hetero binary pattern, which responds to the concern
of female transgender athletes and with differences in sexual development, present an
unfair advantage over cisgender athletes.
KEYWORDS: Gender; Equality; Parity; Transgender.
INTRODUÇÃO
A solução que se encontrar para a inclusão das atletas transgénero e com diferenças no
desenvolvimento sexual nas competições desportivas irá definir nos enquanto sociedade.
Será, de igual forma, o reflexo do Estado Democrático de Direito que reputamos harmoni-
zado com o quadro multidimensional de proteção jurídica de direitos humanos.
O que carateriza a pessoa humana, na sua incomensurável diversidade, é a pertença
à espécie humana. A natureza intnseca da pessoa é a humanidade, é a pertença a esta
espécie que não admitirá, a breve ou mais extenso trecho, a sua subordinação categorizada
ou hierarquizada em todos os domínios fácticos em que se reflete o livre desenvolvimento
da personalidade humana. A pessoa é, per se, liberdade. O livre exercício desta não carece
pois de justificação. Justificadas terão de ser sim quaisquer restrições à projeção da pessoa.
Porque o sexo anatómico não determina a identidade pessoal, este tem assim de ser
entendido no quadro do direito à identidade de género. Semelhante correspondência
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encerraria a pessoa humana a uma dimensão morfológica que desconsideraria a infinita
diferença que ela própria encerra em si.
A emergência de um direito fundamental à diferença é, neste sentido, expressão da
igualdade material que desconhece a hegemonia heteronormativa hierarquizada. Esta
apenas é conhecida pelas construções sociais que a edificam e que são reproduzidas pela
ordem normativa objetiva.
A igualdade que se procura alcançar necessariamente terá de atender aos destinatá-
rios ilimitadamente diversos na sua existência e convivência, consigo próprios e com os
outros, atenta a natureza eminentemente social da pessoa, adensando-se a precisão de
preservação da diferença.
O princípio da igualdade percorreu um longo e tortuoso caminho que conduziu ao
reconhecimento da igualdade de género. Igualdade que ainda não se encontra verdadei-
ramente alcançada formal e materialmente, mas que convoca concomitantemente o reco-
nhecimento de um direito à diferença, que deve ser integrado em políticas de direito anti
discriminatório, e que necessariamente terá de adensar-se na sua matriz fundante de res-
peito social coletivo.
Compete ao Direito, em relação de reciprocidade com as demais áreas da ciência, con-
formar-se e acompanhar a evolução do conhecimento, oferecendo o seu manifesto contri-
buto para a desconstrução das identidades heteronormativas.
O Direito e os direitos são os mesmos para todas as pessoas, são assexuados. O impulso
legiferante em questões de género terá, assim, de criar ou recriar as condições necessárias
para o exercício dos mesmos considerando esta matriz fundante que é génese dos direitos
fundamentais da personalidade que, em bom rigor, são a razão de ser do Direito.
A concretização do princípio da dignidade da pessoa humana está assim intrinseca-
mente ligada aos mecanismos operativos do livre desenvolvimento da personalidade, do
qual é expoente no objeto de análise deste texto o direito à identidade e autodeterminação
de género.
O exercício concreto deste fundamental direito pode ter expressões materiais difusas,
entre as quais o exercício do direito ao desporto e ao exercício físico, designadamente,
no desporto profissional de competição que, em resultado eminentemente oposto ao que
seria o paradigma de justiça desportiva, se tem evidenciado segregador para as atletas
transgénero femininas e com diferenças no desenvolvimento sexual.
A proposta de reflexão subjacente ao texto é de eliminar as categorias de género biná-
rio nas competições desportivas, o que se impõe por força da própria tutela geral da perso-
nalidade, partindo da premissa de que a igualdade material de resultado é alcançada por
via da atualização da interpretação da paridade, resultante de uma sincrónica e diacrónica
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adequação ao conceito de género no quadro de proteção dos direitos humanos contempo-
neo.
Em ordem a alcançar o objetivo geral de justificar a eliminação das categorias binárias
de género na organização das competições desportivas, partimos da necessária compreen-
são da humanidade assexuada e da incompatibilidade com o poder de autodeterminação
que é a própria pessoa com a sua redução a um sexo pré-determinado e objetivo mera-
mente morfológico.
Resulta, para este efeito, ser necessário legitimar o direito fundamental à identidade e
autodeterminação pessoal de género, radicado do direito fundamental à diferença, à luz do
contributo transdisciplinar científico que enforma as criações normativo-jurídicas.
Neste desiderato, o princípio da igualdade e a sua concretização não poderá ser conci-
liado com a estigmatização, segregação e desigualdade em resultados práticos, pelo que a
igualdade formal e material não se poderá adstringir a instrumentos transitórios que não
considerem a perpetuidade da espécie humana assexuada e infinitamente diversa.
Convoca-se, assim, a paridade enquanto nova forma de igualdade para acautelar a
tutela diferenciada que urge ser reconhecida às atletas transgénero femininas e com dife-
renças no desenvolvimento sexual e que, concomitantemente, promoverá o desporto de
competição a sede de verdadeira justiça inclusiva, porquanto permitirá de igual forma a
elegibilidade de atletas de género não binário.
Na verdade, conforme se demonstrará, o tradicional argumento da testosterona, que
até ao presente tem consistido no “melhor” argumento de discriminação indireta, não
é aceitável à luz da sistemática dos direitos humanos fundamentais, porquanto não se
poderá admitir que um/a atleta apenas possa competir se estiver em igualdade condições
de perder a competição.
É a igual dignidade de todas as pessoas que determina que se reconheça a lotaria gené-
tica natural e o livre desenvolvimento da personalidade de género no desporto profissio-
nal de competição, que não se pode furtar, no âmbito de uma boa governança desportiva,
ao cumprimento integral do desiderato do primado da pessoa humana.
É esta a razão de ser do Direito: proteção da pessoa e criação de condições para que se
desenvolva livremente. Este paradigma poderá ser alcançado com a eliminação de catego-
rias nas competições desportivas com recurso a um proporcional sistema de handicap que
atenda às caraterísticas efetivamente relevantes para cada modalidade desportiva.
O modelo proposto poderá conduzir a que muitas competições, do ponto de vista do
resultado, sejam organizadas binariamente, mas já não será este o kick o de origem, admi-
tindo-se por esta via a participação de todo/as atletas de acordo com um modelo de merito-
cracia como impõe a própria verdade desportiva.
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A pessoa humana é muito mais que um corpo, é ser em devir, exige-se por isso ao
Direito a conformação normativa com a dimensão ética, ontológica e axiológica da pes-
soa. Um verdadeiro Estado Democrático de Direito não autocompraz com uma igualdade
meramente formal: a paridade é por isso uma das vias para a igualdade material nas ques-
tões de género.
1. Da (des)construção da identidade jurídica de sexo bio-anatómico ao
género: a crónica de uma humanidade sexuada
O Direito, enquanto ordem objetiva, é o meio de produção e reprodução das construções
sociais, é um fenómeno humano e social (daqui decorre o brocado latino ubi ius ibi societas)
1
.
Por conseguinte, o próprio Direito objetivo tem contribuído significativamente para a
construção das relações de género heteronormativas, orientadas pelo pressuposto de sexo
binário (feminino e masculino) que, tendencialmente, evidenciam uma assimetria social
entre o homem e a mulher.
É, por isso, particularmente relevante a definição da UNESCO quanto ao género: «Gen-
der roles and expectations are learned. They can change over time and they vary within
and between cultures. Systems of social differentiation such as political status, class, eth-
nicity, physical and mental disability, age and more, modify gender roles. The concept of
gender is vital because, applied to social analysis, it reveals how women’s subordination
(or mens domination) is socially constructed. As such, the subordination can be changed
or ended. It is not biologically predetermined nor is it fixed forever»
2
.
A valoração endereçada à diferenciação na construção da identidade jurídica feminina
e masculina promoveu a justificação clássica para o tratamento desigual das pessoas radi-
cado na sua diferença biológica e anatómica
3
4
5
.
1 ASCENSÃO, José de Oliveira – O Direito. Introdução e Teoria Geral. Coimbra: Almedina, 2008, pp.23-29.
2 UNESCO – Unesco’s Gender Mainstreaming Implementation Framework for 2002-2007 – Basic Definitions of
Key Concepts and Terms,p. 17.
3 Veja a este propósito a redação do art.º 1605.º do Código Civil, revogado recentemente pela Lei N.º 85/2019, de
3 de setembro, que considerava lícito à mulher contrair novas núpcias passados cento e oitenta dias apenas, e
se, obtivesse uma declaração judicial de que não se encontrava grávida ou que tivesse tido algum filho depois
da dissolução, declaração de nulidade ou anulação do casamento anterior; se os cônjuges estivessem separados
judicialmente de pessoas e bens e o casamento se dissolvesse por morte do marido, podia ainda a mulher celebrar
segundo casamento decorridos cento e oitenta dias sobre a data em que transitou em julgado a sentença de
separação, se obtivesse uma declaração judicial de que não se encontrasse grávida ou tivesse tido algum filho
depois daquela data.
4 BELEZA, Teresa Pizarro – Direito das Mulheres e da Igualdade Social. A Construção Jurídica das Relações de Género.
Coimbra: Edições Almedina, 2010, p.88.
5 Vera Lúcia Raposo identifica três etapas fundamentais na compreensão dos conceitos de igualdade e
desigualdade. Na primeira, relacionando-se a diferença com a desigualdade, operou-se uma verdadeira
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A heteronormatividade parte da premissa que homens e mulheres são intrinsecamente
diferentes, encontrando-se, todavia, subjacente a esta conceção a tradicional prevalência
do “homem” em relação à “mulher”, devendo esta adaptar-se às regras de regime criadas
sob a égide do padrão masculinizado
6
.
O paradigma igualitário, nas declarações que sobre o mesmo versam, fornecem arti-
ficialmente os termos de comparação da discursividade heteronormativa
7
se não se apre-
sentarem densificados por um critério de igualdade fáctica.
Em bom rigor, a discursividade igualitária formal das mais diversas áreas – v.g. jurí-
dica
8
, médica
9
, religiosa
10
– reforça a criação de identidades normativas birias, vislum-
brando-se a estigmatização, mais ou menos velada, face às diversas perceções sociais e
hierarquização valorativa entre seres superiores e inferiores, entendendo-se, rectius, as mulheres como seres
negativamente diferentes; na segunda, a igualdade relacionou-se com a identidade, passando a entender-se que
todos tinham direito a ser tratados como iguais na exata medida em que cumprissem os critérios da identidade,
realçando-se nesta fase as semelhanças entre as pessoas como forma de obstar às desigualdades suscitadas na
primeira etapa; na terceira etapa a diferença assume-se como um fator correlativo com a igualdade, assumindo-
se por princípio que todos gozam do direito a ser tratados de forma igual, proporcionalmente às suas diferenças,
de forma a promover a realização de cada necessidade pessoal. Cfr. RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade,
a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias; Económicas; Empresariais; Filosóficas; Históricas;
Políticas; Processuais. Coimbra: Edições Almedina, 2005,p. 572.
6 A hegemonia masculina no desporto, suportada por uma desigualdade socialmente construída, é em bom rigor
tolerada conforme resulta da recessão crítica a Sex Segregation in Sports: Why Separate is Not Equal. «(…) a wrester
[sic] in 2011 who refused to compete against a girl in a collegiate tournament; he did so purely based on her
sex. Their question was, why would a male wrestler be applauded for refusing to compete against a woman,
when would have been condemned for his choice were it based on race, sexual orientation, or nationality?».
SAPPENFIELD, Kourtney – Adrienne Miller and Jomills Braddock II: Sex Segregation in Sports: Why Separate is
Not Equal,p. 2479.
7 A igualdade de género é, assim, uma das prioridades globais da UNESCO, encontrando-se em curso o designado
UNESCO Priority Gender Equality Action Plan for 2014-2021, cuja construção e garantia da igualdade de género como
princípio de direitos humanos e fundamento da democracia, tem como objetivo o alcançar de uma igualdade
substantiva (na vertente jurídica e de facto).
8 A identidade jurídica de acordo com o sexo bio anatómico é atribuída à nascença, conforme resulta das disposições
conjugadas no n.º 1 do art.º 101.º – A (requisitos gerais) e alínea b) do n.º 1 do art.º 102.º (requisitos especiais), às
quais acresce a exigência prevista na alínea a) do n.º 2 do art.º 103.º (todos do Código do Registo Civil) em relação
à composição do nome próprio, que não deve suscitar dúvidas sobre o sexo do registando.
9 SCHWEND, Amets Suess – «Trans Health Care from a Despathologization and Human Rights Perspective».
In: Public Health Reviews. Vol. 41, N.º 3, (2020), pp.2-3; «No geral, os médicos e alunos de medicina assumem que
têm pouca ou nenhuma preparação no que concerne à abordagem em contexto clínico da orientação sexual e de
assuntos relacionados com a identidade de género. (…). O facto de nos movimentarmos numa sociedade hétero e
cisnormativa cria desigualdades importantes para todos aqueles que se sentem excluídos desta «normalidade».
No contexto clínico o tema é tanto mais importante quanto pode condicionar o grau de exposição e de confiança
do doente perante os profissionais de saúde, o que em última análise nos afasta de uma saúde centrada no doente
e nos coloca perante uma situação de não respeito pelo princípio da equidade.». Cfr. MACEDO, Ana – Identidade
de Género e Orientação Sexual na Prática Clínica. Lisboa: Edições Sílabo, 2018, pp.66 e 68.
10 Em 2019 o Vaticano publicou um documento da Congregação para a Educação Católica, cujo título é “Homem
e Mulher os Criou”, cuja matriz antropológica cristã conservadora apela, naturalmente, à manutenção adstrita
da identidade pessoal à diferença biológica entre masculino e feminino. Cfr. CONGREGAÇÃO para a Educação
Católica – Homem e Mulher os Criou.
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culturais da diferença (v.g. raça, etnia, religião, hábitos de vida) entre seres humanos em
relação à padronização do género feminino e masculino.
Com efeito, e não obstante a profícua promoção enquanto tarefa fundamental do
Estado
11
, o reforço da heteronormativização binária encontra imediatamente amparo nos
fundamentos constitucionais na prossecução da igualdade entre homens e mulheres.
A norma constitucional impõe, neste sentido, a eliminação de desigualdades formais e
materiais por via do impulso legislativo, o que apenas se alcança com a continua densi-
cação da igualdade de género enquanto vertente do princípio da igualdade.
Com Ana Macedo afirma-se que «Alargando este conceito podemos dizer que os
padrões heteronormativos transcendem a orientação sexual e são também cisnormati-
vos dado que incluem a identidade de género (cisgénero) e a definição binária de género,
mesmo nas sociedades que se assumem como tolerantes e abertas à diversidade, quer em
termos sociais quer em termos legais.»
12
.
A hegemonia heteronormativa comporta, assim, duas consequências imediatas: a pri-
meira, promove a discriminação por via da estigmatização daquilo que se afasta do padrão
socialmente normalizado; a segunda, reifica a reprodução cíclica de padrões normaliza-
dos, determinando um “esforço acrescido” de (aparente) tolerância para com caraterísticas
diferenciadas que não são incorporadas ab initio no desenvolvimento social e cultural da
pessoa humana
13
.
As declarações sobre a igualdade são, nestes termos, estranhas à perceção da diferença
constitutiva dessa mesma diferença, porquanto partem de uma homogeneidade binária
heteronormativa dirigida a destinatários innitamente diferentes
14
.
Com efeito, cremos que o “caminho a percorrer” pelo princípio da igualdade hodier-
namente, implicará abandonar o tradicional paradigma igualitário de neutralidade (que
atende particularmente ao que une as pessoas entre si e não ao que as separa), para se apro-
ximar de um paradigma diferenciado, preservando a diferença, rectius, por via da criação
de regimes jurídicos adequados à preservação das particularidades de cada ser humano.
Neste sentido, delineando uma política de direito anti discriminatório e visando sal-
vaguardar o direito à autodeterminação pessoal com o consequente reconhecimento dos
direitos dele decorrentes em relação às pessoas transgénero (tais como o reconhecimento
11 Alínea h) do n.º 1 do art.º 9.º da Constituição da República Portuguesa.
12 MACEDO, Ana – Identidade de Género e Orientação …, p.65.
13 «A heteronormatividade pressupõe uma visão do mundo na qual há padrões clássicos de feminino e masculino e
onde a orientação sexual de referência é a heterossexual, sendo a relação e tratamento das pessoas homossexuais
adaptado daquilo que é assumido para as pessoas heterossexuais.». Cfr. MACEDO, Ana – Identidade de Género e
Orientação …, p.. 65.
