GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 2 · 1
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O paradigma indiciário na era da informação:
os desaos semióticos do processo penal
The indiciary paradigm in the information era:
thesemioticchallenges of the criminal process
ELIOMAR DA SILVA PEREIRA*1
eli.omar.vii@gmail.com
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 21841845
Volume XXI · 1
st
July Julho–31
ST
December Dezembro 2020 · pp. 4656
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.2.3
Submitted on September 28
th
, 2020 . Accepted on November 10
th
, 2020
Submetido em 28 de setembro, 2020 . Aceite a 10 de novembro 2020
RESUMO A era da informação, sobretudo em sua expressão digital, tem promovido grande
revolução nas relações sociais, viabilizando novas perspectivas interativas nos âmbitos
diversos da sociedade, política e economia, assim como no âmbito da criminalidade
comum e organizada. Ao passo que cria ambientes novos de prática de antigos crimes,
viabiliza também novos crimes que se praticam no espaço cibernético, mas também acaba
por criar novos sinais que se podem assimilar como indícios de atividades relevantes à
investigação do crime no processo penal. Este artigo tem por objetivo discutir o paradigma
indiciário que permanece relevante à compreensão desse universo de sinais digitais,
segundo uma abordagem semiótica das provas, bem como delimitar suas possibilidades
lógicas fundamentadas em inferências abdutivas, ao passo que rearma os direitos
fundamentais de defesa que em nada devem ser abalados pela multiplicação dessas novas
fontes de informão.
PALAVR AS-CHAVE paradigma – informação – índice – abdução – semiótica
ABSTRACT The information age, especially in its digital expression, has promoted a great
revolution in social relations, enabling new interactive perspectives in different areas of
society, politics and economics, as well as in the scope of common and organized crime.
While it creates new environments for the practice of old crimes, it also enables new
* Doutor em Direito (Universidade Católica Portuguesa, Escola de Lisboa). Investigador Integrado do Ratio Legis
– Centro de Investigação e Desenvolvimento em Ciências Jurídicas, Universidade Autónoma de Lisboa: Corpus
Delicti – Estudos de Criminalidade Organizada Transnacional. Professor do Programa de Pós-Graduação da Escola
Superior de Polícia (Polícia Federal do Brasil). Delegado de Polícia Federal. Assessor da Casa Civil (Presidência da
República do Brasil).
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crimes that are practiced in cyber space, but it also ends up creating new signs that can
be assimilated as evidence of activities relevant to the investigation of crime in criminal
proceedings. This article aims to discuss the evidential paradigm that remains relevant
to the understanding of this universe of digital signals, according to a semiotic approach
to evidence, as well as to delimit its logical possibilities based on abductive inferences,
while reaffirming the fundamental rights of defense that in no way must be shaken by
the multiplication of these new sources of information.
KEYWORDS paradigm – information – index – abduction – semiotics
1. Introdução
A noção de paradigma já era conhecida no mundo antigo como modelo ou exemplo, con-
forme se buscasse um padrão no mundo das ideias ou no mundo da experiência
1
, mas
foi apenas no século passado que se renovou seu interesse a partir da historiograa das
ciência com a obra de Thomas Kuhn, gerando discussões que lhe exigiram melhor expli-
car-se m Posfácio (1969), para defini-lo inicialmente como aquilo que os membros de uma
comunidade cientifica partilham, explicando-o como uma “constelação dos compromis-
sos de grupo” que abrange “generalizações simbólicas”, “partes metafísicas”, valores e
exemplares compartilhados
2
. Diríamos, melhor, contudo, que certos paradigmas podem
ser compartilhados por várias comunidades, não apenas científicas, como também jurídi-
cas, a exemplo do paradigma indiciário. E de forma mais sintética, podemos compreender
o paradigma como um parâmetro ético-epistêmico de ação e pensamento que inclui uma visão de
mundo e do homem. E, nesse sentido, ele terá sempre algumas diversas variações e mesmo
um contra-parâmetro que disputa sua validade no âmbito de uma comunidade.
