GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110 77
Mediação penal e a valorização da vítima:
uma análise comparada entre as legislações
portuguesa e brasileira sobre a mediação antes
do exercício da ação penal
Criminal mediation and victim valorization: a comparative
analysis between Portuguese and Brazilian legislation on
mediation before the exercise of criminal action
RUBEN BAHAMONDE DELGADO
1
rbahamonde@autonoma.pt
DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
2
dh_miranda@yahoo.com.br
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
January Janeiro–30
TH
June Junho 2020 · pp. 77‑110
DOI: http://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.1.4
Submitted on March 27
th
, 2020 · Accepted on June 4
th
, 2020
Submetido em 27 de Março, 2020 · Aceite a 4 de junho, 2020
RESUMO O presente artigo objetiva analisar aspectos da mediação penal no ordenamento
jurídico português e brasileiro, especialmente antes do exercício da ação penal, ou seja,
durante a fase investigativa ou de inquérito. Centra-se este estudo no papel da vítima e
nos princípios da mediação diretamente ligados a ela, quais sejam: a voluntariedade e a
cooperação. Após discorrer sobre dispositivos da Lei n.º21/07 de Portugal, da Lei n.º9.099/95
e da Resolução n.º125/10 do CNJ, ambas do Brasil, serão traçadas análises comparativas,
para, finalmente, tecer algumas considerações sobre o estado atual da mediação penal no
panorama luso-brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE justiça restaurativa – resolução alternativa de conflitos – mediação
penal – valorização da vítima – voluntariedade – cooperação
ABSTRACT This article aims to analyze aspects of criminal mediation in the Portuguese and
Brazilian legal systems, especially before the prosecution, that is during the investigative
phase. This study focuses on the victims role and the linked principles of mediation,
1 Professor Associado da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL). Diretor e investigador do Ratio Legis – Centro
de Investigação em Ciências Jurídicas da UAL.
2 Mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa. Graduado em Direito pela Universidade
Federal de Minas Gerais (2010).
78
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
namely: voluntariness and cooperation. After discussing the provisions of Law n.º21/07
of Portugal, Law n.º 9.099/95 and Resolution n.º 125/10 of the CNJ, both from Brazil,
comparative analyzes will be drawn, finally to be able to make some conclusions about the
current state of criminal mediation in the Portuguese and Brazilian context.
KEYWORDS restorative justice – alternative dispute resolution – criminal mediation –
victim valorization – voluntariness – cooperation
I. INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende analisar criticamente o instituto da mediação penal nos orde-
namentos português e brasileiro, especialmente durante a fase anterior ao exercício da
ação penal ou acusação, portanto no inquérito ou congênere, focalizando a figura da vítima
e o seu papel, bem como os princípios da mediação que lhe dizem respeito.
A mediação penal exsurge no bojo das espécies ligadas à denominada justiça restau-
rativa ou restauradora, consistente em uma forma de tratamento de conflitos que não se
confunde com a justiça privada (vindicta privada), nem assume os contornos integrais da
justiça pública
3
. A principal característica da justiça restaurativa está nas suas “proprieda-
des curativas, restauradoras e reconstrutivas”
4
, que pretendem solucionar o conflito indi-
vidual, objetivando alcançar o status quo anterior à ofensa, quando possível, e pacificar as
relações sociais.
Já faz algum tempo que os instrumentos de justiça restaurativa estão a ganhar espaço
no âmbito criminal, em razão das vicissitudes enfrentadas pela justiça penal clássica, tam-
bém chamada de oficial ou tradicional, nomeadamente: elevados custos, dificuldades de
responder às especificidades das sociedades de massas, excessivo formalismo e inadmis-
sibilidade de soluções criativas
5
. Diante dessa “crise da Justiça, a justiça restaurativa afir-
3 Há quem defenda a expressão “justiça reconstituinte” como a melhor tradução para restorative justice (ESTEVES,
Raúl – «A novíssima Justiça Restaurativa e a Mediação Penal». In: Sub Judice. Justiça e Sociedade. Coimbra: Almedina.
[sd] n.º37 (Out-Dez 2006), p.53). Outras expressões sinônimas para justiça restaurativa: “justiça transformadora”,
“justiça relacional” e “justiça participativa” (PENIDO, Egberto – «Justiça Restaurativa». In: Mediação de conflitos
para iniciantes, praticantes e docentes. 2.ªed. Salvador: Juspodivm, 2019. p.652).
4 Sobre as mencionadas propriedades, vale acrescentar que a restauração não se resume à restituição ou
indenização de danos materiais, mas também envolve “(...) uma dimensão emocional e simbólica, plena de
significado e de esperança, que se pode materializar num pedido informal de desculpas por parte do agressor
ou em gestos simbólicos como um aperto de mãos ou um abraço entre aquele e a vítima” (FERREIRA, Francisco
Amado – Justiça Restaurativa: natureza, finalidades e instrumentos. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p.25).
5 São algumas das causas econômicas, organizacionais e processuais da denominada ‘crise da Justiça’ (ALMEIDA,
Rafael Alves de; PANTOJA, Fernanda Medina – «Os métodos “alternativos” de solução de conflitos (ADRS)». In:
79
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
ma-se como alternativa mais eficiente, informal e eficaz para a solução de determinados
litígios e, principalmente, valoriza o papel da vítima no âmbito jurídico-penal.
Não se ignora, porém, que a justiça restaurativa e seus instrumentos também enfren-
tam diversas críticas, carecendo de aprimoramentos, como será abordado oportunamente
6
.
O motivo da escolha do tema reside exatamente no quadro de ajuste de novas tendên-
cias no processo penal, cenário que repercute – e muito – na esfera jurídica da vítima. Bus-
ca-se, portanto, caracterizar o instituto da mediação penal, traçar sua delineação normativa
e seus aspectos positivos e negativos, para, então, avaliar a posição da vítima, a partir de
recursos do direito comparado, nos ordenamentos propostos.
Desde já, vale consignar que esta pesquisa não tem como pressupostos teses abolicio-
nistas do Direito Penal, nem pretende reduzir a importância do processo penal clássico. Em
verdade, parte-se do pressuposto de que existe uma relação de complementaridade entre
a justiça oficial e a justiça restauradora, cada qual eficaz para a solução de determinada
natureza de crimes. Aliás, foi nesse cenário de complementaridade e diversificação que se
concebeu o termo “justiça multiportas”, valorizando distintas formas de se acessar o Poder
Judiciário, sem exclusão das entradas tradicionais
7
.
No bojo dessa diversificação, surgiu a figura da mediação penal, que foi conceituada
pelo art. 1.ºda Decisão-Quadro n.º2001/220/JAI do Conselho da União Europeia como “a
tentativa de encontrar, antes ou durante o processo penal, uma solução negociada entre a
vítima e o autor da infração, mediada por uma pessoa competente”.
Essa solução foi buscada como forma de garantir que os crimes de menor potencial
ofensivo, ou a denominada “pequena criminalidade”, tivessem alguma resposta estatal, pois
se constatou que, em determinados níveis de criminalidade, muitas vítimas preferem não
comunicar às autoridades os delitos que suportaram, por desconfiança no sistema judiciá-
rio e pela excessiva onerosidade que ele comporta. Diante disso, a diversificação de formas
de solução se constitui em “factor de esperança” para as chamadas vítimas silenciosas
8
.
Mediação de conflitos para iniciantes, praticantes e docentes. 2.ªed. Salvador: Juspodivm, 2019. p.58-59).
6 A justiça restaurativa enfrenta severas críticas, dentre elas a de que as soluções encontradas, muitas vezes, dizem
mais respeito ao domínio do Direito Civil do que do Direito Penal. Outra resistência é de que a justiça restaurativa
“(...) não responde de forma adequada às exigências de culpa e de prevenção geral de intimidação, já que, segundo
os críticos, se a consequência pelo delito for apenas a de restituir, cria-se, no imaginário do transgressor a ideia de
que vale a pena praticar o ilícito, pois nada mais terá a perder. Sobre o aprofundamento destas e outras críticas:
LEITE, André Lamas – A Mediação Penal de Adultos. Um Novo «Paradigma» de Justiça? Análise crítica da Lei n.º21/2007, de
12 de Junho. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. p.17 e 19.
7 Sobre o termo “multiportas”, em reconstituição histórica, Tereza Beleza e Helena Melo informam que o conceito
assumiu o contorno e significado atuais na Conferência Pound, em Chicago/EUA no ano de 1976, quando o
professor Frank E. Stander se referiu a “Multidoor Courthouse” (BELEZA, Teresa Pizarro; MELO, Helena Pereira
de – A mediação penal em Portugal. Coimbra: Almedina, 2012. p.39).
8 Sobre o mencionado “factor de esperança” para a resolução do conflito, o argumento foi extraído do já citado
texto: FERREIRA, Francisco Amado – Justiça Restaurativa: natureza, finalidades e instrumentos..., p.12 e 27.
80
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
Como dito, no presente trabalho será analisada a mediação penal antes do exercício
da ação penal, ou seja, na fase investigativa ou de inquérito. Enfrentar-se-á o tema, carac-
terizando-o primeiro no ordenamento jurídico português e depois no brasileiro, fazendo
apontamentos e comparações sobre a participação da vítima. Ao final, serão tecidas as
correspondentes apreciações críticas, esperando, assim, oferecer algum contributo para o
desenvolvimento do sistema de mediação penal.
II. A MEDIAÇÃO PENAL EM PORTUGAL E O PAPEL DA VÍTIMA
Para delinear os aspectos gerais da mediação penal no ordenamento português, será ponto
de partida a Lei n.º21/07, de 12 de junho, que regula a mediação penal durante a fase do
inquérito
9
.
Em Portugal, há outros diplomas que, de alguma forma, disciplinaram a mediação
penal. Por exemplo, a Lei n.º115/09, de 12 de outubro (Código da Execução das Penas e Medi-
das Privativas da Liberdade), no seu art. 47º, n.º4, possibilita a mediação entre o recluso e o
ofendido. Cite-se, também, a Lei n.º112/09, de 16 de setembro, que, em sua versão original,
previa os chamados “encontros restaurativos” no âmbito de violência doméstica, durante
a suspensão provisória do processo ou o cumprimento de pena. Tratava-se do art. 39.ºda
referida Lei, revogado pela Lei n.º129/15, de 3 de setembro.
Sem prejuízo do exposto, a presente investigação centrar-se-á na mediação penal de
adultos durante a fase de inquérito, antes de o Ministério Público deduzir a acusação ou
oferecer a suspensão provisória do processo, na forma do art. 281.ºe seguintes do CPP por-
tuguês.
A. Caracterização geral da mediação penal em Portugal: análise da Lei n.º21/07,
de12 de junho, que criou o sistema de mediação penal no processo penal
A Lei n.º21/07 inaugurou o regime de mediação penal em Portugal, acolhendo determina-
ção do art. 10.ºda Decisão-Quadro n.º2001/220/JAI, do Conselho da União Europeia, de 15 de
março, relativa ao estatuto da vítima no âmbito penal. O aludido dispositivo da legislação
europeia privilegiou a mediação penal no processo penal, assegurando os acordos obtidos
entre vítima e agressor por tal instrumento de resolução alternativa de conflitos, e determi-
nou que cada Estado-Membro se esforçasse por promovê-la.
9 Durante o processo legislativo da Lei de Mediação Penal, havia fortes defensores da ampliação da mediação penal
para todas as fases do processo penal. Por exemplo: FERREIRA, Jaime Octávio Cardona – «A mediação como
caminho da Justiça. A mediação penal». In: Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa ao Professor Doutor Inocêncio
Galvão Teles: 90 anos. Coimbra: Almedina, 2017. p.524.
81
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
Conquanto a Lei n.º21/07 expressamente tenha mencionado o dispositivo supracitado,
por seu caráter vinculante
10
, fato é que outros diplomas de natureza não obrigatória (soft
law) também influenciaram no estabelecimento da mediação penal em Portugal, quais
sejam: a Recomendação n.ºR (99) 19, aprovada pelo Comité de Ministros do Conselho da
Europa em 15 de setembro de 1999, sobre mediação penal, e a Resolução do Conselho Econô-
mico e Social da Organização das Nações Unidas n.º2002/12, de julho de 2002
11
.
Além das influências externas, o art. 202.ºda CRP, especificamente sobre a função juris-
dicional, estabeleceu que os tribunais são órgãos de soberania com competência para admi-
nistrar a justiça, e reconheceu, no n.º4 do referido preceito, que a lei poderá determinar
formas de composição não jurisdicional de conflitos, abrindo caminho para o legislador
ordinário normatizar a mediação.
Note-se que, conforme resulta da Lei n.º21/07, a mediação penal não está afastada do
processo penal, nem o antecede, mas foi instituída dentro dele, na fase de inquérito. Tra-
ta-se da opção legislativa lusitana, uma vez que a mediação penal poderia ter sido imple-
mentada antes mesmo de se iniciar o processo penal – seria a chamada mediação “pré-pro-
cessual” –, a teor da permissão do art. 1.ºda Decisão-Quadro n.º2001/220/JAI, que fixava o
seguinte marco temporal: “antes ou durante o processo penal”, como, na prática, acontece
com a mediação em geral.
Diante disso, conclui-se que, embora a mediação penal figure como instrumento da
justiça restaurativa, em Portugal ela está “enxertada” no bojo do processo penal, reforçando
a ideia de complementaridade entre a justiça oficial e a justiça restauradora
12
.
Os crimes passíveis de mediação penal são aqueles cujo procedimento depende de
queixa, i.e., os semipúblicos, desde que sejam crimes contra a pessoa e o patrimônio, além
daqueles de acusação particular, i.e., os particulares, excluídos aqueles com pena de prisão
10 Ivo Aersten e Tony Petes afirmam que a principal evolução entre a Recomendação do Conselho da Europa
de 1999 e a Decisão Quadro de 2001 reside na obrigatoriedade de adoção de medidas pelos estados-membros
para instituir a mediação penal (AERTSEN, Ivo; PETERS, Tony – «As políticas europeias em matéria de justiça
restaurativa». In: Sub Judice. Justiça e Sociedade. Coimbra: Almedina. [sd] n.º37 (Out-Dez 2006), p.40).