14 BELEZA, Teresa Pizarro – Direito das Mulheres e da Igualdade Social…, pp.90-91.
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da sua identidade de género e o direito a ser tratada e identificada de acordo com ela),
a Resolução 2048 do Conselho Europeu de 2015 recomendava que cada Estado Membro
ponderasse o desenvolvimento de procedimentos céleres e transparentes em relação ao
procedimento de mudança de menção de sexo e nome próprio no registo civil, a elimina-
ção de requisitos prévios quanto à esterilização ou quaisquer outros tratamentos médicos
de afirmação de género, diagnósticos de saúde mental ou a possibilidade de inclusão de
um terceiro género nos documentos de identificação daqueles que assim o desejassem
15
16
.
Não é, nestes termos, de estranhar que um direito fundamental à diferença venha a
ganhar expressão reforçada em alguns ordenamentos jurídicos, designadamente, no que
concerne ao direito à autodeterminação da identidade e expressão de género e do direito
à proteção das caraterísticas sexuais
17
que, com a inerente garantia jurídica, assegura que
a pessoa não abdique de o ser em liberdade e de se transformar naquilo que é ou naquilo
que vai sendo.
Nem todos os seres humanos, atendendo ao conhecimento científico de outras áreas,
são necessariamente homens e mulheres enquadrados em categorias objetivas e pré-de-
terminadas
18
, tratando-se de um fenómeno humano comum e culturalmente diverso.
Assinala-se assim o potencial e pertinência das normas, particularmente as consti-
tucionais, na construção da perceção coletiva da igualdade de género, assegurando um
direito à diferença, enquanto dimensões fundamentais do princípio da igualdade.
Na verdade, é a experiência histórica que demonstra que a proclamação e a consagra-
ção constitucional do princípio da igualdade dependem da realidade constitucional viven-
ciada em cada cultura cívica, pelo que a sua realização legislativa e aplicação prática pade-
cem das refrações decorrentes do âmbito social e valores pré adquiridos.
Daqui resulta a imporncia da precisão dos conceitos. Os conceitos, ainda que não
consolidados ou suscetíveis de reformulação, exercem a pertinente função de conduzir o
pensamento, indicando de igual forma a realidade social e valores que “observam” para a
sua construção.
15 CONSELHO Europeu – Recomendação 2048.
16 Na Nova Zelândia, nos casos em que não é possível determinar o sexo à nascença, o registo civil prevê a
possibilidade de inscrição com “sexo indeterminado”, sendo que em 2012 foi incluída a designação “X” nos
documentos de identificação de pessoas em processo de afirmação de género; na Austrália, desde 2003, é
possível a designação de género “X” para todas as pessoas adultas e não só para pessoas com sexo indeterminado;
na Alemanha, em 2017, o Tribunal Constitucional pronunciou-se quanto à existência de um terceiro género,
decidindo que o registo civil e a identidade civil apenas são expressão da identidade pessoal se coincidirem entre
si, pelo que o terceiro género é baseado na identidade pessoal e não no sexo biológico.
17 A título de exemplo, em Portugal, a LEI N.º 38/2018, de 7 de agosto, que estabelece o direito à autodeterminação
da identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das caraterísticas sexuais de cada pessoa.
18 Neste mesmo sentido a WORLD Professional Association for Transgender Health – Standarts of Care for the Health of
Transsexual, Transgender, and Gender-Nonconforming People, pp.4-5.
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2. Relevância do rigor terminológico: sexo, género, identidade de género,
transgénero
A igualdade, abstrata e concreta, não se tem alcançado da mera consagração constitucional
enquanto princípio, mas do equilíbrio que vem sendo encontrado entre a justiça concreta
e o direito à diferença que resultou reconhecido por via das lutas travadas pela igualdade
por aqueles que se encontravam (ou encontram) marginalizados.
Se, como refere Jorge Miranda, os direitos são os mesmos para todos, mas nem todos se
encontram em igualdade de condições para os exercer «(…) é preciso que essas condições
sejam criadas ou recriadas através da transformação da vida e das estruturas dentro das
quais as pessoas se movem»
19
.
A criação ou recriação destas condições, no desiderato da equidade para o exercício de
direitos que se prossegue na ponderação da (re)construção do género no desporto encon-
tra, necessariamente, a sua matriz fundante no rigor terminológico que se alcança trans-
disciplinarmente das ciências médica, ética, sociológica e jurídica.
É o complexo destas áreas do conhecimento que permitem o desenvolvimento da capa-
cidade individual e coletiva anti discriminatória
20
– conceito elástico e mutável, que varia
diacronicamente e sincronicamente – minorando-se a conhecida clivagem intolerante em
relação ao transgenismo.
O sexo, feminino e masculino, é o resultado expresso da observação dos órgãos sexuais
externos
21
(caraterísticas sexuais primárias). É definido de acordo com as caraterísticas
biológicas, anatómicas, genéticas e reprodutivas da pessoa. Neste sentido, regra geral, o
cariótipo consistente com o sexo feminino apresenta-se com a designação 46 XX e o mas-
culino 46 XY
22
.
19 MIRANDA, Jorge – Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. Direitos Fundamentais. 4.ª Edição. Coimbra: Coimbra
Editora, 2008, p.241.
20 O direito anti discriminatório é aplicável em diversas situações, como seja o ingresso em estabelecimento
de ensino ou no mercado de trabalho, relevando de igual forma neste domínio que particularmente nos
interessa agora analisar. Originariamente o conceito de discriminação significava distinguir ou diferenciar de
forma neutra. Hodiernamente é expressão de intolerância, associada a preconceitos e conotações pejorativas,
significando o discriminar uma diferenciação negativa. RAPOSO, Vera Lúcia – O Poder de Eva. O Princípio
da Igualdade no Âmbito dos Direitos Políticos; Problemas Suscitados pela Discriminação Positiva. Coimbra: Edições
Almedina, 2004, pp.. 291-299.
21 Seja no momento do nascimento, seja em momento anterior através dos meios de diagnóstico pré-natal.
22 HIRSCHBERG, Angelica Lindén – Female Hyperandrogenism and elite sports. Endocrine Connections Review.
P. 84-85; Contudo, existem composições cromossomáticas inferiores a 46, tais como as pessoas diagnosticadas
com a Síndrome de Turner, cuja variação consiste num cariótipo 45 XO, bem como composições superiores a 46,
como é o caso da Síndrome de Klinefelter em que o cariótipo é 47 XXY. Cfr. SCHULTZ, Jamie – «Caster Semenya
and the “Question of Too”: Sex Testing in Elite Womens Sport and the Issue of Advantage». In: Quest. N.º 63,
(2011), pp.230-231.
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A este propósito cumpre convocar as situações de diferenças no desenvolvimento
sexual (DDS)
23
, nas quais se enquadram as pessoas que apresentam variações na anatomia
das caraterísticas sexuais primárias e secundárias, inicialmente designadas hermafrodi-
tas, posteriormente intersexo
24
. As DDS compreendem assim atipicidades do sexo morfo-
lógico, bem como situações congénitas respeitantes ao desenvolvimento cromossómico e
das gónadas (ovários e testículos)
25
.
Se uma atipicidade da anatomia das caraterísticas sexuais pririas externas é rela-
tivamente apreensível, o mesmo não se poderá afirmar em relação às demais DDS cujas
variações podem consistir em alterações cromossómicas e hormonais.
Com efeito, algumas mulheres e homens nascem com diferenças no desenvolvimento
sexual, diagnóstico que tanto se pode verificar precocemente à nascença ou na infância,
como na adolescência ou durante a vida adulta. A forma de apresentação precoce resulta,
regra geral, de casos de ambiguidade genital, mas pode ser observada em apresentações
tardias variáveis
26
.
A DDS de desconformidade do fenótipo e de cariótipo masculino 46 XY de gónadas
não descendentes, mas funcionais, na correspondência com o sexo morfológico femi-
nino podem, assim, resultar de variações cromossomáticas e hormonais que determinam
um nível de produção endógena de testosterona idêntica à das pessoas com morfologia
humana masculina não diagnosticadas com DDS. Neste caso, se os recetores de andro-
génio forem funcionais, o desenvolvimento da massa muscular, da glândula maria, a
alteração da voz ou a distribuição da gordura corporal tornar-se-ão semelhantes aos veri-
23 Esta nomenclatura sucedeu a diversos termos que, além de pouco precisos cientificamente, socialmente
eram alvo de associações pejorativas, tais como pseudo-hermafroditas, sexo reverso, intersexo. Cfr. LEE, Peter
A., HOUK, Christopher P., AHMED, S. Faisal; [et. al.] – «Consensus Statement on Management of Intersex
Disorders. Pediatrics». In: Pediatrics. N.º 118, (2006), p.488. Inerente a todas as ciências é a evolução diacrónica
pelo que desde 2016 se tem vindo a discutir a adoção de um termo médico que reflita as sensibilidades das
pessoas com DDS, flexível para receber e conformar-se com os resultados dos estudos que se vão desenvolvendo
e que simultaneamente contribua para a consolidação do conhecimento científico nesta área. Cfr. LEE, Peter A.;
NORDENSTRÖM, Arlene; HOUK, P. Christopher P. – «Global Disorders of Sex Development Update since 2006:
Perceptions, Approach and Care». In: Hormone Research in Pediatrics. N.º 85/3, (2016), pp.159-160.
24 «Em termos de desenvolvimento sexual ao nível biológico a maioria das pessoas nasce com uma anatomia
e fisiologia típica de sexo feminino ou de sexo masculino. No entanto, cerca de 1% das pessoas nasce com
características atípicas, seja ao nível genético, ao nível dos órgãos sexuais ou do desenvolvimento das gónadas».
Cfr. MACEDO, Ana – Identidade de Género e Orientação …, pp.22 e 73; Em relação à especificidade das pessoas
intersexo a nível cromossomático, cfr. SAX, Leonard – «How Common is Intersex? A Response to Anne Fausto-
Sterling». In: The Journal of Sex Research. Vol. 39, N.º 3.
25 HIRSCHBERG, Angelica Lindén – «Female Hyperandrogenism and elite sports». In: Endocrine Connections
Review. N.º 9. (2020), p.83.
26 MACEDO, Ana – Identidade de Género e Orientação …, p.77.
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cados num corpo humano masculino, pese embora o fenótipo se identifique com o género
feminino
27
.
Outra tipologia de DDS a ser considerada é a provocada pela deficiência da enzima
5α-reductase do tipo 2, resultante de uma mutação cromossomática que não permite a
transformação da testosterona em di-hidrotestosterona. Neste caso, ainda que se verifique
a presença de gónadas não descendentes, bem como a produção de níveis de testosterona
comuns num corpo morfologicamente masculino sem DDS, atento o não desenvolvi-
mento do órgão sexual masculino por força da deficiência enzimática, a identificação tem
por referência o género feminino
28
.
Em ambos os casos de DDS, indivíduos morfologicamente femininos, revelam uma
virilização progressiva que pode ser mais ou menos acentuada.
Há ainda que considerar a síndrome de insensibilidade ao androgénio que pode ser
total (CAIS
29
) ou parcial (PAIS
30
). Esta é causada por uma mutação do gene recetor de
androgénio no cromossoma X, que determina em grau diverso a acentuação da viriliza-
ção nas pessoas com cromossoma XY. Nos casos de insensibilidade total, ainda que se
identifiquem gónadas não descendentes e níveis de testosterona considerados regulares
num corpo humano masculino médio, a ausência de resposta androgénica determina um
diminuto nível de virilização, identificando-se o indivíduo regularmente por referência ao
género feminino; já nos casos de insensibilidade parcial, o desenvolvimento do fenótipo
poderá variar, pelo que poder-se-ão observar indivíduos do género feminino mais mascu-
linizadas e indivíduos do género feminino mais efeminados
31
.
Os casos descritos não podem ser confundidos com situações de não conformidade de
género. Em bom rigor, o denominador comum que se encontra para a não conformidade
de género e as diferenças no desenvolvimento sexual é apenas a ausência de fatores exó-
genos.
27 HIRSCHBERG, Angelica Lindén – «Female Hyperandrogenism ...». In: Endocrine Connections Review, p.84.
28 HIRSCHBERG, Angelica Lindén – «Female Hyperandrogenism …». In: Endocrine Connections Review, pp.84-85;
Mutação cromossomática relevante é também a observel na ineptidão da conversão da androstenediona em
testosterona em resultado do défice apresentado na enzima 17β-hidroxisteroide desidrogenase do tipo 3. Nestes
casos a morfologia externa é variável, sendo que tipicamente estes indivíduos são cromossomaticamente XY,
mas apenas durante a puberdade, com a produção endógena mais acentuada de androgénio se processa a
progressão, ou não, da virilização, não obstante ser-lhes comumente atribuído o género feminino à nascença.
29 Síndrome de insensibilidade completa aos androgénios.
30 Síndrome de insensibilidade parcial aos androgénios.
31 Diagnosticada com esta condição médica foi a atleta espanhola María José Martínez-Patiño cuja anatomia
corporal, órgãos sexuais primários e identidade de género eram tipicamente femininas, mas que geneticamente
foi considerada um homem, porquanto o cariótipo cromossomático identificado foi 46XY. Cfr. SCHULTZ, Jamie
– «Caster Semenya and the “Question of Too”: Sex Testing in Elite Womens Sport and the Issue of Advantage»,
In: Quest, p.234; HIRSCHBERG, Angelica Lindén – «Female Hyperandrogenism …». In: Endocrine Connections
Review, p.84.
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As diferenças no desenvolvimento sexual definem-se como situações congénitas
nas quais o desenvolvimento cromossomático, das gónadas ou da anatomia morfológica
sexual é atípica.
A identidade de género corresponde ao género com o qual a pessoa se identifica, radi-
cando de uma vivência eminentemente interna e individual, e através da qual se expressa,
ou não, diariamente (expressão de género, por exemplo, através da roupa, do corte de
cabelo, dos desportos praticados, comportamentos)
32
33
.
Esclarecendo «A identidade de género é definida pelo sentimento próprio e subjetivo
relativamente a pretender um determinado género para si próprio (…). Em termos de iden-
tidade de género um indivíduo pode assumir-se como feminino ou masculino, no espe-
tro feminino ou no espetro masculino, ou genderqueer. As pessoas podem assumir uma
identidade de género indefinida, uma identidade que se sobrepõe ao género masculino e
feminino, uma identidade sem um género ou terem uma identidade de género fluida, que
se movimenta através do espetro do género, num contínuo entre o feminino e o masculi-
no»
34
35
36
37
.
32 O acrónimo LGBTQI integra uma diversidade de indivíduos e de manifestações de personalidade, incluindo
populações cuja identidade se baseia na orientação sexual e na identidade de género, compreendendo
atualmente as pessoas intersexo e gender queer.
33 «La cualidad de trans, que las/os diferencia de mujeres y varones cis, consiste en la falta de correspondência
entre el género autopercibido y el assignado conforme a la anatomia genital en el nacimiento (…). Para las/
os entrevistadas/os el género de una persona puede ser feminino o masculino, pero esto depende de la
autopercepción de cada individuo y no de la anatomia genital. La presencia de genitales que no se corresponden
com el género autopercibido, así como el haber realizado una transición desde el género assignado hacia el
autopercibido, sólo cualifican el género de un individuo como «trans»». Cf. GODOY, Gabriel César – «La
Identidad de Género Trans: Una Construcción Relacional y Contextualizada (San Luiz, Argentina, 2013-2015)».
In: Athenea Digital. ISSN 1578-8946. Vol. 19, N.º 3, (2019), p.10.
34 ««Gender has been described as a person’s internal sense of “gendered self” and place in the world. Gender
differs from physiological sex traits and is not defined by external genitalia. Rather, gender is a construct of an
individual’s own gender identity.». BASS, Megan; GOZALEZ, Luis J.; COLIP, Leslie; [et. al] – «Rethinking Gender:
The Nonbinary Approach». In: AM J Health-Syst Pharm. [sl]. Vol. 75, N.º 22, (2018), p.1821.