O paradigma indicrio, nesse sentido, embora se refira imediatamente a uma espe-
fica epistemologia, que podemos encontrar em várias comunidades, tanto científica
quanto jurídica, tem uma face ético-política, cujo contra-paradigma apodítico nos permite
compreender melhor o que está em questão e nos interessa discutir no âmbito específico
do processo penal.
A civilização ocidental sempre privilegiou o apodítico em detrimento do indiciário,
mas nunca o descartou em absoluto, pelo menos como ponto de partida, embora sempre
1 ABBAGNANO, N. – Dizionario di filosofia. Torino: UTET, 2013, p.792.
2 KUHN, T. S. – A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2009, pp.219ss.
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buscando afirmar-se ao final como paradigma dominante. O indiciário foi confiscado pelo
apodítico, como parte deste que evita colocar-se como seu contrário, para ao final sobrepor-
-se. Trata-se de uma estratégia cognitiva que acaba por criar uma aparência de rigor cres-
cente, na qual a fase anterior é assimilada pela posterior que se torna superior, dando-nos
mais garantias de verdade, embora abaixa da superfície aparente, subsistam as mesmas
dúvidas epistemológicas.
Nós o identificamos mais rapidamente em nosso meio jurídico na estrutura do pro-
cesso penal, em que o indiciário é tomado como necessário, na fase de inquérito – a exem-
plo do direito português, embora por vezes desconsiderado no direito brasileiro, mas em
todo caso nunca considerado como suficiente às conclusões das sentenças. Contudo, em
perspectiva epistemológica séria, bem observado e entendido, a sentença permanece
indiciária, porque não se obtém uma certeza como se postula pelo discurso jurídico tradi-
cional, embora se tenha acrescido um elemento importante à decisão: a possibilidade de
debate que é a face ético-política do mesmo paradigma.
A mesma estrutura de pensamento se encontra no desenvolvimento da ciência. As
hipóteses (indicrias) se consolidam como teoria porque se permitiram discutir sem
refutação alcançada, mas não nos dão certezas absolutas, como se tem enfatizado pela
epistemologia popperiana que surge no final do século passado e tende a permanecer forte
no atual século
3
.
2. O apodítico na tradição filosófica
Contudo, como o dissemos, a ideia de certeza sempre foi privilegiada, com o paradigma
apodítico que se consolidou na civilização ocidental, alcançado sua rearmação moderna
na filosofia de Descartes, cujo espírito more geometrico privilegiava a demonstração como
procedimento cognitivo racional em detrimento da argumentação, deixada ao nível da
retórica
4
.
O que não fica evidente, mas precisamos entender preliminarmente, é que as estru-
turas de pensamento apoditicio viabilizam estruturas políticas autoritárias e vice-versa.
Essa compreensão se deve ao espírito do racionalismo crítico de Karl Popper, que soube
identificar as relações entre os discursos epistêmico e político de Platão, em cuja filosofia
identifica elementos autoritários, tanto no Teeteto, que trata da crença verdadeira e justi-
3 POPPER, K. – A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1975.
4 PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. – Tratado da argumentação. A nova retórica. São Paulo: Martins Fontes,
2002, pp.2ss.
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ficada, quanto na República, que fala de Reis filósofos, cujas relações não evidentes são o
apoio entre um e outro
5
.
Quando falamos em paradigma apodítico, portanto, precisamos compreender como
duas faces do mesmo autoritarismo que se reforçam, um cognitivo e outro potestativo
que tendem ao dogmatismo e ao despotismo, o que no processo penal tem consequên-
cias sérias aos direitos fundamentais
6
. E, nesse sentido, será oportuno compreender que o
paradigma indicrio é o único capaz de conviver com a forma de vida democrática, por-
que se apresenta como hipótese aberta a outras interpretações, em um universo de valores
múltiplos, formas de vida e visão de mundo.
