GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 2 · 1
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Cooperação judicial em matéria criminal
nomercosul: reconhecimento mútuo
emodelohorizontal de cooperação
Judicial cooperation in criminal matters in mercosur:
mutualrecognition and horizontal model of cooperation
NEREU JOSÉ GIACOMOLLI*1
nereu@giacomolli.com
CAÍQUE RIBEIRO GALÍCIA**2
caique.ribeiro@ufms.br
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
July Julho–31
ST
December Dezembro 2020 · pp. 77‑94
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.2.5
Submitted on October 30
th
, 2020 . Accepted on November 10
th
, 2020
Submetido em Outubro, 2020 . Aceite a 10 de Novembro, 2020
RESUMO: A carência de normatividade consistente e uniforme acerca da cooperação
judicial internacional em matéria criminal, no Brasil, produz uma série de problemas,
mormente em face das reservas constitucionais e legais. Tal situação pode diminuir o
âmbito de proteção dos direitos fundamentais e dificultar a solidariedade internacional na
prestação da tutela jurisdicional efetiva. O artigo problematiza o reconhecimento mútuo
no âmbito do MERCOSUL, cuja integração regional não evoluiu como a existente no espaço
europeu. A harmonização legislativa é um fator de efetivação do reconhecimento mútuo
e aprimoramento dos mecanismos de cooperação judicial internacional. Para os países
doMERCOSUL já está consolidado um padrão mínimo de respeito a direitos fundamentais
tendo como parâmetro o sistema interamericano de proteção (Convenção, Comissão
eCorte), o qual deverá ser implementado e aplicado. A perspectiva de descentralização
* Doutor pela Universidad Complutense de Madrid. Professor do Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor convidado no Mestrado em
Direito da Universidade Autónoma de Lisboa/IURJ. Investigador do Ratio Legis, da UAL/Lisboa: Corpus Delicti
– Estudos de Criminalidade Organizada Transnacional. Orcid: 0000-0003-1753-0334. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/5969235847033808.
** Doutorado e mestrado em Ciências Criminais pela PUCRS com estágio de pesquisa sanduíche na Universitá degli
studi di Bologna. Estágio Pós-doutoral em andamento em Antropologia Social (PPGAS/UFMS). Professor adjunto
da UFMS. Professor Titular da FACSUL.
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e horizontalidade na cooperação judicial internacional possibilita um equilíbrio entre a
persecutio criminis e a proteção dos direitos fundamentais.
PALAVR AS-CHAVE: Cooperação judicial internacional. Matéria Criminal. MERCOSUL.
Reconhecimento mútuo.
ABSTRACT: The absence of consistent and uniform norms on international judicial
cooperation in criminal issues in Brazil leads to a series of problems, especially in the face
of constitutional and legal reservations. This situation can reduce the scope of protection
of fundamental rights and hinder international solidarity in the execution of effective
judicial protection. This paper will discuss mutual recognition within MERCOSUL,
whose regional integration has not evolved in the same way as the European area.
Legislative harmonization is a factor for the effectiveness of reciprocal recognition and
the improvement of international judicial cooperation mechanisms. For MERCOSUL
countries, a minimum standard of fundamental rights respect has already been
consolidated, with the Inter-American system of protection (Convention, Commission,
and Court) as a parameter, which should be implemented and applied. The perspective
of decentralization and horizontality in international judicial cooperation allows for a
balance between the persecution criminis and the protection of fundamental rights.
KEYWORDS: International judicial cooperation. Criminal Matters. MERCOSUL. Mutual
Recognition.
I. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Ao abordar-se o tema da cooperação judicial internacional, independentemente de sua
delimitação temática, temporal e espacial, indispensável refletir acerca dos fenômenos da
globalização, do incremento da migração, das novas tecnologias que aumentam a veloci-
dade das comunicações entre pessoas e Estados, da importância dos tratados internacio-
nais, bem como dos binômios soberania nacional e solidariedade internacional, repressão
da criminalidade e preservação dos direitos fundamentais.Não se trata de simples comi-
tasgentium, mas de uma obrigação jurídica, havendo uma obrigação jurídica de cooperar
com os demais Estados, de modo a afirmar a soberania, com o reconhecimento do Estado
de Direito e não de abdicação da soberania doméstica.
O Brasil, como os demais países do MERCOSUL, insere-se no contexto internacional
da globalização, o qual aumenta a circulação de pessoas, de bens e serviços, com intera-
ções imediatas e simultâneas. Tal fenômeno atinge a esfera criminal, na medida em que a
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criminalidade passou a atuar em redes, produzindo efeitos em diversos países e, muitas
vezes, de forma concomitante. Por isso, a investigação do delito,o processo e o julgamento
de crimes passarama necessitar da cooperação de outros países, tanto na perspectiva da
produção de diversos meios de prova, quanto na execução de decisões. Mesmo a prática de
ilícitos não mais se restringe aos limites territoriais de determinado país e a determinada
pessoa, mas envolve uma organização empresarial com intercâmbio internacional di-
mico, sem fronteiras e com redes protetivas de interação e comunicação.
O fenômeno da transnacionalização do crime exige, cada vez mais, o auxílio de outros
países. A cooperação na investigação e na incidência da potestade punitiva se insere na
solidariedade internacional e na armação e preservação da soberania estatal da autori-
dade requerente da cooperação jurídica, na medida da existência de interesse na preserva-
ção do Estado de Direito, de sua ordem jurídica e de sua justiça. A tutela jurisdicional efe-
tiva, em matéria criminal, somente ocorre no processo e pelo processo penal, conduzido
por um órgão oficial, com exclusividade em aplicar a pena. Essas especificidades atribuem
à cooperação judicial internacional em matéria criminal características próprias em rela-
ção ao âmbito civil ou privado.
Os três princípios básicos a serem seguidos na cooperação judicial internacional são
a verificação de possível conito entre o tratado internacional e a lei interna do país,
incluída a ordem constitucional (discussão da hierarquia entre tratados e a ordem consti-
tucional e infraconstitucional interna); o dever de reciprocidade (tratamento isonômico) e
a aplicação dopacta sunt servanda(cumprimento obrigatório do acordado). Esses princípios
recebem uma interpretação conforme a ordem interna e, no caso da cooperação judicial
internacional em matéria criminal, a importantes reservas constitucionais (reserva legal,
reserva jurisdicional,v.g.).
