GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
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O Intervalo Descompassado entre a vigência
ea efetividade da norma – A (Re)emergência
daquestão ressocializadora
1
Fostering the validity and the eectiveness of law
– the (re)emergence of the rehabilitation issue
INÊS FARINHA
inesimoesf@gmail.com
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
January Janeiro–30
TH
June Junho 2020 · pp. 142‑158
DOI: http://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.1.6
Submitted on March 23
th
, 2020 · Accepted on June 4
th
, 2020
Submetido em 23 de Março, 2020 · Aceite a 4 de junho, 2020
RESUMO Os polos dinamizadores da execução da pena de prisão, que encontram na
proteção de bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade o seu expoente máximo,
continuam a ser a pedra angular do sistema penal. Contudo se o legislador se mostra fiel
ao ideário ressocializador, por outro lado, o paulatino desajustamento da cena carcerária
desvirtua a ratio essendi da aplicação da pena privativa da liberdade. A crescente taxa de
encarceramento que se tem verificado nos últimos anos aliada à replicação da deviance
criminógena no espaço carcerário, especialmente em Portugal, faz com que grassem vozes
a favor do desencarceramento, dando primazia a penas não privativas da liberdade. Da
sintomatologia registada, e positivada em relatórios e estudos internacionais e internos,
verifica-se uma “síndrome de decalque”, dado que os muros não conseguem filtrar os
fenómenos desviantes, ou, pelo menos, não têm almejado tal desiderato. É na especial
atenção ao cidadão privado da sua liberdade que se encontra o ponto ótimo de análise
para justificar a secundarização que tem vindo a ser dada à reintegração do indivíduo na
sociedade.
1 O presente trabalho foi elaborado no âmbito da unidade curricular do 1.ºsemestre do Curso de Doutoramento
em Direito na Universidade Autónoma “Direito: da norma ao procedimento e à fase aplicativa, lecionada pelo
Professor Doutor Manuel Monteiro Guedes Valente, a quem muito agradecemos os contributos académicos e
devemos os ensinamentos e, bem assim, os comentários críticos aquando da exposição oral do presente tema
em aula.
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PALAVRAS-CHAVE Sistema Punitivo, Prisão, Vigência, Eficácia, Reintegração, Tratamento,
Reincidência.
ABSTRACT The dynamic poles underlying the prison sentence enforcement, which find in
the legal assets protection and rehabilitation of the incarcerated its maximum expression,
are still the heart and soul of the penal system. However, if the legislator stands faithfully
committed to the principle of rehabilitation, on the other hand the gradual inadequacies
indoors distort the “ratio essendi” of the prison sentence enforcement. The incarceration
rate increase observed over the past few years and the the growing massification of criminal
deviance inside the prison walls, especially in Portugal, has led some enthusiastics to
believe in the “power of release” rather than the opposite, giving way to the non-custodial
sentences. Analysing the symptoms derived from international and domestic reports and
studies, one may recognise “a tracing syndrome” only illustrated by the total incapacity
of the prison walls to filter deviant phenomena. Focusing on the secluded men is the best
starting point to justify the lack of attention given in the field of reintegration back in the
society.
KEYWORDS Punitive System, Prison, Validity, Effectiveness, Reintegration, Treatment,
Recidivism.
I. Da atualidade do tema – notas introdutórias
Os fins das penas, no seio do estudo do direito penal substantivo puro sempre se mostrou
uma matéria votada a constante metamorfose.
À semelhança daquilo que B já idealizava há mais de dois séculos atrás, a finali-
dade da pena convoca e provoca, em pleno século XXI, novos olhares e sobretudo exige uma
profunda reflexão que ultrapassa a mera ratio legis de tal finalidade.
Face à corrente securitária que tem perpassado o direito penal, e mais ainda, diga-se,
naquele que é o seu epílogo – o da execução da pena – mostra-se vital aproximar os polos
dinamizadores que constituem a execução.
Pelo que, se por um lado se visa a proteção de bens jurídicos – prevenção geral – e a
manutenção da paz social, por outro lado, e, concomitantemente, pretende-se exaltar no
homem agrilhoado a sua remição, para que não regresse ao mundo do crime.
É precisamente aqui que tentaremos demonstrar a contradição em que se vê embre-
nhado o artigo 40.º, n.º1 do Código Penal.
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Se de uma banda o legislador se mostra fiel ao ideário ressocializador, promovendo uma
maior atuação sobre o espírito e menos sobre o corpo
2
, o que se repercute no acervo legislativo de
execução de penas português no seu todo, de outra banda, o paulatino desajustamento da
cena carcerária desvirtua a ratio essendi da aplicação da pena privativa da liberdade.
O fenómeno penitenciário, como o ponto de chegada – e simultaneamente como ponto
de partida – do iter (processual) penal do cidadão delinquente, deve, como bem salienta
A M R
, “privilegiar a eficácia e concorrer para a rentabilidade da
justiça, procurando evitar ou atenuar a estigmatização dos reclusos – impedir a dessociali-
zação e promover a não-dessocialização.
O drama do homem recluído, muitas vezes secundarizado pelo sistema, encontra-se
agonizado na anomia organizada de uma estrutura em confronto consigo mesma, repercu-
tida nas crescentes tensões que abalam o desiderato ressocializador.
A crescente taxa de encarceramento que se tem verificado nos últimos anos aliada à
replicação da deviance criminógena no espaço carcerário, especialmente em Portugal, faz
com que grassem vozes a favor do desencarceramento, dando primazia a penas não priva-
tivas da liberdade.