Mas o que é exatamente esse paradigma indicrio?
3. O paradigma indiciário nos pensamentos científico e penal
Atribui-se geralmente a Carlo Ginzburg ter cunhado essa expressão no final do séculoXX,
mas para referir-se a um padrão de pensamento que se pode encontrar em tempos imemo-
riais, desde caçadores que interpretavam os rastos deixados por suas presas
7
. Ocaçador é,
nesse sentido, o tipo primordial de que podemos extrair o padrão básico de pensamento
indiciário, no qual o sujeito de conhecimento se utiliza dos sinais de que dispõe, daquilo
que consegue rastrear, fazendo interpretações e algumas inferências lógicas para concluir
acerca do que lhe interessa, qual presa passou por ali, há quanto tempo e em que direção
foi. Algumas conclusões mais indiciárias que outras, mas o suficiente para tomar uma
decisão sobre o que fazer em seguida a perseguição.
Mas de forma similar, podemos encontrar o mesmo padrão de raciocínio no médico e
no analista de arte. Ambos se orientam por outros tipos de sinais para concluir indiciaria-
mente acerca do que lhes interessa conhecer e decidir. O médico se orienta pelos sintomas
que pode constatar por contatos e inquirão do paciente, de cuja percepção depende para
obter um relato compatível com seu acervo semiológicos de acordo com uma ciência de
base, que nesse ponto exerce a mesma função do senso comum do caçador. O analista
de arte, por sua vez, orientando-se por padrões de traços que revelam a personalidade do
artista, que fazem de sua obra algo particularmente específico e único em comparação
com outras, como uma expressão de sua identidade individual.
5 POPPER, K. – A sociedade aberta e seus inimigos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.
6 A respeito dessa imbricação entre cognitivo e potestativo, cf. PEREIRA, E. S. – Saber e Poder. O processo de investigação
penal. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2019.
7 GINZBURG, C. – «Sinais: Raízes de um paradigma indiciário». In: Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989, pp.143-180.
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Esse mesmo padrão indiciário de pensamento se desenvolveu na área criminal, em
diversas perspectivas por Lombroso, Bertillon e Locard
8
. Cesare Lombroso, em sua antro-
pologia criminal, postulava que certas características físicas poderiam nos revelar perso-
nalidades criminosas, teoria esta que embora se tenha alterado, não se abandonou comple-
tamente a considerar a obra recente de Adrian Raine, agora focada em sinais genéticos ou
funcionamento cerebral acessível por instrumentos de imagem
9
.
Alphonse Bertillon, ainda na lógica da antropometria, desenvolve o sistema de identi-
ficação humana por digitais papilares que se tornará potente instrumento de utilização de
vestígios deixados pelo criminoso, atualmente potencializado pelos vestígios de DNA no
local, acrescido por outras formas individualizantes de sujeitos. Essa ideia fundamental
da investigação levou Edmond Locard a postular o “princípio da troca”, pelo qual “todo
contato deixa uma marca”
10
, o que poderá ser reformulado para estender-se aos contextos
da era da informação. Pelo princípio, um sujeito qualquer, ao praticar atos quaisquer, rea-
liza uma troca por contato com o ambiente, que deixa vestígios que nos permitem chegar
a certas conclusões por indícios. Essas inferências tanto se referem a sua identidade, como
se defendeu por Bertillon, quanto a características de sus atos
11
. Todas essas argumenta-
ções de raciocínio se estabeleceram sobretudo para crimes de homicídio, mas a crimina-
stica se desenvolveu para diversos âmbitos, como vemos na obra de Ceccaldi
12
, podendo
atualmente utilizar-se na era da informação.