A transnacionalidade do crime exige um consistente arcabouço legislativo e institui-
ções fortes, com blocos regionais e internacionais, na perspectiva de harmonização e soli-
dez da cooperação judicial internacional. O amplo debate e os inúmeros problemas afetos
à cooperação judicial internacional, o presente artigo delimita a temática ao MERCOSUL,
mormente na incipiente e deficiente integração regional e no reconhecimento mútuo,
como mecanismo integrador. Para tanto, em um primeiro momento serão traçadas algu-
mas reflexões acerca do reconhecimento mútuo na problemática da integração regional
do MERCOSUL. Nesse apartado, merece comparação, ainda que limitada, os pontos de
distanciamento que há do MERCOSUL com a integração no espaço europeu, bem como os
aspectos que se identificam.
Num segundo momento, o artigo enfrenta a harmonização legislativa como justifica-
tiva à cooperação internacional. No Case MERCOSUL, desde o Tratado de Assunção (1991)
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existe um compromisso dos países em harmonizar suas legislações para fortalecer o pro-
cesso de integração (art. 1, TA). Por último, o artigo borda o modelo horizontal de coope-
ração judicial internacional em matéria criminal, no MERCOSUL.
1. Reflexões sobre o reconhecimento mútuo no contexto do MERCOSUL:
aproblemática integração regional
Reconhecendo-se que a cooperação jurídica internacional em matéria criminal assume
diversos significados ao longo do tempo, o estabelecimento de laços institucionais volta-
dos à persecutio criminis é uma demanda alinhada à contemporaneidade do fenômeno da
criminalidade transnacional. Muitos desafios se apresentam, na medida em que a coope-
ração internacional envolve uma gama normativa e institucional, muitas vezes assimétri-
cas e diferenciadas, de tal modo a dificultar a efetiva produção de elementos à persecução
penal.
Nesse cenário, o espaço europeu se constitui em um modelo de interação internacional
a indicar tendências, as quais podem servir de norte aos demais blocos de países. A criação
do espaço comum europeu é uma importante mudança à consolidação da ideia de que “o
conceito de espaço não exclui o conceito de território nacional, mas acrescenta a ideia de
que os territórios que compõem a União constituem uma unidade geográfica comum”
1
.
Isso porque, o espaço comum fomenta também o compartilhamento do dever de garantir a
segurança dos cidadãos, além de fundamentalmente instigar ressignificações em relação
ao princípio da territorialidade em matéria penal e processual penal.
Isso significa o compartilhamento, na contemporaneidade, tanto dos riscos quanto
das soluções dos problemas. Assim se infere na acepção de Daniel Bell, quando afirma: “a
nação se torna não só pequena demais para resolver os grandes problemas
2
, como também
grande demais para resolver os pequenos”
3
. De forma mais abrangente, Beck arma que
a ideia de que em época de riscos globalizados seria possível agir segundo o lema ‘conse-
guimos resolver o problema sozinhos’ revela-se uma ilusão fatal”
4
. Anal, não é simples,
1 No original, em WEYEMBERGH, Anne – «La cooperazione giudiziaria e di polizia». In: KOSTORIS, Roberto E.
Manuale di procedura penale europea. Milano: Giuffrè Editore, 2017, p.204: “… così il concetto di Spazio non abolisce
il concetto di territorio nazionale, ma si aggiunge ad esso per chiarire che i territori nazionali che compongono
l’Unione costituiscono un’unità geografica comune”.
2 Vale expor os inúmeros problemas de ordem interna e externa que o Reino Unido enfrentou durante o processo
da sua saída da União Europeia (BREXIT) e as incongruências e incertezas quanto aos reflexos sociais, financeiros
e políticos dessa decisão.
3 Em GIDDENS, Anthony – Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2011,
p.23.
4 Em BECK, Ulrich – A Europa alemã de Maquiavel a Merkievel: estratégias de poder na crise do euro. Lisboa: Edições 70,
2013, p.33.
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ou sequer possível a distinção clara entre o que é política interna ou externa
5
, daí a impor-
tância da cooperação
6
entre Estados.
No caso do espaço europeu, embora seu processo de integração possa ser associado
à Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA-1952), é de fato com o Tratado de Lis-
boa (2007) que se dá uma reorganização estrutural com a distribuição de competências da
União europeia e a extinção do método intergovernamental de cooperação para a forma
comunitária
7
. Assim, o Tratado de Lisboa não inova apenas no plano institucional e deci-
sório, mas altera o conteúdo da atividade cooperacional ao consagrar o princípio do reco-
nhecimento mútuo das sentenças e decisões judicrias, buscando a aproximação da base
jurídica legislativa comum, reforçando os poderes do Eurojust e da Europol, bem como lan-
çando os alicerces ao Ministério Público Europeu
8
.
Desta forma, a ideia do espaço de liberdade, segurança e justiça é garantido pela atua-
ção conjunta da harmonização legislativa, do princípio do reconhecimento mútuo e da
cooperação operacional
9
. Nessa estrutura há o compartilhamento de competências entre
a União e os Estados membros, agora englobando todos os âmbitos do espaço de liberdade,
segurança e justiça, permitindo a racionalização e sistematização de cada um desses seto-
res
10
.
Na prática, a estrutura da cooperação internacional no espaço europeu pensada a par-
tir do paradigma do princípio do reconhecimento mútuo resultou em dois mecanismos de
cooperação muito importantes. O primeiro deles é o mandado de detenção europeu (euro-
pean arrest warrant), que pretendia substituir o processo de extradição dentro do espaço
5 Segundo ZAKARIA, Fareed – The post-american world. New York: W. W. Norton & Company, 2008, p.31: “num
mundo globalizado, quase todos os problemas ultrapassam as fronteiras. Seja o terrorismo, seja a proliferação
nuclear, as doenças, a degradação ambiental, as crises econômicas ou a escassez de água, não há questão que possa
ser resolvida sem coordenação e cooperação entre muitos países. Contudo, enquanto a economia, a informação
e mesmo a cultura se globalizaram, o poder político formal permanece firmemente nas mãos do estado-nação,
apesar de o estado-nação se ter tornado menos capaz de resolver estes problemas de forma unilateral. E os estados
estão a revelar cada vez menos vontade de se juntarem para resolver problemas comuns. À medida que o número
de atores – governamentais e não governamentais – aumenta e o poder e a confiança nestes atores cresce, a
probabilidade de acordo e de ação comum diminui. Este é o desafio principal levantado pela ascensão dos demais
– evitar que as forças do crescimento global se tornem as forças da desordem e da desintegração globais”.
6 Segundo BECK, Ulrich – A europa alemã. De Maquiavél a Merkievel…, p. 50: “muitas coisas poderiam ser mais
fáceis se as pessoas, as organizações que defendem determinados interesses e os políticos deixassem cair a ideia
antiquada da soberania nacional e compreendessem que a soberania só poderá ser reconquistada a nível europeu
– com base na cooperação, no acordo e na negociação”.
