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A doutrina da norma completa de Hans Kelsen
JOSÉ JOAQUIM MONTEIRO RAMOS
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 2 · 1
st
July Julho – 31
st
December Dezembro 2020 · pp. 7‑24
I. Introdução
Logo no início da sua mais conhecida e emblemática obra Hans Kelsen deixa bem escla-
recido o seu desiderato científico o qual motivou a larga maioria dos seus estudos
1
e que
o mesmo identifica como a indagação do objecto do Direito, na sua dimensão de jurispru-
dência analítica, em termos tais que procurará responder apenas à questão de ”o que é e
como é o direito”
2
. Essa finalidade importa, para Kelsen, a assunção de um princípio meto-
dológico de pureza na construção dogmático-jurídica impondo o afastamento de tudo o
que se possa confundir com o objecto do Direito, mas que summo rigore lhe é estranho,
como são a sociologia, a psicologia e as valorações decorrentes da ética e da teoria política
3
.
Os actos humanos não são de per si fenómenos jurídicos uma vez que só assumem tal
relevância se e quando uma norma jurídica o determinar, razão pela qual entre o acto con-
creto praticado por determinado indivíduo e o seu relevo jurídico, está a norma de Direito
que lhe dá significação jurídica. A norma opera, pois, como meio interpretativo de actos
humanos conferindo-lhes a qualidade de jurídico (ou antijurídico)
4
. A norma que atribui ao
acto humano um sentido jurídico é, ela própria, gerada por outro acto humano que recebe
a sua significação jurídica de outra norma, o que importa a verificação que a juridicidade
não é circunstância perceptível pelos sentidos, mas que apenas se alcança por operações
de matriz intelectual concretizáveis pela concatenação entre o facto e a previsão da norma
jurídica eventualmente aplicável
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(juízo de subsunção).
Do exposto decorre que o objecto da ciência do Direito não são factos, mas normas, as
quais são integrantes e constituintes de um sistema
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o qual especificam como normológico.
1 Apesar de Hans Kelsen ficar conhecido como o autor da Teoria Pura do Direito a qual se pode sintetizar em quatro
teorias ou doutrinas (normatividade ideal do Direito, norma fundamental, estrutura escalonada do Direito e a
norma completa), a sua obra é muito mais ampla e profunda, v. g., a teoria monista com primado do direito interna-
cional e a questão do controlo/fiscalização da constitucionalidade das leis, que levantou acesso debate com Carl
Schmitt. Sobre o debate entre estes dois “gigantes do Sec. XX”, C P F – Repensar o Direito
– Um Manual de Filosofia Jurídica. Lisboa: INCM – 2013.
2 K H– Teoria Pura do Direito: 2.ª edição (1960). Tradução da 7.ª edição alemã de João Baptista Machado. ,
Coimbra: Almedina – 2008, p.1. Do mesmo modo, já em 1911, na sua tese de habilitação, Hauptprobleme der Staas-
rechtslehre, entwickelt aus der Lehre vom Rechtssatze, Tübigen – 1911, Hans Kelsen afirmara que o seu objectivo se
centrava na purificação epistemológica do direito, mormente no seu método.
3 K H – Teoria Pura do Direito …, p.1.
4 K H – Teoria Pura do Direito …, p.2.
5 K H – Teoria Pura do Direito …, p.2.
6 Claus Wilhelm Canaris critica a concepção pura do sistema normativo em Kelsen, bem como todos os sistemas
assim entendidos, por entender que se referem a qualquer ordem jurídica considerável em abstracto, o que é
irreal uma vez que a unidade valorativa é sempre material e só é susceptível de realização numa dada ordem
jurídica histórica determinada, C C W – Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência
do Direito. 2.ª Edição. Tradução de António Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p.27.
O próprio Kelsen, em carta datada de 3 de Agosto de 1933 e dirigida a Renato Treves, assume que a Teoria Pura do
Direito toma como ponto de partida o sistema jurídico (epístola transcrita por Stanley Paulson e Bonnie Paulson
– Normativity and Norms, Critical Perspectives on Kelsen Themes, Oxford,1998, pp.169 a 175).