Trata-se de um padrão epistêmico de pensamento que Gaston Bachelard soube muito
bem identificar como forma de conhecimento aproximado
13
e que C. S. Peirce fundamen-
tou adequadamente em seus estudos acerca da inferência chamada abdução a partir do
signo específico chamado índice
14
, que inspirou muitas discussões no âmbito da semiótica,
a partir de estudos relativos à lógica da investigação criminal
15
.
8 WEHNER, W. História de a criminología. Barcelona: Zeus, 1964.
9 RAINE, A. – Anatomia da violência. Porto Alegre: Artmed, 2015.
10 LOCARD, E. – A investigação criminal e os métodos científicos. São Paulo: Saraiva, 1934.
11 THORWALD, J. – El siglo de la investigacion. Barcelona: Labor, 1966.
12 CECCALDI, P. F. – A criminalística. Lisboa: Europa-America, 1988.
13 BACHELARD, G. – Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro:Contraponto, 2008.
14 PEIRCE, C. S. – Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2017, pp.32ss, pp.74ss.
15 ECO, U. e SEBEOK, T. A. – O signo de três. São Paulo: Perspectiva, 2014.
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4. Os índices da era da informação: sinais digitais
A era da informação incrementa todo esse universo de possibilidades investigativas, for-
necendo-nos sinais diversos que nos indicam algo que nos interessa a respeito do crime
16
.
Não se trata de indicações necessariamente imediatas, que nos relatam diretamente o
crime, mas nisso continua a seguir-se o padrão indiciário: ainda estamos a tratar de índices
segundo a semiótica.
Os diversos sinais decorrem de forma específica da vida que a era da informação nos
disponibiliza, mas que de certa forma também no impõe como condicionamento, criando
um ambiente de troca, de rastos e vestígios de atividades que apenas representam cotidia-
nos, mas que se podem tornar objeto de investigação. Assim, para ficarmos com apenas
três exemplos, podemos falar do sinal de celular, da navegação na internet e das comuni-
cações em redes sociais:
a) Os sinais de celular se podem compreender como uma extensão da identi-
cidade individual, permitindo-nos repensar o argumento do álibi de uma forma
diversa que dispensa a testemunha de companhia. O mesmo se pode falar do local
de conexão à internet. Mas é necessário observar que, apesar da precisão de infor-
mação, este dado nos oferece indícios de que o titular da linha estava com o apare-
lho, o que precisa ser levado em conta.
b) A navegação na internet deixa vestígios que se podem interpretar como
marcas digitais de movimentação, naquele mesmo sentido primordial do caça-
dor, dando-nos informações sobre buscas, compararas e interesses que nos podem
reve3lar indícios da aquisição de instrumentos para prática do crime investigados,
propensões à pedofilia entre outras tantas coisas, a depender do tipo penal. Mas
aqui igualmente, como mais razão, essas informações podem se interpretar com
indícios de outras tantas possibilidades, representativos de atividades cotidianas
comuns a uma variedade de pessoas insuspeitas do crime.
c) O mesmo padrão se vai encontrar nas comunicações em redes sociais que se
podem interpretar na linha behaviorista
17
como sintomas da personalidade, o que
pode ser importante indícios para crimes de ódio, assim como para outros todos
os casos em que se pode agregar informação acerca da pessoas, visando ao cálculo
devido da pena.
16 A respeito do significado da expressão “era da informação”, em todas as duas relações com a sociedade, a economia
e o crime, cf. CASTELLS, M. – A Era da Informação, Volume 1: A Sociedade em Rede. Rio de Janeiro: Paz&Terrra, 1999;
especialmente, CASTELSS, Manuel – «A conexão perversa: a economia do crime global». In: A era da Informação,
Volume 3: O fim do milênio. São Paulo: Paz&Terra, 2009, pp.203-249.