11 A resolução, no seu item I (use of terms), elenca os princípios básicos dos programas de justiça restaurativa
(“restorative justice programme”) em matéria criminal, incluindo a mediação como uma das formas de processos
restaurativos (“restorative processes”).
12 Quando o art. 2º, n.º1.º, da Lei da Mediação Penal fala em “pode”, traz figura alternativa ou complementar ao
processo penal. A mediação está “enxertada” no processo penal, mas “não serve à justiça penal” e sim à justiça
restaurativa, ou seja, tem regras e pressupostos diversos, por ser uma diferente forma de reação ao crime
(cf. MACHADO, Pedro Sá – «A Mediação Penal-Restaurativa e o Processo Penal-Consensual: uma discussão
acerca da verdade a partir da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho». In: Os Novos Atores da Justiça Penal. Coimbra:
Almedina, 2016. p.164 e 190).
82
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
superior a cinco anos, contra a liberdade sexual, peculato, corrupção, tráfico de influência,
com vítima menor de 16 anos
13
ou quando aplicável o processo sumário ou sumaríssimo
14
.
Os denominados crimes públicos não estão contemplados no mencionado rol, em razão
do primordial interesse do Estado na persecução penal e da necessidade de se buscar a
prevenção geral de forma mais enfática, minimizando, assim, a importância da vontade da
vítima
15
.
O procedimento legal para a seleção dos casos enviados à mediação está desenhado da
seguinte forma: em qualquer momento do inquérito, o Ministério Público designará um
mediador para o caso, dentre as listas oficiais confeccionadas pelo Ministério da Justiça,
remetendo-lhe um sumário do conflito no qual devem constar informações sobre o arguido
e o ofendido e uma descrição do objeto do processo.
Como pressuposto prévio, o magistrado do Ministério Público deve averiguar se foram
recolhidos indícios suficientes da prática do crime e de sua autoria, já que não enviará para
a mediação fatos que comportem arquivamento. Acresça ainda que o titular do inquérito
deve avaliar se a mediação, no caso concreto, será adequada para responder às exigências
da prevenção – tanto na sua vertente geral quanto na vertente especial –, conforme resulta
do preceituado no art. 3.ºda Lei n.º21/07. Preenchidos os requisitos legais supra descri-
tos, o envio do caso para mediação constitui um poder-dever do magistrado do Ministério
Público
16
.
Sem prejuízo do exposto, as partes, de comum acordo, também podem requerer a media-
ção durante o inquérito. Nesse suposto, o Ministério Público deve designar um mediador,
independentemente da existência de indícios de verificação do crime e sua autoria ou da
análise das exigências da prevenção previstas no n.º2 do art. 3.ºda Lei n.º21/07. Em suma,
sendo requerida pelas partes a remessa dos autos para mediação, ao titular do inquérito
cabe apenas o controle do âmbito de aplicação da Lei de Mediação Penal, em outras pala-
vras, apenas verificará se o crime permite a mediação conforme resulta do art. 2.ºdaquele
diploma legal.
13 Sob os auspícios de proteção dos ofendidos, a doutrina questiona por qual razão o legislador protegeu os
inimputáveis pela idade, mas nada disse sobre aqueles que possuem anomalia psíquica, defendendo, assim, a
extensão da exclusão. (BELEZA, Teresa Pizarro; MELO, Helena Pereira de – A mediação penal em Portugal..., p.79).
14 Cf. art. 2.ºda Lei n.º21/07.
15 Nesse sentido: PINTO, João Fernando Ferreira – «O papel do Ministério Público na ligação entre o sistema
tradicional de Justiça e a mediação vítima-agressor». In: A Introdução da Mediação Vítima-Agressor no Ordenamento
Jurídico Português. Colóquio 29 de Junho de 2004. Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Ministério da
Justiça. Coimbra: Almedina, 2005. p.80.
16 André Lamas Leite defende que antes de enviar o caso à mediação o Ministério Público deve fazer um “juízo de
prognose” da efetividade da medida, porém, para o autor, inexiste discricionariedade daquele órgão, que deve
observar os critérios legais na seleção dos inquéritos (LEITE, André Lamas – A Mediação Penal de Adultos..., p.71
e 75/76).
83
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
No caso de pluralidade de arguidos, a remessa do inquérito à mediação depende do
preenchimento individual dos pressupostos legais, como na suspensão provisória do pro-
cesso
17
.
Após notificadas da remessa do feito à mediação, as partes serão contactadas para ofere-
cerem seus “consentimentos livres e esclarecidos” e, oportunamente, serão informadas dos
direitos, deveres, fins e regras do processo de mediação. Posteriormente, assinados os ter-
mos de consentimento, inicia-se o processo de mediação propriamente dito. Não havendo
consentimento ou não obtido o acordo no prazo de três meses, o Ministério Público dará
continuidade ao processo penal conforme resulta do preceituado nos art. 3.ºe 5.ºda Lei
n.º21/07.
Acerca do processo de mediação propriamente dito, o art. 4.ºda Lei 21/07, ao conceituar
o instituto, dispôs sobre os seguintes princípios regentes: voluntariedade, informalidade,
flexibilidade, imparcialidade e confidencialidade.
Os princípios da informalidade e da flexibilidade dizem respeito ao procedimento e à
forma de condução dos trabalhos. Interessante salientar que tais axiomas não foram con-
templados pela Lei n.º29/13, de 19 de abril, que estabelece os princípios gerais aplicáveis à
mediação, mas estão expressamente estabelecidos para a mediação penal como forma de a
diferenciar do rígido e formal processo penal tradicional
18
.
Ao relevante papel do mediador estão ligados: o princípio da imparcialidade, proibin-
do-se qualquer propensão para prejudicar ou beneficiar quer a vítima quer o agressor, e o
princípio da confidencialidade, que implicará o dever de guardar segredo sobre tudo o que
for dito e de que tomar conhecimento nas sessões de mediação
19
.
Uma questão que se coloca é saber se o mediador deve funcionar como mero facilitador
ou como interventor. A principal diferença está na possibilidade de ele apresentar propos-
tas de acordo, o que seria inadmissível – em tese – no modelo não interventor. Segundo
17 Conforme lecionado em: CORREIA, João Conde – «O papel do Ministério Público no regime legal da mediação
penal». In: Revista do Ministério Público. Lisboa: Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. Ano 28, n.º112 (Out-
Dez 2007). p.67.
18 Na lição de Dulce Lopes e Afonso Patrão, a ausência de menção à informalidade e à flexibilidade na Lei n.º29/13
pode ter sido proposital, pois o legislador acabou por regular – algumas vezes de forma extensa – o processo de
mediação, os mecanismos anteriores (como a convenção de mediação) e os posteriores (como o reconhecimento
de força executiva e homologação) (LOPES, Dulce; PATRÃO, Afonso – Lei da Mediação Comentada. 2.ªed. Coimbra:
Almedina, 2016. p.30).
19 A Decisão-Quadro n.º 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, que substituiu a Decisão-Quadro
n.º2001/220/JAI do Parlamento Europeu e do Conselho, ao estabelecer normas de apoio, direitos e proteção à
vítima, preocupou-se com a possibilidade de a mediação penal acabar por fomentar a vitimização secundária.
Segundo consta do considerando n.º46, a garantia da confidencialidade pode ser mitigada se houver atos de
violência ou ameaça. Diante disso, a divulgação de tais atos poderia ocorrer a bem do interesse público, tudo com
o fim de se evitar retaliações à vítima.
84
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
Mariana França Gouveia, a lei portuguesa, quando fala em mediação, refere-se sempre à
mediação facilitadora, consoante se extrai do art. 26º, b, da Lei n.º29/13
20
.
Finalmente, passa-se ao cardeal princípio da voluntariedade, que confere ampla liber-
dade aos mediados na fixação do conteúdo do acordo. A lei fixou três limitações ao con-
teúdo do acordo: (i) impossibilidade de sanções que impliquem privação de liberdade; (ii)
impossibilidade de sanções que ofendam a dignidade do arguido; e (iii) impossibilidade de
sanções cujo cumprimento se prolongue por mais de seis meses
21
.
Acerca da liberdade de acordo, André Lamas Leite defende que a lei, neste ponto, padece
de inconstitucionalidade material por violação do princípio da taxatividade das sanções e
proporcionalidade das penas, previsto no art. 29º, n.º3, da CRP
22
.
Em sentido oposto, os defensores da mediação lembram que tal liberdade é intencio-
nal nos mecanismos de justiça restaurativa, pois não é possível engessar a vontade dos
mediados na busca pela restauração do status quo ante
23
. Outrossim, entende-se que não há
que falar em taxatividade de sanções, porque não se está diante de penas ou medidas de
segurança
24
. Além disso, observa-se que o legislador deixou uma cláusula genérica sobre a
20 GOUVEIA, Mariana França – «Mediação (capítulo III)». In: Curso de Resolução Alternativa de Litígios. 3.ª ed.
Coimbra: Almedina, 2014. p.48-49.
21 Cf. art. 6.ºda Lei n.º21/07.
22 Observa o referido autor que “(...) fruto da excessiva liberdade modeladora do conteúdo do acordo, não se
estabelece ao menos de modo exemplificativo, quaisquer regras de conduta, injunções ou deveres impendentes
sobre o arguido (...)”. Ainda aprofunda sua crítica dizendo que a mediação não está fora do processo penal, mas
tem natureza complementar e, por tal razão, não pode se afastar do princípio da proporcionalidade das penas.
Afinal, não se alcançaria a prevenção geral e a paz social na hipótese de um acordo desproporcional ao ilícito,
gerando grave prejuízo ao arguido. Arremata afirmando que a voluntariedade não pode conduzir a uma “zona
de vale tudo” (LEITE, André Lamas – A Mediação Penal de Adultos..., p.82-88). Por outro lado, há quem defenda que
o princípio da proporcionalidade não se aplica à mediação, pelo menos da forma como é conhecido nos feitos da
justiça clássica. Isso porque o acordo celebrado por livre vontade e sem coação deve valer como norma entre as
partes (PINTO, João Fernando Ferreira – «O papel do Ministério Público na ligação...», p.83).
23 Sobre o mesmo ponto, vale invocar estudo de Pedro Sá Machado, segundo o qual a mediação restaurativa é uma
reação ao crime diversa do processo penal, embora reconheça que ela está “enxertada” nele. Por ser uma forma
de reação diferente ao crime, a ela não se aplicam os princípios e regras do processo penal tradicional. Diz o autor
que: “O processo penal procura uma verdade material, ao passo que a mediação penal basta-se com uma verdade
consensual privada. Com efeito, para dar resposta simplificadas à pequena criminalidade, o processo penal
prescinde da verdade material e devolve a verdade do conflito aos próprios intervenientes, isto é, reconhece-
lhes capacidade para gerir o seu próprio conflito através de uma instância restaurativa. Depois prossegue
dizendo que o Ministério Público garante uma “verdade indiciada pública, mas depois a “verdade privada” é
construída na sessão de mediação. Tal verdade privada é “formal”, ou seja, não é contraditada, existindo apenas
os elementos indiciários colhidos anteriormente. Exatamente por ser consensual, se afasta da ideia de justiça
privada (MACHADO, Pedro Sá – «A Mediação Penal-Restaurativa e o Processo Penal-Consensual...», p.164-166
e 176).
24 Acerca da criatividade dos acordos, “(...) limitar a mediação a um catálogo seria amputá-la de uma das suas mais
preciosas e fecundas virtualidade: a busca e construção da resposta adequada, do ponto de vista de ambas as
partes”. (ALMEIDA, Carlota Pizarro de – «A mediação perante os objetivos do Direito Penal». In: A Introdução da
Mediação Vítima-Agressor no Ordenamento Jurídico Português. Colóquio 29 de Junho de 2004. Faculdade de Direito
da Universidade do Porto. Ministério da Justiça. Coimbra: Almedina, 2005. p.48).
85
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
proteção da dignidade do arguido, que serve de parâmetro para o controle da proporciona-
lidade do teor do acordo. Também, não se pode olvidar que o próprio mediador, dentro de
suas funções e incumbências, promove certo “controle” ao orientar os mediados acerca dos
limites legais
25
.
Ainda na esteira do conteúdo do acordo, vale notar que não há imposição de pena ou
medida de segurança, mesmo porque ausente atividade judicante. As partes podem acordar
a imposição de sanções ou deveres, o que não implica a assunção de culpa pelo arguido
26
.
Tanto é assim que o incumprimento da avença/acordo – verificado pelo Ministério Público
após a renovação da queixa em tempo hábil – conduz ao prosseguimento do processo penal
para a definição da culpa, segundo se extrai dos art. 5º, n.º4, e art. 6º, n.º3, da Lei n.º21/07
27
.
Celebrado o acordo, envia-se ao Ministério Público, que verificará o conteúdo das cláu-
sulas, observando se houve respeito aos limites legais. Na hipótese de verificar a existência
de alguma ilegalidade, o órgão ministerial devolverá o feito ao mediador para saná-la junta-
mente com as partes. Estando o acordo dentro das balizas normativas, o próprio Ministério
Público homologa a desistência da queixa, que operará ex lege com a assinatura do acordo,
e notificará as partes
28
.
A mencionada desistência da queixa não está livre de críticas. Há quem afirme que,
levando-se em conta a sistemática penal, o melhor teria sido admitir a suspensão provisória
do inquérito até o cumprimento do acordo, em vez da previsão de desistência da queixa.
Isso porque a desistência da queixa dá a entender que o processo penal finalizou, a teor
25 Enumerando as vantagens da técnica de mediação, Tereza Pizarro Beleza e Helena Pereira de Melo aduzem que
“os mediadores controlam o resultado obtido, na medida em que delimitam o conteúdo do acordo”. (BELEZA,
Teresa Pizarro; MELO, Helena Pereira de – A mediação penal em Portugal..., p.37).