35 MACEDO, Ana – Identidade de Género e Orientação …, p.21.
36 Espectro de género é a classificação que considera que o género se estabelece num continuo entre feminino e
masculino, opondo-se à classificação binária, é comummente designada género fluido ou queergender; a pessoa
que se defina como não tendo género ou de género neutro designa-se agénero, tratando-se de uma forma de
identidade de género não binária; a disforia de género consiste no diagnóstico DSM-5 atribuído a pessoas
cuja identidade de género não corresponde ao sexo e género atribuídos à nascença provocando sofrimento
ou desconforto causado por aquela discordância. BASS, Megan; GOZALEZ, Luis J.; COLIP, Leslie; [et. al] –
«Rethinking Gender: The Nonbinary Approach». In: AM J Health-Syst Pharm. [sl]. Vol. 75, N.º 22, (2018), p.1821;
MACEDO, Ana – Identidade de Género e Orientação …, p.43.
37 Sustentando que a identidade de género transgénero consiste numa construção relacional, que requer um
trabalho consistente e permanente de auto perceção e que se encontra socioculturalmente condicionada,
por oposição à concetualização da identidade de género transgénero enquanto produção e processo volitivo
eminentemente pessoal, conferir GODOY, Gabriel César – «La Identidad de Género Trans: Una Construcción
Relacional y Contextualizada (San Luiz, Argentina, 2013-2015)». In: Athenea Digital. Vol. 19, N.º 3, (2019).
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Designam-se cisgénero as pessoas que se identificam com a categoria de género que
corresponde às caraterísticas anatómicas sexuais que determinaram a especificação do
sexo no modelo birio
38
.
Já o termo transgénero é empregue para descrever diversas identidades e expressões
de género que não se identificam com as caraterísticas biológicas visíveis, não se confor-
mando com o estereotipo social de homem e mulher
39
, não sendo relevante a pessoa ter
iniciado ou pretender iniciar o processo de transição ou cirurgia de afirmação de género.
O adjetivo transsexual, que na verdade consiste numa designação desadequada por-
que muitas pessoas não experimentam um processo de transição porque nunca reputa-
ram para si o género consignado à nascença, refere-se às pessoas transgénero feminino
ou masculino que tenham realizado tratamento hormonal ou cirúrgico de afirmação de
género.
Os procedimentos médicos de afirmação de género estão assim vocacionados para pes-
soas com identidade de género diferente do sexo atribuído à nascença, mas com identidade
binária, pelo que os tratamentos (alguns reversíveis e outros irreversíveis) prosseguem
alcançar as caraterísticas sexuais pririas e secundárias do género com o qual a pessoa
se identifica
40
.
Por conseguinte, importa ter presente que a pessoa transgénero não tem necessaria-
mente de experimentar um processo de afirmação de género
41
com recurso a terapias
hormonais ou intervenções cirúrgicas
42
, o que é als reforçado com o reconhecimento de
identidades de género não binárias.
O género pode ser definido como o conjunto de caraterísticas psicológicas, sociais,
culturais e comportamentais normalmente associadas ao sexo anatómico feminino ou
masculino
43
.
38 BIANCHI, Andria – Something Got to Give: Reconsidering the Justification for a Gender Divide in Sport. In:
Philosophies. [sl]. Vol. 4, N.º 23, (2019).p. 2.
39 «A transgender person identifies with a gender that differs from their sex, where a person´s sex is usually
assigned at birth and based on factor such as hormones and reproductive systems». BIANCHI, Andria –
«Something Got to Give: Reconsidering the Justification for a Gender Divide in Sport». In: Philosophies, p.2.
40 WORLD Professional Association for Transgender Health – Standarts of Care for the Health of Transsexual,
Transgender, and Gender-Nonconforming People, pp.12-25, 37-52.
41 SCHWEND, Amets Suess – «Trans Health Care from a Despathologization and Human Rights Perspective». In:
Public Health Reviews. Vol. 41, N.º 3, (2020), p.6.
42 WORLD Professional Association for Transgender Health – Standarts of Care for the Health of Transsexual,
Transgender, and Gender-Nonconforming People, pp.9-11.
43 «Gender refers to the roles and responsibilities of men and women that are created in our families, our societies
and our cultures.The concept of gender also includes the expectations held about the characteristics, aptitudes
and likely behaviours of both women and men (femininity and masculinity).». Cfr. UNESCO – Unescos Gender
Mainstreaming Implementation Framework for 2002-2007 – Basic Definitions of Key Concepts and Terms,
p.17.
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Concretizando, por um lado «O género é composto pela identidade individual, pela
expressão dessa identidade e pela forma como tanto a identidade auto percecionada como
a sua expressão se relacionam com os papéis de género tradicionais de cada sociedade»,
por outro lado, o sexo biológico (coordenado com a anatomia visível), atribuído à nascença,
respeita ao corpo e à componente genética que o integra
44
.
Encontra-se por isso alguma imprecisão em António Menezes Cordeiro ao armar que
«O ser humano é uma espécie sexuada. Os indivíduos de cada um dos sexos distinguem-
-se, fácil e imediatamente, pelo aspecto geral, pela postura, pelos gestos. (…) A diferencia-
ção dos sexos constitui um dos grandes sortilégios da humanidade»
45
, atenta a adstrição
ao facto anatómico que revela.
Não é líquido que os indivíduos de cada sexo se distingam fácil e imediatamente, tra-
tando-se por isso de uma afirmação imprecisa que não corresponde à realidade fáctica,
porquanto a frequente associação entre a não conformidade de género e a cirurgia de ar-
mação de género não se verifica em todas as pessoas. Na verdade, esta associação resulta
de uma padronização binária da medicina que estabelece uma associação entre o corpo
e o sexo anatómico, desconsiderando as diversas opções quanto ao corpo no qual a não
conformidade de género se vivência, e que parece não atender à fluidez do espectro de
género
46
.
A cirurgia de armação de género, com a inerente alteração das caraterísticas sexuais
primárias e secundárias, bem como as terapias hormonais, consistem em procedimentos
médicos enquadrados, não raras vezes, no âmbito do diagnóstico da disforia de género
47
,
que nem sempre são observados em todas as pessoas transgénero
48
, uma vez que consis-
44 MACEDO, Ana – Identidade de Género e Orientação Sexual na Prática Clínica. P. 19, 43; Em relação aos conceitos
de sexo e género ver também BELEZA, Teresa Pizarro – Direito das Mulheres e da Igualdade Social…, pp.63-66.
45 CORDEIRO, António Menezes – Tratado do Direito Civil Português. Tomo IV. Parte Geral. 5.ª ed. Coimbra: Almedina,
2019, p.417.
46 SCHWEND, Amets Suess – «Trans Health Care from a Despathologization and Human Rights Perspective».
In: Public Health Reviews, p.6.
47 «Gender dysphoria involves a conflict between a persons physical or assigned gender and the gender with
which he/she/they identify. People with gender dysphoria may be very uncomfortable with the gender they
were assigned, sometimes described as being uncomfortable with their body (particularly developments during
puberty) or being uncomfortable with the expected roles of their assigned gender.
People with gender dysphoria may often experience significant distress and/or problems functioning associated
with this conflict between the way they feel and think of themselves (referred to as experienced or expressed
gender) and their physical or assigned gender». Cfr. AMERICAN Psychiatric Association – Help With Gender
Dysphoria.
48 WORLD Professional Association for Transgender Health – Standarts of Care for the Health of Transsexual,
Transgender, and Gender-Nonconforming People, pp.8-9.
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tem em cuidados de saúde que podem ser adotados de forma individualizada ou em con-
junto de acordo com o destinatário concreto dos mesmos
49
.
Esta hegemonia conceptual acentuadamente binária encontra-se de igual forma em
Mafalda Miranda Barbosa que, aparentemente, tolerando específicas “situações patológi-
cas” de não conformidade de género, não admite o reconhecimento pelo ordenamento jurí-
dico do direito à identidade de género como parte integrante do direito ao livre desenvol-
vimento da personalidade, sustentando, num raciocínio que se tem por necessariamente
equivocado, que «(…) um direito à autodeterminação e à identidade de género conduz à
destruição da pessoa, (…) o suposto direito (…) que se invoca (apenas alicerçado num que-
rer arbitrio) inexiste»
50
.
Parece neste argumento ficar quedado ao esquecimento o árduo caminho percorrido
pela despatologização do transgenismo, rectius do transsexualismo, particularmente na
última década, que conduziu a uma alteração do modelo de cuidados de saúde e da confor-
mação jurídico-normativa que se exige em relação às pessoas transgénero.
A premência da criação de um quadro internacional de princípios ético orientadores
de um plano de proteção multidimensinal de direitos humanos fundamentais respeitan-
tes à orientação sexual, identidade e expressão de género e salvaguarda das caraterísticas
sexuais, determinou a adoção de instrumento de soft law, The Yogykarta Principles
51
, con-
siderando o profícuo contributo que um quadro de proteção ético-legal apresenta para a
desconstrução dos preconceitos culturalmente instituídos e para a despatolização da não
conformidade de género
52
.
49 «Gender-affirmative health care can include any single or combination of a number of social, psychological,
behavioural or medical (including hormonal treatment or surgery) interventions designed to support and
affirm an individual’s gender identity». Cfr. WORLD Health Organization – WHO/Europe brief – transgender
health in the context of ICD-11; Não obstante a remoção do catálogo de transtornos mentais na 10.ª edição do
ICD, o processo de afirmação de género figura ainda como transtorno de saúde mental no DSM-5 da American
Psychiatric Association; SCHWEND, Amets Suess – Trans Health Care from a Despathologization and Human
Rights Perspective. Public Health Reviews, pp.2, 9; Em sentido próximo, mas não totalmente coincidente, mas
reforçando a dissociação entre a incongruência de género e a cirurgia de afirmação de género Sharon Cowan
refere que «Forcing subjects to live in a binary and dichotomous sex and gender system leads to a discourse
of “mistakes”. Developing a legal and social framework that does not attempt to “freeze” sex and gender, is the
only way to recognise the complexity of sexual subjectivity». Cfr. COWAN, Sharon – «“Gender is No Substitute
for Sex”: A Comparative Human Rights Analysis of the Legal Regulation of Sexual Identity». In: Feminist Legal
Studies. N.º 13, (2005), p.93.
50 BARBOSA, Mafalda Miranda e ÁLVAREZ, Tomás Prieto – O Direito ao Livre Desenvolvimento da Personalidade.
Coimbra: GestLegal, 2020, pp.111 e 114. Admitem , contudo, o reconhecimento de um direito à identidade sexual
em casos muito particulares.
51 The Yogykarta Principles foi adotada em 2007, a última atualização verificou-se em 2017, sendo conhecida como
The Yogykarta Principles Plus 10.
52 SCHWEND, Amets Suess – «Trans Health Care from a Despathologization and Human Rights Perspective». In:
Public Health Reviews, pp.3-4.
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Sob este propósito, a incongruência de género constava do capítulo reservado às pato-
logias de saúde mental e comportamentais do International Classification of Diseases
(ICD) desde 1975, todavia em 2018 transitou para o capítulo de condições relacionadas com
a saúde sexual
53
, promovendo a diminuição do estigma associado a um grupo de pessoas
que enformam uma população diversificada e não inerentemente doente.
O sexo, enquanto elemento biológico determinado e objetivo foi ultrapassado pela
construção sociológica de género. Reclama-se por isso a intervenção do ordenamento jurí-
dico, não apenas a título residual, mas a título constitutivo do acolhimento de uma pers-
petiva não binária do sexo e do género de acordo com a auto perceção da pessoa sobre si
mesma.
A igualdade de género não pode assim ser reduzida a uma igualdade morfologica-
mente sexuada. A sua proclamação e alcance material exige, assim, que se considere a
diversidade de género, sendo esta a única via de cumprimento substantivo do primado da
pessoa humana, referencial ético e axiológico da dignidade que lhe é imanente.
O apanágio da igualdade aplicada ao género, no seu sentido primário, cumpre a sua
finalidade enquanto não sustentar a estigmatização, a segregação e a desigualdade. Ora,
pessoas transgénero são expostas a reiteradas violações da sua integridade que radicam
dos padrões heteronormativos instituídos, pelo que se impõe o reconhecimento e consa-
gração da existência de outras manifestações do reduto último de privacidade da pessoa
humana e livre desenvolvimento da sua personalidade para além do artificial dualismo
sexuado.
O conceito de igualdade de género terá assim de evoluir e adaptar-se sincronicamente
ao conceito de género, harmonizado com o reconhecimento da diversidade e expressão de
género enquanto direito humano e do qual radica uma dimensão protetiva que desloca a
perspetiva muito adstrita à pessoa sexuada para o repúdio dos comportamentos sociais
e culturalmente construídos discriminadores da diferença individual em que consiste a
pessoa ser em devir.
3. Do direito à identidade pessoal ao direito à autodeterminação de género:
anatomia assexuada do direito matriz ao livre desenvolvimento da personalidade
humana
O direito à identidade pessoal enquanto garantia de identificação de cada pessoa como
indivíduo, singular e irrepetível, não deve deixar de ser interpretado em harmonia com o
53 WORLD Health Organization – International Classification of Diseases.
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direito ao livre desenvolvimento da personalidade, enquanto manifestação da dignidade
intrínseca que é reconhecida à pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana, valor anterior à própria ideia de Estado de Direito
Democrático, é por isso referencial primário de direitos fundamentais que lhe asseguram
uma expressão mais definida.
A consagração constitucional do direito ao livre desenvolvimento da personalidade
54
representa sobretudo a consagração de um direito à liberdade da pessoa em relação à sua
individualidade, donde no bem jurídico tutelado necessariamente se encontram as dife-
renças dessa individualidade
55
.
Não se cinge, contudo, à dimensão individual da diferença, porquanto lhe é inerente
uma dimensão social que resulta de uma interação com as outras pessoas. A natureza
social do desenvolvimento da personalidade exige, assim, o estabelecimento de um qua-
dro normativo que materialize as condições de desenvolvimento da personalidade, não se
bastando enquanto garantia de não ingerência na liberdade individual de estabelecimento
de diferenças, mas sobretudo enquanto exigência ao legislador de tutela da integridade da
liberdade geral de ação da pessoa
56
consistente com a garantia de desenvolvimento de uma
individualidade autónoma e livre.
O princípio geral de respeito pela dignidade da pessoa humana e desenvolvimento da
sua personalidade são por isso a sede fundamental do direito geral de personalidade que
assegura uma proteção absoluta da pessoa, proteção que se opera não apenas por via da
tutela da personalidade, mas também da realização efetiva da personalidade.
O direito geral de personalidade é, assim, um direito à pessoa no seu todo, «(…) não
apenas como ser mas como ser em devir e, por consequência, no seu próprio poder de
autodeterminação (…
57
, um verdadeiro direito à liberdade e à existência, atenta a sua
dimensão dinâmica (não estática), inesgotável e ilimitável. A ilimitabilidade e inesgotabili-
dade da personalidade exigem, desta forma, a garantia de condições essenciais para que o
indivíduo seja verdadeiramente pessoa, que não se auto comprazem apenas com o direito
geral de personalidade e os direitos especiais da personalidade
58
enquanto mecanismos
operativos dos direitos fundamentais.
54 N.º 1 do artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa.
55 PINTO, Paulo da Mota – Direitos de Personalidade e Direitos Fundamentais – Estudos. Coimbra: GestLegal, 2018, p.17.
56 PINTO, Paulo da Mota – Direitos de Personalidade e Direitos Fundamentais – Estudos, pp.21-25.
57 CARVALHO, Orlando de – Teoria Geral do Direito Civil. 3.ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p.106.
58 «(…) o direito geral da personalidade é o seu direito-matriz fundante, aquele em que esses direitos enraízam,
pois os «objectos» deles são antes projecções do objecto verdadeiro desta tutela jurídica, que é a personalidade
no seu todo», vide, CARVALHO, Orlando de – Teoria Geral do Direito Civil, p.206.
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Os direitos de personalidade enformam posições jurídicas fundamentais da pessoa
pelo simples facto de o ser, são aspetos imediatos de exigência de integração da pessoa,
da sua dimensão individual e social dimica, revelando emanações do conteúdo essen-
cial da sua personalidade humana agénero, não se tratando já a identidade de género e a
não conformidade de género de liberdades inominadas, mas antes de direitos de exigir de
outrem o respeito pela própria personalidade.
Com Jorge Miranda, referindo-se aos direitos de personalidade, entendemos que, de
igual forma, a identidade e a não conformidade de género «(…) têm por objecto, não algo
de exterior ao sujeito, mas modos de ser físicos e morais da pessoa ou bens da personali-
dade física, moral e jurídica ou manifestações particulares da personalidade humana ou
da defesa da própria dignidade»
59
.