17 SKINER, B. F. – Sobre o behaviorismo. São Paulo: Cultrix, 2011.
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5. Sinais, entre prova e indício
O fundamental nesses casos da era da informação, mais do que nunca, será ter uma clara
distinção entre prova e indício, tendo sempre o fato em vista, o que muitos manuais ainda
insistem em desorientar, distinguindo-os numa perspectiva equivocada. Anal, a prova
não se distingue do indício como elemento materialmente separado; não se trata de duas
coisas necessariamente. Um único objeto possui propriedades informáticas que nos per-
mitem inferir várias coisas a respeito dele, algumas em caráter indiciário, outros em cará-
ter probatório, mas mesmo nesse caso, a depender do estágio de acordo que existe acerca
do sinal de informação. O que os distingue, portanto, será o grau de probabilidade com que
estamos dispostos a aceitá-los.
Em grande medida, essa probabilidade depende muito do tipo de inferência lógica que
fazemos a partir do que temos. Rigorosamente, a prova mesmo, só a teríamos nos casos
dedutivos puros, mas cuja premissa maior não seja discutível em algum nível, o que nem
sempre é o caso para contextos de interesse de conflitos, como é o âmbito do processo
penal. É que muitas premissas maiores são dependentes verdadeiramente do tanto de
casos espeficos que se colheram para produzirmo-las, sendo aqui necessário falar em
probabilidade indutiva da premissa maior.
A questão é que a maior parte das inferências lógicas que nos interessam mais dire-
tamente na investigação criminal são do tipo abdutivo
18
, que se impõe como conclusões
indiciárias irremediavelmente, e a respeito disso a sentença não incremente nada além da
oportunidade ético-política de discutir o quão logicamente abdutiva são s as inferências
suscitadas pela investigação.
A discussão indicria a respeito das informações obtidas, nesse sentido, instaura um
jogo de disputa semiótica, acerca dos significados que os sinais obtidos representam na
constituição tépida do crime. E aqui se situa o ambiente de desafio da investigação crimi-
nal na era da informação. A autoridade investigante, seus agentes e peritos, têm o papel
fundamental de atribuir significados indicrios, interpretando as informações obtidas
na investigação, em um jogo do tipo inicialmente similar a um quebra-cabeças, reforçando
cada sentido de uma peça com a concordância de outras que se vão ajustando em uma ima-
gem coerente que se posas sustentar em uma argumentação na disputa semiótica.
É extremamente importante ao processo penal colocar-se nessa dimensão semiótica de
disputa de atribuição de significados típicos às informações obtidas, porque estas comuni-
cam muitas coisas diversas do que interessa ao ambiente criminal. Anal, no atual estágio
18 BONFANTINI, M. A. e PRONI, G. – «Suposição: Sim ou Não?, Eis a Questão». In: ECO, U. e SEBEOK, T. A. (Org).
O signo de três. São Paulo: Perspectiva, 2014, pp.131-148.
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criminológico das organizações criminosas, a divisão de tarefas admite que um compo-
nente realize ações de suporte que são à primeira vista atividades cotidianas, corriquei-
ras mesmo, que dificilmente se percebem como criminosas imediatamente. Em outras
palavras, eles têm a aparência de legalidade, a superfície das relações sociais, mas em um
estrato mais abaixo de percepção fenomenológica, eles se podem apresentar como indícios
de participação na organização. Atribuir significados típicos a essas informações constitui
verdadeiro exercício de engenharia semiótica que se pode muito facilmente perder em ila-
ções poucos razoáveis, pouco prováveis, pouco aceitáveis ou sem qualquer sentido mesmo.
O desafio, portanto, em última alise, está na exigência natural a investigação, que
requer do investigador hipótese sempre mais criativas, mas que ele mesmo deve acau-
telar-se com a consciência de que são conjecturas, refutáveis sempre, que não se podem
antecipar e impor à revelia do direito de defesa, que nesse caso se habilita como uma outra
possível atribuição semiótica de significação.