7 Em WEYEMBERGH, Anne – «La cooperazione giudiziaria e di polizia». In:: KOSTORIS, Roberto E. Manuale di
procedura penale ...., p.212.
8 Em WEYEMBERGH, Anne – «La cooperazione giudiziaria e di polizia». In: KOSTORIS, Roberto E. Manuale di
procedura penale ..., p.215.
9 Em MOREDA, Nicolás Alonso – Cooperación judicial em matéria penal em la Unión Europea: la “euro-ordem,
instrumento privilegiado de cooperación. Pamplona: Thomson Reuters, 2016, p.48.
10 Em MOREDA, Nicolás Alonso – Cooperación judicial em matéria penal em la Unión Europea..., p.48-49.
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europeu e simplificar a entrega de pessoas condenadas
11
. O segundo deles é a decisão euro-
peia de investigação (european investigation order) em matéria criminal. Cada um desses
mecanismos possui identidades próprias e por si só merecem estudo destacado, mas que
foge do objeto pretendido no presente artigo. Contudo, vale assentar que se constituem
em mecanismos de cooperação que partem da relação de reconhecimento mútuo entre as
autoridades no contexto de integração regional, pois esse é justamente o contraponto e
uma das especificidades próprias da realidade do MERCOSUL.
De maneira abrangente, o reconhecimento mútuo produz, juridicamente, dois efeitos
principais: (i) cumprimento automático e sem controle de mérito de decisões judiciais
decorrentes de um outro país, com (ii) o mínimo possível de hipóteses de denegação do
cumprimento de medidas solicitadas. Esses dois efeitos, por si só, já geram na doutrina
mais cssica do processo penal um grande receio, posto que desaam os conceitos de
soberania, território e jurisdição
12
.
Contudo, mesmo que a ideia do reconhecimento mútuo seja aceita como estratégia
apta a equilibrar o devido processo penal e a persecução penal da criminalidade transna-
cional, existem aspectos controversos que merecem enfrentamento mais aprofundado.
Dentre eles, a barreira da previsão normativa em comum é o primeiro desafio que se apre-
senta, já que enfrenta a própria concepção clássica de Estado-nação no que diz respeito à
ideia de soberania estatal. Sem dúvida, tratando-se de direito internacional, é inconcebí-
vel a imposição de norma internacional ao sistema interno sem a anuência por meio dos
mecanismos formais e materiais
13
.
De maneira geral, nos blocos regionais de países, a internalização das normas depen-
derá, em primeiro lugar, do estágio de integração, influenciando diretamente no método
de internalização com as regras específicas de acordo com a realidade de cada sistema
jurídico. No caso da União Europeia, pela própria natureza jurídica (direito comunitário)
e estrutura de funcionamento com diversas categorias de atos jurídicos (Regulamentos,
Diretivas, Decisões, Recomendações e Pareceres) e fontes normativas (Parlamento, Con-
selho e Comissão), é de extrema relencia a identificação do instrumento normativo
adequado. Só assim é possível saber quais os potenciais efeitos ao direito interno e comu-
nitário, além da questão relacionada com a distribuição de competência da União ou dos
Estados-membros.
O reconhecimento mútuo foi sendo construído ao longo dos anos junto com a integra-
ção regional dos sistemas jurídicos europeus, inicialmente mais abstratos até o presente
11 Em APRILE, Ercole – Diritto Processuale Penale Europeo e Internazionale. Padova: CEDAM, 2007, p.60.
12 Em VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Do Mandado de Detenção Europeu. Coimbra: Almedina, 2006, p.22.
13 Em REZEK, Francisco – Direito internacional público. Curso elementar. São Paulo: Saraiva, 2011, p.102.
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momento com a previsão expressa (art. 67,3, TFUE). Referida norma está contida no capí-
tulo do espaço de liberdade, segurança e justiça. Assim, há uma clara relação entre a cons-
trução jurídica desse espaço comum com o reconhecimento mútuo das decisões judiciais
em matéria criminal, um dependendo do desenvolvimento do outro.
Assim, possível conflito entre a norma da União e a Constituição interna de cada Estado
membro resolve-se a partir de um dos princípios fundantes da União Europeia, segundo
o qual há primazia do direito da União em detrimento ao direito interno, conforme ratifi-
cado pela Corte de Justiça
14
. Inclusive, tal premissa ficou firmada no julgamento do caso
Advocaten voor de Wereld vs. Leden van de Ministerraad (C-303/05, CJ, 03/05/2007) que colocou
em debate a Decisão-Quadro 2002/584/JAI (Mandado de Detenção Europeu) no que diz
respeito a possibilidade de execução do MDE quando o fato não for considerado crime no
Estado executor.
O Case MERCOSUL se apresenta bastante diferente, já que ainda há primazia da rela-
ção intergovernamental, demandando a internalização das normas a cada país do bloco.
Ademais, não há um órgão com competência jurisdicional comum. Desta forma, o Pro-
tocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais, norma regulamentadora da
cooperação judicial internacional em âmbito regional, necessitou ser internalizada pelos
países signatários, conforme as especificidades de cada país
15
.
A este respeito, os órgãos com competência para produzir normas jurídicas no espaço
do MERCOSUL são o Conselho do Mercado Comum (CMC), o Grupo Mercado Comum
(GMC) e a Comissão de Comércio do Mercosul (CCM) que utilizam, respectivamente, as
“Decisões”, as “Resoluções” e as “Diretivas” (art. 41, POP) como fontes jurídicas de caráter
obrigatório aos países parte (art. 9, POP), normalmente dependendo da internalização. De
maneira geral, a tomada de decisões dos órgãos requer consenso e a presença de todos paí-
ses-parte, havendo obrigação (art. 38, POP) para que os próprios países tomem as medidas
necessárias para cumprir as normas do MERCOSUL
16
.
14 Vid. SPENCER, John R. – «Mutuo Riconoscimento, armonizzazione e tradizionali modelli intergovernativi». In:
KOSTORIS, Roberto E. Manuale di procedura penale europea. Milano: Giuffrè Editore, 2017, p.325.
15 Datas de Aprovação: Argentina (-); Brasil (26/01/2000); Paraguai (23/12/1997); Uruguai (09/08/1999).
Datas de Ratificação: Argentina (09/12/1999); Brasil (28/03/2000); Paraguai (20/01/1998); Uruguai
(07/07/2000). (Disponível em <http://www.mre.gov.py/tratados/public_web/DetallesTratado.
aspx?id=MXsvPjUvqV+T8s+Xsz78Zg==&em=lc4aLYHVB0dF+kNrtEvsmZ96BovjLlz0mcrZruYPcn8=> acesso
em 28 jan 2021).