O direito à identidade pessoal, integrado no núcleo dos direitos da personalidade, cara-
teriza o ser humano enquanto pessoa individualizada, diferenciando-a de todas as outras,
com uma historicidade e vivência pessoal, que são expressão do direito a que cada pes-
soa viva em concordância consigo mesma. Ora, esta concordância é também expressão
do direito à liberdade de consciência que se manifesta nas suas opções e manifestações
particulares de vivência.
Compreende-se, assim, a imanente dependência entre o direito à identidade pessoal
e o direito à autodeterminação e expressão de género, porquanto aquela será a manifes-
tação exterior de uma vivência interna, eminentemente pessoal. A auto perceção da pes-
soa sobre si mesma é progressiva e, por isso, dinâmica, impondo-se não só um modelo de
tutela diferenciado que acompanhe o desenvolvimento da personalidade humana, mas de
igual forma a criação de condições que assegurem materialmente a dimensão legal, social
e física do corpo e da identidade de género que dele radica
60
.
O ser humano na sua vivência pessoal, consigo mesmo e com os outros, é infinita-
mente diversificado, sendo a variabilidade de género uma manifestação desta diversidade.
Os estereótipos de género e o estigma associados à não conformidade de género variam de
acordo com a padronização de normas sociais e culturais, donde o preconceito e discrimi-
nação associados à marginalização também se apresentam em grau diverso, refletindo-se
nas pessoas de forma mais ou menos acentuada. Daqui resulta o facto de a disforia de
género não ser comum a todos as pessoas que experimentam uma vivência de não confor-
midade de género.
59 MIRANDA, Jorge – Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. Direitos Fundamentais, pp.66-67.
60 CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital – Constituição da República Portuguesa AnotadaVolume 1. 4.ª Edição.
Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p.464.
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A disforia de género consiste no sofrimento ou desconforto sistemático causado pela
discordância entre a identidade de género auto percecionada e o papel ou função atribuído
socialmente ao sexo atribuído à nascença de acordo com a caraterísticas sexuais primárias
e secundárias
61
.
Importa por isso ter presente que a experimentação da discriminação social
62
é ele-
mento compulsório do desenvolvimento de patologias de saúde mental, nas quais se inclui
a disforia de género ou a transfobia internalizada
63
, e não a própria não conformidade de
género.
Não se encontram, assim, razões contrárias atendíveis para que a pessoa seja identi-
cada por subsunção a uma categorização binária de sexo anatómico uma vez que seja auto
percecionada a não concordância com a sua identidade de género.
O direito ao livre desenvolvimento da personalidade, dimensão daquele direito geral
de personalidade e postulado axial de respeito pela dignidade da pessoa humana, implica
o reconhecimento de um espaço de liberdade e realização pessoal que convoca a criação de
condições efetivas para realização da personalidade
64
.
Justifica-se, neste sentido, que a identidade civil, compreendida na identidade pessoal,
postule o reconhecimento jurídico da identidade de género por via da mudança de sexo
e nome próprio inscrito no registo civil, sem a antecedência de cirurgia de afirmação de
género
65
, porquanto a identidade civil só será expressão da identidade pessoal se com ela
coincidir.
61 WORLD Professional Association for Transgender Health – Standarts of Care for the Health of Transsexual,
Transgender, and Gender-Nonconforming People, pp.4-6, 95-97.
62 SCHWEND, Amets Suess – «Trans Health Care from a Despathologization and Human Rights Perspective». In:
Public Health Reviews, p.5.
63 A transfobia internalizada consiste no desconforto pessoal com a auto perceção sobre a não conformidade
de género de acordo com as expetativas sociais normativizadas em relação ao género. WORLD Professional
Association for Transgender Health – Standarts of Care for the Health of Transsexual, Transgender, and
Gender-Nonconforming People, p.97.
64 «O direito ao desenvolvimento da personalidade recolhe, assim, no seu âmbito normativo de protecção, duas
dimensões: (a) formação livre de personalidade, sem planificação ou imposição estatal de modelos de personalidade;
(b) protecção da liberdade de acção de acordo com o projecto de vida e a vocação e capacidades próprias e (c)
protecção da integridade da pessoa para além do art. 25.º, tendo sobretudo em vista a garantia da esfera jurídico-
pessoal no processo de desenvolvimento». Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital – Constituição da
República Portuguesa… – Volume 1, p.463.
65 A cirurgia de afirmação de género, também designada de redesignação de género, modifica as caraterísticas
sexuais primárias e secundárias, encontrando-se integrada no processo de transição entre o género associado ao
sexo morfológico que foi atribuído à nascença para o género com o qual a pessoa se identifica, consistindo num
ato médico fundamental para mitigar a disforia de género. O processo de transição é variável e individualizado
não incluindo necessariamente a cirurgia de afirmação de género, podendo apenas consistir na feminilização
ou masculinização do corpo através de terapias hormonais. WORLD Professional Association for Transgender
Health – Standarts of Care for the Health of Transsexual, Transgender, and Gender-Nonconforming People,
pp.95-97; Para efeitos de reconhecimento do direito à identidade pessoal de género cumpre ainda assinalar a
jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), que no âmbito do processo n.º 13343/87
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Trata-se, com efeito da passagem da igualdade formal programática para uma igual-
dade material precetiva, assente numa integração normativa de igualdade constitutiva de
uma estrutura social alicerçada na ideia de justiça real.
Não se trata, pois, de imputar ao Direito o acolhimento de uma ideologia de género
que visa subverter a natural diferenciação sexual, conforme sustenta Mafalda Miranda
Barbosa
66
, porquanto entendemos que é a própria posição ético-axiológica que radica da
pessoa humana que convoca a disciplina normativa do Direito e que se impõe pela neces-
sária tutela geral da personalidade no que concerne a direitos humanos fundamentais.
4. Do princípio da igualdade à critica do paradigma igualitário
São pilares do sistema de direitos humanos a liberdade, a igualdade e a solidariedade
enquanto mecanismos de garantia contra quaisquer formas de discriminação no gozo
dos direitos humanos
67
, assumindo o princípio da igualdade a qualidade de princípio jurí-
dicofundamental densificador do próprio conceito de Estado de Direito Democrático e
Social
68
69
.
Não se tratando de um instrumento juridicamente vinculativo, a Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos (DUDH) não deixa de enunciar e precisar paradigmáticos
princípios de respeito pela pessoa e pela sua dignidade, de tal forma que alguns deles ele-
varam-se a princípios de ius cogens
70
71
. É, para todos os efeitos que aqui relevam, o caso do
princípio da igualdade.
que opunha uma cidadã transgénero feminina à república francesa decidiu em 1992, pela primeira vez, que a
recusa dos Tribunais franceses em autorizarem a alteração do género e nome inscrito no registo civil consistia
numa violação do direito sobre a reserva da intimidade da privada, em virtude da disparidade entre o sexo
constante daquele registo e o “sexo” vivido pela recorrente, colocando-a frequentemente em circunstâncias
humilhantes que provocavam sofrimento psicológico.
66 BARBOSA, Mafalda Miranda e ÁLVAREZ, Tomás Prieto – O Direito ao Livre Desenvolvimento da Personalidade, p.111.
67 MOREIRA, Vital e GOMES, Carla de Marcelino (Coord.) – «Compreender os Direitos Humanos: Manual de
Educação para os Direitos Humanos». [Consult. 28 janeiro 2020]. Disponível em http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-
e-conteudos-de-apoio/publicacoes/direitos-humanos/livro-compreender-os-direitos-humanos, p.44.
68 CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital – Constituição da República Portuguesa … Volume 1. pp.336-337.
69 «Não existe ordenamento jurídico (ao menos no mundo civilizado) que não proclame fundamentar-se no
princípio da igualdade, enquanto núcleo densificador da própria ideia de justiça e de Direito. Por conseguinte,
todos os seres humanos são, ao menos teoricamente, iguais.». Cf. RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade,
a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias; Económicas…, pp.571-572; «Porque todos têm a
mesma dignidade social (outra maneira de referir a dignidade da pessoa humana, base da República), a lei tem
de ser igual para todos.», vide, MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui – Constituição Portuguesa Anotada. Tomo I.
Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p.120.
70 MIRANDA, Jorge – Curso de Direito Internacional Público. 4.ª ed. Lisboa: Principia, 2009, pp.126, 297-299.
71 Não obstante as regras jurídicas, por via de regra, apresentarem as caraterísticas enunciadas ao Direito Cogente
de imperatividade e vinculatividade, a expressão latina pretende evidenciar que se trata de regras que estão para
além da vontade ou do acordo de vontades dos sujeitos de Direito Internacional, revestindo-se de uma força
jurídica imanente ao primado dos direitos das pessoas. MIRANDA, Jorge – Curso de Direito Internacional Público,
pp.119-120.
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O conceito de igualdade, enquanto princípio jurídico, não significa uma igualdade
absoluta, não proibindo por isso tratamento diferenciados. Com efeito, se por um lado uma
interpretação simplista pode significar a supressão de quaisquer formas de discrimina-
ção (situações de desvantagem) ou privilégios (situações de privilégios), uma análise mais
atenta evidencia a complexidade do princípio.
Ora, porque existem desigualdades de facto (v.g.sicas), exige-se ao legislador que
crie ou recrie oportunidades e condições para que a todos se admita usufruir dos mesmos
direitos e, bem assim, cumprir os mesmos deveres. Assim, a igualdade jurídico-material
complementa a igualdade jurídico-formal
72
, porquanto é dirigida à igualdade jurídica real
ou de resultado.
É, nestes termos, a dimensão social do princípio que convoca a eliminação das desi-
gualdades de facto, impondo-se ao legislador a criação de uma verdadeira igualdade atra-
vés da lei, conferindo ao princípio sentido positivo
73
.
Por conseguinte, a igualdade, enquanto conceito e princípio jurídico, não opera dia-
cronicamente apenas para proibir discriminações. É também operante na proteção das
pessoas contra discriminações resultantes de desigualdades de direito em consequência
de desigualdades de facto, concedendo-se liberdade constitutiva ao legislador para corrigir
situações que se reputem concretamente iguais
74
.
Com Vera Lúcia Raposo «(…) a igualdade exige também que: a) as situações iguais
sejam tratadas de forma igual na medida dessa igualdade; b) as situações diferentes sejam
tratadas de modo diferente, na medida dessa diferença (excepto quando tais situações
tenham sido artificialmente criadas pelo legislador, porquanto nesse caso o princípio da
igualdade reclama a compensação das desigualdades legislativamente instituída[s]); c)
se admitam medidas de discriminação positiva nas situações em que estas sejam instru-
mento necessário e adequado à colmatação de desigualdades fácticas previamente exis-
tentes.»
75
.
O sentido positivo do princípio da igualdade não pode, por isso, considerar-se mera-
mente artificial, dele radicando a obrigação de adoção de medidas de ação afirmativas
tendentes a mitigar ou corrigir desigualdades reais que se traduzam em tratamentos ou
considerações sociais discriminatórias
76
.
72 MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui – Constituição Portuguesa Anotada. Tomo I, p.120.
73 CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital – Constituição da República Portuguesa AnotadaVolume 1, p.337.
74 MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui – Constituição Portuguesa Anotada. Tomo I, pp.120, 125-126.
75 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…, p.572.
76 CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital – Constituição da República Portuguesa Anotada – Tomo I, pp.337-338.
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A necessidade de adoção de medidas de ação afirmativas resulta assim da consideração
da pessoa humana enquanto sujeito de direito, estatuto que no plano normativo, acom-
panhando de perto Jorge Reis Novais, cumpre um elementar sentido de justiça, com três
consequências imediatas: o reconhecimento integral da pessoa como sujeito de direito
pressupõe o reconhecimento de autonomia para determinar o seu caminho de vida, sem
controlos ou dominações heterónomos; reconhecimento da liberdade de não ser bloqueada
na conformação das decisões fundamentais da sua vida; criação de condições materiais
para participar com liberdade e igualdade na escolha e deliberação coletivas
77
.
4.1. A igualdade material enquanto desiderato de recuperação da igualdade
formalutópica
A igualdade formal padece de uma subversiva patologia atento o lacónico e impessoal nor-
mativizar geral e abstrato que desconsidera as qualidades espeficas dos destinatários,
acentuando por esta via a subsistência de desigualdades, que encontram suporte no obso-
leto princípio da lei ser igual para todos. «A igualdade formal pressupõe uma disciplina
uniforme e interdita regimes personalizados»
78
.
A igualdade material preconiza um regime diferenciado no qual a lei não tem de
ser igual para todos, mas antes justa para todos. A presunção de constitucionalidade do
regime diferenciador não é arbitria, porquanto a aleatoriedade num regime diferenciado
seria eminentemente discriminatória violando o próprio princípio da igualdade.
Um regime diferenciado radica de um critério juridicamente fundamentado, assu-
mindo as diferenças que o justificam verdadeira relevância jurídica, podendo condicionar
o regime jurídico aplicável em matéria de direitos e deveres para grupos determinados de
pessoas. «Neste caso, as pessoas serão tratadas equally [e não as equalls], de forma equita-
tiva, inclusive de forma desigual quando tal necessário para repor a verdadeira igualdade,
entretanto perdida.»
79
.
77 NOVAIS, Jorge Reis – A Dignidade da Pessoa Humana. Vol. II. Dignidade e Inconstitucionalidade. Coimbra: Almedina,
2016, pp.106-107.
78 Como bem ressalva Vera Lúcia Raposo a igualdade formal remete à época do liberalismo que atendendo à
aparente perfeição da construção daquele brocado, edificou dogmas que encontravam suporte apenas neste
período porquanto o valor do ser humano encontrava-se dependente de atributos como a raça, a religião, a cor
da pele, o sexo, o título ou o rendimento. Cfr. RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade».
In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias; Económicas; Empresariais…, pp.573-574; CANOTILHO, J. J. Gomes e
MOREIRA, Vital Constituição da República Portuguesa Anotada – Tomo I, pp.336-338.
79 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…, p.574.
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É o conteúdo normativo positivo do princípio que convoca a equidade no tratamento
das situações não só como existem, mas como devem existir, alcançando-se através da lei
a igualdade e não apenas perante a lei.
Significa isto que a igualdade, enquanto conceito objetivo e fundamentado na lei,
aponta para um resultado, enquanto a equidade
80
será um meio para atingir aquele resul-
tado, justificando-se por força de necessariamente ter de se reconhecer que, mais do que
tratar as pessoas de forma igual, é indispensável tratá-las de forma justa
81
.
Ora a igualdade material ou de resultado determina a apreciação material da diferença
atendendo à conformação normativa a que fica sujeita e que, naturalmente, tem de se
encontrar justificada de acordo com uma análise valorativa não arbitria.
Acompanhamos por isso Simona Giordano e John Harris na sua conclusão de que
«(…) we need to celebrate the differences that obtain between human beings and ensure
that, despite these differences, individuals are not disadvantages. We simply should not
attempt to eradicate those “inequalities” that are not intrinsically harmful and that many
of us regard aa making life more rather than less worthwhile»
82
.
4.2. Da dialética perdida entre igualdade, desigualdade e diferença
Na dialética entre os conceitos de igualdade e desigualdade é frequentemente tomada por
sinónimo desta última a diferença. São, em bom rigor, antónimos que exprimem signifi-
cados diferentes.
A desigualdade exprime uma construção hierarquizada e de subordinação, não se
tratando de uma mera dissemelhança. A diferença, em sentido oposto, exprime uma não
semelhança entre pessoas distintas, que pode fundamentar um tratamento diferenciado
legitimo em função de certas particularidades, em relação ao qual não se poderá coorde-
nar uma noção pejorativa, tratando-se a diferença de um reflexo de uma sociedade demo-
crática
83
.
80 «(…) a Equidade é um conceito condicionado por critérios subjetivos e direcionado para uma resposta justa
e proporcionada a situações particulares ou a necessidades especiais.». CNECV – Relatório e Parecer sobre a
Proposta de Declaração Universal sobre Igualdade de Género. P. 4.
81 «Gender Equity is the process of being fair to men and women. To ensure fairness, measures must often be
put in place to compensate for the historical and social disadvantages that prevent women and men from
operating on a level playing field. Equity is a means. Equality is the result.». Cfr. UNESCO – Unesco’s Gender
Mainstreaming Implementation Framework for 2002-2007 – Basic Definitions of Key Concepts and Terms,p. 17.