O intervalo descompassado que neste ensaio se pretende afinar, visará (tanto quanto
nos for possível) encurtar o caminho entre a postulação da vigência da norma e a efetivi-
dade da mesma, reverberada no modelo ressocializador.
Cientes de que há (ainda) um longo caminho a percorrer para a plena e efetiva recons-
trução do fim último ínsito aos fins das penas, concluímos, na esteira de Z, que
a prevenção especial de ressocialização é o único fim das penas admissível num Estado de
Direito democrático e social”
4
.
II. Uma brevíssima aproximação ao problema ou uma leitura kelsiana do
artigo 40.ºdo Código Penal
A vigência, como a definiu H K
5
, é a existência específica de uma norma. Reconduzin-
do-se à ideia de validade, o que por sua vez se projeta naquilo a que aquele autor caracteriza
2 Acompanhamos aqui o que nos ensina Beccaria sobre os fins das penas. B, Cesare – Dos Delitos e das
Penas. 2.ªEdição. Tradução do italiano Dei Delliti e delle Pene de José de Faria Costa. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2007, p.85.
3 R, Anabela Miranda – Novo Olhar Sobre a Questão Penitenciária. 2.ªEdição. Coimbra: Coimbra Editora, p.9.
4 Z, Eugenio Raúl – Tratado de Derecho Penal. Parte General- Tomo I. Buenos Aires: Ediar, 1998, pp.70-72.
5 Nas palavras de Hans Kelsen, “com a palavra “vigência” designamos a existência específica de uma norma. (...) Se
designamos a existência específica de uma norma como a sua vigência, damos desta forma expressão à maneira
particular pela qual a norma – diferentemente do ser dos factos naturais – nos é dada ou se nos apresenta. In
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por “dever-ser
6
, uma norma tem de conter em si mesma um referente superior que a legi-
tima e a densifica para que possa ser exigida como válida
7
.
Neste sentido como bem referencia J R
, “a necessidade de cada norma estar
fundada na existência de outra norma de grau – necessariamente – superior que a autoriza
e lhe confere legitimidade, importa que o sistema normativo corresponda a uma estrutura
encadeada de comandos sucessivos, na qual cada norma de grau superior autoriza a norma
inferior”, rectius, a norma fundamental, a qual é, diz o mesmo autor “fundamento da obriga-
toriedade de cumprimento das normas constitucionais”.
O que, levado ao extremo, quererá dizer que a conduta que se extrai do ato normativo
deve ser considerada obrigatória “não apenas do ponto de vista do indivíduo que põe o ato,
mas também de um ponto de vista de um terceiro desinteressado”
9
, que se nivelará por uma
norma de valor superior
10
.
Donde, para afirmarmos que uma norma é válida, e, portanto, vigente, deverá ter um
mínimo de eficácia
11
. Como já referimos, para K, a validade (ou a vigência) de uma
norma “consiste na existência da norma jurídica, ou seja, em sua entrada regular dentro de
um sistema jurídico
12
.
Se atentarmos no teor do artigo 40.º, n.º1 do Código Penal
13
, verificamos que o seu
escopo é o de estipular as finalidades das penas. Por um lado, reconhecendo que da sua
aplicação se protegerão bens jurídicos, e que, por outro, se visará a reintegração do agente
na sociedade.
K, Hans – Teoria Pura do Direito6.ªEdição. Tradução de João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes,
1998, p.7.
6 K, Hans – Teoria Pura..., p.7.
7 Estamos aqui a referir-nos ao que Kelsen concetualiza como norma fundamental – Grundnorm – a qual é o
fundamento da obrigatoriedade de cumprimento das normas constitucionais e, por essa via, legitima todas as
normas integradas no sistema. Vide R, José Joaquim Monteiro – «A dupla perspetiva da norma fundamental
em Hans Kelsen». In: Politeia – Estudos Comemorativos dos 30 Anos do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança
Interna e dos 10 anos da Politeia, Volume I, Studia Varia, Ano X-XI-XII, 2013-2014-2015, p.221.
8 R, José Joaquim Monteiro – «A dupla perspetiva...» p.219.
9 K, Hans – Teoria Pura..., p.6.
10 O que, no caso português, encontra albergue constitucional por via do artigo 30.º, n.º 5 da Constituição da
República Portuguesa, uma vez, como refere: “Os condenados a quem sejam aplicadas pena ou medida se segurança
privativas da liberdade mantêm a titularidade dos direitos fundamentais (...)”.
11 Para K – Teoria Pura..., p.8: “Uma norma jurídica é considerada como objetivamente válida apenas quando a
conduta humana que ela regula lhe corresponde efetivamente, pelo menos numa certa medida. Uma norma que
nunca e em parte alguma é aplicada e respeitada, isto é, uma norma que – como costuma dizer-se – não é eficaz
em uma certa medida, não será considerada como norma válida (vigente)”.
12 B, Eduardo – «A Justiça Kelsiana». In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 96,
p.544-545.
13 O artigo 40.º, n.º1 do CP refere o seguinte: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens
jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
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Diríamos assim que, para o artigo 40.º, n.º1 do CP se considerar válido, mormente no
que se refere à reintegração do agente na sociedade, terá de existir uma refração mínima
entre aquilo que prescreve e o fim a que se devota no plano da execução.
O que necessariamente quer dizer que a projeção do postulado na norma deverá encon-
trar pleno correspondente no campo da eficácia, in casu, ser atingida a vocação de reinte-
gração do agente que cometeu um crime, para que não volte a cometer crimes no futuro.
É precisamente aqui que se situa o ponto nevrálgico da discussão.