16 Dispõe o art. 40, do Protocolo de Ouro Preto: “Com a finalidade de garantir a vigência simultânea nos Estados
Partes das normas emanadas dos órgãos do MERCOSUL previstos no artigo 2 deste Protocolo, deverá seguir o
seguinte procedimento: i) Uma vez aprovada a norma, os Estados Parte adotarão as medidas necessárias para
sua incorporação ao ordenamento jurídico nacional e comunicarão as mesmas à Secretaria Administrativa do
Mercosul; ii) Quando todos os Estados Parte tiverem informado a incorporação a seus respectivos ordenamentos
jurídicos internos, a Secretaria Administrativa do Mercosul comunicará o feito a cada Estado Parte; iii) As
normas entrarão em vigor simultaneamente nos Estados Parte 30 dias depois da data de comunicação efetivada
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Este panorama geral revela que, inobstante apresentarem caminhos e metodologias
normativas diferentes, tanto a União Europeia quanto o MERCOSUL possuem um espaço
de consenso e decisão para formulação de normas comuns. Embora em cada um dos exem-
plos seja diferente o mecanismo normativo, o resultado final (elaboração de uma norma
com vinculação a todos os membros) independentemente se o processo formal de incorpo-
ração se deu mediante ratificação (caso do MERCOSUL), ou direto (algumas hipóteses no
caso da União Europeia).
Logo, situando a divergência no plano político-internacional, o tensionamento acaba
sendo mitigado, pois o resultado principal é que haja a vinculação da norma aos países
e a respectiva vigência em cada um dos ordenamentos jurídicos internos. Independen-
temente da forma em que é internalizada, a norma internacional ratificada pelo proce-
dimento formal é suficiente para garantir um standard comum de validade/vigência ao
conteúdo normativo internacional.
Não se pode olvidar, é claro, o problema que envolve o conflito interno entre a norma
internacional ratificada e a previsão normativa interna de cada país. Contudo, esse pro-
blema não tem uma solução jurídica exclusiva, mas depende das forças políticas em ação
em cada país. De fato, o fortalecimento ou não das normas internacionais de um bloco
regional como o caso do MERCOSUL ainda exige esse componente.
2. A harmonização legislativa como justificativa à cooperação internacional
Outro ponto controverso ainda dentro do aspecto normativo é a necessidade de harmo-
nização legislativa como condição à efetivação do princípio do reconhecimento mútuo e
o consequente aprimoramento dos mecanismos de cooperação internacional jurídica em
matéria criminal.
Mais uma vez a problematização se dá porque as premissas jurídicas em que estão
assentados o reconhecimento mútuo e a cooperação judicial internacional não são com-
partilhadas pela maioria dos juristas. Aliás, importante ressaltar que a cooperação judi-
cial internacional em matéria penal e seus desdobramentos compartilham uma zona de
intersecção entre o direito internacional, direito criminal e as relações internacionais, de
maneira que os institutos jurídicos nem sempre possuem a mesma lógica dogmática clás-
sica (hertica).
A própria noção do princípio da territorialidade em matéria penal não tem mais a
mesma aderência prática para solucionar problemas contemporâneos, diante de como se
pela Secretaria Administrativa do MERCOSUL, nos termos anteriormente estabelecidos. Com este objetivo, os
Estados Partes, dentro do prazo mencionado, darão publicidade do início da vigência das referidas normas, por
intermédio de seus respectivos diários oficiais”.
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apresenta a lógica da criminalidade transnacional, especialmente pensando a realidade
dos blocos de integração regional. Resultado disso não precisa ser uma unificação, signi-
cando a imposição da mesma ordem jurídica, mas verdadeira “harmonização e coordena-
ção da pluralidade” que “faça face à diversidade de sistemas jurídicos e das suas referên-
cias de valores’
17
.
Mais do que unificar um único instrumento, a contemporaneidade requer espaços de
consenso para soluções conjuntas e coordenadas, aí residindo a harmonização
18
. Acerca da
realidade do MERCOSUL, Raul Cervini já alertava acerca das impossibilidades teóricas e
práticas do desenvolvimento de um eventual direito penal supranacional comunitário e,
descartada, ao menos momentaneamente, toda a possibilidade jurídica, tanto do ponto de
vista substantivo quanto adjetivo, de uma regulação penal supranacional comunitária.
19
Essa posição se dá, principalmente, desde a constatação da (i) ausência de instâncias
supranacionais no processo de tomada de decisões de parte dos órgãos do MERCOSUL;
(ii) a não previsão de controle de legalidade dos atos editados pelos órgãos do MERCOSUL;
(iii) um controle de controvérsias ainda precário; (iv) a ausência de controle parlamentar,
claro e objetivo, das tomadas de decisão; e (v) a necessidade de internalização das normas,
ou seja, falta de supranacionalidade dos atos normativos; entre outras críticas
20
. Todavia, é
importante destacar que muito se avançou nos pontos críticos apontados, nos últimos 20
anos, embora a falta de órgão normativo supranacional e solução de controvérsias pela via
judicial, ainda são problemáticos no âmbito regional.
A unificação em um único estatuto penal é, de fato, inviável de ser operado na prática
regional da América Latina. Contudo, é certo que a tutela dos bens jurídicos mais relevan-
tes, os quais demandariam a operacionalização da cooperação judicial internacional já é
compartilhada por todos os países, embora com alguma variação normativa quanto aos
limites do núcleo, sujeitos, preceito secundário, etc.
A principal repercussão nesse aspecto se dá na possível necessidade de dupla incri-
minação como um dos requisitos à cooperação internacional. A primeira dificuldade já
se estabelece na medida em que definir os limites de um tipo penal incriminador é uma
tarefa bastante complexa e, compará-la com outro sistema jurídico resultaria em emprei-
17 Em VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Do Mandado de Detenção ., p.27.
18 Em VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Do Mandado de Detenção …, p.55, se pode ver que “a harmonização –
que difere da unificação – ganha relevância por ser a via mais adequada à construção progressiva de uma política
criminal europeia, além de que não podemos admitir a concretização do reconhecimento mútuo isoladamente
sem que exista a diminuição de divergências das legislações penais(...)”.
19 Em CERVINI, Raúl e TAVARES, Juarez – Princípios de cooperação judicial penal internacional no Protocolo do Mercosul.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.25.