82 GIRODANO, Simona e HARRIS, John – «What is Gender Equality in Sports?». In: Genetic Technology and Sport:
Ethical Questions, p.213.
83 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – O Poder de Eva…, pp.260-261.
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Concretizando, à diferença não equivale a desigualdade. A diferença consiste numa
expressão neutra
84
de não semelhança entre indivíduos, já a desigualdade consiste numa
expressão de sociedade hierarquizada negativamente.
Com Teresa Pizzaro Beleza «O que está em causa não é tornar as pessoas iguais (no
sentido de semelhantes, isto é, não diferentes) mas desfazer a criação, em boa parte legal,
de uma hierarquia entre pessoas.»
85
.
Assim, mais que garantir um tratamento igual independentemente do sexo, hodierna-
mente, pretende-se assegurar um direito à diferença, em nome do paradigma igualitário,
que ultrapasse o caráter negativo que se encontra eminentemente cunhado na polarização
dos sexos.
«A igualdade serviu os interesses da justiça enquanto funcionou como arma contra
privilégios feudais. A partir do momento em que começou a ser sinónimo de identidade,
de rejeição, de diferenciações legítimas, deixou de cumprir a justiça. Uma igualdade que
aprisiona, que mutila a verdadeira identidade das pessoas, não é um ideal lícito e justo. A
verdadeira liberdade não se compadece com igualizações forçadas. O direito à diferença é
condição sine qua non de um direito justo e livre
86
.
A obrigação de assegurar o direito à diferença é expressão da dimensão social do prin-
cípio da igualdade em resultado material ou real. Enforma assim o dever de, por um lado
legislar sempre que se revele necessário acautelar o livre exercício do direito à diferença
em todas as suas manifestações, por outro lado legislar sempre que seja necessário comba-
ter quaisquer formas de discriminação.
4.3. Do princípio da igualdade à discriminação positiva: um caminho percorrido
pelo direito anti discriminatório
4.3.1. O princípio da igualdade e o princípio da não discriminação
Com Teresa Pizarro Beleza, pode-se armar que «Os fenómenos sociais de discrimina-
ção têm uma dupla face: por um lado, consistem em práticas de domínio e rejeição de pes-
soas com base (com pretexto) em certas caraterísticas. Por outro, essas práticas são acom-
panhadas e fundadas em construções de identidade(s) baseadas nessas características
pretensamente (vistas como) diferenciadoras. Ambos os processos se alimentam mutua-
mente, alicerçando-se no senso comum que por sua vez os reconstrói continuamente.»
87
.
84 Portanto sem conotação positiva ou negativa.
85 BELEZA, Teresa Pizarro – Direito das Mulheres e da Igualdade Social…, p.88.
86 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – O Poder de Eva…, p.262.
87 BELEZA, Teresa Pizarro – Direito das Mulheres e da Igualdade Social…, p.96.
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Trata-se hodiernamente da representação da mitologia grega do titã Prometeu que
amarrado eternamente a uma rocha via o seu fígado, que se regenerava todos os dias, ser
comido por uma águia.
A discriminação consiste, assim, numa prática social reiterada com conotação pejo-
rativa, encontrando-se associada a preconceitos, intolerância ou favoritismos, consubs-
tanciando uma diferenciação negativa, uma expressão de sentido negativo, não deixando,
contudo, de ser um conceito dinâmico
88
.
O princípio da igualdade é, nestes termos, orientador de um duplo conteúdo que se
pode assacar ao conceito de discriminação. «Poder-se-á distinguir entre um conceito
amplo de discriminação, enquanto toda a infracção ao princípio da igualdade, e um con-
ceito mais restrito, emergente quando a igualdade seja violada com base em fundamentos
expressamente proibidos nos textos constitucionais (…).»
89
.
Assim, o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) proíbe o tratamento
desigual entre pessoas, enunciando fundamentos ilegítimos de distinção (v.g. ascendên-
cia, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas,
instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual)
90
.
Parece, todavia, que duas consequências imediatas poder-se-ão assacar: a primeira, de
que a criação e desconstrução de categorias discriminatórias não podem colocar-se à parte
da reflexão à luz de outras ciências sociais; a segunda, de que à própria ciência jurídica
compete dar o seu contributo para a desconstrução daquelas, partindo do pressuposto
que participa na edificação destas atenta a dimensão jurídica da estrutura social que aqui
releva.
A discriminação encontra a sua matriz conceptual na distinção operada pela perceção
diferenciada em relação a categorias específicas, podendo verificar-se sob a forma de res-
trição, exclusão ou preferência fundada em certas características da pessoa (v.g. género,
raça, idade, orientação sexual, confissão religiosa)
91
, sempre que a finalidade ou efeito se
subsuma à «(…) destruição ou comprometimento do reconhecimento, gozo ou exercício
dos direitos humanos e das liberdades fundamentais em condições de igualdade»
92
.
A proibição de discriminação radica assim daquilo que se tem entendido consistir em
situações de desigualdade qualificada (cujo elenco meramente enunciativo se encontra no
n.º 2 do art.º 13.º da CRP), proibindo qualquer forma de tratamento diferenciado ilegítimo,
88 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – O Poder de Eva…, p.297.
89 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – O Poder de Eva…, p.298.
90 BELEZA, Teresa Pizarro – Direito das Mulheres e da Igualdade Social…., p.103.
91 BELEZA, Teresa Pizarro – Direito das Mulheres e da Igualdade Social…, p.102.
92 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…, pp.576-577.
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cujo referencial fundamental se encontra intrinsecamente ligado à dignidade da pessoa
humana, que não se compadece com o desfavorecimento da pessoa por força da sua per-
tença a determinados grupos com caraterísticas particulares
93
.
A ilegitimidade e a inconstitucionalidade das práticas discriminatórias encontram-se,
por isso, proibidas pela norma constitucional, mas não já a diferenciação, cuja expressão
jurídica pode resultar de uma imposição de justiça no caso concreto.
Todavia, não se poderá compreender esta norma apenas enquanto comando proibitivo
de discriminações. Em bom rigor, da norma constitucional também se alcança um uma
dimensão protetora
94
da integridade da pessoa humana contra quaisquer discriminações.
A obrigação de diferenciação reveste-se, nestes termos, de um conteúdo subjetivo de
proteção, consistindo num vetor do princípio da igualdade que adstringe o legislador à
compensação de situações de desigualdade, permitindo ou impondo, diferenciações que
sejam materialmente justificadas e legítimas à luz de critérios de justiça, proporcionali-
dade, solidariedade e segurança jurídica
95
.
A proibição de arbítrio consiste num controlo negativo, exprimindo um repúdio por
tratamentos diferenciados que não encontrem fundamento em valores objetivos e cons-
titucionalmente relevantes, condenando em simultâneo o tratamento diferenciado de
situações iguais
96
.
O princípio da igualdade compreende, assim, um limite material interno quanto à dis-
cricionariedade em relação aos fundamentos legítimos da diferenciação e que subjazem
ao direito anti discriminatório.
O direito anti discriminatório surge, por conseguinte, para mitigar as insuficiências
do princípio da igualdade, dirigindo-se a um resultado material que ultrapasse políticas
ou procedimentos aparentemente neutros, mas cujos efeitos revelem uma categorização
de pessoas consistente em discriminações ilícitas ou ilegítimas.
Por conseguinte, na prossecução da finalidade do direito anti discriminatório, o crité-
rio diferenciador – porquanto não se poderá deixar de considerar que, regra geral, a norma
não compreende no texto uma diferenciação constitucionalmente permitida – será o da
produção do resultado que afete um determinado grupo de pessoas e não na referência
expressa ao critério diferenciador
97
.
93 O princípio da não discriminação é um dos vetores do princípio da igualdade, atentas as suas três dimensões
fundamentais: a proibição de arbítrio e de discriminação e a obrigação de diferenciação. RAPOSO, Vera Lúcia
Carapeto – O Poder de Eva…, pp.263-264.
94 MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui – Constituição Portuguesa Anotada. Tomo I, p.121.
95 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – O Poder de Eva…, pp.263-264.
96 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – O Poder de Eva…, p.263.
97 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – O Poder de Eva…, p.301.
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Expressão do direito anti discriminatório é a discriminação positiva que se destina
precisamente ao combate a regimes discriminatórios radicados do próprio plano jurídi-
co-normativo
98
.
Aproximando-nos do conceito de discriminação positiva, com Jorge Miranda e Rui
Medeiros, subsumem-se «(…) a situações de vantagem fundadas, desigualdades de direito
em resultado de desigualdades de facto e tendentes à superação destas e, por isso, em
geral, de carácter temporário.»
99
.
Uma aparente contradição nos termos: “discriminação” expressa, comummente, um
sentido negativo de tratamento diferenciado, enquanto “positiva” expressa precisamente
o oposto do termo que adjetiva.
Cremos, por isso, que a expressão deverá ficar reservada a situações muito bem deli-
mitadas e justificadas à luz da CRP, porquanto o desiderato da igualdade jurídica de direi-
tos e oportunidades deverá ser presidido pelo critério de proibição de qualquer forma de
discriminação. Não obstante, e atendendo a que a expressão “discriminação positiva” é
tradicional no ordenamento jurídico português, é esta a empregue neste no texto.
4.3.2. A discriminação positiva
A discriminação pode apresentar-se segundo três modelos: discriminação direta, dis-
criminação indireta e discriminação positiva.
Considera-se discriminação direta
100
todas as situações em que, designadamente, em
função do sexo, as pessoas se encontram sujeitas a um tratamento menos favorável do que
aquele que é, tenha sido, ou possa vir a ser dado a uma pessoa em situação comparável
101
.
Entende-se por discriminação indireta a situação de desfavor decorrente de uma disposi-
ção, critério ou prática aparentemente neutros, mas que determinam um resultado parti-
cularmente desfavorável a um grupo determinado de pessoas
102
.
Distinguem-se na exata medida em que na primeira a norma cria diferenciações assen-
tes em critérios proibidos, enquanto na segunda a norma cria requisitos, impedimentos ou
proibições que, pese embora se apresentem aplicáveis a todos, determinam a emergência
98 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…., pp.575-576.
99 MIRANDA, Jorge eMEDEIROS, Rui – Constituição Portuguesa Anotada. Tomo I, p.120.
100 MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui – Constituição Portuguesa Anotada. Tomo I, p.120.
101 Alínea a) do art.º 3.º da Lei N.º 14/2008, de 12 de março, que proíbe e sanciona a discriminação em função do
sexo no acesso a bens e serviços e que transpõe a Diretiva N.º 2004/113/CE para o ordenamento jurídico interno.
102 Alínea b) do art.º 3.º da Lei N.º 14/2008, de 12 de março, que proíbe e sanciona a discriminação em função do
sexo no acesso a bens e serviços e que transpõe a Diretiva N.º 2004/113/CE para o ordenamento jurídico interno.
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de grupos que, à partida, encontrar-se-ão excluídos de cumprir as exigências, ultrapassar
os obstáculos ou evitar as proibições
103
.
A discriminação positiva, contrariamente à negativa (à qual seriam subsumíveis tanto
a discriminação direta como a indireta), é um instrumento de combate aos regimes discri-
minatórios, radicando na valoração que deve ser endereçada a determinadas caraterísticas
pessoais
104
, sem que daqui resulte um tratamento preferencial ou mais vantajoso.
Com efeito, a discriminação positiva visa combater a discriminação tour court, designa-
damente, através de medidas transitórias que visam compensar lacunas que, de alguma
forma, se revelam atentatórias da dignidade de destinatários de grupos específicos
105
.
Em bom rigor, funciona como impulso de uma verdadeira igualdade substantiva,
criando oportunidades iguais para grupos específicos que reclamam uma tutela diferen-
ciada do ordenamento jurídico.
Trata-se de medidas em que «O benefício que aportam para o colectivo não lesa tercei-
ros de forma direta e imediata, mantendo-se nos limites ditados pelo princípio da igual-
dade em sentido material, mas superando, com o seu carácter radical, a igualdade em sen-
tido formal.»
106
, partindo de disposições, critérios ou práticas objetivamente justificáveis
à luz da legitimidade do fim prosseguido e assentes em meios adequados, necessários e
proporcionais para atingir aquele fim.
As medidas de discriminação positiva operam, assim, com recurso a regimes diferen-
ciados, mas não discriminadores, porquanto visam satisfazer o princípio da igualdade em
sentido material, que convoca, em situações particulares, tratamentos desiguais (à par-
tida) enquanto via de alcançar a igualdade como resultado (à chegada)
107
.
A este propósito esclarece Vera Lúcia Raposo que «Fala-se em igualdade de oportuni-
dades para exprimir aquela primeira e em igualdade de resultados para expressar esta
segunda. A realização da igualdade à chegada apenas pela discriminação positiva pode ser
103 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – O Poder de Eva…, p.301.
104 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…, pp.575-576.
105 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – O Poder de Eva…, pp. 304-312; RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Quotas de
Género: os prós e os contras de uma solução polémica». In: Direitos Humanos das Mulheres. Coimbra: Coimbra
Editora, 2005, p. 112; RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas
Civilísticas: Comunitárias; Económicas; Empresariais…, p.579.
106 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…, p.579.
107 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – O Poder de Eva…, pp. 313-320; RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Quotas de
Género: os prós e os contras de uma solução polémica». In: Direitos Humanos das Mulheres, p. 112; RAPOSO,
Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias; Económicas;
Empresariais…, p.579.
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garantida. As restantes medidas de igualdade são insuficientes para a realizar, ficando-se,
mais modestamente, pela igualdade à partida
108
.
Ora, a discriminação positiva tem caráter transitório/temporário, subsistindo
enquanto se verifiquem os handicaps de grupos específicos. São, neste sentido, medidas de
promoção destinadas a grupos específicos que apresentam determinadas caraterísticas
particulares e que em função destas encontram obstáculos à sua livre e autónoma evolu-
ção social (v.g. deficientes)
109
.
Daqui resulta o paradoxo do emprego de medidas de discriminação positiva no que
respeita ao género. Os seres humanos, de acordo com a categorização biria, não enfor-
mam um grupo ou categoria, representam sim a humanidade, seja numa dimensão quan-
titativa seja numa dimensão qualitativa
110
.
Facto que é transversal à humanidade, e ao qual ninguém se pode furtar, é o de ser
integrada por seres humanos. Ora, a caraterística do genoma humano
111
, enquanto ele-
mento que nos conduz à pertença da espécie humana, não constitui per se um handicap
que justifique medidas de discriminação positiva atento o caráter transitório e temporário
destas. A existirem, seriam sim perpétuas, o que contrariava a natureza intrínseca destas
medidas.
Com efeito, não é legitima qualquer sexualização do princípio da igualdade da qual se
infira uma correspondente sexualização dos direitos, porquanto os direitos reconhecidos
à pessoa humana não conhecem género, não distinguem o género humano.
Um verdadeiro Estado de Direito Democrático Social, no contexto de uma sociedade
plural, não é reflexo de uma sociedade padronizada, homogénea, uniforme, é antes expres-
são de uma sociedade heterogénea que se compromete com a promoção do gozo e do exer-
cício dos direitos a todos os indivíduos, que reclamam medidas não artificializadas de
promoção de uma igualdade efetiva e que sejam expressão do reconhecimento de um ver-
dadeiro direito à diferença.
108 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…, pp.579-580.
109 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…, p.584
110 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…., p.584.
111 Por genoma entende-se «a totalidade do material genético presente em cada organismo. (…) Todos os seres
humanos têm um genoma idêntico, contudo, entre cada um de nós, existem variações fisiológicas e patológicas
que tornam o genoma individual único». Cf. SANTOS, Heloísa G. e PEREIRA, André Dias – Genética para Todos.
De Mendel à Revolução Genómicas do Século XXI: a prática, a ética, as leis e a sociedade. Lisboa: Gradiva, 2019, pp.18-20.
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4.4 De cisgénero para transgénero: paridade, a nova igualdade agénero
Pense-se na paridade enquanto nova forma de igualdade. Na verdade, a igualdade material
surge como formar de corrigir as lacunas apresentadas pela igualdade formal, apresentan-
do-se a paridade como a teoria aplicada pura da igualdade
112
.
A paridade, por oposto às quotas, não tem como objetivo a compensação provisória de
desigualdades, mas antes a definição pertua de uma representação igualitária.
A paridade consiste num fim em si mesma e não um instrumento para um fim, por-
quanto é a própria paridade que perfaz a igualdade, ao contrário das quotas são um instru-
mento para a realizar a igualdade.