26 Cuida-se de ponto polêmico. Com efeito, os diplomas internacionais vão na esteira da presunção de inocência,
de modo que a aceitação da mediação ou a celebração de acordo não podem implicar confissão de culpa. Todavia,
há vozes dissonantes que colocam a admissão de responsabilidade pelo autor como condição sine qua non para
a mediação penal. Nesse sentido, Frederico M. Marques e João Lázaro afirmam que “das fundações teoréticas
e conceptuais da mediação depreende-se que o infractor que participa voluntariamente no processo renuncia
à presença de inocência.” (MARQUES, Frederico Moyano; LÁZARO, João – «A mediação vítima-infractor e os
direitos e interesses das vítimas». In: A Introdução da Mediação Vítima-Agressor no Ordenamento Jurídico Português.
Colóquio 29 de Junho de 2004. Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Ministério da Justiça. Coimbra:
Almedina, 2005. p.36). Por outro lado, existe crítica à tendência dos instrumentos de justiça restaurativa de “(...)
esvaziar ao máximo o lugar central da culpa”, “(...) reduzindo-a a uma ideia de consenso aceite pela comunidade
(...)” (LEITE, André Lamas – «Alguns claros e escuros no tema da mediação penal de adultos». In: Revista
Portuguesa de Ciência Criminal. Ano 24, n.º4 (Out-Dez 2014), p.589-590).
27 Acerca do incumprimento, registre-se que deve ser aquele definitivo, não bastando a simples mora. Além
disso, por serem crimes particulares ou semipúblicos, o Ministério Público não pode sobrepor-se à vontade do
ofendido, razão pela qual somente poderá fiscalizar o incumprimento notório e dar sequência ao feito quando
houver renovação da queixa e reabertura do inquérito (CORREIA, João Conde – «O papel do Ministério Público
no regime legal da mediação penal...», p.76-77).
28 Cf. art. 5º, n.º4 e 5, da Lei n.º21/07.
86
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
do que determina o art. 116.ºdo CP português, mas depois precisa de novo impulso com a
renovação da queixa
29
.
Sobre esta matéria, o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão que julgou recurso para
fixação de jurisprudência a respeito do término do prazo para o exercício do direito de
queixa no processo penal, ressaltou que o CPP não dispôs sobre a renovação do direito de
queixa. Todavia, a Lei n.º21/07 o fez de forma expressa, excepcionando o ordenamento.
Conquanto não fosse o objeto do recurso naquela oportunidade, o mencionado Tribunal
não vislumbrou vício ou inconstitucionalidade na expressa opção legislativa de excepcio-
nar a regra geral do CPP
30
.
A lei determina que o controle de legalidade será realizado pelo Ministério Público, cal-
cada, inclusive, na disposição do art. 51º, n.º2, do CPP português segundo a qual a homolo-
gação da desistência da queixa, no âmbito do inquérito, cabe ao Ministério Público.
A solução encontrada pela lei foi louvada por retirar o conflito dos tribunais, mas
enfrenta censuras pelo mesmo motivo
31
. Sustentam os críticos que a imposição de obri-
gações ou deveres sancionatórios atinge a esfera dos direitos fundamentais do arguido,
limitando-os, o que demandaria o controle de legalidade do magistrado com função juris-
dicional
32
.
Finalizando esse item sobre as principais normas procedimentais da mediação penal, o
art. 8.ºda Lei n.º21/07 determina que as partes podem fazer-se acompanhar de advogados
nas sessões. Conquanto parte da doutrina se oponha à norma que estabelece a facultativi-
dade de acompanhamento por advogado, é preciso relembrar que a mediação penal é regida
pelos princípios da flexibilidade e informalidade, razão pela qual a presença do advogado
não é obrigatória
33
.
29 Há quem defenda que aqui se tem uma desistência de queixa sob condição suspensiva, pois a desistência não
produz efeitos após assinado ou homologado o acordo, mas somente após o cumprimento (LEITE, André Lamas
A Mediação Penal de Adultos..., p.97-100).
30 Menção na análise sobre a queixa na dogmática penal portuguesa – Item “1. A exigência legal da queixa
(SUPREMO Tribunal de Justiça – Acórdão do processo n.º148/07.0TAMBR.P1-B.S1, de 2012. Relator Pires da Graça.
Diário da República n.º98/2012, Série I, 2012-05-21, p.2624 [Em linha] [Consultado em 31 Out. 2019]. Disponível
em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a953d1f5f66312b280257a0500576171?OpenDocument).
31 “(...) parece-nos ser de aplaudir a solução consagrada pelo legislador que, ao contrário do que sucede no âmbito
dos Julgados de Paz, optou por não exigir a homologação do acordo por um juiz, através de sentença. (BELEZA,
Teresa Pizarro; MELO, Helena Pereira de – A mediação penal em Portugal..., p.100).
32 Acerca da mencionada crítica, ver: LEITE, André Lamas – A Mediação Penal de Adultos..., p.115-117.
33 Há quem defenda a obrigatoriedade do advogado na mediação ao argumento da paridade de armas (ABREU,
Carlos Pinto de – A ineficácia do sistema penal na protecção à vítima e a mediação penal: um mal necessário
ou uma solução há muito possível e quase sempre esquecia?. In: Revista do Ministério Público. Lisboa: Sindicato
dos Magistrados do Ministério Público. p.274). No entanto, resulta sintomático que nos restantes sistemas de
mediação em Portugal a presença do advogado também é facultativa e não obrigatória (Vide BAHAMONDE,
Ruben – «The structuring principles of mediation in Portugal». In: Galileu – Revista de Direito e Economia. ISSN
2184-1845. Vol. XIX, n.º2, 2018, p.138).
87
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
B. O papel da vítima na mediação penal em Portugal
O ordenamento jurídico português disponibiliza à vítima diversos instrumentos para a sua
intervenção no processo penal. Um dos mais celebrados é a já tradicional figura do assis-
tente, com faculdade de intervir nos autos, recorrer ou deduzir acusação, sempre como um
colaborador do Ministério Público, a cuja atividade subordina sua intervenção
34
.
Há poucos anos foi editada a Lei n.º130/15, de 4 de setembro, que instituiu o Estatuto
da Vítima, normatizando princípios e direitos do ofendido, sem prejuízo daqueles outrora
consagrados. Esta mudança legislativa nasceu da percepção de que a vítima goza de pouco
espaço no processo penal tradicional devido a que, muitas vezes, é impedida de expressar
os seus sentimentos sobre os fatos em causa e/ou de participar ativamente dos rumos da
investigação e do processo. As limitações as quais as vítimas estão submetidas no âmbito
do processo penal servem de argumento para a instituição da mediação penal como um
dos instrumentos da justiça restaurativa, buscando dar voz a quem teve o bem jurídico vio-
lado
35
. O mencionado Estatuto, no seu art. 17º, também se preocupa em evitar a vitimização
secundária, consistente naquela efetivada no transcurso e em razão do próprio processo
judicial, geralmente o penal.
Em sentido contrário, verifica-se corrente crítica à crescente participação da vítima no
processo penal, mesmo antes da promulgação do Estatuto da Vítima. Conquanto não negue
avanços pontuais, André Lamas Leite afirma que o movimento dos anos sessenta e setenta
do século passado – de atribuir papel ativo à vítima – avançou em direção a uma “vitimo-
dogmática, substituindo a polarização arguido-Estado pela triangular relação arguido-Es-
tado-vítima. Em nome da proteção da vítima, segundo o mencionado professor, há quem
advogue postulados incompatíveis com a lógica do sistema penal continental, como, por
exemplo, a substituição do in dubio pro reo pelo “in dubio pro victima. Por essas e outras, o
autor critica a insistência dos que afirmam que o ofendido estaria alijado do processo penal
tradicional
36
.
Respeitado o entendimento diverso, é forçoso reconhecer ser majoritária a corrente
segundo a qual o processo penal dito tradicional por muitos anos pouco fez em relação às
vítimas ou em relação ao seu papel no desenvolvimento do processo. Tanto é verdade que,
34 Caracterização e atribuições do assistente nos arts. 68.ºe 69.ºdo CPP português.
35 Acerca do ativo papel da vítima na justiça restaurativa, exibe-se, como trunfo, por exemplo, o fato de a mediação
possibilitar à vítima fazer perguntas ao autor do ilícito e mostra-lhe seus sentimentos. (PINTO, João Fernando
Ferreira – «O papel do Ministério Público na ligação...», p.76).
36 Em mais de uma obra o citado autor censura aquilo que acredita ser a excessiva participação da vítima no
processo penal. Nos seus dizeres, corre-se “(...) o risco de o nosso século ficar para a História – dizemo-lo de jeito
hiperbólico – como aquele em que a vítima passa de desprezada excrescência a déspota esclarecida” (LEITE,
André Lamas – A Mediação Penal de Adultos..., p. 15 e 47). Acerca do que denomina “vitimodogmática” e suas
críticas, ver: LEITE, André Lamas – «Alguns claros e escuros no tema da mediação penal de adultos...», p.581-583.
88
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
em Portugal, foram muitos e de diversas fontes os impulsos para a normatização da media-
ção penal justificados na necessidade de ampliação da proteção da vítima.
A Lei n.º21/07 é fruto das influências legislativas europeias e internacionais, conforme
explanado no item anterior, do compromisso do XVII Governo Constitucional e dos impul-
sos no âmbito acadêmico, como o Colóquio de 29 de junho de 2004, na cidade do Porto
37
.
Ressalte-se, ainda, que, no âmbito da Assembleia da República, durante o processo legisla-
tivo, foram ouvidos especialistas quanto à introdução da mediação penal no ordenamento
português
38
.
Todos esses impulsos estavam imbuídos do ideal de valorização da vítima.
Por exemplo, no mencionado colóquio de 2004, realizado pelo Ministério da Justiça na
cidade do Porto, e cujas principais intervenções foram compiladas e publicadas num muito
interessante compêndio de artigos, não se escondeu a preocupação de se construir uma
legislação que valorizasse a vítima
39
. Naquela oportunidade, alguns especialistas defende-
ram, veementemente, que a mediação precisa ser encarada como “direito da vítima, cujas
garantias devem ser preservadas, a começar da seleção de casos susceptíveis à referida
forma de resolução conflitiva
40
.
a) A participação da vítima e os princípios da cooperação e da voluntariedade
Estabelecido o contexto legal, vale observar o papel da vítima na mediação penal à luz
de seus princípios regentes.
A Lei n.º29/13, de 19 de abril, estabeleceu princípios gerais para a mediação em Portu-
gal, chamados de “universais”, portanto aplicáveis também à mediação penal, consoante se
extrai do art. 3.ºdaquele diploma
41
.
37 Para aprofundamento sobre os impulsos legiferantes da instituição da mediação penal em Portugal, verificar:
BELEZA, Teresa Pizarro; MELO, Helena Pereira de – A mediação penal em Portugal..., p.14.
38 Nesse sentido, Maria Manuel Bastos, consultora de política legislativa, escrevendo antes da publicação da Lei
de Mediação Penal, registra que a Assembleia da República aprovou a Resolução n.º30/2003, de 20 de março,
propondo a realização de audição parlamentar acerca do tema proposto, o que ocorreu durante o ano de 2003,
com a pronúncia de várias entidades (BASTOS, Maria Manuel – «Breves considerações sobre a mediação
penal». In: Sub Judice. Justiça e Sociedade. Coimbra: Almedina. [sd] n.º37 (Out-Dez 2006), p.85).
39 A obra é: A Introdução da Mediação Vítima-Agressor no Ordenamento Jurídico Português. Colóquio 29 de Junho de 2004.
Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Ministério da Justiça. Coimbra: Almedina, 2005.
40 Frederico Moyano Marques e João Lázaro, então representantes da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima,
de forma sensata, teceram considerações sobre a inviabilidade de mediação penal nos delitos de cunho sexual
e naqueles que envolvem violência doméstica não episódica, sob pena de se agravar a espiral de violência
nas sessões de mediação. (MARQUES, Frederico Moyano; LÁZARO, João – «A mediação vítima-infractor e os
direitos e interesses das vítimas...», p.28-30).
41 Chamam-se universais aqueles princípios aplicáveis em qualquer mediação realizada em Portugal (LOPES,
Dulce; PATRÃO, Afonso – Lei da Mediação Comentada..., p.29).
89
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
Os axiomas da confidencialidade, tratamento igualitário, imparcialidade, independên-
cia e competência estão estritamente ligados à figura do mediador, conforme discorrido no
tópico anterior. Intrinsecamente vinculados à vítima estão os princípios da cooperação e
da voluntariedade.
A cooperação deve ser encarada como um pressuposto à mediação. Com efeito, se o
espírito cooperativo não acompanhar as partes, não haverá nem desejo de requerer ou acei-
tar participar da mediação.
Sobre o princípio da voluntariedade, defendem Dulce Lopes e Afonso Patrão que, den-
tro da mediação, possui quatro dimensões: liberdade de escolha, liberdade de abandono,
conformação do acordo e liberdade de escolha do mediador
42
. No que concerne à liberdade
de escolha, o legislador português afastou a figura da mediação obrigatória
43
. O abandono
é possível a qualquer momento do processo de mediação, ainda que unilateralmente, sem
que isso configura prejuízo às partes. No campo penal, a liberdade de escolha fica mitigada,
pois o mediador é designado pelo Ministério Público dentro das listas oficiais, a teor do art.
3º, n.º1 e 2, da Lei n.º21/07
44
.
Acerca da dimensão da liberdade de conformação ao acordo, vale aduzir que a busca
pela verdade real do processo penal tradicional é substituída pela verdade consensual pri-
vada estabelecida nas sessões de mediação
45
. Portanto, a voluntariedade – nas dimensões
de liberdade de escolha e conformação do acordo – constitui o fundamento de validade que
permite a mitigação do princípio da busca da verdade real, caro à processualística criminal
tradicional. Resumindo, se partes se submetem à mediação penal e chegam ao consenso,
desde que passe pelo controle de legalidade do Ministério Público, o acordo se torna a solu-
ção do conflito.
Daí a importância do próprio comportamento colaborativo da vítima durante a media-
ção, devendo ter consciência que a prática restaurativa não existe para saciar desejos de vin-
gança. Nesse sentido, representantes da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) já
reconheceram que devem ser afastados da mediação aqueles ofendidos que estão movidos
42 LOPES, Dulce; PATRÃO, Afonso – Lei da Mediação Comentada..., p.33-35.
43 Exigência de que as partes litigantes passem por uma fase de mediação antes do ajuizamento de ações. A
mediação obrigatória, ou mediação pré-processual obrigatória, é criticada por criar mais uma etapa formal à
resolução de conflitos e impedir o livre acesso ao Poder Judiciário (IdemOp. Cit. p.31).
