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REVIEWS
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
st
July Julho – 31
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December Dezembro 2019 · pp. 197‑200
Do Inimigo do Direito Penal ao Inimigo do Estado Penal
1
From the Enemy of Criminal Law to the Enemy of the Criminal State
1 Este artigo corresponde ao comentário científico da Unidade Curricular de Doutoramento em Direito – Direito:
da norma ao procedimento e à fase aplicativa –, lecionada pelo Professor Doutor Manuel Monteiro Guedes
Valente.
2 Doutoranda em Direito na Universidade Autónoma de Lisboa.
MARINA CERQUEIRA
2
marinacerqueira61@gmail.com
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 21841845
Volume XXI · 1
st
January Janeiro–30
TH
June Junho 2020 · pp. 197‑200
DOI: http://doi.org./10.26619/2184‑1845.XXI.1.1.02
Submitted on March 23
th
, 2020 · Accepted on June 4
th
, 2020
Submetido em 23 de mao, 2020 · Aceite a 4 de junho, 2020
RESUMO o presente texto tem como
escopo refletir criticamente sobre o
Direito Penal do inimigo. Nesse sentido,
inicialmente, apresenta-se a função do
Direito Penal no Estado Democrático,
bem como os seus principais princípios
norteadores, a fim de afirmá-lo como
instrumento de proteção do sujeito frente
ao poder punitivo do Estado. Realizadas
tais considerações, premissas básicas para
se alcançar a crítica que o trabalho objetiva
oferecer, aborda-se a construção do Direito
Penal do inimigo e as suas consequências
no âmbito da dogmática penal e processual
penal. Por fim, pretende-se responder
à seguinte questão-problema: o Direito
Penal do inimigo possui assento no Estado
Democrático?
PALAVRAS-CHAVE Direito Penal – Direito
Penal do Inimigo – Estado Democrático.
ABSTRACT this text aims to critically
reflect on the enemys criminal law. In this
sense, initially, the function of Criminal
Law in the Democratic State is presented,
as well as its main guiding principles,
in order to affirm it as an instrument
of protection of the subject against the
punitive power of the State. Having made
these considerations, basic premises for
achieving the criticism that the work aims
to offer, the construction of the enemy’s
Criminal Law and its consequences within
the scope of criminal and procedural
dogma are addressed. Finally, it is intended
to answer the following problem question:
does the enemys criminal law have a seat
in the Democratic State?
KEYWORDS Criminal Law – Criminal Law
of the Enemy – Democratic State.
Pode-se afirmar, de acordo com Claus
Roxin, que a função do Direito penal é a pro-
teção subsidiária de bens jurídicos, assim
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compreendidos como conjunto de valores
relevantes para a convivência em uma socie-
dade plural e Democrática
3
. Nesse mesmo
horizonte, como bem sustenta Manuel
valente, o Direito penal deve exercer a fun-
ção de equilíbrio consistente em tutelar bens
jurídicos, mas, também, proteger o sujeito,
acusado da prática de um delito, do violento e
arbitrário poder punitivo do Estado
4
.
Nesse sentido, Eugênio Raul Zaffaroni
afirma que o Direito penal representa o dis-
curso dos juristas que propõe às agências
judiciais um sistema orientado de decisões
para impulsionar o progresso do Estado
Democrático de Direito
5
.
Dessa forma, o Direito penal tem a sua atu-
ação orientada por normas princípios, dentre
os quais, destacam-se, apenas a título de ilus-
tração, os princípios da legalidade, da culpabili-
dade, da ofensividade e, por fim, pode-se desta-
car, ainda, o princípio da intervenção mínima,
também compreendido como ultima ratio
6
.
Pode-se constatar, portanto, que o Direito
penal só pode ser concebido como instru-
mento de proteção do sujeito, tratando-o
como titular de Direitos humanos. Impor-
tante notar, nesse contexto, ainda que sucin-
3 R, Claus – Novos estudos de direito penal. Organização: Alaor Leite; tradução: Luís Greco, 1.ªEdição, Marcial
Pons, São Paulo, 2014, pp.41-66.
4 V, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal do Inimigo e o Terrorismo: O «Progresso ao retrocesso». 3.ªEdição,
Editora Almedina, 2019, p.130.
5 Z, Eugênio Raúl – Estructura Básica Del Derecho Penal. 1ªEdição, Editora Ediar, Buenos Aires, 2009, pp.14-16.
6 S, Marcelo – Princípios Penais no Estado Democrático – Col. Para Entender Direito. Editora Estúdio Editores.
com, 2014, p.33.