20 Em CERVINI, Raúl e TAVARES, Juarez – Princípios de cooperação judicial penal internacional …, p.26-36.
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Cooperação judicial em matéria criminal no mercosul: reconhecimento mútuo e modelo horizontal de cooperação
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tada hercúlea. Anal, quais seriam os pametros para definir a equivalência dos tipos
penais entre países diferentes? Todavia, vale a constatação de que a construção da ideia da
necessidade de dupla incriminação nasce justamente para ser uma ferramenta impeditiva
da cooperação, ainda na lógica fundada na noção de soberania estatal como classicamente
concebida
21
. De fato, a ideia de dupla incriminação consiste na “exigência de que o fato
objeto da cooperação seja qualificado como infração penal na legislação dos Estados coo-
perantes, bastando a convergência dos elementos essenciais, pouco importando o nomen
iuris e a presença de outros elementos”
22
.
Com isso, privilegia-se a estrutura geral (tutela de um bem jurídico relevante) às
características específicas e elementos adjacentes. E essa é a tendência a ser seguida no
porvir da cooperação jurídica internacional, considerando a alteração substancial de uma
cooperação de modelo requisitório para modelo ordenativo. Isso abarca a concepção de
confiança entre os países como um dos sustentáculos da cooperação judicial contempo-
nea, especialmente pensando o espaço compartilhado de um bloco regional. Assim, a
ideia da dupla incriminação, ou a necessidade de normas penais materiais compartilhadas
nos mesmos termos, não encontra supedâneo prático. Por outro lado, do ponto de vista da
norma processual, a ideia de harmonização ou coordenação pode se dar, alternativamente,
por meio da cooperação judicial internacional, estruturada a partir do reconhecimento
mútuo. A esse respeito, o espaço de diálogo dentro de blocos regionais de integração é bas-
tante produtivo para se estabelecer novos mecanismos, justamente porque compartilham
dificuldades e pretendem elaborar soluções conjuntas.
A harmonização legislativa, de modo geral, é uma aspiração que sempre teve lugar no
direito internacional, mas cuja implementação tem se revelado problemática, especial-
mente no campo criminal, principalmente pela ausência de representatividade democrá-
tica
23
. No Case MERCOSUL, desde o Tratado de Assunção (1991) existe um compromisso
dos países em harmonizar suas legislações para fortalecer o processo de integração
(art.1, TA)
24
.
21 Vid. BONDT, Wendy De – «Double criminality in international cooperation in criminal matters». In:
VERMEULEN, G.; BONDT, W.; RYCKMAN, C.(eds.) Rethinking international cooperation in criminal matters in the EU.
Antwerpen: Maklu, 2012, p.109.
22 Em BECHARA, Fábio Ramazzini – Cooperação jurídica internacional em matéria penal. Eficácia da prova produzida no
exterior. São Paulo: Saraiva, 2011, p.154.
23 Referida crítica é apontada por Raúl Cervini há bastante tempo. De fato, o déficit democrático é um fator muito
relevante no desenvolvimento da integração no MERCOSUL, já que, embora exista um Parlamento (PARLASUL),
não há ainda uma aderência dos cidadãos com o sentimento de pertencimento a esse espaço, além, é claro, da
falta de escolha por meio de sufrágio universal.
24 Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0350.htm> acesso em 28/01/ 2021.
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Contudo, harmonização legislativa não significa, necessariamente, que a mesma
norma deva existir em todos os países, mas que compartilhem – talvez em níveis diferen-
tes, dependendo da área a que se refere – padrões normativos (standards) estabelecidos em
conjunto e em nível internacional para orientar as normas internas. No que diz respeito às
normas tributárias, por exemplo, essa aproximação acaba facilitada em razão da cultura e
vontade política dentro do bloco de estabelecer padrões nesse âmbito.
Para os países parte do MERCOSUL já está consolidado um padrão mínimo de respeito
a direitos fundamentais tendo como parâmetro o sistema interamericano de proteção
25
.
A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica, 1969) é
a norma para tutela de direitos fundamentais, vinculante a todos os países membros do
MERCOSUL, apresentando um sistema de jurisdição e interpretação de competência da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
26
e da Corte Interamericana de
Direitos Humanos (CorteIDH)
27
. Além disso, vale destacar o compromisso democrático fir-
mado entre os países parte do MERCOSUL e também a Bolívia e o Chile por meio do Proto-
colo de Ushuaia (1998), ao estabelecer que a “plena vigência das instituições democráticas
é condição essencial para o desenvolvimento do processo de integração”
28
. O referido pro-
tocolo é complementado pelo Protocolo de Assunção sobre compromisso com a promoção
e proteção dos direitos humanos do MERCOSUL (2005)
29
e pelo Protocolo de Montevideo
(2011)
30
, o qual reforça o compromisso democrático no âmbito do MERCOSUL.
A controvérsia da falta de um regime normativo penal único, no atual estágio de
desenvolvimento do MERCOSUL, não se resolve pela criação de um órgão supranacional
com competência legislativa, mas pode se dar pela via da coordenação e harmonização de
padrões comuns em todos os países parte. O dever de respeito à CADH é a linha que deve
guiar as decisões judiciais em todos os países (controle constitucional e convencional),
25 Normativamente o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos é composto: (i) pela Carta da
Organização dos Estados Americanos, 1948; (ii) pela Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem,
1948; (iii) pela Convenção Americana de Direitos Humanos, 1969; e (iv) pelo Protocolo Adicional à Convenção
Americana em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 1988. Vid., também, em MAZZUOLI,
Valerio de Oliveira – Os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos. Uma análise comparativa dos sistemas
interamericano, europeu e africano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.19.
26 Examina as demandas individuais ou coletivas que dizem respeito a violações de direitos humanos constantes
na CADH e que estejam sendo violados em algum Estado que a tenha ratificado.
27 Com competência consultiva e contenciosa, sua atuação está restrita aos Estados que reconhecem sua jurisdição,
que é definitiva e inapelável nos termos da CADH em matéria contenciosa.
28 Disponível em <http://www.mre.gov.py/tratados/public_web/DetallesTratado.aspx?id=ktUNNjkHcd6x6b
SnkufaDA%3d%3d&em=lc4aLYHVB0dF+kNrtEvsmZ96BovjLlz0mcrZruYPcn8%3d> acesso em 28/01/ 2021.
29 Disponível em <http://www.mre.gov.py/tratados/public_web/DetallesTratado.aspx?id=1%2frUWpYuZNnue7PI
seEbYg%3d%3d&em=lc4aLYHVB0dF+kNrtEvsmZ96BovjLlz0mcrZruYPcn8%3d> acesso em 28/01/2021.
30 Disponível em <http://www.mre.gov.py/tratados/public_web/DetallesTratado.aspx?id=dxmiRrluWRS5wpK1la
x3qw%3d%3d&em=lc4aLYHVB0dF+kNrtEvsmZ96BovjLlz0mcrZruYPcn8%3d> acesso em 28/01/2021.