44 Em todo caso, esta é uma característica geral dos sistemas de mediação pública, pois a designação do mediador
também não é feita pelas partes no sistema de mediação familiar, conforme resulta do previsto na alínea b) do
n.º2.ºdo art. 3.ºdo Despacho Normativo n.º13/2018, que regulamenta a atividade do SMF, nem no sistema de
mediação laboral, conforme resulta do parágrafo a) da cláusula 4.ªdo Protocolo de Mediação Laboral.
45 Cf. lição já citada em nota anterior. Ver: MACHADO, Pedro Sá – «A Mediação Penal-Restaurativa e o Processo
Penal-Consensual...», p.164-166.
90
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
apenas por desejos de vingança
46
. Isso porque o objetivo da mediação não é vingança, mas a
reparação de danos, buscando o restabelecimento do “laço social” entre os evolvidos
47
. Com
efeito, iniciar a mediação penal imbuído do estrito sentimento vingativo poderá conduzir à
indesejada (re)vitimização.
A reparação dos danos também está intimamente ligada ao papel da vítima e do espí-
rito colaborativo das partes. Ela pode ocorrer das formas mais diversas, desde pedidos de
desculpas até indenizações e serviços sociais, a depender da criatividade dos envolvidos.
Nesse ponto, invoca-se a lição de Cláudia Cruz dos Santos, no sentido de que não é
apenas articular um pedido improvisado de desculpas ou pagar certa quantia em dinheiro,
mas deve haver “(...) um esforço supremo de confissão e de luto psíquico e social por parte
do agente do crime (...)”
48
. Aliás, na lição da citada professora, duas importantes diferenças
entre a restauração da mediação penal para a reparação do Direito Civil são: (1) o fato de, na
mediação penal, a solução não ser imposta ou adjudicada, mas surgida de um consenso, e
(2) a pressuposição de “(...) um comportamento activo de reconhecimento da responsabili-
dade”
49
.
Para o sucesso da mediação, fala-se muito da necessidade de o agressor se esforçar para
reparar o dano em uma postura propositiva, o que é verdade incontestável. Todavia, como a
solução reparadora deve ser criativa e bilateral, a vítima também necessita de uma postura
colaborativa ativa, expressando seus sentimentos sobre o fato
50
. Somente assim a verdade
consensual privada será construída de forma a efetivamente restaurar os laços sociais.
A participação ativa da vítima, a possibilidade de ela se expressar e o papel colaborativo
em busca de um consenso são importantes fatores que diferenciam a mediação penal de
instrumentos da chamada justiça penal negociada ou contratada, como os acordos negocia-
dos de sentença ou “plea bargaining. Nestes acordos, embora também presentes elementos
de consenso, o papel da vítima é diminuído, uma vez que os negociantes são o agressor e o
titular da ação penal.
46 Cf. MARQUES, Frederico Moyano; LÁZARO, João – «A mediação vítima-infractor e os direitos e interesses das
vítimas...», p .32.
47 O restabelecimento de tal laço “(...) pode consistir num pedido de desculpas, em prestações de natureza
económica, na prestação de serviços”. (BELEZA, Teresa Pizarro; MELO, Helena Pereira de – A mediação penal
em Portugal..., p.98-99). Sobre as desculpas, “estudos feitos em Portugal, em que se concluiu que o pedido de
desculpas e a indemnização se destacam como as principais pretensões dos ofendidos, deixando muito longe
a vontade de que o delinquente seja condenado a uma pena de prisão” (ALMEIDA, Carlota Pizarro de – «A
mediação perante os objetivos do Direito Penal...», p.41).
48 SANTOS, Cláudia Cruz – «Uma finalidade específica da justiça restaurativa: a reparação dos danos sofridos pela
vítima (item 6, capítulo 1, parte II)». In: A Justiça Restaurativa. Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p.371.
49 IdemOp. Cit. p.379.
50 As vítimas sentem-se verdadeiramente compensadas ao serem capazes de se expressar num ambiente sereno,
ao sentirem a diferença de comportamento do agressor e ao ouvi-lo assumir e verbalizar o seu erro e o seu
compromisso para o futuro” (SANTOS, Leonel Madaíl – Mediação Penal. Lisboa: Chiado Editora, 2015. p.25).
91
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
Essa diferença é substancial e assim o fez notar o Supremo Tribunal de Justiça em 2013,
quando decidiu que o direito processual penal português não admite os acordos negociados
de sentença, dentre os vários argumentos e doutrinas citadas, lembrou que nestes acordos
a vítima “é descartada do debate” e fica “à margem da negociação”
51
.
b) A valorização da vítima e o direito de iniciar a mediação penal
A participação da vítima não pode se restringir ao momento dos encontros de restau-
ração, ou seja, ao processo de mediação propriamente dito, mas deve antecedê-lo. Um dos
grandes avanços da Lei n.º21/07 – cujo potencial nunca foi aproveitado – reside na facul-
dade de as partes requererem a mediação, conferida pelo art. 3º, n.º2, limitando, como dito
alhures, a análise do Ministério Público sobre a prevenção de delitos – o juízo de prognose
– e a existência de indícios da ocorrência do ilícito
52
.
Referido dispositivo está fundado na lógica da devolução do conflito aos envolvidos,
pois, se possuem o domínio ou empowerment para solucioná-lo, tanto mais para iniciar a via
alternativa da resolução
53
.
Atualmente, verifica-se um quadro de desprestígio da mediação penal na fase do inqué-
rito em Portugal
54
. Avaliando esse panorama, entende-se que a mudança de paradigma per-
passará por duas iniciativas. A primeira, uma atualização legislativa, no sentido de facultar
a cada parte, unilateralmente, o requerimento do início do processo de mediação penal,
prestigiando, sobretudo, o princípio da voluntariedade. A segunda, e independentemente
51 SUPREMO Tribunal de Justiça – Acórdão do processo n.º 224/06. de7GAVZL.C1.S1, 2013, Relator
Santos Cabral. [Em linha] [Consultado em 31 Out. 2019]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jstj.
nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/533bc8aa516702b980257b4e003281f0?OpenDocument.
52 Há quem critique o dispositivo legal citado (incluído ao cabo do processo legiferante), embora reconheça sua
presença em outros ordenamentos jurídicos. (LEITE, André Lamas – A Mediação Penal de Adultos..., p.76).
53 Sobre a referência ao empowerment das partes, Mariana França Gouveia, tratando da mediação em geral, afirma
que “(...) a mediação assenta na ideia de que é nas partes que reside a solução do problema, que é através delas
– as donas do litígio – que se encontra a solução adequada e justa”. (GOUVEIA, Mariana França – «Curso de
Resolução Alternativa de Litígios...», p.48).
54 Quadro que pode ser evidenciado pelos seguintes dados: (1) Informações da Direção-Geral da Polícia de Justiça
(DGPJ) de que, entre 23/01/2008 e 31/12/2012, apenas 735 processos ingressaram no sistema de mediação penal e,
deles, 188 lograram um acordo (25,28%). Nesse período, o número de inquéritos abertos superou o de cinquenta
e cinco mil (cf. LEITE, André Lamas – «Uma leitura humanista da mediação penal. Em especial, a mediação
pós-sentencial». In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Coimbra: Coimbra Editora, ano XI,
(2014), p.17). (2) No intuito de reunir dados para este ensaio, obteve-se informação do Gabinete para a Resolução
Alternativa de Litígios (DGPJ) da inexistência de processos de mediação penal em curso no início do mês de
agosto de 2019 (cf. mensagem eletrônica de 06 de agosto de 2019, remetida por correio@dgpj.mj.pt). Tal fato pôde
ser confirmado em consulta às estatísticas oficiais do Ministério da Justiça [Em linha] [Consultado em 13 Fev.
2020). Disponível em: https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Paginas/Mediacao.aspx. (3) Segundo se extrai do
CITIUS (sistema do Ministério da Justiça), o último edital para a seleção de mediadores penais foi publicado
em julho de 2011 [Em linha] [Consultado em 13 Fev. 2020]. Disponível em: https://www.citius.mj.pt/portal/Artigos.
aspx?CategoryId=13.
92
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
de modificação legislativa, é a maior conscientização dos cidadãos quanto à faculdade de
requerer o início da mediação penal.
A doutrina defende que dois dos maiores entraves à popularização da mediação penal
são a cultura da litigiosidade e a desconfiança dos operadores judiciários
55
.
O primeiro óbice está ligado ao strepitus processus e ao sentimento de vingança percebido
na expressão da vítima ao constituir o seu algoz como arguido, de forma que ele tenha de
se explicar ao juiz, sentimento que, por vezes, sobrepuja o próprio interesse na reparação.
A segunda dificuldade diz respeito à postura dos magistrados do Ministério Público de
preferirem deduzir acusação a remeter os feitos maduros, do ponto de vista indiciário, à
mediação, seja por razões pragmáticas ligadas ao volume de serviço, seja por juízos de prog-
nósticos preventivos conforme autoriza o art. 3º, caput, da Lei de Mediação Penal
56
.
Por esses dois motivos, a própria conscientização das partes quanto à possibilidade de
requerer a mediação no âmbito penal se mostra prejudicada, ofuscando-se as reais van-
tagens da medida alternativa: reconstrução do tecido social, celeridade, economicidade
57
,
informalidade
58
, entre outras já referidas.
Do ponto de vista do ofendido, além de várias benesses já citadas frente ao processo ofi-
cial, o rápido início da mediação – quando requerido pelas partes – potencializa a solução
da controvérsia e, consequentemente, torna célere a restauração do status quo ante, sem a
necessidade de se aguardar a colheita de indícios investigativos, como a confecção de lau-
dos periciais, oitiva de testemunhas, entre outros.
A celeridade da mediação, quando requerida pelas partes, também é favorável ao agres-
sor. Note-se que, se ele tem consciência de eventual irregularidade e pretende assumir sua
culpa, quanto mais rápido se resolver com a vítima e ficar “livre” do inquérito melhor, inclu-
sive sem condenações, anotações de antecedentes e interrogatórios. Por outro lado, caso
pretenda demonstrar que tudo não passou de um engano, que não houve intenção, que não
foi o autor, que agiu por falta de cuidado ocasional, enfim, dar alguma explicação, é a opor-
tunidade de fazê-lo diretamente ao ofendido, e não a autoridades policiais. Não é ocioso
55 Segundo o autor, são alguns dos motivos elencados para a decaída de mediações penais durante o inquérito
em Portugal. Enfatizou-se que a derrocada pode ser mais por razões de cultura e tradição jurídica, do que por
equivocadas escolhas legislativas (cf. LEITE, André Lamas – «Uma leitura humanista da mediação penal...»,
p.17-18).
56 Ibidem.
57 Para se ter uma ideia da economia em relação à justiça dita oficial, nos termos do art. 42.ºda Lei n.º29/13, os
valores a título de remuneração pelo trabalho dos mediadores no sistema de mediação penal são os seguintes:
25€ para a pré-mediação (explicação do processo e colheita do consentimento), 90€ para a mediação sem acordo
e 120€ para a mediação que resultou em acordo.
58 Em Portugal, ocorriam nas Câmaras de Freguesias ou nos locais de funcionamento dos Julgados de Paz.
93
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
notar que o diálogo agressor-vítima poderá redundar na desistência da queixa, ainda que
não haja acordo de mediação propriamente dito.
Nessa senda, o advogado pode assumir papel importante, nada obstante a lei torne sua
presença facultativa na mediação penal. Com efeito, quando as partes – autor ou vítima –
procuram um advogado em razão de um crime de menor potencial ofensivo, este pode fun-
cionar como um incentivador da mediação, sugerindo-a ao cliente. Veja-se, por exemplo,
a vítima que procura o advogado para formular a queixa ou se constituir como assistente,
imbuída apenas do sentimento de vingança a todo custo. O profissional, na condição de
depositário da confiança do cliente, deve orientá-lo a sopesar as circunstâncias do autor
e do caso, conscientizando-o de que, em determinados tipos de delitos, vendetas somente
redundarão em despesas e atos de (re)vitimização, enquanto uma conversa franca entre
agressor-vítima e criativa, do ponto de vista da resolução mais adequada construída pelas
partes, poderá ser o melhor caminho.
O que se deve ter em mente é o fato de que as partes, requerendo a mediação penal,
abrem o canal de comunicação para a construção de uma solução criativa e rápida, mesmo
antes da colheita de indícios investigativos. Em resumo, nos crimes de menor potencial
ofensivo em que a lei possibilita a mediação penal, o início da mediação antes da formação
da “verdade indiciada pública
59
, portanto por requerimento das partes, tem potencial para:
(1) evitar atos de (re)vitimização; (2) atender aos interesses do próprio suspeito/arguido; (3)
reconstruir o tecido social de forma mais célere; e (4) desonerar os órgãos de investigação,
de modo que se atenham à grande criminalidade, promovendo economia de recursos e efi-
ciência.
Ainda na vertente de conscientização das partes, destaca-se que o direito à informação
da vítima, introduzido no art. 67º-A, n.º4, do CPP, pelo Estatuto da Vítima – Lei n.º130/15,
deve englobar não apenas dados relativos ao que está registrado nos autos do processo ou
etapas procedimentais, mas deve alcançar todos os seus direitos e faculdades, de modo que
possa fazer suas escolhas e planejamentos. O referido direito também reflete na exposição,
ao ofendido, dos benefícios da solução do diferido pela mediação penal.
Nesse contexto, a Decisão-Quadro n.º2001/220/JAI do Conselho da União Europeia,
mencionada como um dos impulsos da Lei de Mediação Penal, no seu art. 4º, n.º1, item
d, afirmava que cada Estado-membro deveria garantir ao ofendido informações sobre os
atos subsequentes à queixa. No mesmo sentido, o art. 4º, n.º1, item j, da Decisão-Quadro
n.º2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro, que substituiu a
59 MACHADO, Pedro Sá – «A Mediação Penal-Restaurativa e o Processo Penal-Consensual...», p.167.
94
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
anteriormente citada, incluiu o direito à informação da vítima aos “serviços disponíveis de
justiça restaurativa.