Então, se uma norma não é eficaz (em certa medida), quer dizer que não pode consi-
derar-se válida. Há assim uma propensão, da norma (ainda que ténue), para se esgotar no
plano da sua eficácia. O que faz com que tendam a existir duas realidades que se conexio-
nam e se relacionam complementarmente.
Como veremos não é inteiramente o que acontece no caso do artigo 40.º, n.º1, mas
podemos afirmar que em certa medida o é. E vejamos porquê.
Do ponto de vista do dever ser, a eficácia do sistema prisional apenas se verificaria se o
postulado do ideário ressocializador ou reintegrador lograsse uma plena efetivação, ou seja,
que através da aplicação da pena o agente interiorizasse o valor dos bens jurídico-penais
violados com a prática do crime.
Como bem ressalva N C

a execução das penas deveria ser o mais impor-
tante pilar da política criminal, pois é nele que convergem, de modo pleno, as grandes fina-
lidades do processo penal”. Porém, como se tem verificado, a execução das penas tem sido
pouco valorizada e parcos investimentos têm sido feitos do ponto de vista financeiro e dou-
trinal, muito por conta das características que modelam todo um sistema completamente
apartado do seu fim.
A privação da liberdade de um qualquer indivíduo é a ultima ratio do sistema punitivo,
que deve centrar-se na construção “do homem novo”, com vista a reintroduzi-lo mais tarde
de novo na sociedade, apto a dirigir a sua vida sem a prática de crimes. Assim, pode falar-se
de uma finalidade de prevenção da reincidência
15
.
14 C, Nuno – «A Política Criminal para a execução das penas e medidas uma ideia para uma década». In:
Revista Julgar, n.º28, 2016.
15 No preâmbulo do C.P. de 1995 (alterado pelo Decreto-Lei n.º48/95, de 15 de Março) pode ler-se a este propósito
o seguinte: “A realização dos ideais de humanidade, bem como a reinserção social assinalados, passam hoje,
indiscutivelmente, pela assunção do recluso como sujeito de direitos ou sujeito de execução, que o princípio do
respeito pela sua dignidade humana aponta de forma imediata. (...) Assinala-se, portanto, um decisivo movimento
de respeito pela pessoa do recluso que, reconhecendo, a sua autonomia e dimensão como ser humano, assaca
à sua participação na execução um relevantíssimo papel na obra de inserção social, em que não só a sociedade
como também o recluso são os primeiros interessados”
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III. O Desiderato da (Re)socialização – uma questão nova ou uma velha
questão?
O ideário da ressocialização não é de todo uma questão hodierna. É, como veremos, uma
verdadeira doutrina com plena aplicação, pelo menos, em Portugal, desde o Código Penal
de 1982 e que continua a modelar a forma como olhamos todo um sistema que se esgota e
se remodela nesta mesma base.
Concordamos que tal modelo, e dizemo-lo com M A
16
, “não trata de defender
a sociedade contra os delinquentes porque são perigosos, mas de defender estes, porque
estão em perigo, socializando-os”.
O fim ínsito à prevenção especial, é o de que, havendo um desvio aos cânones valorati-
vos comunitários, aquando da prática do crime, se isole o indivíduo do meio em que “socia-
liza, do “caos” societário a que está exposto, confinando-o a um outro meio ambiente onde
reaprenderá, querendo, a adquirir tais cânones, para ser, in fine, “devolvido” à sociedade,
como ser (re)socializado.
E reafirmamos esta voluntas
17
, porque precisamente, depende de uma adesão livre do
sujeito recluído. De tal sorte que, se não quiser aderir à sua própria ressocialização, o indi-
víduo não é obrigado. E mesmo, a não aplicação do efeito catalisador da ressocialização não
pode desvirtuar o que se envida com a aplicação de uma pena de prisão.
Donde, é precisamente a forma como este mesmo mecanismo é, ou está a ser modelado,
que aqui pretendemos colocar em crise, porque, como veremos está profunda e inapelavel-
mente em crise. Mas aqui voltaremos oportunamente.
Até agora, podemos afirmar que o sistema de execução de penas tem vindo a fazer um
caminho de melhoramento, sob o timbre que desde o século XIX, vem consolidando toda a
sua prática – o da recuperação do delinquente
18
.
Contudo, nem sempre assim foi. Desde meados do século XX que a ressocialização foi
colocada em crise e há vários autores
19
que nos meados daquele século já vinham apon-
tando uma certa descrença no modelo de encarceramento institucionalizado. Isto porque
16 A, Marc – A nova defesa social Tradução Osvaldo Melo. Rio de Janeiro: Forense, 1979.
17 Como não deixa de registar Anabela Rodrigues, o princípio do tratamento voluntário “é um princípio que não
pode deixar de se fazer valer, dado o perigo que para os direitos fundamentais do recluso representa a imposição
de um tratamento coativo. (...) O “direito a não ser tratado” é parte integrante do “direito de ser diferente” que
não pode ser posto em causa nas sociedades pluralistas e democráticas do nosso entorno cultural” [Novo Olhar...,
2.ªEdição, p.59].
18 A título esparso podemos dizer que a posição do recluso provoca, desde logo, o dever de assegurar um núcleo
de direitos que lhe não podem ser assacados por razões ligadas à execução. Por isso a previsão de uma esfera de
direitos e de garantias é a base fortificada do caminho para a ressocialização.
19 Referimo-nos aqui a Moritz Liepmann e Max Grünhut, citados por L, André Lamas – «Ressocializar, hoje?
Entre o “mito” e realidade». In: Revista do Ministério Público, 156, dezembro de 2018.