Neste sentido, a paridade apresenta-se como um fim que concretiza um resultado
material ou real de igualdade, por via de uma abordagem diferenciada à diferença, congre-
gando em si mesma o reconhecimento de que a humanidade é infinitamente diversa nas
suas caraterísticas, heterogeneidade que se há de aferir por referencial a todas as pessoas
que a integram.
Impõe-se, assim, uma reconfiguração ou adequação do conteúdo substantivo da pari-
dade. Por conseguinte, partindo-se do pressuposto de que inicialmente «A paridade existe
na medida em que se defenda que a diferença sexual é a mais decisiva classificação da
espécie humana. Ou seja, cada um é aquilo que é em função do respectivo sexo, sendo
também este a demarcar a porção a que cada um tem direito no leque de bens disponíveis,
porção essa que há de ser rigorosamente igual para ambos os sexos.»
113
, cremos que é pos-
sível avançar paulatinamente para um equilíbrio sinalagmático entre as diferenças das
pessoas e as caraterísticas que lhe são comuns, alcançando-se a definição permanente de
uma igualdade material.
Acompanhando Teresa Pizarro Beleza «No processo de negociação permanente que é
a criação da nossa identidade, a nossa auto-identificação como, por exemplo, homens ou
mulheres está inevitavelmente condicionada pela nossa interiorização ou rejeição crítica
das expectativas sociais, morais, jurídicas quanto ao nosso comportamento (…)
114
, pelo que
importa ter presente que um aspeto fundamental da dimensão subjetiva do princípio da
dignidade da pessoa humana é a sua integridade que, não só mas também, se desenvolve
por referência à proibição de alienação identitária como garantia de controlo sobre a iden-
tidade, da sua vivência pessoal e da sua apresentação em público
115
.
112 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…, p.587.
113 RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto – «Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias;
Económicas; Empresariais…, p.588.
114 BELEZA, Teresa Pizarro – Direito das Mulheres e da Igualdade Social…, p.71.
115 NOVAIS, Jorge Reis – A Dignidade da Pessoa Humana. Volume II…, p.107.
125
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Em relação de assimilação recíproca com princípio da dignidade da pessoa humana e
o livre desenvolvimento da personalidade, encontramos as garantias de expressão, desen-
volvimento e proteção da pessoa enquanto pessoa concreta, que daqueles princípios radi-
cam. Tais garantias são os direitos de fundamentais de personalidade, que se fundam na
própria existência do indivíduo, consistindo por isso na mais direta concretização mate-
rial de exigência de conformação e obserncia da dignidade da pessoa humana
116
.
Sendo certo que o direito à identidade pessoal de género pertence ao núcleo essencial
das garantias de expressão da pessoa enquanto pessoa, a proibição de alienação identitária
impõe a adoção de medidas materialmente afirmativas de apresentação do ser da pessoa
interno e externo, que não se podem reduzir apenas à identidade civil.
Resulta assim que a dimensão individual do ser na sua relação com a sociedade con-
voca uma jusfundamentalização de direitos específicos que possibilitem o desenvolvi-
mento da sua personalidade e identidade, que reputem uma harmonização entre a sua
verdade pessoal e a sua apresentação pública, enquanto forma de obserncia da digni-
dade da pessoa humana.
Em bom rigor é consensual que a igual dignidade que a ordem jurídica reconhece a
cada pessoa é reiteradamente desrespeitada na sua igual condição humana por via da
estigmatização endereçada a quem se afasta da padronização socialmente construída –
leia-se que o mesmo é aplicável às caraterísticas pessoais endógenas – limitando a auto-
determinação pessoal do indivíduo nas diversas manifestações externas da sua vivência
internalizada.
Com Jorge Reis Novais entende-se que toda a pessoa tem «(…) direito a ser tratada
como um igual (as equal), o direito a beneficiar de uma igual consideração e respeito por
parte do Estado e da comunidade política (equal concern), ou, como defende Singer, o direito
a uma igual consideração dos interesses de cada u
117
.
Por conseguinte a paridade enquanto fim para a verdadeira igualdade material ou de
resultado assume particular relevância no desporto porquanto permite e legitima a defi-
nição permanente de um modelo de participação nas competições desportivas individuais
que encontra a sua matriz fundante nas diferenças das pessoas e as caraterísticas que lhe
são comuns.
Esta igualdade material ou se resultado, alcança-se por via de uma equiponderação que
permitirá obstar a distinções desqualificantes reiteradas que consubstanciam uma recusa
116 Mecanismos operativos dos direitos fundamentais e que protegem bens jurídicos da personalidade tais como a
vida, a integridade física e psíquica, a liberdade geral de ação e a privacidade. NOVAIS, Jorge Reis – A Dignidade
da Pessoa Humana. Volume IDignidade e Direitos Fundamentais. 2.ª edição. Coimbra: Almedina, 2018, …, p.193.
117 NOVAIS, Jorge Reis – A Dignidade da Pessoa Humana. Volume II…, p.133.
126
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prática de igual dignidade, cumprindo a observância e conformação com o paradigma que
deve presidir a quaisquer regulamentações normativas, ou seja, o respeito pela humani-
dade intrínseca, que se justifica pela inadmissibilidade de uma «(…) discriminação des-
qualificante (…) em função do ser, da natureza da pessoa ou da presença de características
independentes da sua vontade e da responsabilidade do próprio (…
118
, como o género ou
sexo anatómico.
No desporto de competição a discriminação de atletas transgénero e diferenças no
desenvolvimento sexual não se traduz apenas na desqualificação. Em bom rigor, a discri-
minação é estigmatizante e violadora do primado da pessoa humana, entrando em conflito
com a sua autodeterminação pessoal, que foi subjetivada em direito para que justamente
se assegure à pessoa humana a manifestação externa do poder de autodeterminação que é.
Não se trata de uma mera violação ao princípio da igualdade. Trata-se, sim, de uma
violação qualificada em função do sexo por via da estigmatização assente num precon-
ceito socialmente edificado, dirigido a destinatários espeficos em função da sua vivên-
cia pessoal e de caraterísticas particulares que encontra respaldo num argumento, ainda
por consolidar cientificamente, de vantagem biológica em relação a atletas cisgénero.
Fica assim, de resto, por esclarecer a partir de que momento é que as caraterísticas
genéticas, biológicas e físicas naturais passaram a ser injustas e assim subsumíveis ao
argumento da justiça como ponto de partida no desporto.
5. Atletas transgénero e com diferenças no desenvolvimento sexual: a do direito
àidentidade pessoal de género controvérsia da lotaria genética natural
5.1. Crónicas de discriminação (in)direta no desporto pela representação
ereprodução sexuada da justiça
Se do ponto de vista do quadro de proteção internacional ou interno de direitos huma-
nos é possível afirmar que os direitos das pessoas transgénero se encontram formalmente
tutelados, quanto aos resultados materiais da eficácia destes instrumentos não se pode
afirmar o equivalente.
Um dos setores com maior incidência de impedimentos de participação de atletas
transgénero femininas ou com diferenças de desenvolvimento sexual é precisamente o do
desporto individual de competição
119
, em resultado da maioria dos eventos realizados se
118 NOVAIS, Jorge Reis – A Dignidade da Pessoa Humana. Volume II…, p.134.
119 Neste conteúdo cumpre assinalar que o objeto em relação ao qual se desenvolve o texto é o da participação de
atletas em competições individuais e não em grupo que, por razões relativas à delimitação do objeto do texto,
não são aqui tidas em consideração.
127
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organizarem de acordo com a categorização binária de sexo (não obstante a consideração
de outros fatores como a idade e peso).
A premissa fundamental é, nestes termos, que o género é uma caraterística da huma-
nidade e que a humanidade é sexuada de acordo com o modelo binário.
Coloca-se, assim, um obstáculo às atletas que pretendam participar de acordo com a
identidade de género auto percecionada ou de acordo com caraterísticas endógenas ima-
nentes.
Com maior ou menor destaque na comunicação social alguns casos controversos
quanto à participação de atletas transgénero femininas ou DDS foram discutidos em
instâncias jurisdicionais desportivas e órgãos responsáveis pelo sistema desportivo no
estrangeiro, pelo que enunciamos abreviadamente alguns dos mais paradigmáticos.
Em 1976 foi solicitado um teste de determinação de sexo biológico a Renee Richards,
uma atleta transgénero feminina que se encontrava endereçada a participar na categoria
feminina da modalidade. O teste foi recusado e a atleta foi afastada da competição
120
. Nesta
sequência o caso foi levado ao United States Supreme Court que reconheceu que a exigência
de realização de um teste para determinação do sexo biológico consistia numa ingerência
discriminatória e não justificada na privacidade e sobre o próprio corpo e sexualidade da
atleta
121
. A atleta foi assim admitida a participar no US Open, sendo que vinte e cinco atle-
tas cisgénero femininas retiraram-se de um futuro torneio argumentando que «(…) Dr.
Richards’s presence was unfair, that despite her operation and resulting feminine appear-
ance, she still retained the muscular advantages of a male and genetically remained a
male»
122
.
Dutee Chand, atleta hiperandrogénica
123
indiana de sprint, após ganhar a medalha de
ouro em 200 e 400 metros respetivamente em 2014, viu a sua participação na Asian Junior
Athletics ser alvo de escrutínio devido ao seu elevado nível de testosterona. Com o objetivo
de determinar o seu género biológico foi sujeita a testes de sangue, alises aos cromosso-
mas, um MRI
124
e um exame ginecológico. Na sequência destes foi banida das competições
120 SCHULTZ, Jamie – «Caster Semenya and the “Question of Too”: Sex Testing in Elite Women’s Sport and the
Issue of Advantage». In: Quest, p.235.
121 BIANCHI, Andria – «Transgender Women in Sports». In: Journal of the Philosophy of Sport, p.232; SCHULTZ,
Jamie – «Caster Semenya and the “Question of Too”: Sex Testing in Elite Womens Sport and the Issue of
Advantage». In: Quest, p.235.
122 SCHULTZ, Jamie – «Caster Semenya and the “Question of Too”: Sex Testing in Elite Women’s Sport and the
Issue of Advantage». In: Quest, p.236.
123 O hiperandrogenismo carateriza-se por uma condição endógena consistente numa produção superior de
testosterona, assumida regularmente como uma condição médica, que poderá conferir uma vantagem em
relação aos restantes atletas.
124 Magnetic resonance imaging.
128
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na categoria feminina, recebendo concomitantemente a advertência de que deveria medi-
car-se com supressores hormonais ou submeter-se a uma cirurgia de forma que os níveis
de testosterona fossem reduzidos ou, pelo menos, atenuados
125
.
Em 2015, a atleta recorreu ao Court of Arbitration for Sport (CAS) invocando a invalidade
dos regulamentos da International Association of Atheletics Federation (IAAF) relativos ao
hiperandrogenismo com as seguintes motivações: tratarem-se de regulações discrimina-
tórias em função de caraterísticas naturais e em função do sexo; inexistência de funda-
mentos científicos relativamente ao critério fundado nos níveis de testosterona; e, violação
do princípio da proporcionalidade na distinção entre atletas femininos e masculinos
126
.
O CAS suspendeu a aplicação dos regulamentos da federação internacional relativos
ao hiperandrogenismo por dois anos, determinando que neste prazo fossem apresentadas
evidências científicas que demonstrassem a relação entre o nível de testosterona e a van-
tagem na performance dos/as atletas
127
.
Não tendo apresentado evidências científicas que comprovassem a vantagem que
fundava a discriminação que desqualificava a atleta até à verificação do prazo, a IAAF
aprovou, contudo, nova regulamentação a 23 de abril de 2018 que estabelece as condições
de elegibilidade de atletas com diferenças no desenvolvimento sexual, ainda que circuns-
critas às competições entre os 400 e 1600 metros e eventos equiparados
128
.
Com efeito, e de acordo com o IAAF Explanatory Notes, a vantagem atlética na ordem
dos 10 a 12% dos atletas cisgénero masculinos em relação às atletas cisgénero femininas
resulta, entre outros fatores, da largura da estrutura óssea, da superioridade percentual de
massa muscular magra e força desta resultante, dos níveis de circulação de hemoglobina,
que são potenciados pelo nível de testosterona que intensifica a superioridade no desem-
penho
129
, o que se deu por comprovado em diversos estudos científicos endocrinológicos
que sustentaram a adoção da nova regulamentação
130
.
125 A regulação do hiperandrogenismo pela IAAF foi introduzida em 2011; COOPER, Jonathan – «Testosterone: “the
Best Discriminating Factor”». In: Philosophies, p.2.
126 COURT of Arbitration for Sport – CAS 2014/A/3759, Dutee Chand vs. AFI & IAAF, p.10.
127 COURT of Arbitration for Sport – CAS 2014/A/3759, Dutee Chand vs. AFI & IAAF, pp.154-156, 158.
128 IAAF – Eligibility Regulations for the Female Classification (Athlets With Differences of Sex Development).
129 IAAF – Elibibility Regulations for the Female Classification (Athletes With Differences of Sex Development)
Explanatory Note. P. 1-2; Note-se que na prática esta regulação exclui automaticamente atletas como Caster
Semenya.
130 «However, there is also an additional concern raised about how the IAAF has made use of scientific evidence
as a basis for justifying the Testosterone Regulations. (…) Bermon and Garnier, may be scientifically flawed,
both in terms of what it is capable of showing (only correlation not cause) and in terms of the data resulting
in a lack of scientific integrity». Cf. COOPER, Jonathan – «Testosterone: “the Best Discriminating Factor”». In:
Philosophies, p.13.
129
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A regulação do hiperandrogenismo consiste, assim, numa forma de exclusão de atletas
das competições assente em vantagens genéticas decorrentes da produção endógena de
testosterona
131
.
O requisito que suscitou maior celeuma foi, com efeito, a regra 2.2. que impõem às
atletas a redução dos níveis de testosterona a um valor inferior a 5 nanomols por litro
de sangue (nmol/L) de forma permanente enquanto houver pretensões de participar nas
competições, designadamente, com o recurso a contracetivos, concomitantemente com o
reconhecimento em termos legais da categorização binária feminina, como intersexo ou
equivalente
132
.
Em bom rigor, o que resulta desta regulamentação é que lhe está imanente uma con-
ceptualização de patologia do hiperandrogenismo que por isso deve ser objeto de uma
intervenção terapêutica de forma que as atletas possam cumprir os requisitos de elegibi-
lidade para competir na categoria feminina com as demais atletas cisgénero. Encontra-se
por isso claramente em oposição ao princípio 18 – que reforça a proibição de tratamentos
médicos sem o consentimento da pessoa – e ao princípio 32 – que reitera a consolidação
do direito à integralidade da pessoa física e psíquica, vertidos na Yogykarta Principles
133
.
Paradigmático é, de igual forma, o caso da atleta Caster Semenya, bicampeã olímpica
de 800 metros em atletismo, que tendo suscitado dúvidas quanto à sua elegibilidade para
competir na categoria feminina em resultado da sua virilização e aparência ambígua, a
solicitação da IAAF foi submetida a testes de verificação de género, bem como aos níveis
de testosterona que se revelaram substancialmente elevados em virtude do hiperandro-
genismo
134
.
Em 2017 Laurel Hubbard, atleta transgénero feminina da Nova Zelândia da modali-
dade de levantamento de peso superior a 90 quilogramas na categoria feminina, venceu
uma competição internacional, cuja participação foi antecedida pela realização de testes
de sangue pelo período consecutivo de doze meses por forma a demonstrar que os seus
131 Note-se que, em circunstâncias competitivas similares, as vantagens genéticas de Usain Bolt nunca foram
colocadas em causa. No mesmo sentido, «Whilst dedication and training was, of course, part of Usain Bolt’s
success, it would be hard to maintain that his recent domination of sprinting was not due, in part, to natural
genetic advantages he enjoyed over his competitors. It has been suggested that Bolt, like many other top
sprinters, has the “sprinting gene”, meaning he may have particulary fast-twitch muscle reflexes and longer
fibers than most. Unlike most of sprinters, however, he is 6 ft. 5 inches tall. These genetic advantages almost
certainly contributed to what makes him especially adept at sprint». Cf. COOPER, Jonathan – «Testosterone:
“the Best Discriminating Factor”». In: Philosophies, p.2.