III. A MEDIAÇÃO PENAL NO BRASIL E O PAPEL DA VÍTIMA
No Brasil, a mediação penal está a ganhar força como instrumento de realização da justiça
restaurativa, com o intuito de coexistir com o atual sistema penal, complementando-o
60
. Ao
contrário do que ocorre em Portugal, ainda não há lei específica que discipline a mediação
penal, mas grande parte da doutrina admite sua aplicação como instrumento da justiça
restaurativa, mediante interpretação sistemática de diplomas existentes. O grande desa-
fio, entretanto, é superar a “cultura da sentença” e a dependência da “solução adjudicada,
muito marcantes no Brasil
61
.
Tal qual se estruturou o capítulo anterior, far-se-á uma caracterização geral do instituto
da mediação penal no Brasil, centrando-se no objeto deste trabalho – mediação penal de
adultos antes do exercício da ação penal. Desde já, registre-se que não se ignora a defesa
da mediação penal após a denúncia, por exemplo na suspensão condicional do processo
mutatis mutandis, instituto equivalente à suspensão provisória do processo em Portugal.
Todavia, a suspensão condicional do processo, no Brasil, ocorre após o oferecimento da
denúncia, portanto extrapola o objeto deste trabalho.
A. Caracterização geral da mediação penal no Brasil: análise conjunta da Resolução
n.º125/10, de 29 de novembro, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e da Lei
n.º9.099/95, de 26 de setembro
No Brasil, as práticas de justiça restaurativa começaram a ganhar notoriedade com proje-
tos-piloto desenvolvidos nas cidades de Brasília/DF, Porto Alegre/RS e São Caetano do Sul/
SP, nestas duas últimas com foco no âmbito infracional envolvendo adolescentes
62
.
Em Brasília/DF
63
, as práticas envolvem matéria penal com a seguinte dinâmica. Alguns
dos procedimentos criminais que tramitam perante os Juizados Especiais Criminais
64
são
selecionados e encaminhados ao Centro Judiciário de Solução de Conflitos, onde as partes são
60 Cf. ALMEIDA, Diogo A. Rezende de; PANTOJA, Fernanda Medina – «Áreas de atuação da mediação de conflitos».
In: Mediação de conflitos para iniciantes, praticantes e docentes. 2.ªed. Salvador: Juspodivm, 2019. p.116-118.
61 PINTO, Hélio Pinheiro – «A Mediação Penal no Brasil e o Princípio da Reserva de Jurisdição». In: Os Novos Atores
da Justiça Penal, Coimbra: Almedina. 2016, p.134.
62 FERRAZ, Conrado – «A Justiça Restaurativa e o Sistema Jurídico-Penal Brasileiro». In: Os Novos Atores da Justiça
Penal, p.41.
63 IdemOp. Cit., p.56.
64 Unidades do Poder Judiciário previstas pelo art. 98 da CRFB e implementadas após a edição da Lei n.º9.099/95.
95
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
recebidas pelos facilitadores e, desde então, iniciam-se os atendimentos. Caso não seja
possível iniciar de pronto, são marcados encontros preparatórios com a vítima e o ofen-
sor, separadamente. Depois, começam os encontros restaurativos propriamente ditos, que
ocorrem na forma de mediação vítima-ofensor. Em havendo consenso, ouve-se o Ministé-
rio Público e o juiz homologa o acordo.
Com a edição da Resolução n.º125/10, de 29 de novembro, do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), medidas mais concretas foram tomadas no intuito de incentivar, ampliar e
nacionalizar projetos bem-sucedidos
65
.
O art. 7º, inciso IV, da referida Resolução determina a criação dos Centros Judiciários
de Solução de Conflitos e Cidadania, responsáveis pela realização de sessões de conciliação e
mediação, a cargo de profissionais capacitados para tanto. Os referidos centros são unida-
des do Poder Judiciário que geralmente funcionam em prédios diversos dos fóruns ou em
dependências apartadas deles. As sessões são conduzidas por conciliadores e mediadores, e
aos juízes cabe o papel de supervisão
66
.
Em verdade, a Resolução n.º125/10 se constitui numa das principais “portas” de entrada
para a justiça penal restaurativa no país, assim como a Lei dos Juizados Especiais Criminais,
a Lei n.º9.099/95, de 26 de setembro. Tais “portas” consistem em instrumentos normativos
que “demarcam espaços de consenso” e possibilitam a aplicação de práticas restaurativas,
especialmente da mediação penal, já que o país ainda não possui um diploma regrador
específico nesse sentido
67
.
A Lei n.º9.099/95, instituidora dos Juizados Especiais Criminais, também é uma das
mencionadas “portas” para a busca de resolução alternativa quanto às infrações penais de
menor potencial ofensivo, que são as contravenções penais e crimes com pena máxima
não superior a dois anos
68
. Para tais infrações penais, o art. 72 da Lei n.º9.099/95 determina
a realização da audiência preliminar: ato complexo no qual as partes podem se compor, a
vítima pode representar oralmente nos crimes de ação penal pública condicionada – muta-
tis mutandis, equivalente aos crimes de natureza semipública em Portugal – e o titular da
65 O CNJ, dentre outras funções, é responsável pelo controle da atuação administrativa e financeira do Poder
Judiciário brasileiro, e suas resoluções – segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal – são dotadas de
generalidade e abstração, portanto são atos normativos primários (art. 103-B da CRFB).
66 Cf. arts. 8.ºe 9.ºda Resolução n.º125/10.
67 As “portas” de entrada são diplomas normativos cuja interpretação e aplicação sistemática permitem a aplicação
de formas de justiça restaurativa, principalmente a mediação penal, que não tem regramento específico no
Brasil (PINTO, Hélio Pinheiro – «A Mediação Penal no Brasil e o Princípio da Reserva de Jurisdição...», p.149).
68 Cf. art. 61 da Lei n.º9.099/95.
96
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
ação penal pode propor ao autor dos fatos a aplicação imediata de pena não privativa de
liberdade, que é a conhecida transação penal
69
.
Dentre os mencionados institutos, aquele que melhor comporta a mediação é o da com-
posição dos danos, ou seja, a reparação dos prejuízos causados à vítima, um dos principais
objetivos da Lei n.º9.099/95
70
. Cuida-se de consenso a ser obtido pelas as partes, autor e
vítima, que independe da vontade Ministério Público ou do Juízo. Estes atuam no controle
da legalidade do acordo, que será judicialmente homologado após manifestação do Parquet.
Com a homologação, o ofendido passa a ter um título executivo, extinguindo-se a punibili-
dade do autor dos fatos, ou seja, não mais se discutirá eventual responsabilidade criminal.
Assim, bem próximo da citada experiência ocorrida em Brasília/DF, em se tratando de
crimes cuja natureza da ação admite a composição dos danos, sugere-se que o termo cir-
cunstanciado
71
seja encaminhado aos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania,
criados pela Resolução n.º125/10, “(...) onde as partes, com o auxílio do mediador, irão encon-
trar uma solução para o conflito que atenda às suas necessidades (...)”
72
. Nesse sentido, há
precedentes na jurisprudência brasileira
73
.
69 A audiência preliminar é um ato complexo. Data venia, é entendimento reducionista e equivocado entendê-
la como uma “sessão de mediação, como ocorreu no seguinte trecho: “Na sessão de mediação, chamada de
audiência preliminar, estão presentes o representante do ministério público, o delinquente, a vítima, o
responsável civil, se o houver, acompanhados por advogado (...) A mediação seguirá depois, sob a orientação
do juiz ou do mediador (conciliador na letra da lei).” ESTEVES, Raúl – «A novíssima Justiça Restaurativa e a
Mediação Penal...», p.62.
70 NUCCI, Guilherme de Souza – Leis Penais e Processuais Penais Comentada. Vol. 2, 9.ªed., Rio de Janeiro: Forense,
2015. p.479.
71 É a formalização da ocorrência policial de uma infração de menor potencial ofensivo, em peça escrita, com dados
do fato (hora, data e local) e qualificação dos envolvidos e testemunhas (IdemOp. Cit., p.472).
72 PINTO, Hélio Pinheiro – «A Mediação Penal no Brasil e o Princípio da Reserva de Jurisdição...», p.152.
73 No Brasil, quem aprecia os recursos ordinários dos Juizados Especiais Criminais são as chamadas Turmas
Recursais (art. 98, inciso I, da CRFB e art. 82 da Lei n.º9.099/95), compostas por um grupo de juízes de primeiro
grau, e não por desembargadores dos Tribunais de Justiça. Tal fato dificulta a pesquisa de acórdãos sobre temas
relacionados aos Juizados Especiais Criminais, pois nem todos os tribunais estaduais do país disponibilizam os
acórdãos das referidas turmas.
Observa-se, todavia, que há casos nos quais o termo circunstanciado de ocorrência foi enviado a um centro
de resolução de conflitos em busca de uma composição restaurativa, conforme se defende neste tópico. Como
exemplo, cite-se um caso de ameaça e injúria no qual o trâmite do termo circunstanciado foi suspenso e
encaminhado a um núcleo de mediação e conciliação. Aberta a sessão da conciliação/mediação, as partes foram
alertadas dos princípios da Resolução n.º125/2010 do CNJ (confidencialidade, decisão informada, competência,
imparcialidade etc.) e, obtida a composição das partes, entendeu o Ministério Público que o caso deveria ser
arquivado na forma do art. 74, parágrafo único, da Lei n.º9.099/95, o que foi encampado pelo Judiciário, no caso,
em razão da atribuição originária, pelo Tribunal de Justiça (TRIBUNAL de Justiça do Estado do Amapá – Acórdão
n.º120529, de 2017 (Processo n.º0036494-07.2017.8.03.0001, Relator Gilberto Pinheiro. [Em linha] [Consultado
em 04 Nov. 2019]. Disponível em: http://tucujuris.tjap.jus.br/tucujuris/pages/consultar-jurisprudencia/consultar-
jurisprudencia.html). No citado caso, a sessão se aproximou de uma conciliação presidida por um magistrado,
todavia serve de exemplo da possibilidade de destacamento dos casos e remessa a centros de solução de conflitos
para aplicação da melhor técnica de resolução alternativa, antes mesmo da realização de audiência preliminar.
97
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
É certo que o art. 71 da Lei n.º9.099/95 faculta ao juiz funcionar como conciliador em
audiência preliminar. Todavia, é preferível que se incentive a mediação vítima-agressor,
nos moldes propostos acima, já que um acordo obtido pelas próprias partes tende a ser mais
eficaz do ponto de vista da reconstrução das relações sociais. Repita-se, o fim restaurador é
mais abrangente do que mero escopo reparador.
Encontrada a solução pelas partes e firmado o acordo para compor os danos suportados
pela vítima, haverá automática renúncia ao direito de queixa ou representação. Consequen-
temente, remetendo-se ao feito ao Ministério Público e, posteriormente, ao Juízo, será de
rigor reconhecer a extinção da punibilidade do agente, com o fim das consequências crimi-
nais
74
. Tudo isso privilegia a reparação do dano como “terceira via
75
ou “terceiro degrau”
76
para a solução de conflitos criminais, ao lado das penas e das medidas de segurança.
Poder-se-ia cogitar se existe alguma vantagem em enviar o expediente ao Centro Judi-
ciário de Solução de Conflitos e Cidadania em vez de concentrar todos os atos em uma única
audiência preliminar. Do ponto de vista pragmático – entendido como a oportunidade de
finalizar o procedimento penal com celeridade –, não há vantagem, pois se adiciona uma
etapa ao procedimento, realizando-se algumas sessões de mediação em vez de uma única
audiência preliminar de poucos minutos. Mas, se o objetivo for solucionar o conflito e não
somente o processo, pensando-se nas consequências individuais e sociais, seguramente
promover a mediação vítima-agressor é a opção mais eficaz, ainda mais quando realizada
em ambiente próprio, diverso das salas forenses de audiência, coordenada por mediador
capacitado, pela quantidade de sessões necessárias para se atingir a conscientização e o
consenso.
Retome-se aqui a noção tratada anteriormente de que o objetivo da mediação penal na
esfera da criminalidade menos lesiva é mais amplo do que a mera reparação civil, pois “(...)
permite ao mesmo tempo, a reparação do dano decorrente do delito, a responsabilização
e reinserção social de seu autor, contribuindo efetivamente para a reconstrução do tecido
social, favorecendo ainda a prevenção do crime e reduzindo a reincidência
77
.
No mesmo rumo, observa-se que a mediação ocorrida fora do ambiente judicial e de
forma confidencial tende a ser mais eficaz, mormente porque intensifica a assunção de
responsabilidades pelo autor
78
.
74 Cf. art. 74, parágrafo único, da Lei n.º9.099/95.
75 BURIHAN, Eduardo Arantes – «Mediação Penal». In: Os Novos Atores da Justiça Penal, p.198.
76 MAGALHÃES, Inês Filipa Rodrigues de. O Princípio da Reserva de Juiz no Âmbito da Mediação Penal em
Portugal. In: Os Novos Atores da Justiça Penal; p.74.
77 BURIHAN, Eduardo Arantes – «Mediação Penal», p.205.
78 ALMEIDA, Diogo A. Rezende de; PANTOJA, Fernanda Medina – «Áreas de atuação da mediação de conflitos...»,
p.118.
98
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
Em suma, mesmo não havendo lei expressa disciplinando a mediação penal no Brasil,
é possível aplicá-la como instrumento da justiça restaurativa, mediante interpretação sis-
temática e conjunta dos diplomas que se constituem em “portas” da justiça restaurativa,
especialmente a Lei n.º9.099/95, a Resolução n.º125/10 do CNJ e demais normativas que
se seguiram, como a Resolução n.º225/2016, de 31 de maio, também do CNJ, e a Resolução
n.º118/2014, de 1.ºde dezembro, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
B. O papel da vítima na mediação penal no Brasil
Promovendo-se uma análise macro, é possível afirmar que no processo penal brasileiro a
vítima é menos valorizada do que no português. Como dito alhures, Portugal recentemente
aprovou o Estatuto da Vítima, a Lei n.º130/15, mas, no Brasil, ainda são poucos os direitos
previstos, durante a persecução penal, para as pessoas ofendidas. Além de parcos, estão
espalhados pela legislação, e não sistematicamente reunidos em um diploma. Um exemplo
desse atraso legislativo está na demora para se editar uma lei buscando garantir os direitos
de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual durante suas escutas e depoimentos,
que foi a Lei n.º13.431/17, de 4 de abril.