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face às elevadas taxas de criminalidade, não se lograva alcançar uma proporcional descida
da reincidência.
A adensar a este estado de coisas, o artigo de MWhat Works – Questions and
anwers about prison reform
20
, veio colocar em perspetiva o modelo ressocializador, defen-
dendo que os programas desenvolvidos em meio prisional não logravam demonstrar a efi-
cácia dos métodos de “tratamento” aplicados aos reclusos, acabando por concluir essencial-
mente que os programas de educação eram incipientes, as terapias não eram aplicadas com
competência e a supervisão e aconselhamento prestados aos reclusos não era suficiente,
afirmando mesmo que não existia um “full-hearted commitment to the strategy of treatment
21
.
Todavia, se a teoria do “nothing works” marcaria um período histórico com maior impacto
nos EUA, a verdade é que tal estudo não abandonava in totum uma visão reabilitadora, que
poderia ter resultados positivos na diminuição da reincidência.
A questão, volvidos mais de quarenta anos, situa-se precisamente, na densificação da
matriz ressocializadora do sistema prisional português, e, essencialmente, para onde cami-
nha.
Neste sentido podemos afirmar que a ressocialização se encontra num impasse, digla-
diando-se entre a sua função garantística
22
, seu propósito, e a nova demanda securitária
que define comportamentos e exige a eficácia do sistema punitivo.
A fase de execução não se pode mostrar arredada daquilo que são os novos fenómenos
e formas de delinquir. O surgimento da sociedade do medo, de permanente vigilância, do
futuro incerto inaugurou aquilo que já antes na obra Leviatã havia sido propugnado de que
“cada homem é inimigo de cada homem”
23
.
E nós, somos forçados a perguntar. E as prisões, neste novo binómio segurança-garan-
tismo, em que posição as deixamos? Estaremos novamente diante de uma apregoada e irre-
versível crise ressocializadora, incapaz de se reencontrar com o seu fim último?
Na sua profunda força propulsora, o crime traveste-se e dissimula as suas fronteiras. A
par das formas de criminalidade a que chamaremos de “doméstica, somos invadidos pelo
20 A publicação desta obra corresponde a um estudo levado a cabo por Martinson e a sua equipa, em 1966, para
o The New York State Governor’s Special Committee on Criminal Oenders para aferir da necessidade do escopo
reabilitativo das prisões de Nova Iorque.
21 A tradução mais fiel será “dedicação total à estratégia de tratamento”.
22 Esta função garantística, é nas palavras de Anabela Rodrigues, um “dever que ao Estado incumbe – e que
entronca na sua vertente social – de ajuda e de solidariedade para com os membros da comunidade que se
encontrem em especial estado de necessidade, como é o caso do recluso” [Novo Olhar..., 2.ªEdição, p.188].
23 V, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal do Inimigo e o Terrorismo: O «progresso ao retrocesso». 2.ªEdição,
Coimbra: Almedina, p.51 e ss. Para Thomas Hobbes, autor da obra “Leviatã”, “são inimigos os seres humanos que
estão no estado natureza, produtor de constante perigo e ameaça à existência humana (...), o que levou Hobbes a
pensar o Direito Penal para os cidadãos maus e outro Direito Penal para os inimigos”.
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crime transnacional, pelas complexas estruturas que o sustentam e pela alucinada cum-
plicidade do etéreo espaço cibernético, que fornece as vias (ainda mais) rápidas para a sua
consumação.
Ora como veremos, tal como antevira M, em parte, há uma consabida distân-
cia entre a boa intencionalidade da lei e os efeitos práticos que o encarceramento deverá
necessariamente produzir no afastamento da reincidência.
Este intervalo descompassado entre realidades, a do crime e a da execução da pena, faz
com que a necessidade de combater a primeira, esbarre na ineficácia da segunda. Proble-
mas velhos e realidades novas, fazem do conceito de ressocialização, um problema novo
que deve ser reajustado à voracidade e transmutação dos fenómenos criminais hodiernos.
IV. O intervalo descompassado entre a vigência e a efetividade
– a(re)colocação do problema
A população carcerária portuguesa, de acordo com os dados mais recentes
24
, era de 13.440
reclusos no ano de 2017, dos quais 275 inimputáveis. O número de preventivos era de 2.105
e o de condenados fixava-se em 11.335, sendo que cerca de 93,6% era do sexo masculino e
6,4% do sexo feminino.
Ainda que o número total de reclusos tenha diminuído cerca de 339 reclusos
25
, a verdade
é que continua a existir sobrepopulação carcerária. Para se ter uma ideia mais real, no ano
de 2016 o número de reclusos por cada 100.000 habitantes era de 133, quando idealmente
deveria ser de 100
26
.
O excesso de cidadãos encarcerados dita a falência do sistema, sob vários prismas. Se
um lado, persistem problemas a montante, designadamente no próprio sistema punitivo
que não deveria estar a encarcerar tanto, por outro lado eles desaguam inevitavelmente a
jusante, dentro dos muros da prisão.
Concordar-se-á que o parque prisional se encontra hoje obsoleto face à demanda res-
socializadora, chegando ao que podemos apelidar do paradoxo ressocializador (ou, se qui-
sermos ressocialização invertida), tão afastado de si próprio. A degradação dos espaços pri-
sionais, mercê do parco investimento nesses mesmos espaços, é a base da problemática. Se
para o homem recluído o fardo da “deportação” para um espaço, onde obrigatoriamente irá
24 Informação retirada do Relatório Anual de Segurança Interna, págs. 131 e ss.
25 Idem.
26 B, Joaquim – A Flexibilização da Prisão. Coimbra: Almedina, 2018, p.261. Este fenómeno, como denota o
autor tem-se vindo a agravar desde 2013, com uma média de entrada de sensivelmente 100 reclusos/ano. Nos
anos de 2007/2008 verificou-se um decréscimo de cidadãos encarcerados fruto das alterações aos códigos penal
e de processo penal.