7 R M e H Z apud V, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal: Fundamentos Político-
Criminais.Lisboa: Edição de Autor, 2017, p.91.
8 V, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal: Fundamentos ..., p.105.
9 C, António Manuel de Almeida – O Funcionalismo Sistémico de N. Luhmann e os seus reflexos no Universo Jurídico.
Editora Almedina, 2018, p.81.
tamente, que o Direito penal deve assumir
com a política criminal uma relação de “uni-
dade cooperativa”
7
, haja vista que a política cri-
minal é a ciência que subordinada aos vetores da
legitimidade e da eficácia e aos princípios ético-filó-
sofico-jurídicos da legalidade, da culpabilidade, da
ressocialização e da humanidade, deve debruçar-se
sobre as causas do crime, sobre a correta redação
dos tipos legais de crime (...) sobre o limite de exten-
são da aplicação do Direito penal de que dispõe o
legislador penal face à liberdade do cidadão
8
.
Pois bem. Realizadas tais breves, mas
relevantes, considerações, cumpre-se indagar
por que a formulação teórica do Direito penal
do inimigo subverte toda o edifício Democrá-
tico que deve sustentar o Direito penal (?).
O funcionalismo sistêmico construído e
defendido por Günther Jakobs possui como
marco teórico Niklas Luhmann e a sua teoria
dos sistemas sociais. De acordo com Antó-
nio Manuel de Almeida Costa, verifica-se
que Luhmann, na segunda fase da sua obra,
aplica as ideias de auto-referência e da auto-
-reprodução ou auto-poiese, próprias de H.
Maturana e F. Varela, no âmbito da biologia,
aos sistemas sociais
9
.
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De acordo com essa perspectiva, pode-se
afirmar que o Direito, enquanto sub-sistema
social, é também um sistema auto-referente,
cujo desempenho ocorre em auto-contacto, subor-
dinando-se ao esquema da recursividade autopoié-
tica
10
”, que possui como função a estabilização
das expectativas normativas, e é compreen-
dido, sob o prisma normativo, como um sis-
tema fechado que, de acordo com o seu código
(justo/injusto) estabelece comunicações com
outros subsistemas sem que, contudo, inter-
firam na sua própria lógica de operacionali-
dade
11
. Assim, se ocorre a violação da norma,
por meio da prática de um crime, a pena, que
representa uma aplicação contra-fática da
sanção, torna-se necessária para restabele-
cer a vigência da norma e a estabilidade sis-
têmica: teoria da prevenção geral positiva.
Com efeito, o Direito penal do inimigo esta-
belece uma separação entre a categoria ‘pes-
soa´- aquele cidadão que respeita o comando
normativo – e, por outro lado, ‘não pessoa´,
ou seja, aqueles ‘não cidadãos´ que violam
as normas instituídas pelo Estado e que, por-
tanto, não devem merecer sua proteção
12
.
10 C, António Manuel de Almeida – O Funcionalismo Sistémico de N. Luhmann ..., p.85.
11 C, António Manuel de Almeida – O Funcionalismo Sistémico de N. Luhmann ..., p.85.
12 J, Günther; C M, Manuel – Direito Penal do Inimigo: Noções e críticas. Organização e Tradução:
André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli, 6.ªedição, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2012, p.47.
13 V, Manuel Monteiro Guedes – «Os Direitos Humanos e o Direito Penal: uma (re) humanização
emergente». In: Estudo em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade. Vol. II, Direito Processual Penal.
Organizadores: José de Faria Costa, Anabela Miranda Rodrigues, Maria João Antunes, Helena Moniz, Nuno
Brandão e Sónia Fidalgo, 2017, pp.285-292
14 B, Ulrich – Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução: Sebastião Nascimento, Editora 34, São
Paulo, 2010, pp.23-28.
15 S S, Jesús María – La expansión del Derecho penal: Aspectos de la Política criminal en las sociedades
postindustriales. 3.ªedição, Editora Edisofer S.l, Libros Juridicos, 2011, p.11.
Nessa perspectiva, ao dito inimigo, seria
legítimo afirmar que o Estado pode lançar
mão de práticas antidemocráticas e, pois,
antigarantistas, como por exemplo, a ante-
cipação da tutela penal, impulsionando um
– odioso – direito penal do autor, a criação
desenfreada de novo crimes, a despeito de
não haver nenhum bem jurídico a proteger,
bem como a adoção de mecanismos proces-
suais que não respeitam o duo process of law,
pois, o único objetivo reside na estabilização
das expectativas normativas e, pois, a perfeita
vigência da norma e o funcionamento do sis-
tema jurídico. Dito mais claramente, protege-
-se a sociedade daquele inimigo
13
.