Em relação à valorização da vítima, os objetivos da mediação penal são semelhantes
àqueles expostos no tópico II.B, explanados pela doutrina lusitana. Neste particular, as dife-
renças existentes entre os ordenamentos português e brasileiro são procedimentais na sua
maioria, mas não de finalidades. Busca-se inserir a vítima “(...) na centralidade do processo
de resolução de conflito, deixando de ser apenas um mero meio de prova para que, na rela-
ção entre Estado e o ofensor, se possa estabelecer a culpa deste último e puni-lo
79
.
Aplicam-se, também, no ordenamento jurídico brasileiro, os princípios da mediação
ligados à vítima: voluntariedade e cooperação.
Acerca do primeiro princípio, é evidente que a mediação penal somente acontecerá se a
vítima manifestar interesse, por exemplo, na oportunidade da composição dos danos. Caso
o ofendido manifeste desinteresse, o feito seguirá com a proposta de aplicação imediata
de pena não privativa de liberdade pelo titular da ação penal, se preenchidos os requisitos
legais. Nesse caso, a transação penal independe da vontade ou aceitação da vítima. Embora
seja um instituto despenalizador e de justiça negociada, a transação penal não constitui
instrumento de mediação vítima-agressor ou de justiça reparadora
80
.
79 PENIDO, Egberto – «Justiça Restaurativa...», p.648.
80 Na transação, o autor dos fatos e o Ministério Público entabulam acordo para a imediata aplicação de pena não
privativa de liberdade. A vítima fica alijada, portanto não se trata de mediação, ainda que do acordo exsurja
alguma consequência na esfera do ofendido. Daí entender-se que, embora seja importante instrumento de
justiça negocial, imbuída de intuito despenalizador, a mediação agressor-vítima não se adéqua à transação
penal como na composição dos danos.
99
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
No que concerne à cooperação, as partes devem encontrar saídas criativas, forjando a
denominada verdade consensual, já tratada alhures
81
. Para tanto, não adianta esforço do
autor dos fatos, se a vítima não estiver disposta a colaborar, e vice-versa. Faz-se necessá-
rio abandonar a “tradicional postura adversarial” e “co-operar, ou seja, operar conjunta-
mente
82
.
Tendo em consideração os princípios norteadores da mediação penal analisados supra,
resulta inegável a valorização da vítima na utilização de instrumentos de justiça restaura-
tiva no âmbito da criminalidade de menor ofensividade
83
.
Infelizmente, no campo jurisprudencial, ainda existe resistência na implantação da
mediação penal, conforme se verá a seguir, citando-se dois casos.
O primeiro é um acórdão da 1.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro, que denegou a ordem em impetração cujo objetivo era modificar decisão do juízo
de primeiro grau que indeferiu pedido de remessa de processo criminal ao núcleo de con-
ciliação e mediação
84
. É certo que, por vedação do art. 41 da Lei n.º11.340/06, os institu-
tos despenalizadores da Lei n.º9.099/95 não podem ser aplicados aos crimes de violência
doméstica e familiar contra mulher, como no caso. Neste ponto, a decisão é incontestável.
Todavia, abstraindo-se deste argumento, o referido acórdão expressamente mencionou, em
sua fundamentação, que a Resolução n.º125/10 não se aplica ao campo criminal. Embora tal
argumentação talvez não tivesse o condão de modificar o resultado do julgamento, com o
devido respeito, não é possível concordar a afirmação. A Resolução n.º125/10 não fez restri-
ção a ser aplicada no campo penal, pelo contrário, no seu Anexo 1, ao fixar as diretrizes cur-
riculares para os cursos de conciliadores/mediadores, expressamente afirmou que o campo
penal e da justiça restaurativa estão dentre as áreas de utilização da conciliação/mediação
(Anexo 1, I, 1.1, “i”). Aliás, a interpretação restritiva contraria os princípios gerais e a própria
intenção do Conselho Nacional de Justiça quando editou a normativa.
O segundo acórdão é da 1.ªTurma Recursal dos Juizados Especiais do Tribunal de Jus-
tiça do Distrito Federal e Territórios, que negou provimento a uma reclamação do Minis-
81 Vide tópico II, B, a).
82 ALMEIDA, Diogo A. Rezende de; PAIVA, Fernanda – Princípios da Mediação de Conflitos. In Mediação de conflitos
para iniciantes, praticantes e docentes, 2.ªed. p.102.
83 Vide supra apartado II.B.
84 “(...) a mediação não é prevista para resolver conflitos de ordem penal ou criminal, sendo própria para atender
aos juízos com competência na cível, fazendária, previdenciária, de família ou dos Juizados Especiais Cíveis
e Fazendários...” (TRIBUNAL de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – Acórdão proferido no Habeas Corpus
n.º0038062-56.2013.8.19.0000, Relator Marcus Basilio. [Em linha] [Consultado em 04 Nov. 2019]. Disponível
em: https://tj-rj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/381530242/habeas-corpus-hc-380625620138190000-rio-de-janeiro-capital-i-
j-vio-dom-fam/inteiro-teor-381530250?ref=juris-tabs).
100
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
tério Público
85
. Na instância inferior, a vítima de um crime de lesão corporal leve, conside-
rado de menor potencial ofensivo pela legislação brasileira, retratou-se da representação
em sessão extrajudicial de conciliação/mediação promovida no âmbito do próprio Minis-
tério Público
86
. Em havendo retratação, a legislação determina que o Ministério Público
se manifeste e, após, não havendo oposição, o Juízo avalia a extinção da punibilidade. No
caso dos autos, o Promotor de Justiça que participou da conciliação, julgando-se suspeito
para se manifestar sobre a legalidade da conciliação, requereu fossem os autos encaminha-
dos a outro membro do Ministério Público para fazê-lo, mas o Juízo rejeitou o pedido. No
recurso da Promotoria de Justiça, foram invocadas normativas internacionais, dispositivos
de ordem constitucional e da própria Resolução n.º125/10. Entretanto, o órgão julgador
não acatou os argumentos, afirmando, em suma, que o juiz de piso acertou ao não conferir
efeitos à conciliação extrajudicial, uma vez que a Lei n.º9.099/95 determina que a conci-
liação será realizada na audiência preliminar, conduzida por juiz ou conciliador sob sua
orientação.
Neste segundo caso, a decisão, data venia, não foi a melhor. Primeiro, porque valorizou
regras de formalidade, enquanto a própria Lei n.º9.099/95 elevou a informalidade a prin-
cípio geral dos juizados especiais, segundo se extrai dos arts. 2.ºe 62. Em segundo lugar,
porque foram respeitados os princípios da conciliação, destacando-se o da voluntariedade
e da imparcialidade, que também se aplicam à mediação. O Promotor de Justiça que con-
duziu os trabalhos de conciliação, em sessão extrajudicial realizada com esta finalidade,
tomou a cautela de pedir que outro membro da Instituição fizesse o controle de legalidade.
Além disso, a vítima desejou se retratar e não há diferença prática em fazê-lo extrajudicial-
mente ou em audiência preliminar. Certamente, na audiência extrajudicial, ela se sentiu
mais à vontade, bem como teve melhores esclarecimentos do que teria em uma audiência
preliminar formal no fórum, perante várias autoridades, com prazo reduzido etc. Em suma,
a voluntariedade e a cooperação não foram valorizadas pelas instâncias judiciais, que pre-
feriram a formalidade de “modo, forma e prazo previstos na lei”, tal qual constou da ementa
do acórdão.
Nada obstante os dois julgados citados acima, vale mencionar um caso de sucesso na
implantação da mediação penal no Brasil, que é o “Projeto Cantareira, hoje designado
85 TRIBUNAL de Justiça do Distrito Federal e Territórios – Acórdão n.º850.798 (Processo n.º2014.0020278803-
DVJ), Relator Luís Gustavo B. de Oliveira. [Em linha] [Consultado em 04 Nov. 2019]. Disponível em: https://
pesquisajuris.tjdft.jus.br/IndexadorAcordaos-web/sistj).
86 Ao contrário do julgado da nota anterior, a retratação em crimes de lesão corporal leve é possível em casos que não
envolvem violência doméstica e familiar. Por ser um crime de ação penal pública condicionada a representação,
a retratação da representação conduz à ausência de condição de procedibilidade para a persecução penal,
extinguindo-se a punibilidade do autor dos fatos sem análise meritória.
101
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
Núcleo de Incentivo em Práticas Autocompositivas (NUIPA 1) – Região Norte da Capital,
desenvolvido pelo Ministério Público do Estado de São Paulo.
O referido projeto foi implantado no ano de 2005 na sede da Promotoria de Justiça de
Santana, com atribuição criminal no âmbito dos Juizados Especiais Criminais nos bairros
da Zona Norte da cidade de São Paulo, capital. Cuida-se de projeto interdisciplinar, com pro-
fissionais de Direito, Assistência Social, Psicologia e Educação, desenvolvido com o apoio
de institutos de formação e capacitação de mediadores, e que busca a formação da “cultura
de autocomposição”
87
.
Melhor explicando, nos crimes de menor potencial ofensivo, quando verificados indí-
cios de autoria, prova da materialidade delitiva e preenchidos os demais requisitos legais,
o Ministério Público requer a designação de audiência preliminar no Juizado Especial Cri-
minal, nos termos da Lei n.º9.099/95. No interstício entre o referido pedido e a designação
da audiência – cuja média é de alguns meses –, as partes são convidadas a participarem dos
encontros de mediação, facultada a presença de advogados, na sede do NUIPA 1
88
. As partes,
então, são preparadas para as sessões de mediação, nas quais o diálogo é facilitado por um
mediador capacitado e que observará os princípios da imparcialidade, da igualdade e da
confidencialidade. O mediador não apresenta solução para o litígio, pois esta deverá ser
construída pelos mediados. É importante que “(...) cada parte possa apresentar a sua versão
e seja ouvida pelo outro mediado, resguardando a equidade”
89
.
Obtido acordo entre as partes, o Ministério Público requer o arquivamento ou a extin-
ção da punibilidade, caso o feito comporte retratação ou desistência, e o Juízo é comunicado
para fins de retirada de pauta ou adiamento de audiência preliminar.
Verifica-se, pois, o respeito aos postulados da voluntariedade e da cooperação.
Ressalte-se que, para os fins de pacificação buscados pelo NUIPA, o acordo não é funda-
mental, desde que haja transformação na relação entre as partes
90
.
87 Dentre eles: o Instituto Familiae, o Mediativa – Instituto de Mediação Transformativa e o THEM – Transformação
Humana em Educação e Mediação. Cf. Projeto Cantareira de Mediação Penal Interdisciplinar – descrição
realizada por ocasião do Prêmio Innovare, 6.ªed., 2009 [Em linha]. [Consultado em 18 fev. 2020]. Disponível em:
https://www.premioinnovare.com.br/proposta/projeto-cantareira-de-mediacao-penal-interdisciplinar/print [np].
88 Uma das vantagens alcançadas é exatamente a de não paralisar o andamento do termo circunstanciado, mas
de aproveitar o lapso temporal (que varia de acordo com a agenda dos Juizados Especiais Criminais) entre a
análise ministerial e a audiência preliminar, para incentivar o diálogo entre as partes (cf. Projeto Cantareira de
Mediação Penal Interdisciplinar – descrição realizada por ocasião do Prêmio Innovare, 6.ªed., 2009 [Em linha].
[Consultado em 18 fev. 2020]. Disponível em: https://www.premioinnovare.com.br/proposta/projeto-cantareira-de-
mediacao-penal-interdisciplinar/print [np].
89 Idem – Ibidem.
90 Conforme extraído do sítio eletrônico do Ministério Público do Estado de São Paulo [Consultado em
18 fev. 2020]. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Nuipa/NUIPA_01_Regional_Norte_
Capital/813D928BBC9226D1E050A8C0DD013C91
102
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
Em razão do alto grau de satisfação e dos resultados positivos, a prática foi alargada no
âmbito do Ministério Público do Estado de São Paulo, com a criação de outros Núcleos de
Incentivo a Práticas Autocompositivas – NUIPAs, na esteira da Resolução n.º118/2014, de
1.ºde dezembro, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que consiste em
outra “porta” de reconhecimento dos espaços de consenso no âmbito dos Juizados Especiais
Criminais
91
.
Em termos numéricos, o NUIPA 1 tem abrangência territorial da Zona Norte da cidade
de São Paulo, com mais de dez delegacias, jurisdição de cerca de 160km² e população supe-
rior a dois milhões de habitantes
92
. Segundo os dados oficiais colhidos do sítio eletrônico
do Ministério Público do Estado de São Paulo, os casos exitosos de mediação ultrapassam
a média de 70%, considerando-se o intervalo de 2015-2018
93
. Ainda, em dados obtidos direta-
mente junto à secretaria do NUIPA 1, observa-se que no ano de 2019 foi mantido percentual
de sucesso superior a 70% de casos com êxito em mediação
94
.
Consoante conclusão dos próprios idealizadores, o êxito da mediação não está apenas
no número de acordos formais celebrados, mas na transformação dos mediados, o que pode
ser aferido pelas retratações das representações e pelos dados colhidos no último encontro
feito com os mediados, tempos após a mediação propriamente dita, para avaliação do cum-
primento do quanto acordado
95
.
Vale ressaltar, ainda, que há casos nos quais, mesmo não havendo indícios suficientes
para o prosseguimento do feito no âmbito criminal, são realizadas sessões de mediação
preventiva. Isso quando se verifica a existência de um conflito latente entre as partes
96
.