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estar confinado por certo período, já é, de per si, estigmatizante, a ruína desse espaço com-
portará e transportará para o indivíduo uma sensação de inerente destruição.
Como bem aponta J B sem edifícios apropriados e com uma lotação
que seja adequada para s respetivas funções, todo o esforço das pessoas que intervêm na
execução das penas será fragmentário
27
.
À questão da deterioração física dos edifícios, alia-se a questão da “contaminação do
espaço prisional”. Quer isto dizer que nos mesmos espaços comuns convivem reclusos pri-
mários, condenados por crimes menos graves ou mais graves, reclusos tendencialmente
mais geradores de distúrbios, ou outros com melhores perspetivas de reintegração.
Todo este melting pot
28
carcerário é amplamente potenciador de ambientes propensos a
gerar situações de tensão, fomentando a criação interna de tendências desviantes. Algo que
não é inteiramente uma inverdade.
Em 2017, o Corpo de Guarda Prisional procedeu à apreensão de diverso produto estupe-
faciente, aumentando cerca de 92% no haxixe e 36% na cocaína. Por outro lado, a apreensão
de armas brancas e telemóveis aumentou respetivamente 19,7% e 6,4% respetivamente
29
.
Já mais recentemente, foi alegadamente detetado o contrabando de produto estupefa-
ciente e outros objetos, como baterias e telemóveis, para dentro do Estabelecimento Prisio-
nal de Vale de Judeus através do uso de drones
30
, ou ainda também o uso de telemóveis para
veicular para o exterior imagens do interior do E.P. de Paços de Ferreira
31
.
Ora, estes acontecimentos devem ser lidos como uma expressão da desadequação do
meio prisional face ao que se pretende que ele produza sobre o homem recluído, ou seja,
fornecer-lhe os meios adequados, garantindo a criação de oportunidades para a jornada de
preparação para além dos muros que se inicia com o cumprimento da pena privativa da
liberdade.
Tudo isto diríamos nós, coadjuvado por um outro problema trespassa não só o sistema
prisional, mas, enfim, todo o sistema de justiça. A insuficiência ou a deficitária alocação de
recursos financeiros. Questão que afeta recursos humanos, instalações físicas, programas
de reabilitação, et ceterae.
27 B, Joaquim – A Flexibilização..., p.264.
28 Numa tradução mais corrente significa “caldo de culturas”.
29 Relatório Anual de Segurança Interna, p.134.
30 In Observador, “Presos recebem contrabando por drones”, publicado a 27.02.2019, https://observador.pt/2019/02/27/
presos-recebem-contrabando-por-drones/.
31 In Jornal de Notícias, “Festa de arromba de presos na cadeia filmada com telemóveis”, publicada a 10.02.2019, https://
www.jn.pt/justica/videos/interior/festa-de-arromba-de-presos-na-cadeia-filmada-com-telemoveis-10562686.
html.
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Não digamos, porém, que nenhum investimento tenha sido feito, continuando a ser
uma preocupação dos governos. Aliás, na Estratégia Plurianual de Requalificação e Moder-
nização do Sistema de Execução de Penas e Medidas Tutelares Educativas 2017/2027
32
,
constata-se essa mesma preocupação de requalificação das estruturas, da recomposição
dos recursos humanos, da valorização da oferta educativa à população reclusa, dando-se
mesmo enfoque à “eliminação do fosso que separa o direito legislado da sua aplicação efe-
tiva
33
.
A contrastar com a boa intenção das estratégias e de alguns progressos assinalados,
o Comité para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos e Degra-
dantes, na sua mais recente visita aos estabelecimentos prisionais portugueses, em 2016,
apontou a questão da sobrelotação bem como as condições degradantes e desumanas dos
estabelecimentos prisionais de Caxias, Lisboa Central e Setúbal
34
.
E é aqui precisamente que o sistema se aparta daquilo a que se projeta.
A ressocialização deve almejar uma solução eficaz que coloque em marcha um plano
que acompanhe o sujeito condenado à reclusão. Isso significa, na esteira de A E

a colocação dos meios adequados ao serviço do agente do crime para que o mesmo não
reincida.
Efetivamente, pode-se constatar que no que aos programas de educação, formação pro-
fissional e atividade laboral diz respeito, os números têm sido evidência do investimento
que tem sido feito, com uma melhoria a partir do ano de 2012 até 2016, com a percentagem
de reclusos inativos a passar de 49,5% para 27,2%, os reclusos em formação escolar de 12,6%
para 23,7% e em formação profissional de 3,7% para 6,6%
36
.
Concordamos e defendemos que tais programas são efetivamente um caminho,
podendo fazer renascer no recluso competências que não se encontravam adquiridas ou
fazendo emergir outras que não exatamente as relacionadas com o exercício diário da ati-
vidade laboral.
32 Consultar: “Olhar o Futuro para Guiar a Ação Presente – Relatório sobre o Sistema Prisional e Tutelar”, Setembro
de 2017”, disponível em https://www.portugal.gov.pt/download-ficheiros/ficheiro.aspx?v=29dd78f7-d076-4d80-
a09b-6b2c94ec09d5.