E, nesse sentido, a era da informação, embora inove em diversidade de possibilidades
de obtenção de prova, além de inovar sobre os meios de prova, apenas renova a tradicional
exigência de garantia dos direitos fundamentais no direito penal
19
, e em especial os direi-
tos de defesa no processo penal
20
.
Esses direitos de defesa podem vir sob diversas formas, mas algumas se podem ante-
cipar pela investigação, visando a evitar problemas jurídicos recorrentes. O problema dos
falsos pers nos remete à negação da identidade. Não se trata de um problema absoluta-
mente novo e típico da era da informação, a considerar as identidades falsas para saque de
FGTS e benefícios previdenciários fraudulentos, mas os falsos pers se tornaram muito
mais fáceis de criar do que a produção de uma nova identidade física. Atualmente prolife-
ram perfis falsos, em vários sites, aplicativos e base de dados informáticos, que se utilizam
pelo agente criminoso, mas identificação neste caso se transfere a outros dados de que
dificilmente se pode desvencilhar sem a colaboração de um terceiro. Contudo, as possi-
bilidades de incerteza subsistem, devendo merecer cautela da investigação sempre que o
terminal possa ser de utilização coletiva ou mesmo compartilhada, embora os aparelhos
com acesso por digital papilar tendam a minimizar essa dúvida. Mas mesmo nesses casos
há possibilidades de dissociação entre a identificação digital de acesso e a identicidade de
19 Aqui se justificam as advertências de RODIGUES, A. M. – «Inteligência Artificial no Direito Penal – a Justiça
Preditiva entre a Americanização e a Europeização». In: RODRIGUES, A. M. (Org.). A Inteligência Artificial no
Direito Penal. Coimbra: Almedina, 2020, ao observar que: “O processo digital verificou-se sem haver confronto
entre ciência computacional, liderando a revolução digital, e os especialistas em direito penal”.
20 A respeito, são relevantes as questões jurídicas reafirmadas por BELEZA, T. P. e COSTA PINTO, F. L. – Prova
criminal e direitos de defesa. Estudos sobre a teoria da prova e garantias de defesa em processo penal. Coimbra: Almedina,
2013. E, com maior razão, torna-se então cada vez mais relevante.
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quem realizou a navegação, salvo se tivermos algum registro de imagem com que pos-
samos aproximar melhor de alguma certeza, embora levando em conta a necessidade de
confirmação da pessoa da imagem, tendo em consideração casos de erros recentes sobre a
prisão de homem que tinha alguns muitos centímetros a menos do que a imagem captada,
apesar das similaridades inicialmente indiciárias.
O problema do acesso às fontes abertas, por sua vez, continuará gerando as mesmas
dúvidas de credibilidade da prova obtida na investigação criminal sem o controle recí-
proco das partes em contraditório. O fato de que se apresentam por veículos de materiali-
dade digital, colhida no mundo virtual, não exclui a dúvida sobre o local de obtenção e sua
relação com o autor imputado, podendo exigir-se uma auditoria pericial que dê conta da
cadeia de obtenção e transmissão dessa prova, atestando o que se diz a respeito da fonte.
Esse é um problema recente que se suscitou a respeito das interceptações de comunicações
por terceiro que disponibilizou para meio de comunicação, embora se trate de fontes que
juridicamente seriam restritas.
Mas aqui ressurge a mesma questão sempre acerca dos testemunhos periciais apre-
sentadas por um documento, como há tempos Nicola F. Dei Malatesta nos advertia em sua
lógica das provas
21
. O universo de provas, por mais variedades de formas que se possam
encontrar, mesmo na era da informação, em seu conteúdo se resumem a testemunhos e
documentos, e esses se reconduzem sempre à produção humana segundo seus interesses
de momento; e quanto aos objetos, que nunca falam por si, exigem que nós falemos algo
sobre eles, por testemunha ou documentos, ainda que estes se habilitem como expertos,
é sempre uma opinião subjetiva, de alguém sobre algo. Em resumo, reafirmando, uma
disputa semiótica de atribuição de sentidos a certos sinais. A esse respeito, basta que pen-
semos no objeto perfeito por excelência no mundo da investigação criminal – o copo de
um morto, que pedirá que alguém fale por ele.