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razão pela qual, os padrões mínimos ali estabelecidos já são exigíveis em todos os países
parte. Vale ressaltar que com esse posicionamento quer-se referir que existe já consolidado
um mecanismo compartilhado por todos os membros do MERCOSUL de controle de direi-
tos fundamentais. Isso não significa que tal controle não pode/deve ser aprimorado em
vários sentidos, mas que é um padrão comum a que todos os países devem observar, sendo
possível alternativa a guiar ao estabelecimento do reconhecimento mútuo das decisões
judiciais nesse âmbito regional.
3. O modelo horizontal de cooperação judicial internacional em matéria criminal,
no MERCOSUL
No contexto geral apresentado, vale ainda destacar que a cooperação jurídica internacio-
nal classicamente se estabelecia por intermediação das relações diplomáticas entre os
países, orientada principalmente pela reciprocidade
31
e por uma burocracia típica de um
momento ainda pautado pela desconfiança entre os Estados, reforçando as respectivas
soberanias. A intensificação das interações internacionais e dos mecanismos de coopera-
ção (carta rogatória e extradição, v.g.), fez com que se aprimorasse a máquina burocrática
(técnica e jurisdicional) destinada exclusivamente ao processamento dos pedidos passivos
e ativos. Essa realidade, marcada por um aumento exponencial de pedidos, especialmente
na última década do século XX, implicou na concentração das atividades relacionadas à
cooperação em órgãos administrativos, normalmente ligados ao poder executivo (Autori-
dades Centrais).
Os tratados internacionais passaram a prever a existência de Autoridades Centrais
como forma de auxiliar e agilizar o processamento dos pedidos, centralizando em órgãos
administrativos, os quais, após receberem os pedidos, os encaminhava às autoridades
competentes ao cumprimento da medida (aulio direto)
32
. De maneira geral, a atribuição
das Autoridades Centrais se relaciona com o “recebimento e transmissão dos pedidos de
cooperação jurídica, a alise da adequação destas solicitações quanto à legislação estran-
geira e ao tratado que a fundamenta”
33
, constituindo-se em instância de controle adminis-
31 Em RUSSOWSKY, Iris Saraiva – O mandado de detenção na União Européia: um modelo para o Mercosul. Porto Alegre:
Verbo Jurídico, 2012, p.23-24.
32 Cf. SAADI, Ricardo A. e BEZERRA, Camila C. – «A autoridade central no exercício da cooperação jurídica
internacional». In: DEPARTAMENTO DE RECUPERAÇÃO DE ATIVOS E COOPERAÇÃO JURÍDICA
INTERNACIONAL. Manual de Cooperação jurídica internacional e recuperação de ativos: cooperação em matéria penal.
Brasília: Ministério da Justiça, 2012, p.22. Cf. Também a Convenção de Haia de Comunicação de Atos Processuais
(1965).
33 Em SAADI, Ricardo A. e BEZERRA, Camila C. – «A autoridade central no exercício da cooperação jurídica
internacional». In: DEPARTAMENTO DE RECUPERAÇÃO DE ATIVOS E COOPERAÇÃO JURÍDICA
INTERNACIONAL. Manual de Cooperação jurídica internacional …, p.23.
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trativo dos pedidos. Esse é o modelo mais comum e adotado pelo Brasil, embora o órgão
destinado a ser Autoridade Central possa variar conforme estabelecido em cada acordo
34
firmado. Como regra, a função desempenhada pelas Autoridades Centrais procura facili-
tar o cumprimento dos pedidos, tornando o procedimento mais célere. Ocorre que a men-
cionada celeridade só faz sentido quando comparada com o trâmite da carta rogatória e
da extradição, que são procedimentos muito mais morosos e que já foram as principais
formas de cooperação internacional em matéria penal.
Não se ignora o avanço, especialmente na celeridade do processamento dos pedidos
que o auxílio direto, por meio das Autoridades Centrais, teve na virada do século XXI. Con-
tudo, permitir com que os sujeitos que estejam diretamente interessados na solicitação e
execução das medidas intermedeiem os pedidos proporcionará maior eficácia no cumpri-
mento do objeto do pedido, além de reduzir ao mínimo a intervenção por parte das autori-
dades do Poder Executivo
35
(controle político). Essas são as linhas de desenvolvimento da
cooperação horizontal, cuja marca principal é a descentralização das tomadas de decisões,
dando preponderância à interação entre as autoridades interessadas no cumprimento do
pedido e excluindo, ao máximo, hipóteses de controle político/administrativo. Permitir o
estabelecimento de cooperação internacional diretamente entre as autoridades interessa-
das, judiciais ou administrativas (Ministério Público, Polícias, etc.), contando com o auxí-
lio – quando necessário – das Autoridades Centrais, fortificará o processo de celeridade e
efetividade na execução das medidas.
Anal, a simples celeridade sem atingir os objetivos propostos nos pedidos resulta, na
verdade, em ineficácia das medidas cooperacionais. Na prática, a descentralização fornece
o conteúdo claro do pedido e, por se tratar de órgãos da mesma classe (entre jurisdições,
por exemplo), permite que a execução do pedido seja feita de forma mais adequada
36
.
Existem duas razões principais à implementação dessa forma de cooperação descen-
tralizada na contemporaneidade. A primeira é que a descentralização permitirá a exclusão
da dimensão política e intergovernamental do escopo da cooperação em matéria criminal.
Isso representará o mínimo desvio possível da finalidade contida na proposta de coopera-
ção entre os atores jurídicos, fomentando o estabelecimento de confiança entre os Estados
com menos interferência política
37
. Em segundo lugar, o desenvolvimento da cooperação
34 Genericamente conhecidos como MLAT (Mutual Legal Assistance Treaty – Tratado de Assistência Jurídica Mútua).
35 Em MARTINEZ, Rosa Ana Morán – «La cooperación judicial internacional en el siglo XXI». In: MINISTÉRIO
PÚBLICO FEDERAL. Temas de cooperação internacional. Brasília: MPF, 2016, p.112.
36 Em BECHARA, Fábio Ramazzini – Cooperação jurídica internacional em matéria penal…, p.28.
37 Em BONDT, Wendy, RYCKMAN, Charlotte e VERMEULEN, Gert – «Horizontalisation and decentralisation:
Future perspectives on communication and decisión making». In: VERMEULEN, G.; BONDT, W.; RYCKMAN,
C.(eds.) Rethinking international cooperation in criminal matters in the EU. Antwerpen: Maklu, 2012, p.185.