33 Consultar: “Olhar o Futuro..., p.11.
34 Tal como se refere no Relatório daquele Comité acerca da visita a Portugal que ocorreu entre 27 de setembro e 7 de
outubro de 2016, as situações dos estabelecimentos prisionais de Setúbal e Caxias eram bastantes preocupantes
quando se refere: “The conditions for certain vulnerable prisoners at both Caxias and Setúbal Prisons were particular poor,
with less than 3m2 of living space per prisoner and inmates confined to their cells for up to 23 hours per day. The authorities
are urged to provide all prisoners with a minimum of 4m2 of living space in multiple-occupancy cells and urgently to renovate
the above-mentioned deficiencies.” Disponível em https://rm.coe.int/168078e1c8.
35 E, Albin – Resozialisierung in der Krise?, citados por L, André Lamas – «Ressocializar, hoje? …». In: Revista
do Ministério Público, p
36 B, Joaquim – A Flexibilização..., p.277.
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Todavia, estudos há que sugerem “haver bloqueios a que o ensino e a formação pro-
fissional sejam efetivamente considerados como vetores importantes na reinserção social
do recluso, denunciando que em muitos casos (...) serão apenas uma forma de ocupação
durante o período de reclusão havendo por isso (...) uma taxa de sucesso ainda reduzida
37
.
V. Um Direito à (Res)Socialização
Ao longo dos tempos muitos conceitos têm sido trazidos para o campo do direito peniten-
ciário, modelando a lei escrita, conforme razões de política criminal têm vindo a ditar.
Destarte, o conceito de “reintegração” do indivíduo dá azo à multiplicação de outros
conceitos que, não raramente aludem a fins distintos, mas que podem induzir a uma certa
desorientação que colide com aquilo que pretende ser a verdadeira prevenção especial posi-
tiva.
Ressocialização, tratamento ou reinserção do recluso são conceitos que convivem no
mesmo espaço de atuação, e não só na lei, indiciando uma sinonímia que pode gerar equí-
vocos
38
, porque precisamente se situam em diferentes estádios da execução da pena. Não
queremos com isto dizer que os mesmos não tenham validade, até porque os vamos encon-
trar positivados na lei de execução de penas e os mesmos acabam por ter refração no conti-
nuum de execução.
Apesar de na Lei n.º115/2009, de 12 de outubro, não encontrarmos previsto o termo
“ressocialização, o diploma começa no seu artigo 2.ºpor referir que a execução das penas
e medidas de segurança privativas da liberdade visa a reintegração do agente na sociedade,
falando no artigo 3.º, n.º6, em tratamento prisional e reinserção social, através do ensino, for-
mação, trabalho e programas.
37 G, Conceição, D, Madalena e A, Jorge – «Crimes, Penas e Reinserção Social: um olhar sobre o
caso português». In: Atas dos Ateliers do V Congresso Português de Sociologia, Sociedades Contemporâneas: Reflexividade
e Ação, Atelier: Direito, Crimes e Dependências, disponível em https://aps.pt/wp-content/uploads/2017/08/
DPR4628adea6692c_1.pdf. Estes autores apontam ainda uma outra questão que decorre da “discrepância
verificada entre a formação ministrada e a oferta do mercado de trabalho. De facto, as entrevistas realizadas
evidenciaram a ausência de uma estratégia de enquadramento da formação profissional dos reclusos, no
sentido de lhes criar competências e de os adaptar às necessidades do mercado de trabalho actual. Predominam,
há vários anos, as actividades de mecânica, serralharia, cestaria, sapataria, encadernação, tapeçaria, horticultura,
polimento e marcenaria. Com excepção da informática, a formação, em geral, não se abriu a novas áreas, embora
existam estabelecimentos prisionais que têm “uma dinâmica diferente. Para além disso, nem sempre se atende
à identificação de carências e de necessidades especiais dos próprios reclusos, individualmente considerados”.
38 M apud L André Lamas – «Ressocializar, hoje?...». In: RMP, p. 81, descreve os “(...) variados
métodos aptos a atingir a reabilitação do recluso: a formação educativa e vocacional nas prisões, as terapias
psicológicas individuais e de grupo, (...) o tratamento médico, o sentencing, o cumprimento da pena em meio
aberto, a probation e a liberdade condicional, a intensive supervision e o tratamento comunitário.
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O conceito de tratamento prisional tem de nesta sede ser interpretado cum grano salis.
O uso da expressão na norma legal está nos antípodas da ideia de “cura, no sentido de
intervenção num sujeito doente. Contudo, se lida por referência às medidas de segurança
privativas da liberdade, aí, parece-nos fazer mais sentido, atenta a componente de trata-
mento e intervenção.
Embora a lei coloque em traços gerais os ditames pelos quais se deve modelar todo um
sistema de execução, o leit motiv terá sempre de ser a pessoa humana sob a qual assentam
os holofotes da sua própria dignitas. O direito à socialização deverá, nestes termos, de ser
lido sob diversos prismas.
Primo, deve hoje reconhecer-se a prisão como um espaço homogeneizado e multicultu-
ral que exige diferentes tipos de intervenção, numa lógica de multi-level intervention. Quer
isto dizer que, por um lado, cada recluso exigirá uma planificação distinta
39
, atendendo ao
tipo de crime por que vem condenado, ao período de encarceramento por que vem conde-
nado, ou ao seu estado psicológico, et ceterae.
O que necessariamente traduzirá ao menos que, ultrapassada a relação especial de
poder
40
a que esteve submetido ao longo de (demasiados) anos, o recluso seja um sujeito de
direitos de forma plena.