91 Vide a Resolução n.º1.062/2017, de 14 de dezembro, da Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo.
92 Cf. Projeto Cantareira de Mediação Penal Interdisciplinar – descrição realizada por ocasião do Prêmio Innovare,
6.ªed., 2009 [Em linha]. [Consultado em 18 fev. 2020]. Disponível em: https://www.premioinnovare.com.br/proposta/
projeto-cantareira-de-mediacao-penal-interdisciplinar/print [np].
93 Segundo as estatísticas do NUIPA 1 – Regional Norte da Capital – Projeto Cantareira, os percentuais de sucesso
foram 74% (2015), 93% (2016), 77% (2017) e 67% (2018), considerando os casos nos quais houve acordo e/ou
transformação social verificada [Consultado em 18 fev. 2020]. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/
portal/Nuipa/NUIPA_01_Regional_Norte_Capital/III-Resultados%20Apurados.
94 Consoante mensagem eletrônica recebida no dia 20 de fevereiro de 2020, enviada do e-mail oficial
projetocantareira@mpsp.mp.br, no ano de 2019 foram atendidos 74 casos, com uma média de 174 pessoas (isso
excluindo aquelas pessoas contatadas e que não tiveram interesse, não foram localizadas ou que já haviam
resolvido a situação). Dentre os casos com adesão das partes que foram encerrados (ainda havia 5 casos em
andamento, razão da não publicação dos dados em sítio oficial), cerca de 71% foram concluídos com acordo, com
transformação ou houve desistência com transformação.
95 Cf. Projeto Cantareira de Mediação Penal Interdisciplinar – descrição realizada por ocasião do Prêmio Innovare,
6.ªed., 2009 [Em linha]. [Consultado em 18 fev. 2020]. Disponível em: https://www.premioinnovare.com.br/proposta/
projeto-cantareira-de-mediacao-penal-interdisciplinar/print [np].
96 Cf. extraído do sítio eletrônico do Ministério Público do Estado de São Paulo [Consultado em 18 fev.
2020]. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Nuipa/NUIPA_01_Regional_Norte_Capital/III-
Resultados%20Apurados.
103
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
Em todo caso, seja de mediação preventiva seja de mediação curativa/transformativa, a
colaboração da vítima é de extrema importância para o sucesso da prática. Saliente-se que
ela inicia o processo de mediação em desvantagem, pois já se constatou nos autos indícios
de crime, confirmando a violação de algum bem jurídico, e, mesmo assim, ela aceita iniciar
o diálogo com o agressor em busca de uma solução.
CONCLUSÕES
A mediação penal insere-se num contexto mais amplo da denominada justiça restaurativa
e consiste na técnica de aproximação entre agressor e vítima, facilitada por um terceiro
imparcial, como forma de obtenção do consenso e, consequentemente, da solução de con-
flitos criminais.
Trata-se de um método alternativo/adequado
97
de solução do conflito criminal que,
embora não seja panaceia geral, alcança grandes vantagens, especialmente naqueles cri-
mes de menor repercussão ou potencial ofensivo, i.e., na pequena criminalidade
98
.
Os pontos positivos são muitos, razão pela qual a mediação penal já é realidade em
vários países. Tal como apontado por André Lamas Leite, um dos críticos da forma como o
instituto foi estruturado em Portugal, “o essencial, na actualidade, já não é discutir da bon-
dade ou não da introdução de sistemas de mediação. Esse tempo passou e a resposta é, em
regra afirmativa. A dificuldade está no modelo concreto de sua implementação
99
.
Dentre as propaladas vantagens da mediação penal, destaca-se a valorização da vítima
e de seu papel no contexto do processo penal. Dois dos princípios regentes da mediação
penal, tanto em Portugal quanto no Brasil, estão intrinsecamente ligados à vítima, quais
sejam: a colaboração e a voluntariedade.
O princípio da voluntariedade possui várias dimensões, como a liberdade de aceitar
participar da mediação, de deixá-la a qualquer momento sem prejuízo processual, de esta-
97 Defende-se o uso da expressão métodos adequados (e não alternativos) de resolução de conflitos (cf. ALMEIDA,
Rafael Alves de; PANTOJA, Fernanda Medina – «Os métodos “alternativos” de solução de conflitos (ADRS)...»,
2.ªed., p.60).
98 O Supremo Tribunal de Justiça, em julgamento que decidiu sobre o prazo para o direito à constituição de
assistente em procedimento de acusação particular, ressaltou que desde a revisão de 1995 no CPP português
o legislador buscou, nas situações de menor gravidade, a “(...) introdução de uma clara e inequívoca lógica de
consenso na resolução da conflitualidade criminal”. Isso para se chegar à resolução do conflito por mediação
ou outra forma de diversão, reduzindo a “estigmatizante ritualização da justiça penal” e deixando ao aparelho
estatal a “realização de actos que tenham a ver com um tipo de criminalidade realmente importante”. (SUPREMO
Tribunal de Justiça – Acórdão do processo n.º966/08.2GBMFR.L1–A.S1, de 2010, Relator Isabel Pais Martin.
Diário da República n.º18/2011, Série I, 2011-01-26 [Em linha] [Consultado em 31 Out. 2019]. Disponível em: http://
www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/fbded80192d6477080257823004e8ed3?OpenDocument ).
99 LEITE, André Lamas – «Alguns claros e escuros no tema da mediação penal de adultos...», p.581.
104
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
belecer o conteúdo do acordo e, em alguns ordenamentos, de escolher o mediador. O prin-
cípio da colaboração, por sua vez, diz respeito ao estado de espírito e ao comportamento
dos mediados. Conforme salientado nos capítulos anteriores, para o sucesso da mediação
penal na busca de uma solução criativa que alcance o fim verdadeiramente restaurador, e
não somente reparador, os desejos de recriminação e vingança devem ser convertidos “(...)
numa atitude cooperativa e interactiva que favorecem a aceleração do processo cicatricial,
o arrependimento e o perdão
100
.
Da análise de direito comparado realizada, pode-se concluir que o fato de haver uma lei
específica disciplinando o tema em Portugal – a Lei n.º21/07 – conferiu maior segurança
jurídica na implementação do instituto. Isso porque, bem ou mal, o procedimento já está
sistematizado, bem como as consequências da aceitação, ou não, do acordo. Embora esteja
longe de ser uma legislação perfeita e definitiva – já que ela própria, no seu art. 14º, se colo-
cou como uma lei experimental – é digna de elogios. Por outro lado, no Brasil existe uma
pulverização de normas e a implementação da mediação penal depende de denominadas
“portas”, dentre elas, a Resolução n.º125/10 e a Lei n.º9.099/95. Em um país territorialmente
vasto como o Brasil, é vital a existência de uma lei federal atual e específica, evitando-se
interpretações regionais e decisões judiciais conflitantes que comprometam a eficácia do
instituto. A falta de segurança jurídica atinge o cerne da mediação penal. Trata-se de insti-
tuto que demanda confiança das partes, ou seja, elas primeiro precisam estar convencidas
da credibilidade da mediação para, então, se persuadirem sobre a importância do diálogo e
da criatividade na solução do conflito. Sobretudo a vítima – que começa todo o processo em
desvantagem, pois já teve algum bem jurídico lesado – precisa confiar no método alterna-
tivo para aceitá-lo, do contrário restará o processo penal clássico, pouco eficaz no combate
à pequena criminalidade.
Do ponto de vista histórico-legislativo, uma diferença entre os ordenamentos jurídi-
cos analisados, que parece justificar a falta de unificação da matéria no Brasil, consiste no
fato de a introdução da mediação penal no ordenamento português ter sido antecipada de
normativas internacionais, seminários, colóquios e manifestações de especialistas, o que
não ocorreu com igual intensidade e direcionamento no Brasil. Neste país, percebe-se mais
um movimento de sistematização colocada por órgãos de cúpula do Poder Judiciário, por
meio de resoluções, ainda que buscando fins previstos na Constituição e na legislação, do
que uma iniciativa legiferante. Em resumo, a sensibilização para as formas alternativas do
conflito penal é maior no Judiciário do que no Legislativo, talvez porque este Poder reflita
100 FERREIRA, Francisco Amado – Justiça Restaurativa: natureza, finalidades e instrumentos..., p.45.
105
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
a característica da sociedade brasileira de valorização da solução adjudicada, a chamada
“cultura da sentença.
Ao nível procedimental, existem diversas diferenças relevantes entre a mediação penal
da Lei n.º21/07 de Portugal e a proposta brasileira de aplicação conjunta da Lei n.º9.099/95
com a Resolução n.º125/10. Citem-se três importantes: (1) Em Portugal há previsão legal
facultando às partes requererem que o feito seja remetido à mediação; já no Brasil a seleção
dos casos para audiência depende de manifestação do Ministério Público
101
. (2) O controle
da legalidade do acordo em Portugal é exercido pelo magistrado do Ministério Público, que
homologa a desistência da queixa; enquanto no Brasil o Ministério Público se manifesta
sobre o acordo obtido em composição de danos, por exemplo, e a homologação cabe ao
Judiciário. (3) No Brasil, em crimes de menor potencial ofensivo iniciados por ação penal
pública condicionada e ação penal privada, a homologação do acordo de composição de
danos conduz à renúncia do direito de queixa e retratação da representação, extinguindo-
-se os efeitos penais, restando à vítima um título executivo que poderá ser executado no
âmbito civil. Verifica-se, pois, a característica da executoriedade. Por sua vez, em Portugal,
o acordo também equivale à desistência da queixa, mas o incumprimento, quando verifi-
cado, renova a possibilidade de exercício do direito de queixa por um mês, podendo ensejar
a reabertura do inquérito.
Passando-se ao campo prático, em análise realística os números indicam que a media-
ção penal em Portugal seguiu em franco declínio nos últimos anos, nada obstante a exis-
tência de lei nacional sistematizadora
102
. Por outro lado, no Brasil, onde a aplicação do ins-
tituto depende da interpretação sistemática do ordenamento e de resoluções de cúpula do
Judiciário, verifica-se a notícia de iniciativas bem-sucedidas, como a do Projeto Cantareira
(NUIPA 1). Portanto, a falta de segurança jurídica de uma legislação específica não impossi-
101 No Brasil, nada impede que, com fundamento no direito geral de petição/representação, as partes requeiram
ao Ministério Público ou, mediante constituição de advogado, ao Juízo, que o feito seja remetido ao Cejusc para
conciliação/mediação. A diferença é que, em Portugal, há previsão legal de tal direito e o pedido vincula o órgão
acusador.
102 Retome-se, aqui, nota anterior com os seguintes dados estatísticos: (1) Informações da Direção-Geral da
Polícia de Justiça (DGPJ) de que, entre 23/01/2008 e 31/12/2012, apenas 735 processos ingressaram no sistema
de mediação penal e, deles, 188 lograram um acordo (25,28%). Nesse período, o número de inquéritos abertos
superou o de cinquenta e cinco mil (cf. LEITE, André Lamas – «Uma leitura humanista da mediação penal...»,
p.17). (2) No intuito de reunir dados para este ensaio, obteve-se informação do Gabinete para a Resolução
Alternativa de Litígios (DGPJ) da inexistência de processos de mediação penal em curso no início do mês de
agosto de 2019 (cf. mensagem eletrônica de 06 de agosto de 2019, remetida por correio@dgpj.mj.pt). Tal fato
pôde ser confirmado em consulta às estatísticas oficiais do Ministério da Justiça [Em linha] [Consultado em
13 Fev. 2020]. Disponível em: (https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Paginas/Mediacao.aspx). (3) Segundo se
extrai do CITIUS (sistema do Ministério da Justiça), o último edital para a seleção de mediadores penais foi
publicado em julho de 2011 [Em linha] [Consultado em 13 Fev. 2020]. Disponível em: https://www.citius.mj.pt/
portal/Artigos.aspx?CategoryId=13).
106
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
bilitou a prática da mediação penal. Tal constatação reforça, de certa forma, o argumento de
que a informalidade e a flexibilidade são princípios constituidores da resolução alternativa
de conflitos.
Comparando-se dados estatísticos, pode-se afirmar que o NUIPA 1 – atendendo a um
quantitativo populacional
103
mais ou menos equivalente às comarcas de Porto e Lisboa
Oeste
104
, duas das comarcas na qual o SMP português funcionou a título experimental –
somente no ano de 2019 fez mais acordos por mediação penal do que todo Portugal nos
anos de 2015-2019
105
.
Evidencia-se, assim, a necessidade de impulsionar a mediação penal em Portugal com
o fim de buscar a harmonização do tecido social ainda durante a fase de inquérito. Para
tanto, dever-se-ia admitir que cada parte pudesse requerer a mediação, independentemente
da vontade da outra, privilegiando o axioma da voluntariedade. Nesse ponto, sugere-se a
alteração legislativa, a ponto de evoluir da atual previsão de requerimento conjunto do
ofendido e arguido, redação do art. 3º, n.º2, para facultar o pedido individual da vítima ou
do autor para o início do processo de mediação. A aposta é alta, mas realista, já que não é
comum ver autor e vítima fazendo requerimentos conjuntos pouco tempo após a ocorrên-
cia de um fato criminoso. Ademais, não se verifica prejuízo ou atraso procedimental, pois,
bastando a negativa da parte contrária, o processo de mediação propriamente dito não se
iniciará.
103 Detalhamento numérico: Conforme informações da Prefeitura Municipal de São Paulo, a população da Zona
Norte da Capital era de 2.214.654 de habitantes, segundo o censo de 2010 [Em linha] [Consultado em 18 Fev.
2020]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/urbanismo/infocidade/htmls/7_
populacao_recenseada_e_taxas_de_crescime_1980_10747.html. Considerando a taxa de crescimento populacional
anual de 0,55% entre 2010/2019 para a cidade de São Paulo (cf. dados extraídos em https://www.seade.gov.br/wp-
content/uploads/2019/02/Municipio_Sao_Paulo_.pdf), chegar-se-ia a um resultado entre 2.300.000 e 2.400.000 de
habitantes.