132 IAAF – Eligibility Regulations for the Female Classification (Athlets With Differences of Sex Development). P. 3.
133 SCHWEND, Amets Suess – «Trans Health Care from a Despathologization and Human Rights Perspective».
In: Public Health Reviews, p.7.
134 SCHULTZ, Jamie – «Caster Semenya and the “Question of Too”: Sex Testing in Elite Womens Sport and the
Issue of Advantage». In: Quest, pp.228-233.
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níveis de testosterona não eram superiores aos de quaisquer outras atletas cisgénero que
integravam a mesma categoria naquela modalidade
135
– não obstante, a ideia de que a
atleta beneficiava de uma vantagem de ordem biológica permanece
136
.
5.2. Em busca da discriminação indireta no princípio the skill thesis
Atenta a igual dignidade de todas as pessoas, sendo proibida qualquer forma direta ou
indireta de discriminação, designadamente, por força do exercício do direito à identidade
e expressão de género
137
, verifica-se ainda no desporto algumas manifestações de carater
discriminatório quanto à participação de atletas transgénero femininas e DDS
138
que se
antagonizam ao princípio vertido no art.º 5.º da Lei N.º 30/2004, de 21 de julho
139
.
Princípio ético de governança no desporto é o princípio the skill thesis, segundo o qual
os resultados das competições desportivas devem ser determinados pela performance dos/
as atletas para os/as quais são dadas as mesmas oportunidades de competir. Em ordem a
alcançar este desiderato que remete para uma justiça de resultado é consensual que a uti-
lização de fatores externos que possam ter influência naquele sejam de rejeitar
140
.
Atentemos na organização biria dos/as atletas nas competições desportivas (v.g.
ciclismo feminino/masculino, natação feminina/masculina, levantamento de pesos femi-
nino/masculino). A categorização que determina a elegibilidade para cada segmento tem
por referencial aos 46 cromossomas organizados em pares, sendo que o 23 cromossoma
que determina o sexo identifica a pessoa como mulher na sequência 46 XX e homem na
correspondência 46 XY
141
.
135 International Olympic Committee – IOC Consensus Meeting on Sex Reassignment and Hyperandrogenism
November 2015.
136 BIANCHI, Andria – «Something Got to Give: Reconsidering the Justification for a Gender Divide in Sport». In:
Philosophies, p.4.
137 Neste sentido o art.º 2.º da Lei N.º 38/2018, de 7 de agosto que estabelece o direito à autodeterminação da
identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das caraterísticas sexuais de cada pessoa.
138 Ter-se-á em consideração tanto atletas DSD como transgénero femininas porque a crítica, designadamente,
quanto ao nível de testosterona, é comum. «Although these differences are significant, it is important to
consider intersex persons because they are often criticized for having too much testosterone to compete in
female categories, which is the thought to give them an unfair advantage. This is the same criticism that is
applied to trans*women.» Cfr. BIANCHI, Andria – Transgender Women in Sports. Journal of the Philosophy
of Sport. P. 231.
139 Princípio da Não Discriminação – Lei de Bases do Desporto.
140 Os equipamentos utilizados pelos atletas terão assim de ser os mesmos de forma a afastar quaisquer influências
exógenas nos resultados, o controlo de doping permite combater a administração de composições promovam
uma melhor performance desportiva por via exógena. São, neste sentido, também compreensíveis as críticas
apontadas à utilização de próteses de fibra de carbono por Oscar Pistorius nas competições com atletas que
não deficientes físicos. Neste sentido, COOPER, Jonathan – «Testosterone: “the Best Discriminating Factor”».
In: Philosophies, p.3.
141 «Whilst dedication and training was, of course, part of Usain Bolts success, it would be hard to maintain that
his recent domination of sprinting was not due, in part, to natural genetic advantages he enjoyed over his
131
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Duas consequências são imediatamente assacáveis: por um lado, que não se reconhece
neste sistema binário a possibilidade de atletas transgénero poderem livremente optar por
uma categoria conciliável com a identidade e expressão de género por si auto percebidas
142
e, por outro lado, que as atletas transgénero femininas não devem competir na respetiva
categoria, porquanto encontrar-se-ão numa posição eminentemente vantajosa em virtude
de possuírem caraterísticas físicas e fisiológicas, em contraposição com as demais atletas
cisgénero, que determinariam uma injustiça como ponto de partida, consequência igual-
mente observável em relação a atletas com DDS.
A justificação imediata que resulta para a imposição de limites à participação destas
atletas é rapidamente apreensível atendendo ao argumento da vantagem física, porquanto
os homens cisgénero apresentam uma massa muscular, em média, 30% superior às mulhe-
res cisgénero, além de regra geral mais altura. A superioridade percentual da massa mus-
cular confere assim mais robustez e potência. Já a elasticidade das fibras musculares das
mulheres cisgénero conferem caraterísticas físicas que favorecem os resultados em deter-
minadas modalidades desportivas
143
.
Daqui resulta a tautologia, discriminação generalizadamente tolerada, de não se sus-
citar celeuma em relação à participação de atletas transsexuais masculinos, atendendo
ao pressuposto de que naturalmente se encontram em desvantagem por força das suas
caraterísticas físicas e fisiológicas.
É consabido que a terapêutica hormonal de afirmação de género feminino consiste na
administração exógena de estrogénio que tem como efeitos clínicos alterações substanti-
vas na composição física e fisiológica que, e para os efeitos que aqui relevam, se traduzem
num significativo aumento e redistribuição da gordura corporal, bem como na diminui-
ção acentuada da força e massa muscular
144
. Ora, atendendo a que se trata de uma terapêu-
competitors. It has been suggested that Bolt, like many other top sprinters, has the “sprinting gene”, meaning
he may have particulary fast-twitch muscle reflexes and longer fibers than most. Unlike most of sprinters,
however, he is 6 ft. 5 inches tall. These genetic advantages almost certainly contributed to what makes him
especially adept at sprint». Cf. COOPER, Jonathan – «Testosterone: “the Best Discriminating Factor”». In:
Philosophies, pp.3-4; BIANCHI, Andria – «Transgender Women in Sports». In: Journal of the Philosophy of Sport,
p.232.
142 Naturalmente encontram-se aqui apenas consideradas as atletas que não iniciaram ou não pretendem iniciar
a terapêutica hormonal ou recorrer à cirurgia de afirmação de género.
143 IAAF – Elibibility Regulations for the Female Classification (Athletes With Differences of Sex Development)
Explanatory Note, p.2; GLEAVES, John e LEHRBACH, Tim – «Beyond Fairness: The Ethics of Inclusion for
Transgender and Intersex Athletes». In: Journal of The Philosophy of Sport, pp.315-317; MACEDO, Ana – Identidade
de Género e Orientação …, p.107.
144 As hormonas de estrogénio são as correspondentes ao género com o qual se identifica. A terapia inclui ainda
antiadrogénicos que visam suprimir as hormonas que o corpo produz endogenamente por via da inibição dos
recetores androgénios, cfr. MACEDO, Ana – Identidade de Género e Orientação …, p.86-87; «Anedoctal evidence
from the few athletes who discuss their postsurgical and posthormonally transitioned selves assert that their
bodies are “greatly weakened” and their testosterone levels are well bellow those of “normal women”». Cf.
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tica ad eternum a clivagem que resultaria em relação às atletas cisgénero encontrar-se-ia
mitigada, porquanto a significativa diferença da constituição corporal encontra-se infin-
davelmente comprometida.
Não se encontrando pacificada a controvérsia nas competições desportivas relativa-
mente à participação de atletas transgénero femininas por esta via, há que assinalar que a
testosterona é o argumento que tem perpetuado a discriminação nas competições despor-
tivas, dirigindo-se de igual forma às atletas com diferenças no desenvolvimento sexual.
Com efeito, e atenta a falibilidade dos testes de verificação cromossomática do sexo
por força das variações cromossomáticas que determinam que mulheres não sejam neces-
sariamente 46 XX e homens 46 XY, reuniram-se os pressupostos para a elevação da tes-
tosterona a melhor argumento de discriminação indireta sob o pretenso paradigma de
assegurar uma justiça artificial numa área em que precisamente as vantagens físicas e
fisiológicas genéticas distinguem os atletas nos resultados.
O argumento da injustiça é regularmente empregue no que concerne à participação
de atletas transgénero femininas e DDS enquanto mecanismo de impedimento de par-
ticipação nas categorias femininas, porquanto se entende que, regra geral, apresentando
níveis mais elevados de testosterona ficam imediatamente colocadas numa situação de
vantagem do ponto de vista da aptidão física
145
.
Note-se, contudo, de as atletas cisgénero com síndrome de ovários poliquisticos apre-
sentam de igual forma níveis superiores de produção endógena de testosterona em relação
à média das restantes atletas, mas quanto a estas o resultado da regulação é tendencial-
mente inclusivo, por oposição ao resultado de eminente segregação das atletas transgé-
nero femininas e DDS
146
.
Ora, partindo da consideração dos fatores de ordem biológica e genética e atenta a
imporncia da consistência para o desenvolvimento de uma regulamentação adequada
a tutelar e garantir a participação das atletas transgénero femininas e com diferenças no
desenvolvimento sexual, é necessário adstringir-nos à evidência dos estudos incidentes
SCHULTZ, Jamie – «Caster Semenya and the “Question of Too”: Sex Testing in Elite Womens Sport and the
Issue of Advantage». In: Quest, p.235; GLEAVES, John; LEHRBACH, Tim – «Beyond Fairness: The Ethics of
Inclusion for Transgender and Intersex Athletes». In: Journal of The Philosophy of Sport, p.313.
145 «Critics often believe that having, on average, more testosterone gives them an unfair advantage that makes
them perform immensely better than their female-born counterparts.». Cfr. BIANCHI, Andria – «Transgender
Women in Sports». In: Journal of the Philosophy of Sport, pp.229-230; Confirmando as vantagens relitivamente
a algumas provas na modalidade de atletismo, cfr, IAAF – Elibibility Regulations for the Female Classification
(Athletes With Differences of Sex Development) Explanatory Note, p.6.
146 HIRSCHBERG, Angelica Lindén – «Female Hyperandrogenism and elite sports». In: Endocrine Connections
Review, pp.83, 88-89.
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sobre potenciais vantagens atléticas que aquelas atletas possam apresentar em relação às
cisgénero.
Na verdade, não existe qualquer resultado científico que evidencie que estas atletas
beneficiam de alguma vantagem na sua performance em todas as modalidades desporti-
vas
147
, sendo certo que ainda há que ponderar o facto de, não obstante, em abstrato o nível
de testosterona ser suscetível de se considerar relevante, a aptidão e performance de um/a
atleta depende, de igual forma, de um conjunto de fatores externos e internos, tais como
a aptidão natural para a modalidade, a sua composição genética, a motivação pessoal, o
treino adequado, a alimentação e nutrição, que não podem ser menosprezados.
Em bom rigor, os níveis de testosterona, que têm constituído um verdadeiro impedi-
mento impediente porquanto têm fundado a exclusão de atletas transgénero femininas e
com DDS das competições, não garantem por si só que o/a atleta tenha um nível de per-
formance significativamente superior aos restantes atletas em todas as modalidades des-
portivas.
Não existindo assim razões atendíveis que levem a uma adstrição absoluta aos níveis
de testosterona per se, ter-se-á que, concomitantemente, considerar a resposta do corpo
do/a atleta ao nível de testosterona para aferir a relencia desta no caso particular
148
.
O termo “testosterona efetiva” remete, precisamente, para o nível de testosterona efe-
tivamente utilizado pelo corpo do/a atleta para incremento da sua aptidão e performance
na modalidade desportiva concreta
149
.
Se a resposta concreta do corpo da atleta ao nível de testosterona for relevante, é legí-
timo afirmar-se que o nível de testosterona enquanto fator determinante de uma perfor-
mance superior em relação às atletas cisgénero encontra respaldo na justiça de resultado
147 O que se permite inferir, em bom rigor, da regulação da IAAF em relação ao hiperandrogenismo é precisamente
que o nível de testosterona é apenas significativo em algumas provas de atletismo, designadamente as provas
entre 400 a 1600 metros. Cfr. IAAF – Elibibility Regulations for the Female Classification (Athletes With
Differences of Sex Development) Explanatory Note, p.3-4; O emprego do verbo transitivo “pode” indicia a
possibilidade, não a dando por isso por assente. HIRSCHBERG, Angelica Lindén – «Female Hyperandrogenism
and elite sports». In: Endocrine Connections Review, pp. 86-89; GLEAVES, John; LEHRBACH, Tim – «Beyond
Fairness: The Ethics of Inclusion for Transgender and Intersex Athletes». In: Journal of The Philosophy of Sport,
pp.313-314.
148 SCHULTZ, Jamie – «Caster Semenya and the “Question of Too”: Sex Testing in Elite Women’s Sport and the
Issue of Advantage». In: Quest, pp.233-234; No mesmo sentido, BIANCHI, Andria – «Transgender Women in
Sports». In: Journal of the Philosophy of Sport, p.233. «According to the fairness argument, transgender women
should not be allowed to compete in female categories in sports since they possess unfair advantages due
to high levels of testosterone. One explanation for this argument is the skill thesis, which says that sports are
meant “to determine which opponent is more skilfull”».
149 SCHULTZ, Jamie – «Caster Semenya and the “Question of Too”: Sex Testing in Elite Women’s Sport and the
Issue of Advantage». In: Quest, pp.238-239; BIANCHI, Andria – «Transgender Women in Sports». In: Journal of
the Philosophy of Sport, p.233; BIANCHI, Andria – «Something Got to Give: Reconsidering the Justification for a
Gender Divide in Sport». In: Philosophies, p.6.
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que o princípio the skill thesis pretende alcançar, não se traduzindo por isso numa violação
ao princípio da igualdade.
Contudo, ter-se-á que ter presente que a lotaria genética natural por si só sempre basta-
ria para relativizar o princípio the skill thesis porquanto as caraterísticas genéticas sempre
serão suscetíveis de determinar uma maior vantagem para alguns atletas quando e se
comparados entre si apenas atletas cisgénero
150
.
Tomemos como exemplo a síndrome de Marfan, que consiste numa condição médica
que torna a pessoa particularmente alta. Terá esta condição médica relevância ao ponto
de excluir um atleta de uma equipa de basketball ou volleyball? Julgamos que não, pese
embora a evidência de que quando comparado com outros atletas da mesma modalidade
sempre se encontrará em vantagem em relação ao resultado por força da sua altura. Exem-
plo modelar de caraterísticas genéticas naturais que revelam uma predisposição para
alcançar melhores resultados quando comparado com outros atletas cisgénero é também
o do atleta é o Michael Phelps
151
.
Em bom rigor, em ambos os exemplos, o que se evidencia é que se tratam de caraterís-
ticas genéticas naturais que não se encontram facilmente nos demais atletas, pelo que se
tratam de diferenças que se revestem de potencial para que não se considerem subsu-
veis à justiça desportiva radicada da interpretação tradicional do princípio the skill thesis e
da qual se alcança a igualdade meramente formal.
Todavia, a elevada percentagem de massa muscular, bem como a inerente força, robus-
tez e agilidade de atletas como Caster Semenya têm suscitado particular atenção por força
de uma vantagem genética que determina a diferença em relação a outras atletas cisgé-
nero (níveis endógenos de testosterona) e que por isso tem sido considerada uma vanta-
gem desproporcional e injusta, ao contrário do que sucede com os atletas dados a exemplo,
aos quais se associa um sentido positivo de vantagem enquanto “talento natural”.
Com efeito, não de poderá deixar de entender que o argumento da testosterona é, na
verdade, um pressuposto da organização biria das competições desportivas que resulta
150 Acompanhamos, por isso, Simona Giordano e John Harris na rejeição à proposta de recurso à engenharia
genética de melhoramento de Torbjörn Tännjsö e Claudio Tamburrini para alcançar uma verdadeira igualdade
de género nas competições desportivas. Cfr. GIRODANO, Simona; HARRIS, John – «What is Gender Equality
in Sports?». In: Genetic Technology and Sport: Ethical Questions, pp.209-216; TÄNNSJÖ, Torbjörn e TAMBURRINI,
Claudio (Coord.) – «Gender Equality and Gene Technology in Sport». In: Genetic Technology and Sport: Ethical
Questions, pp.181-195.
151 COOPER, Jonathan – «Testosterone: “the Best Discriminating Factor”». In: Philosophies, p.2; Para uma análise
mais detalhada sobre os testes de verificação de género, cfr, COOPER, Emely J. – «Gender Testing in Athletic
Competitions – Human Rights Violations: Why Michael Phelps is Praised and Caster Semenya is Chastised».