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internacional na forma horizontal/descentralizada tem como vantagem a comunicação
direta entre as autoridades envolvidas no pedido, o que proporciona maior rapidez e efi-
ciência no cumprimento do objeto proposto
38
.
Importante ressaltar que a ideia da descentralização e horizontalidade da cooperação
não implica na extinção do papel das Autoridades Centrais, mas na restrão no proces-
samento de pedidos de cooperação ao assessoramento e suporte às autoridades executo-
ras. Assim, a estrutura geral da cooperação internacional continua sendo composta pelas
Autoridades Centrais, mas com funções limitadas aos aspectos técnicos e não como canais
obrigatórios por onde devam tramitar todos os pedidos.
A perspectiva de cooperação horizontal entre as autoridades nacionais, no caso, entre
os países parte do MERCOSUL, possui alguns aspectos potencialmente dificultadores que
merecem atenção na viabilização das medidas
39
. Esses aspectos podem ser concentrados
em (i) dificuldade na identificação da contraparte competente para execução do pedido;
(ii) linguagem e tradução dos termos pedidos e respostas; e (iii) entraves técnicos na ope-
racionalização dos pedidos.
Acerca da identificação da contraparte competente, além da possibilidade de contar
com a assistência das Autoridades Centrais (como já mencionado), uma possibilidade é
a especialização de grupos destinados a lidar com a cooperação e com competência para
executar os pedidos. No caso do Brasil, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região fixou, por
meio da Resolução n.º 101, de 15 de agosto de 2014, que “Os pedidos de cooperação jurídica
passiva em matéria penal, tanto por meio de carta rogatória quanto por meio de coopera-
ção direta com intervenção judicial, encaminhados à Justiça Federal da 4ª Região serão
processados, no âmbito da respectiva Seção Judiciária, pelos juízos da 7ª Vara Federal de
Porto Alegre, da 7ª Vara Federal de Florianópolis e da 13ª Vara Federal de Curitiba”
40
. Isso
permite que a dimica do fluxo de comunicação seja ágil e apta a executar as medidas
solicitadas. No exemplo citado, trata-se de medida dependente da chancela judicial, o que
nem sempre ocorre, já que existe a possibilidade de pedidos para o cumprimento de medi-
das administrativas que poderiam ficar a cargo do Ministério Público ou das Polícias,
diretamente.
No caso do MERCOSUL, com o processo de integração para a coordenação de ações
na área criminal, essa dificuldade pode ser minimizada. A esse respeito, o Sistema de
38 Em BONDT, Wendy, RYCKMAN, Charlotte e VERMEULEN, Gert – «Horizontalisation and decentralisation...».
In: VERMEULEN, G.; BONDT, W.; RYCKMAN, C.(eds.) Rethinking international cooperation in criminal …, p.185.
39 AMICIS, Gaetano De – «La cooperacione orizzontale». In: KOSTORIS, Roberto E. Manuale di procedura penale
europea. Milano: Giuffrè Editore, 2017, p.271.
40 Disponível em <https://www2.trf4.jus.br/trf4/diario/visualiza_documento_adm.php?orgao=1&id_materia=
21511 &reload=false> acesso em 28 jan 2021.
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Intercâmbio de Informação de Segurança do MERCOSUL (SISME), criado pela MERCO-
SUL/CMC/DEC N.º 36/04 e atualizado conforme CMC/DEC N.º 17/17, considera “que para
enfrentar as atividades do crime transnacional organizado é essencial contar com um
ágil e oportuno intercâmbio de informação” (preâmbulo)
41
, e que o SISME se constitui em
ferramenta ao intercâmbio de dados sobre bens (apreensão de veículos e armas), pessoas
(pedidos de prisão, proibições e autorizações de entrada e saída de pessoas nacionais ou
estrangeiras, etc.), podendo expandir-se para dados vinculados ao crime organizado trans-
nacional, informações sobre embarcações, etc.
42
O SISME pode ser alimentado com dados
relacionados à cooperação judicial internacional, estabelecendo as contrapartes em cada
um dos países, de acordo com a necessidade pontual dos pedidos de cooperação. Assim,
essa ferramenta já pode solucionar, em grande parte, a dificuldade identificada, criando
esquemas organizacionais das partes envolvidas na cooperação, facilitando o encaminha-
mento direto dos pedidos.
O segundo entrave diz respeito à linguagem e tradução dos documentos e pedidos.
Ora, no contexto regional esse é um entrave de pouca repercussão pois, com a exceção
do Brasil, os demais países adotam a língua espanhola (com variações locais). Para sanar
essa dificuldade, o auxílio das Autoridades Centrais pode ser fundamental, embora o
corpo especializado dos órgãos, como mencionado anteriormente, deveria ser composto
por equipe que tenha aptidão nos dois idiomas oficiais do MERCOSUL, ou ainda, investi-
mento na capacitação específica nessa área.
O benefício de ter apenas dois idiomas oficiais correntes, e com isso operacionalizar
os pedidos a eles restritos, não é, a priori, compartilhado pela União Europeia, composta
por 28 Estados Membros com 24 línguas oficiais diferentes
43
. Assim, o intercâmbio acabou
sendo concentrado, na prática, na língua inglesa, padronizando a forma de se comunicar
44
.
Outra proposta que pode auxiliar na redução de ruídos de comunicação entre os países
parte do MERCOSUL é a tradução, por meio de um corpo técnico especializado, das legis-
lações pertinentes (Códigos de Processo Penal, Códigos Penais, etc.). Essa medida, para o
futuro, também contribui ao intercâmbio técnico, integração e harmonização das legisla-
ções, aspirações contidas no Tratado de Assunção. De fato, o problema da tradução não se
revela impeditivo, mas faz parte do processo de integração regional. O caminho natural
41 Disponível em <https://www.mercosur.int/documentos-y-normativa/normativa/> acesso em 28 jan 2021.
42 Anexo – Sistema de Intercâmbio de Informação de Segurança do MERCOSUL. GMC/RES N.º 26/01 – ART. 4.º,
com atualização de 22/11/2018.
43 Disponível em <https://publications.europa.eu/pt/publication-detail/-/publication/715cfcc8-fa70-11e7-b8f5-
01aa75ed71a1> acesso em 28/01/2021.
44 Em BONDT, Wendy, RYCKMAN, Charlotte e VERMEULEN, Gert – «Horizontalisation and decentralisation…».
In: VERMEULEN, G.; BONDT, W.; RYCKMAN, C.(eds.) Rethinking international cooperation in criminal …, p.189.