104 Detalhamento numérico: Segundo informações da Divisão Judicial e Administrativa de Portugal, a Comarca
de Porto abrange os municípios de Gondomar, Maia, Matosinhos, Porto, Póvoa de Varzim, Santo Tirso, Trofa,
Valongo, Vila Conde e Vila Nova de Gaia, enquanto a Comarca de Lisboa Oeste abrange os municípios de
Amadora, Cascais, Mafra, Oeiras e Sintra [Consultado em 18 Fev. 2020]. Disponível em: https://www.citius.mj.pt/
Portal/consultas/ConsultasDivJud.aspx. A população residente no dia 31-12-2018 estimada pelo Sistema Pordata,
somando-se os municípios da Comarca de Porto, seria de 1.338.159 residentes, e, pelos menos critérios, nos
municípios da Comarca de Lisboa Oeste seria 1.042.858 residentes. Ao total, ter-se-ia, segundo as estimativas,
uma população residente de 2.381.017 habitantes em 31-12-2018. Cálculo com análise da ferramenta Pordata [Em
linha]. [Consultado em 18 Fev. 2020]. Disponível em: https://www.pordata.pt/DB/Municipios/Ambiente+de+Consulta/
Tabela.
105 Segundo dados estatísticos do Ministério da Justiça, foram finalizados cerca de 40 pedidos de mediação penal
em Portugal nos anos de 2015-2019 [Em linha]. [Consultado em 18 Fev. 2020]. Disponível em: https://estatisticas.
justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Paginas/Mediacao.aspx . Já o NUIPA 1, somente em 2019, atendeu a mais de 50
casos, considerando-se aqueles nos quais houve adesão, com mais de 70% de sucesso (somando-se acordos e
transformações) (Consoante mensagem eletrônica recebida no dia 20 de fevereiro de 2020, enviada do e-mail
oficial projetocantareira@mpsp.mp.br). Vide nota 93.
107
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
Paralelamente, e sem prejuízo da referida alteração legal, é imperioso conferir maior
efetividade ao direito de informação da vítima. Para tanto, sugerir-se-ia que, no ato de
registro da ocorrência policial, formulação de queixa ou constituição de assistente, a vítima
fosse efetivamente informada do seu direito de requerer a mediação penal.
Levando-se em conta as circunstâncias de abalo físico e emocional dos registros de
ocorrências policiais, as informações relativas à justiça restaurativa devem ser substan-
ciais, de preferência veiculadas por diversificados canais sensoriais, como a comunicação
escrita, verbal e visual – por exemplo: orientações, panfletos e vídeos educativos – e cumu-
lativamente direcionadas ao eventual acompanhante da vítima
106
. Considerando-se, ainda,
a opção pela solução consensual demanda ponderação, elaboração e amadurecimento, é
válido que as orientações sobre a mediação penal (No que consiste? Como acontece? Quem
requer? Quando?) também sejam reforçadas em condições espaço-temporais diferentes da
primeira vez na qual há oficialização do evento, por exemplo por mensagem eletrônica/
SMS/rede social alguns dias após.
Vale ressaltar que o mero envio de um e-mail à vítima, sem a correta orientação, poderá
causar efeito inverso do pretendido, fechando as portas para a resolução alternativa. Imagi-
ne-se a vítima que registra uma ocorrência e, dias depois, recebe uma mensagem dos órgãos
estatais sugerindo uma reunião com seu algoz. Se a ela não for conferida a oportunidade
de compreensão, inegavelmente poderá se sentir (re)vitimizada. Neste ponto, importante
papel realizam as entidades de proteção e esclarecimento, como a APAV, que, reunindo-se
com a vítima e ouvindo-a, expõem os caminhos legais a serem seguidos, de forma clara e
confiável, com as cautelas que cada caso merece
107
.
Como tratado durante o trabalho, efetivar o direito à informação preconizado em ins-
trumentos normativos internos e internacionais de proteção à vítima é medida capaz de:
(a) evitar atos de vitimização secundária; (b) atender aos interesses do próprio suspeito/
arguido; (c) reconstruir o tecido social de forma mais célere; e (d) desonerar os órgãos de
investigação, de modo que se atenham à grande criminalidade, promovendo economia de
recursos e eficiência.
106 Diante da possibilidade de abalo físico e emocional (ou por outra conveniência), o direito a ser acompanhado
de alguém à escolha da vítima no contato com as autoridades foi garantido na Decisão-quadro n.º2001/220/
JAI do Parlamento Europeu e do Conselho (art. 3º, n.º3) e pelo Estatuto da Vítima – Lei n.º130/15 (art.12º, n.º3).
107 Informações adicionais sobre a abordagem e acompanhamento às vítimas no sítio eletrônico da Associação
Portuguesa de Apoio à Vítima – APAV. [Consultado em 18 Fev. 2020]. Disponível em: https://apav.pt/apav_v3/index.
php/pt/a-vitima/como-apoiamos.
108
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Referências doutrinárias
ABREU, Carlos Pinto de – «A ineficácia do sistema penal na protecção à vítima e a mediação penal: um mal
necessário ou uma solução há muito possível e quase sempre esquecia?». In: Revista do Ministério Público.
Lisboa. ISSN 0870-6107. Ano 30, n.º118 (Abr-Jun 2009), p.269/274.
AERTSEN, Ivo; PETERS, Tony – «As políticas europeias em matéria de justiça restaurativa». In: Sub Judice.
Justiça e Sociedade. Coimbra: Almedina. ISSN 0872-2137. [sd] n.º37 (Out-Dez 2006), p.37-46.
ALMEIDA, Carlota Pizarro de – «A mediação perante os objetivos do Direito Penal». In: A Introdução da
Mediação Vítima-Agressor no Ordenamento Jurídico Português. Colóquio 29 de Junho de 2004. Faculdade de
Direito da Universidade do Porto. Ministério da Justiça. Coimbra: Almedina, 2005, p.39-51. ISBN 9972-
40-2585-3.
ALMEIDA, Diogo A. Rezende de; PAIVA, Fernanda – «Princípios da Mediação de Conflitos». In: Mediação de
conflitos para iniciantes, praticantes e docentes., 2.ªedição. Salvador: Juspodivm, 2019, p.101-110. ISBN 978-
85-442-2694-0.
ALMEIDA, Diogo A. Rezende de; PANTOJA, Fernanda Medina – «Áreas de atuação da mediação de
conflitos». In: Mediação de conflitos para iniciantes, praticantes e docentes. 2.ªedição. Salvador: Juspodivm,
2019, p.111-132. ISBN 978-85-442-2694-0.
ALMEIDA, Rafael Alves de; PANTOJA, Fernanda Medina – «Os métodos “alternativos” de solução de
conflitos (ADRS)». In: Mediação de conflitos para iniciantes, praticantes e docentes. 2.ª edição. Salvador:
Juspodivm, 2019, p.57-71. ISBN 978-85-442-2694-0.
BAHAMONDE, Ruben – «The structuring principles of mediation in Portugal». In: Galileu – Revista de Direito
e Economia. Lisboa. ISSN 2184-21845. Vol. XIX, n.º2, 2018, p.131-154.
BASTOS, Maria Manuel – «Breves considerações sobre a mediação penal». In: Sub Judice, Justiça e Sociedade.
Coimbra: Almedina. ISSN 0872-2137. [sd] n.º37 (Out-Dez 2006), p.85-91.
BELEZA, Teresa Pizarro; MELO, Helena Pereira de – A mediação penal em Portugal. Coimbra: Almedina, 2012.
ISBN 978-972-40-4814-7.
BURIHAN, Eduardo Arantes – «Mediação Penal». In: Os Novos Atores da Justiça Penal. Coimbra: Almedina.
2016, p.193-217. ISBN 978-972.40.6451-2.
CORREIA, João Conde – «O papel do Ministério Público no regime legal da mediação penal». In: Revista do
Ministério Público. Lisboa. ISSN 0870-6107. Ano 28, n.º112 (Out-Dez 2007), p.57-77.
ESTEVES, Raúl – «A novíssima Justiça Restaurativa e a Mediação Penal». In: Sub Judice. Justiça e Sociedade.
Coimbra: Almedina. ISSN 0872-2137. [sd] n.º37 (Out-Dez 2006), p.53-64.
ERRAZ, Conrado – «A Justiça Restaurativa e o Sistema Jurídico-Penal Brasileiro». In: Os Novos Atores da Justiça
Penal. Coimbra: Almedina. 2016, p.39-71. ISBN 978-972.40.6451-2.
FERREIRA, Francisco Amado – Justiça Restaurativa: natureza, finalidades e instrumentos. Coimbra: Coimbra
Editora, 2006. ISBN 978-972-32-1415-6.
FERREIRA, Jaime Octávio Cardona – «A mediação como caminho da Justiça. A mediação penal». In:
Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Teles: 90 anos. Coimbra:
Almedina. 2017, p.517-531. ISBN 978-972-4031491.
GOUVEIA, Mariana França – «Mediação (capítulo III)». In: Curso de Resolução Alternativa de Litígios. 3.ªedição.
Coimbra: Almedina, 2014, p.47-100. ISBN 978-972-40-5570-1.
LEITE, André Lamas – A Mediação Penal de Adultos. Um Novo «Paradigma» de Justiça? Análise crítica da Lei
n.º21/2007, de 12 de Junho. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. ISBN 978-972-32-1606-6.
109
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
LEITE, André Lamas – «Alguns claros e escuros no tema da mediação penal de adultos». In: Revista Portuguesa
de Ciência Criminal. Coimbra: Coimbra Editora. ISSN 0871-8563. Ano 24, n.º4 (Out-Dez 2014), p.577-613.
LEITE, André Lamas – «Uma leitura humanista da mediação penal. Em especial, a mediação pós-sentencial».
In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Coimbra: Coimbra Editora. ISSN 1645-1430. Ano
XI, (2014), p.9-28.
LOPES, Dulce; PATRÃO, Afonso – Lei da Mediação Comentada. 2.ªedição. Coimbra: Almedina, 2016. ISBN 978-
972-40-6755-1.
MACHADO, Pedro Sá – «A Mediação Penal-Restaurativa e o Processo Penal-Consensual: uma discussão
acerca da verdade a partir da Lei n.º21/2007, de 12 de Junho». In: Os Novos Atores da Justiça Penal. Coimbra:
Almedina. 2016, p.163-191. ISBN 978-972.40.6451-2.
MAGALHÃES, Inês Filipa Rodrigues de – «O Princípio da Reserva de Juiz no Âmbito da Mediação Penal em
Portugal». In: Os Novos Atores da Justiça Penal. 2016, p.73-100. ISBN 978-972.40.6451-2.
MARQUES, Frederico Moyano; LÁZARO, João – «A mediação vítima-infractor e os direitos e interesses das
vítimas». In: A Introdução da Mediação Vítima-Agressor no Ordenamento Jurídico Português. Colóquio 29 de
Junho de 2004. Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Ministério da Justiça. Coimbra: Almedina,
2005, p.27-37. ISBN 9972-40-2585-3.
NUCCI, Guilherme de Souza – Leis Penais e Processuais Penais Comentada – Vol. 2. 9.ª ed., Rio de Janeiro:
Forense, 2015. ISBN 978-85-309-6251-7.
PENIDO, Egberto – «Justiça Restaurativa». In: Mediação de conflitos para iniciantes, praticantes e docentes.
2.ªedição. Salvador: Juspodivm, 2019, p.641-682. ISBN 978-85-442-2694-0.
PINTO, Hélio Pinheiro – «A Mediação Penal no Brasil e o Princípio da Reserva de Jurisdição». In: Os Novos
Atores da Justiça Penal. Coimbra: Almedina. 2016, p.101-162. ISBN 978-972.40.6451-2.
PINTO, João Fernando Ferreira – «O papel do Ministério Público na ligação entre o sistema tradicional
de Justiça e a mediação vítima-agressor». In: A Introdução da Mediação Vítima-Agressor no Ordenamento
Jurídico Português. Colóquio 29 de Junho de 2004. Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Ministério
da Justiça. Coimbra: Almedina, 2005, p.61-94. ISBN 9972-40-2585-3.
SANTOS, Cláudia Cruz – «Uma finalidade específica da justiça restaurativa: a reparação dos danos sofridos
pela vítima (item 6, capítulo 1, parte II)». In: A Justiça Restaurativa. Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p.368-
404. ISBN 978-972-32-2221-0.
SANTOS, Leonel Madaíl – Mediação Penal. Lisboa: Chiado Editora, 2015.
Referências jurisprudenciais
SUPREMO Tribunal de Justiça – Acórdão do processo n.º 148/07.0TAMBR.P1-B.S1, de 2012. Relator
Pires da Graça. Diário da República n.º 98/2012, Série I, 2012-05-21, p. 2624 [Em linha] [Consultado
em 31 Out. 2019]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/
a953d1f5f66312b280257a0500576171?OpenDocument
SUPREMO Tribunal de Justiça – Acórdão do processo n.º 224/06. de7GAVZL.C1.S1, 2013, Relator
Santos Cabral. [Em linha] [Consultado 31 Out. 2019]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jstj.
nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/533bc8aa516702b980257b4e003281f0?OpenDocument
SUPREMO Tribunal de Justiça – Acórdão do processo n.º 966/08.2GBMFR.L1–A.S1, de 2010, Relator
Isabel Pais Martin. Diário da República n.º 18/2011, Série I, 2011-01-26 [Em linha] [Consultado
em 31 Out. 2019]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/
fbded80192d6477080257823004e8ed3?OpenDocument
110
Mediação penal e a valorização da vítima…
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
January Janeiro – 30
th
June Junho 2020 · pp. 77‑110
TRIBUNAL de Justiça do Distrito Federal e Territórios – Acórdão n.º850.798 (Processo n.º2014.0020278803-
DVJ), Relator Luís Gustavo B. de Oliveira. [Em linha] [Consultado em 04 Nov. 2019]. Disponível em:
https://pesquisajuris.tjdft.jus.br/IndexadorAcordaos-web/sistj
TRIBUNAL de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – Acórdão proferido no Habeas Corpus n.º 0038062-
56.2013.8.19.0000, Relator Marcus Basilio. [Em linha] [Consultado em 04 Nov. 2019]. Disponível em:
https://tj-rj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/381530242/habeas-corpus-hc-380625620138190000-rio-de-janeiro-
capital-i-j-vio-dom-fam/inteiro-teor-381530250?ref=juris-tabs