E mesmo as fontes restritas e controladas, na era da informação, não se livram dessa
limitação indiciária, afinal a questão dessas fontes está no objetivo de proteção aos seus
conteúdos – geralmente em garantia da intimidade das comunicações, apesar da extensão
promovida pelo marco civil da internet no Brasil. Mas quanto à credibilidade da infor-
mação, muito pouco se acresce em relação às fontes abertas, mantendo assim seu caráter
indiciário, a considerar que, do ponto de vista lógico, em razão da intermediação por mais
um sujeito, que detém a informação, precisamos inferir que ele nos disponibiliza todas,
sem alteração, acréscimo ou exclusão, em síntese sem interesse direto no caso criminal,
21 MALATESTA, N. F. Dei – A Lógica das provas em matéria criminal. Campinas: Bookseller, 1996.
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o que ao final vai sempre nos exigir um controle da cadeia de custódia da prova
22
, cujos
princípios lógicos tendem a exigir do direito probatório contemporâneo a assimilação de
específico princípio jurídico cada vez mais relevante à era das informações digitais.
6. Considerações finais
Os desafios processuais da investigação criminal, na era da informação, embora se tenha
obtido o incremento de fontes informáticas, persistem sendo os mesmos de sempre que
se encontram na lógica do raciocínio indicrio, com suas potencialidades de descoberta
e suas limitações de justificação fundada em abduções. São desafios semióticos. Nada há
com que se espantar nessa constatação redutora da diversidade aparente de novas provas.
Essa é a lógica humana subjacente com que precisamos enfrentar as diversas questões
da vida que se nos apresentam, nos domínios virtuais da internet e suas redes sociais
que postulam ser o intermediador contemporâneo do acesso aos domínios da realidade.
Nada há de novo igualmente nisso, a considerar a estrutura semiótica da cultura humana,
construída sobre signos diversos, do mito à ciência, passando pela intermediação sempre
frequente da linguagem, mas sempre voltando a encarnar o espírito mítico em outras for-
mas simbólicas, aparentemente depuradas pela razão que apenas se embrenha nos seus
próprios labirintos
23
.
Mas nisso, portanto, não estará sozinho o processo penal, nos tempos líquidos das
informações fugidias que em todo sítio nos podem enganar, não apenas nos sites virtuais,
apresentando apenas a superfície das essências que a fenomenologia sonha encontrar
antes das objetivações científicas
24
, mas que a filosofia antiga sempre defendeu ser inaces-
sível, ao postular a ilusão do mundo, envolta por um véu de ignorância que alicia os sen-
tidos daquele que pretende enfrentar a vida apenas com os sentidos da visão, sem atentar
para os sentidos da vida
25
.
22 A respeito, torna-se cada vez mais fundamental a discussão jurídica que promove com rigor GUEDES VALENTE,
M. M. – Cadeia de Custódia da Prova. 2.ª Edição. Coimbra: Almedina, 2020.
23 A respeito das diversas formas simbólicas com que o home vive e convive, como animal symbolicum, é
fundamental a obra de CASSIRER, E. – A Filosofia das Formas Simbólicas. São Paulo: Martins Fontes, 2001 (Primeira
parte – A linguagem), 2004 (Segunda parte – O pensamento mítico), 2011 (Terceira parte) – Fenomenologia do
conhecimento), bem como a sua síntese posterior CASSIRER, E. – Ensaio sobre o Homem. Introdução a uma filosofia
da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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O paradigma indiciário na era da informação: os desafios semióticos do processo penal
ELIOMAR DA SILVA PEREIRA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 2 · 1
st
July Julho – 31
st
December Dezembro 2020 · pp. 46‑56
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