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com a maior integração nesse tema será a compreensão mais ou menos igualitária dos
dois idiomas, mas até lá, as Autoridades Centrais podem fornecer o suporte técnico neces-
sário para este desiderato.
Por último, os entraves técnicos (recursos humanos, treinamento e equipamentos) cor-
respondem a uma dificuldade que está afeita a maior parte dos setores burocráticos na
realidade regional. Tais dificuldades podem se dar no campo da disponibilidade de recur-
sos humanos, na qualificação desses recursos (especialização e treinamento) e na limita-
ção técnica propriamente dita (recursos informáticos, telefônicos, internet, etc.).
Importante destacar que, como já afirmado, o papel das Autoridades Centrais não é
descartado no processo de cooperação internacional descentralizada. Als, exatamente
nos entraves técnicos é que ela tem um papel fundamental para auxiliar o desenvolvi-
mento das atividades e de tomadas de decisões, que devem permanecer com as autorida-
des descentralizadas.
Por razões óbvias, as questões técnicas à implementação da cooperação descentrali-
zada deverá ser foco de investimento por parte dos países parte do MERCOSUL nas várias
dimensões citadas. Mas isso é um desdobramento usual de qualquer aparelhamento buro-
crático, que no caso da cooperação internacional em matéria criminal, ainda poderá ter o
suporte das Autoridades Centrais, que devem monitorar os pedidos, levantar dados esta-
sticos para auxiliar todo o processo.
No geral, o quadro proposto é favorável à implementação de uma cooperação inter-
nacional em matéria criminal na forma descentralizada, fundada no princípio do mútuo
reconhecimento. Contudo, não se pode ignorar que existem alguns pedidos cooperacio-
nais que demandam outro tratamento, constituindo, neste aspecto, exceções à regra da
descentralização. Uma dessas exceções, pode ser a transferência de pessoas condenadas.
Anal, existe uma carga muito maior de responsabilidade no acolhimento ou não de pedi-
dos de cooperação neste aspecto. Sem embargo, reconhecendo a possibilidade de exceções
à regra da descentralização, a cooperação internacional em matéria criminal, de forma
horizontal (diretamente entre autoridades nacionais), é a forma mais adequada e eficiente
em alguns aspectos. No caso da busca e coleta de elementos probatórios, se constitui em
mecanismo adequado ao desenvolvimento de atos cooperacionais.
É certo que a cooperação internacional ainda demanda muitas reflexões para sua efe-
tiva expansão como um mecanismo seguro e confiável na persecução penal no âmbito
do MERCOSUL. Em razão da dinâmica da criminalidade transnacional, requer-se esfor-
ços conjuntos e compartilhados para, superando a ideia de uma concepção hermética de
Estado, viabilizar a solidariedade internacional na afirmação do Estado de Direito e na
tutela dos direitos fundamentais.
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II. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo buscou apresentar um aparto geral sobre a cooperação jurídica inter-
nacional em matéria criminal no contexto do MERCOSUL. Por se inserir na dimica
da criminalidade transnacional, naturalmente deve se mostrar como tema com muitas
variáveis – além da velocidade da contemporaneidade – e com menor “estabilidade” do
que os temas clássicos do Direito Criminal. Conscientes da limitação da abordagem e do
recorte apresentado, buscou-se apresentar algumas reflexões sobre a realidade do MER-
COSUL a partir de uma leitura do reconhecimento mútuo e da harmonização da legisla-
ção. Essa constatação é importante na medida em que evidenciam-se as características
regionais próprias em contraponto ao modelo europeu. De fato, o processo de integração
do MERCOSUL é bastante diferente do que acontece no espaço europeu, mas a realidade
de permeabilidade das fronteiras, somada à expansão da criminalidade transnacional,
impõe medidas compartilhadas pelos países. A persecução penal necessita se equilibrar
nessa tênue linha entre integração de mercados e intersecção de jurisdições para dar uma
resposta que seja condizente com os parâmetros democráticos e de respeito dos direitos
humanos.
Nessa perspectiva é viável a harmonização da legislação criminal dos países a par-
tir do respeito ao eixo comum: Convenção Americana dos Direitos Humanos (CADH).
Naturalmente, há diversos fatores complicadores, especialmente relacionados com uma
concepção clássica de Estado nação, fechado, já não mais adequado à realidade contem-
porânea. A esse respeito, preconiza-se a desnecessidade ou a redução ao mínimo possí-
vel das hipóteses de limitação da cooperação judicial internacional com base na ideia de
dupla incriminação, apenas. Isso porque os sistemas de justiça do MERCOSUL já tute-
lam (com ressaltas específicas e alguns critérios diferentes) a grande maioria dos bens
jurídicos relacionados com a criminalidade transnacional. Por isso, se faz mister reduzir
ao máximo as possibilidades controle político das hipóteses de denegação de pedidos de
cooperação, não raras vezes tranvestidas de “técnicos”, mas que, na verdade, representam
“tecnicismos” acríticos.
Assim, defende-se a viabilização de alternativas para que a cooperação se dê no espaço
do MERCOSUL de forma horizontal e descentralizada, sem desprezar o relevante papel
das Autoridades Centrais, mormente no que pertine à facilitação do processamento dos
pedidos. Faz-se mister, porém, buscar a racionalização da cooperação judicial como ins-
trumento da persecutio criminis, mas também da proteção dos direitos fundamentais, para
além do controle político. São reflexões que estão abertas ao diálogo crítico-construtivo,
representando ideias desenvolvidas a partir de pesquisa científica consciente da finitude
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e limitação metodologia, temporal e prática. E por isso, pretende trazer o tema à tona para
discussão e contribuição de novas pautas de pesquisa que possam surgir.
REFERÊNCIAS
AMICIS, Gaetano De – «La cooperacione orizzontale». In: KOSTORIS, Roberto E. Manuale di procedura
penale europea. Milano: Giuffrè Editore, 2017.
APRILE, Ercole – Diritto Processuale Penale Europeo e Internazionale. Padova: CEDAM, 2007.
BECHARA, Fábio Ramazzini – Cooperação jurídica internacional em matéria penal. Eficácia da prova
produzida no exterior. São Paulo: Saraiva, 2011.
BECK, Ulrich – A Europa alemã de Maquiavel a Merkievel: estratégias de poder na crise do euro. Lisboa: Edições
70, 2013.
BONDT, Wendy De – «Double criminality in international cooperation in criminal matters». In:
VERMEULEN, G.; BONDT, W.; RYCKMAN, C.(eds.) Rethinking international cooperation in criminal
matters in the EU. Antwerpen: Maklu, 2012.
CERVINI, Rl e TAVARES, Juarez –Princípios de cooperação judicial penal internacional no Protocolo do
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