In: The Journal of Gender, Race & Justice; e sobre a regulação da vantagem genética, POLEZ, Sarah e LEWIS, anna –
«Regulating Genetic Advantage». In: Harvard Journal of Law & Technology.
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da desigual e discriminatória conceptualização em relação às variações genéticas decor-
rentes do cromossoma sexual e às variações cromossomáticas que determinam outras
vantagens físicas, que radicam da edificação socialmente elaborada de hierarquização
entre homem e mulher.
Importa por isso ponderar quando é que se torna possível afirmar que determinado
desempenho é significativamente superior para que não se possa considerar legítimo
numa mulher.
Proposta a ser desconsiderada, pese embora com algumas reservas, é a de Torbjörn
Tännsjö e Claudio Tamburrini quanto à eliminação de categorias binárias por referência
ao sexo morfológico. Partindo da premissa de que qualquer forma de discriminação sexual
é moralmente rejeitável independentemente do contexto e motivações em que se veri-
que
152
, pretende resgatar o pririo desiderato das competições desportivas, segundo o
qual os atletas devem competir em igualdade de circunstâncias, sem referência a uma
categoria, determinando-se assim por via da performance fáctica e de resultado quem
seria o/a melhor atleta.
Não obstante a bondade da proposta, note-se que a categorização binária poderá não
consistir numa forma de discriminação sexual injustificada stricto sensu, desde logo por
não considerar a possibilidade científica de fatores biológicos (v.g. testosterona) susten-
tarem a manutenção das categorização binária de género em modalidades específicas,
por outro lado não pondera a dimensão social da construção de igualdade de género e do
tortuoso caminho que levou à inclusão das mulheres nas competições desportivas que,
inicialmente, se encontravam reservadas aos homens
153
.
No âmbito das competições desportivas, o sucesso dos resultados dos/as atletas encon-
tra-se estritamente ligado à maximização das aptidões biológicas naturais. Significa isto
que as próprias caraterísticas físicas e fisiológicas que enformam o património genético
que é o corpo têm relevância imediata na robustez, resistência, potência e aptidão do/a
atleta.
152 TÄNNSJÖ, Torbjörn e TAMBURRINI, Claudio – «The Genetic Design of a New Amazon». In: Genetic Technology
and Sport: Ethical Questions, pp.181 e 185; «For virtually as long as women have been allowed to compete in Athletics
(and indeed other sports), there have been rules to segregate competition into male and female categories, a
distinction that as historically been made by reference to biological sex. The rational for segregation was, no
doubt, initially based on observations, assumptions and generalizations about the athletic ability of men and
woman, the perceived “weakness” of the feminine form and cultural stereotypes about the role of women». Cf.
COOPER, Jonathan – «Testosterone: “the Best Discriminating Factor”». In: Philosophies, p.3.
153 SAPPENFIELD, Kourtney – «Adrienne Miller and Jomills Braddock II: Sex Segregation in Sports: Why Separate
is Not Equal. In: J Youth Adolescence. California: Praeger, 2016, pp.2480-2481; GLEAVES, John e LEHRBACH, Tim
– «Beyond Fairness: The Ethics of Inclusion for Transgender and Intersex Athletes». In: Journal of The Philosophy
of Sport, p.315.
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A utopia de justiça que se pretende assacar ao princípio e que sustenta a categorização
binária com recurso ao argumento do nível de testosterona, ter-se-á que ter por necessaria-
mente errónea, porquanto a individualidade endógena sempre poderá colocar alguns atle-
tas numa posição eminentemente vantajosa que outros tantos jamais poderão alcançar,
concluindo-se pela relativa expressão do princípio em relação ao ponto de partida iguali-
rio na organização biria das competições desportivas
154
.
Resta assim, apreciar duas alternativas: a primeira, que se prescinda do princípio the
skill thesis em relação à participação destes/as atletas nas competições ainda que os níveis
de testosterona efetiva sejam determinantes no resultado; a segunda, não se prescindindo
do princípio, que se atendam às vantagens genéticas de todos os atletas (cisgénero e trans-
género e DDS) na organização das competições desportivas, de forma a mitigar as vanta-
gens resultantes da lotaria genética natural
155
.
Conclusão
Conforme resulta das disposições conjugadas do artigo 1.º e do artigo 10.º da UNESCO Inter-
national Charter of Physical Education, Physical Activity and Sports, é princípio fundamental de
governança desportiva no acesso à prática desportiva, incluindo as competições profissio-
nais, a não discriminação
156
.
Este instrumento que necessariamente tem de ser interpretado em conjugação com o
quadro legal de proteção internacional de direitos humanos tem, por conseguinte, que se
traduzir na criação de condições para o cumprimento integral do desiderato de respeito
pela dignidade da pessoa humana, livre desenvolvimento da personalidade, privacidade
e integridade.
A organização biria das competições desportivas tem suscitado particular atenção
no que concerne à participação das atletas transgénero femininas e com diferenças no
desenvolvimento sexual porquanto tem potenciado a violação de um catálogo de direitos
imanentes à dimensão ética e ontológica da pessoa humana, que não se compadecem com
154 «I draw on a couple of examples to illustrate this point, such as the case of Michael Phelps, whose genetic
attributes provide him with many advantages that is competitors probably lack (e.g. size 14 feet, the fact that
he is double jointed, his large ‘wingspan’)». Cf. BIANCHI, Andria – «Something Got to Give: Reconsidering the
Justification for a Gender Divide in Sport». In: Philosophies, p.6; GLEAVES, John; LEHRBACH, Tim – «Beyond
Fairness: The Ethics of Inclusion for Transgender and Intersex Athletes». In: Journal of The Philosophy of Sport,
p.315.
155 BIANCHI, Andria – «Something Got to Give: Reconsidering the Justification for a Gender Divide in Sport». In:
Philosophies, p.6.
156 UNESCO – International Charter of Physical Education, Physical Activity and Sports.
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a ausência de transparência e consolidação das motivações que presidem à definição de
critérios de elegibilidade das atletas.
A justiça de resultado que se pretende alcançar com o princípio the skill thesis é assim
meramente formal e não material. A proporcionalidade que se encontra inerente ao argu-
mento da vantagem física destas atletas em comparação com as atletas cisgénero, está
longe de justificar as restrições que têm sido colocadas às atletas transgénero femininas e
com diferenças no desenvolvimento sexual.
Com efeito, não se poderá aceitar que exista proporcionalidade quando a desvanta-
gem radica apenas de uma potencial redução das possibilidades de ganhar. A proteção
conferida pelo complexo de direitos humanos fundamentais torna assim difícil justificar
a abstrata vantagem consignada às atletas transgénero femininas e com diferenças no
desenvolvimento sexual face ao potencial da lesão dos direitos e liberdades de que estas
são também titulares, atendendo ao primado de justiça do resultado material que se pros-
segue no desporto.
Em bom rigor, trata-se de uma desadequada interpretação do princípio the skill thesis
157
que tem promovido o impedimento da participação de atletas transgénero femininas e
com diferenças de desenvolvimento sexual
em diversas competições desportivas ou, não
se verificando ab initio o impedimento, suscitado posteriormente decisões que colidem
com o direito à autodeterminação de género e ao livre desenvolvimento da personalidade,
desde logo porque se refletem no contexto de uma atividade que é central nas suas vidas,
mas de igual forma porque faz indiciar o acolhimento da patalogização
158
das questões
relativas ao género .
O princípio não sugere que é a categorização binária e os métodos indiciários que
levam à sua subsunção que deverá ser o critério orientador. Na verdade, a meritocracia
desportiva não sugere sequer que os/as atletas sejam tratados de forma absolutamente
igual, porquanto a diversidade, e consequentemente a diferença, são caraterísticas da
espécie humana. O que sugere é que os/as atletas preencham requisitos de elegibilidade
para participarem nas competições que tenham por referência as suas caraterísticas bio-
lógicas e genéticas naturais que, naturalmente, têm de ser maximizadas, de forma que a
competição acolha os/as atletas equally e não as equalls.
157 Este princípio sugere que é a própria prática/execução da modalidade desportiva que deve determinar o/a atleta
com maior aptidão, e consequentemente melhores resultados, por via de um ponto de partida justo que coloque
os/as atletas em competição numa posição equilibrada entre si.
158 O que resulta aliás bastante evidente na subtil imposição constante das Elibibility Regulations for the Female
Classification (Athletes With Differences of Sex Development) da IAAF.
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A verdade desportiva, que decorre do princípio da ética desportiva
159
, tem reforçado a
interpretação do princípio the skill thesis quanto à necessidade de atender à aptidão física
do atleta no domínio da força, rapidez, agilidade, que pode ser influenciada pelos níveis de
testosterona. Ora, a aptidão/habilidade do atleta não pode ser considerada isoladamente,
porquanto não se poderá deixar de ter presente que as vantagens genéticas (além da tes-
tosterona leia-se) são um facto inarredável no desporto, pelo que a defesa de um ponto
de partida equivalente ou justo nas competições sempre consistirá num objetivo utópico.
Encontrando-se as vantagens genéticas dadas por assentes no desporto
160
, não obstante
a consagração e projeção prática daquele princípio, e não se pretendendo abdicar deste,
terá chegado a altura de ponderar a legitimidade do argumento em relação aos níveis de
testosterona para exclusão das atletas transgénero femininas e com diferenças de desen-
volvimento sexual.
Tratando-se de caraterísticas genéticas naturais, conforme é o caso do nível de produ-
ção de testosterona destas atletas, dificilmente se encontra um critério ético racional para
que se atenda particularmente a esta caraterística e outras sejam ignoradas, relativamente
a todos/as os/as atletas (cisgénero, transgénero e DDS), justamente numa área em que as
vantagens genéticas naturais se encontram em estrita ligação com o resultado e que por
isso são maximizadas.
A proposta é, nestes termos, de não abdicar do princípio the skill thesis, mas ponderar
a adoção de um modelo de conformidade paritário que, partindo do pressuposto que os
resultados desportivos devem basear se na habilidade física das atletas, progrida para a
eliminação de categorias por referência ao género binário
161
, cumprindo-se por um lado o
conteúdo substantivo do princípio da não discriminação e por outro lado promovendo a
inclusão de todos os/as atletas numa competição que cumpra o desiderato igualitário de
justiça material.
Com efeito, reconhecendo-se as profícuas finalidades do princípio the skill thesis, é a
equidade do resultado da aplicação prática do princípio que conduz à necessidade de miti-
gar potenciais vantagens por um critério de justiça nas competições desportivas.
159 Particularmente n.º 1 e 2 do art.º 3.º da Lei N.º 5/2007, de 16 de janeiro, que define as bases das políticas de
desenvolvimento da atividade física e desportiva, bem como o n.º 1 e 2 do art.º 40.º da Lei N.º 30/2044, de 21 de
julho, que define as bases gerais do sistema desportivo.
160 IAAF – Elibibility Regulations for the Female Classification (Athletes With Differences of Sex Development)
Explanatory Note. P. 6.
161 No mesmo sentido, SILVA, Artur Flamínio da – «Hiperandrogenismo». In: Enciclopédia de Direito do Desporto,
p. 214. «(…) uma das soluções para evitar as críticas de discriminação de atletas com hiperandroginismo,
podia passar pela criação de uma terceira categoria (a categoria neutra), esbatendo-se, assim, a categorização
dicotómica de homem/mulher. Nada impede que o Desporto evolua para uma total eliminação de categorias».
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A típica organização das competições desportivas baseada no género feminino ou mas-
culino traduz-se numa forma de discriminação indireta, aferida pelo resultado, relativa-
mente às atletas transgénero femininas ou com diferenças no desenvolvimento sexual,
atenta a relevância dos níveis de testosterona que podem determinar uma vantagem real
em relação aos atletas cisgénero, considerando as razões de ordem física e fisiológicas que
determinam diferenças entre homens e mulheres.
Uma forma de mitigar as vantagens imanentes de ordem genética seria a criação de
um sistema de handicap centrado na resposta do corpo ao nível de testosterona efetivo
para a prática da modalidade concreta, atendendo a que os níveis de testosterona efetiva
possam ser determinantes no resultado
162
.
Todavia, não existindo evidências científicas que sustentem de forma consolidada
a manutenção da segmentação binária generalizada, particularmente por referência ao
nível de testosterona e de igual forma que a eventual vantagem conferida pelo nível de tes-
tosterona seja distinta de qualquer outra vantagem genética natural independentemente
da modalidade desportiva concreta, atendendo ao atual resultado material da aplicação
do princípio the skill thesis eminentemente discriminatório, a eliminação de categorias por
género binário apresenta-se como uma forma de alcançar a igualdade material por via da
paridade.
Tendo em vista o desiderato do princípio, em alternativa à segmentação de atletas por
sexo anatómico, melhor se afigura a consideração de outros fatores para cada modalidade
que, de facto, podem contribuir significativamente para a determinação do vencedor da
competição de acordo com o paradigma da justiça desportiva.
Nestes termos, não abdicando da aplicação do princípio the skill thesis e do profícuo
resultado inclusivo que ao mesmo se pode assacar, de forma a obstar à segregação das atle-
tas transgénero ou com diferenças no desenvolvimento sexual, entende-se que a criação
de um sistema de handicap que considere as vantagens genéticas, fisiológicas e físicas de
todos os atletas (cisgénero, transgénero e com diferenças no desenvolvimento sexual) rele-
vantes em cada modalidade desportiva, alcançará o profícuo resultado de mitigar trans-
versalmente as vantagens resultantes da lotaria genética natural
163
.
É, nestes termos, de afastar a opção de criação de uma terceira categoria neutra por-
quanto, no limite, o resultado de exclusão poder-se-ia verificar nestas circunstâncias por
força das atletas não terem nenhuma outra atleta transgénero feminina ou com diferenças
de desenvolvimento sexual.
162 BIANCHI, Andria – «Transgender Women in Sports». In: Journal of the Philosophy of Sport, pp.237-239.
163 BIANCHI, Andria – «Something Got to Give: Reconsidering the Justification for a Gender Divide in Sport». In:
Philosophies, p.6.
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Partindo do conteúdo substantivo da paridade, uma reinterpretação contemporânea
permite avançar paulatinamente para a afirmação de que esta existe na medida em que
se defenda que a diferença sexual não é decisiva na classificação da espécie humana. O
pressuposto é o de a pessoa não é aquilo que é em função do sexo morfológico
164
.
A eliminação de categorias por referência ao género binário permite obstar a discri-
minações arbitrárias, designadamente por força do sexo, bem como promove o resultado
prosseguido pelo princípio the skill thesis de justiça material.
Se a demarcação da porção a que cada pessoa tem direito no leque de bens disponí-
veis, leia-se iguais oportunidades de participar nas competições desportivas, porção essa
que há de ser rigorosamente igual para todos os indivíduos, não se encontrar adstrita à
organizações reducionistas das potencialidades do ser em devir que é a pessoa humana,
promove-se um ambiente mais inclusivo e não estigmatizante no desporto que permite o
estabelecimento pertuo de uma participação materialmente igualitária.
Por conseguinte, a possibilidade de se alcançar um equilíbrio entre as diferenças das
pessoas e as caraterísticas que lhe são comuns com a eliminação das categorias birias
deve-se, sobretudo, ao facto de a organização das competições encontrar fundamento em
caraterísticas especificamente relevantes para a modalidade desportiva concreta.
Um sistema de organização assente neste pressuposto é mais inclusivo, não apenas
por acolher as vantagens decorrentes genética natural, mas de igual forma por criar condi-
ções materiais de elegibilidade para atletas de género não binário, e que não tenham inten-
ção de recorrer a terapias hormonais ou à cirurgia de afirmação de género, alcançando-se
desta forma a definição permanente de uma igualdade material.
De resto, este sistema meritocrático não significará que não se venham a verificar
competições em que atletas cisgénero masculino ou feminino competirão com atletas do
mesmo género e sexo, contudo o paradigma que presidirá à organização das competições
desportivas, com a eliminação total de categorias por referência ao género, será o endere-
çar as caraterísticas relevantes para a modalidade desportiva para alcançar a justiça real
ou de resultado de acordo com as competências físicas e fisiológicas do/a atleta.
164 Afastamo-nos assim da conceptualização de paridade apresentada por RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto –
«Paridade, a Outra Igualdade». In: Ciências Jurídicas Civilísticas: Comunitárias; Económicas; Empresariais…, p.588.
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