Assim advogamos a posição de que o espaço carcerário mais do que evitar a regressão
a um estádio anterior ao da execução, promova efetivamente a não (des)socialização do
recluso. E neste sentido, na senda de C A

, a (res)socialização deverá ser “um
direito do recluso” e simultaneamente “uma obrigação para o Estado”, o que se encontra
espelhado na conjugação dos artigos 2.ºe 9.º, al. d) da Constituição da República Portu-
guesa e que se giza no princípio da socialidade ou solidariedade.
Secundo, é necessário que o Estado, através da instituição penitenciária, forneça o caldo
materializador do plano de reintegração do sujeito condenado. Isto equivale a dizer que se
terá de buscar o justo termo entre o efeito que se pretende com a pena (que não deixa de ter
39 Aliás essa planificação já existe. O artigo 18.ºdo CEPMPL (Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da
Liberdade), já prevê a elaboração de um Plano Individual do Recluso, incluindo o plano individual de readaptação
e as necessidades de segurança e ordem no estabelecimento.
40 O conceito de relação especial de poder – Besonderes Gewaltverhältnis – conquistou a execução, especialmente no
período que se inicia após a II Guerra Mundial. Segundo K. Hesse, não existe uma “relação especial de poder”,
mas sim “relações especiais diversificadas de sujeição, que consubstanciam um estatuto jurídico especial
(Sonderstatus). Apud Anabela R, A P J  R     
 , Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 1999, p.27.
41 A C, Manuel da – «Um (novo) Direito Penal para os (novos) Direitos Fundamentais: Aspectos
Éticos das pessoas em situação de doença». In: Actas do V Seminário Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Lisboa,
1999, p.24.
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na sua essência um caráter puramente retributivo
42
) e a humanização que deve ser o motor
de combustão do sistema penitenciário globalmente considerado.
Há até quem advogue, como é o caso de G C
43
que o Estado poderá ser
responsabilizado pela “violação, por ação ou omissão, de normas ou princípios (...) que des-
respeitem regras de ordem técnica ou deveres objetivos de cuidado, resultando na ofensa
de direitos ou interesses protegidos.
O que, transposto para a realidade que nos acerca, o Estado seria responsabilizado pela
não ressocialização do recluso, isto é, nas palavras daquele autor, “quando o serviço prisio-
nal aquando do seu internamento, não tenha garantido a materialização dos meios neces-
sários para a sua integração na sociedade.
Contrariando esta tese André Lamas Leite
44
, refere que “quanto à reinserção do agente
na comunidade, o dever do Estado cessa ao colocar ao seu dispor os meios para que ele,
querendo, o faça. Se o não fizer, não falhou a tarefa estatal, porquanto consideramos que ela
não pode ser levada tão longe. Seria farisaico aceitar-se a inexistência de uma metanoia do
condenado e, depois, afirma-se o falhanço da ressocialização quando o condenado a não
pretende.
Apesar de sermos partidários desta segunda posição há que indagar: mas o Estado coloca
ao dispor do condenado todos os meios, para que, querendo, se reintegre na sociedade?
Neste aspeto cremos que o Estado tem de procurar colocar-se não só um, mas vários
passos à frente. Acreditamos que o presente modelo de sistema carcerário existente, ainda
fechado sobre si mesmo, não logra conceder ao homem recluído o exercício de forma plena
do seu direito à socialização.
Embora existam instituições de solidariedade social
45
que prossigam o escopo de recu-
peração e reintegração de ex-reclusos numa fase posterior ao cumprimento da pena, a tran-
sição para a liberdade, é, no epílogo da fase de execução da pena, a verificação da efetividade
do modelo ressocializador, o que significará que se alcançou, de forma absoluta o ideário
preventivo-especial.
42 Bem esgrimido o conceito “retribucionista” atribuído à pena, se se pensar na pena de prestação de trabalho
a favor da comunidade, a mesma tem um caráter sancionatório efetivo, isto é, para ser atingido o grau
ressocializador na sua plenitude, há primeiro que ser cumprida a pena, no sentido da contraprestação que há-de
ser exigível da prática do crime.
43 C, Gonçalo da Costa Castanho – A Responsabilidade do Estado pelo processo de ressocialização do Recluso.
Dissertação de Mestrado – Orientação Científica do Professor Doutor Mário Aroso de Almeida, Porto, maio de 2016,
p.32 e ss.
44 L, André Lamas – «Ressocializar, hoje?...». In: RMP, p.109.
45 Exemplo de uma dessas instituições é a Associação “O Companheiro” que tem como principal atividade a
inserção pessoal, social, laboral e cultural de pessoas que se encontrem em situação de exclusão social, tentando
contribuir para a sua inclusão e reintegração societária. Informação disponível em http://www.companheiro.
org/historial.html.
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Reconhecer esta complementaridade é também por isso acreditar no poder regenera-
dor que a execução da pena pode ter sobre a persona do indivíduo recluso, nomeadamente
fornecendo ferramentas que, de outro modo, não teria, ou pelo menos muito dificilmente,
acesso.
Mas a questão coloca-se, porém, a montante, intrinsecamente ligada à relação entre a
própria penologia e a prevenção especial positiva. Não sendo nosso ensejo exaurir o tema,
contudo indagamos: será que as longas penas de prisão logram atingir o desiderato resso-
cializador? Quid iuris para as penas mais curtas de prisão?
Mas mais. Haverá tipos de crime com níveis de exigência ressocializadora diferente?
Poder-se-á falar em ressocialização a várias “velocidades”?
Reconhecendo que os efeitos da prisonização
46
serão diferentes em casos de encarce-
ramento mais ou menos longos, eles serão necessariamente diferentes quando se esteja
a falar de um condenado por homicídio e de um condenado por corrupção ativa ou por
terrorismo.