Não se pode deixar de notar, ainda nesse
contexto, que as características da sociedade
atual servem para fortalecer a adoção do
Direito penal do inimigo. Ulrich Beck define a
sociedade contemporânea como “sociedade de
risco”
14
que, por sua vez, impulsiona o que Jesus
Maria Silva Sánchez denomina de “La expan-
sión del Derecho penal”
15
, pois, com o apoio da
cultura do terror midiático, a sociedade clama,
a cada dia, por mais rigor na intervenção
penal, ainda que implique em tratar o sujeito,
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acusado da prática de crime, como coisa, acre-
ditando na equação: segurança + justiça = liber-
dade”
16
. Observa-se, portanto, nos dias atuais, a
existência de um verdadeiro Estado Penal que,
em prol da segurança nacional, está disposto
a aniquilar direitos, constitucionalmente asse-
gurados, na guerra do combate ao inimigo,
ainda que, verdadeiramente, acredite que não
é isso que se está a fazer.
Conforme sinaliza Günther Grass, as
atrocidades praticadas durante o período
Nazista na Alemanha nunca tinham sido con-
sideradas, pelos próprios alemães, como pos-
síveis: “(...) nunca. Eu dizia para mim próprio e a
outros, eles diziam para si próprios e a mim: nunca
os Alemães fariam uma coisa destas”
17
.
Nesse sentido, diante de tudo que foi
brevemente abordado, é possível concluir
que, a sociedade moderna deve assumir um
compromisso democrático de resistência
às mudanças que pretendam transformar o
Direito penal em Direito penal belicista, pois,
consoante bem sustenta Manuel Valente, do
contrário, o que há é a(...) inversão da conceção
de Estado que passa a ser um fim em si mesmo e
não um fim de proteção do Ser Humano e da huma-
nidade”
18
.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
B, Ulrich – Sociedade de risco: rumo a uma outra
modernidade. Tradução: Sebastião Nascimento,
São Paulo: Editora 34, 2010.
16 V, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal do Inimigo …, p.124.
17 G, Günter – Escrever depois de Auschwitz. Tradução de Helena Topa, 3.ªedição, Editora Dom Quixote, p.13.
18 V, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal do Inimigo e ..., p.112.
C, António Manuel de Almeida – O
Funcionalismo Sistémico de N. Luhmann e os seus
reflexos no Universo Jurídico. Coimbra: Almedina,
2018.
G, Günter – Escrever depois de Auschwitz.
3.ª Edição. Tradução de Helena Topa. Lisboa:
Editora Dom Quixote.
J, Günther; C MELIÁ, Manuel – Direito
Penal do Inimigo: Noções e críticas. Organização e
Tradução: André Luís Callegari e Nereu José
Giacomolli, 6.ªedição, Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2012.
R, Claus – Novos estudos de direito penal.
Organização: Alaor Leite; tradução: Luís Greco,
1.ªEdição, São Paulo: Marcial Pons, 2014.
Silva Sánchez, Jesús María – La expansión del
Derecho penal: Aspectos de la Política criminal em
las sociedades postindustriales. 3.ªedição, Editora
Edisofer S.l, Libros Juridicos, 2011.
S, Marcelo – Princípios Penais no Estado
Democrático – Col. Para Entender Direito.
Editora Estúdio Editores.com, 2014.
V, Manuel Monteiro Guedes – Direito
Penal do Inimigo e o Terrorismo o «Progresso ao
retrocesso». 3.ª Edição – Versão portuguesa.
Coimbra: Editora Almedina, 2019.
V, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal:
Fundamentos Político-Criminais. Lisboa, 2017.
V, Manuel Monteiro Guedes – «Os
Direitos Humanos e o Direito Penal: uma
(re) humanização emergente». In: Estudo
em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da
Costa Andrade, Vol. II, Direito Processual Penal.
Organizadores: José de Faria Costa, Anabela
Miranda Rodrigues, Maria João Antunes,
Helena Moniz, Nuno Brandão e Sónia Fidalgo,
Coimbra: Instituto Jurídico – FDUC, 2017.
Z, Eugênio Raúl – Estructura Básica Del
Derecho Penal. 1.ªEdição, Buenos Aires: Editora
Ediar, 2009.