Se estes são os desafios permanentes que se colocam a este nível, mais de pode aven-
tar que, outros desafios ao sistema prisional e ao seu modelo ressocializador se colocam
quando falamos das novas roupagens que o crime enverga.
Que sistemas prisionais necessitamos para ressocializar condenados por criminalidade
económico-financeira, associação criminosa, terrorismo, criminalidade altamente organi-
zada?
A tensão criada por todas estas perguntas, e, bem assim a clivagem que o polo securi-
tário e polo ressocializador criam, cada vez mais apartam a realidade vigente da norma da
sua correspondente eficácia.
Nas palavras de A R
47
, “ao direito penal exige-se uma reflexão no
sentido tendente a tornar cada vez mais compatível o momento garantístico e o momento
funcional do magistério punitivo. Nesta mesma senda, e, cremos, que pela mesma lente
argumentativa, podemos afirmar que ao sistema punitivo deveria ser assacada uma visão
holística, por forma a enlear dois sistemas que não podem nem se devem excluir mutua-
mente.
Por um lado, reconhecer que a função judicativa não pode permanecer dissociada da
realidade prisional é reconhecer que a dimensão da execução deverá pelo menos produzir
um mínimo de evidência que ofereça suporte à fase de determinação da medida da pena.
46 Numa tradução literal do termo “prisonization, retirado do artigo “How prison changes people”, disponível em
http://www.bbc.com/future/story/20180430-the-unexpected-ways-prison-time-changes-people.
47 R, Anabela Miranda – A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade: os Critérios da culpa e da
Prevenção. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p.273.
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Neste sentido, já aquela autora
48
profetizava nos anos noventa, que “a necessidade de
uma ligação entre a determinação da medida e execução da pena é de tal forma evidente,
que tanto basta para se perceber que a empiria que se desenvolveu no terreno a execução é
vital para aquela atividade”.
Pelo que o próprio artigo 70.ºdeveria contemplar nesta lógica sequencial, uma alusão
expressa às necessidades de (res)socialização que face à prática de certo tipo de crime se
impõem. Retirar essa dimensão à determinação da medida concreta da pena é retirar a sim-
biose que uma e outra fase devem assumir no restabelecimento da paz social e da futura
reintegração daquele indivíduo na sociedade.
VI. Conclusões – notas finais
“Walls are terrible but man is good”
B
49
Platão, no seu Protágoras, afirmava o seguinte: “Quando na inflicção das penas se procede
acertadamente, o castigo não se applica por causa da falta perpetrada, pois é impossível
impedir o mal consummado, mas para obviar a uma falta futura, afim de que o réu não
reincida e sirva de exemplo às testemunhas do seu castigo”
50
.
O ponto de partida do legislador penal na modelação jus-valorativa do artigo 40.º, n.º1
repousa no princípio da dignidade da pessoa humana, o qual traz, para o campo da execu-
ção da pena, um outro, que postula a manutenção da titularidade dos direitos fundamen-
tais, onde encontra albergue, a teoria da prevenção especial positiva.
É na especial atenção ao cidadão privado da sua liberdade que se encontra o ponto
ótimo de análise para justificar a secundarização que tem vindo a ser dada à reintegração
do indivíduo na sociedade.
O rumo voraz dos acontecimentos que temos testemunhado, especialmente nas ten-
dências criminógenas, na transnacionalização da fenomenologia do crime e do seu multi-
facetado e intrincado iter, devem fazer suscitar nos doutrinadores que tipo de prisões que-
remos e que homens (res)socializados precisa a sociedade. Mas não estará a sociedade ela
própria agrilhoada, numa crise identitária? De onde devem partir os ditames axiológicos?
48 R, Anabela Miranda – A Determinação da Medida da Pena…, p.275.
49 B apud F, Michael – «Complete and Austere Institutions». In: Imprisonment, The International
Library of Criminology, Criminal Justice & Penology, 1999.
50 C B, António D’Azevedo – Estudos Penitenciarios e Criminaes, Lisboa, 1888.
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De fora para dentro, ou de dentro para fora dos muros? Questões que permanentemente
nos assolam e que exigem aturado labor científico para respostas se imponham.
Da sintomatologia registada, e positivada em relatórios e estudos internacionais e
internos, verifica-se uma síndrome que poderíamos apelidar de “síndrome de decalque”,
dado que os muros não conseguem filtrar os fenómenos desviantes, ou, pelo menos, não
têm almejado tal desiderato.
Em Portugal todos os dias se vêm multiplicando casos de efetiva transgressão de nor-
mas de segurança e da legalidade dentro dos estabelecimentos prisionais, tornando os
muros invisíveis para a perpetuação do crime, e deitando por terra qualquer intento para a
paralisação do ato criminoso.
Se em face do último relatório sobre o sistema prisional e tutelar de 2017, ressalta a boa
intenção em aproximar o direito legislado e sua aplicação efetiva, a verdade é que o estado
de coisas, talqualmente fomos descrevendo, entorpece e delapida aquilo que é o fim último
da instituição penitenciária – o da reintegração do agente, para que possa voltar à sua vida
regular sem a mácula que até ali carregou e sem o intento de voltar a cometer crimes.
Aqui chegados, afigura-se estabelecer um renovado ponto de partida. Para que pontos
de chegada sejam construídos e plenamente alcançados.
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Outras fontes
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https://www.jn.pt/justica/videos/interior/festa-de-arromba-de-presos-na-cadeia-filmada-com-
telemoveis-10562686.html
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Site:
http://www.companheiro.org/historial.html