GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
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O exercício do direito fundamental
demanifestação: a ingerência
pelasforçasdesegurança
1
The exercise of the manifestation fundamental right:
interference by security forces
MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE
2
manuelmonteirovalente@gmail.com
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
January Janeiro–30
TH
June Junho 2020 · pp. 172‑178
DOI: http://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.1.8
Submitted on October 6
th
, 2019 · Accepted on June 4
th
, 2020
Submetido em 6 de outubro, 2020 · Aceite a 4 de junho, 2020
Iniciamos este debate por cumprimentar os membros do júri destas provas públicas de
doutoramento em Direito da nossa Universidade: Magnífico Reitor, Doutor José Amado
da Silva, sendo uma honra estar num júri presidido pela mais alta instância académica
e científica desta academia, Doutora Paula Veiga, Professora da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, à qual dirigimos um cumprimento especial por também a consi-
derar nossa casa científica, Doutor Nuno Poiares, Professor do Instituto Superior de Ciên-
cias Policiais e Segurança Interna, instituição que cumprimento de modo especial por ser a
nossa casa mãe, e Doutor André Ventura, Professor da Universidade Autónoma de Lisboa e
Orientador desta tese de doutoramento.
Um cumprimento especial à família e à plateia, aqui presentes, como legitimando o ato
público e solene, ao qual almejaram associar-se dignificando-o e prestigiando a candidata,
Mestre Ana Maria dos Santos Robalo, que cumprimentamos e fazemos votos de que estas
provas decorram com elevação, grandiosidade e sejam um momento de felicidade acadé-
mica e científica. A nossa arguição assenta em três partes – análise global, análise formal e
1
Arguição da tese de doutoramento da Mestre Ana Maria dos Santos Batista Robalo, apresentada a provas públicas
na Universidade Autónoma de Lisboa, no dia 10 de julho de 2019.
Scientific discussion of the PhD thesis of Master Ana Maria dos Santos Batista Robalo, presented to public tests
at the Autonomous University of Lisbon, on July 10, 2019.
2 Doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa. Professor Associado da Universidade Autónoma de
Lisboa. Presidente do Instituto de Cooperação Jurídica Internacional. Professor do Programa de Mestrado e
Doutoramento em Ciências Criminais da PUC-RS e Professor Convidado da ESP/ANP – Polícia Federal – Brasil.
Advogado e Jurisconsulto.
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análise material – devendo ver nas nossas críticas motivo de aprofundamento e de espaço
de debate científico para um melhor olhar sobre o tema em questão.
Primeiro momento – Análise Global
Tema sempre atual, pertinente e que suscita curiosidade científico-jurídica tendo em conta
a data do regime jurídico – 1974 – e a sequente Constituição da República Portuguesa (CRP)
que é de 1976.
Poder-se-ão levantar questões de inconstitucionalidade superveniente, como o faz a
candidata, mas também poder-se-á considerar que uma interpretação normativa conforme
a CRP76 afastará essas questões jurídicas. É se salientar que o legislador, não obstante
vários estudos desenvolvidos sobre a temática – como os que o ICPOL promoveu nos anos
2005 a 2008, cuja publicação dos mesmos a candidata procede –, ainda não se prendeu com
esta questão ou com a necessidade de proceder a uma alteração ou a aprovação de um novo
regime.
Esta preocupação está patente no seu trabalho, mas parece-nos que se prende muito á
questão da responsabilização dos atos desviantes – administrativos, civis e criminais – do
que com a novas nuances e formas de manifestações e reuniões próprias da era digital.
Veja-se que as suas conclusões (pp. 298 e ss.) têm um foco excessivo na questão da respon-
sabilização, talvez por existir em si uma tendência positivista que a possa conduzir a um
estado de normativização da vida e do exercício de direitos ou talvez seja a sua veia mais
de polícia a tentar dar um cunho operativo e sancionador às violações normativas ou ao
desrespeito por bens e valores jurídicos de uma sociedade constitucional democrática. Vol-
taremos a este tema em breve.
Coloca questões que à partida são de resposta simples se olharmos para o quadro jurí-
dico, mas se questionarmos as próprias questões de partida, a resposta não será fácil, desde
logo porque não nos explica que dimensão de legitimidade está presente na segunda per-
gunta (pp. 21, 22 e 298): se jus normativo-constitucional ou se apenas sociológica ou se
ambas?
Em termos gerais e na linha da Professora Paula Veiga, e apesar de ter optado por um
estudo de um regime, com pouca crítica assertiva político-constitucional e criminal, mesmo
que possa dizer que estudou o modelo do Reino de Espanha, mas sem apresentar em con-
creto uma visão que avocasse a unidade do sistema considerado nos seu todo – constitu-
cional-administrativo-criminal-civil –, consideramos que, e para a descansarmos, deve ser
aprovada nestas provas de doutoramento, por a nossa apreciação ser globalmente positiva.
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Segundo momento – Análise formal
No que respeita às questões de forma, temos alguns apontamentos a fazer. Quanto à divi-
são e sistematização da tese, consideramos que devia ter algum cuidado, uma vez que a sua
tese tem 3 partes em 348pp., sendo que a parte 1 tem apenas 21pp., ao passo que a parte 2
tem 167pp. e parte 3 tem 84pp.; e apresenta-nos uma conclusão com 27pp.
Veja que a parte 1 tem apenas um capítulo com as ditas 21pp., conquanto a parte 2 tem
5 capítulos – I, 13pp, II 9pp., III 46pp., IV 31pp., e o V 66pp. – e a parte 3 tem 3 capítulos –
I33pp., II 35pp. e o III 16pp.. Existe uma assimetria quer quanto às partes quer quanto aos
capítulos. É algo que no futuro tem de corrigir.
Veja que há matérias e questões/afirmações – v. g., «falta norma de responsabilização»
(pp. 299 e ss), «falta uma norma que tipifique claramente…» (p. 306 e ss.) – que se prendem
com a sua primeira questão de partida, e que recolocou nas conclusões que deviam ter sido
tratadas antes, p.e., no último capítulo da parte 3, obedecendo assim ao princípio da ultima
ratio do Direito sancionatório – penal e administrativo sancionador. As conclusões – 21pp. –
deviam ter sido mais concisas e não expositivas, caindo na armadilha de voltar a repristinar
o teor da Ley Orgânica 4/2015 de Espanha.
Quanto ao discurso escrito, que é percetível e compreensível, nota-se, em vários
momentos,
(i) o abandono do discurso jurídico para um discurso mais policial ou sociológico –
«escolha de um bom local» (p. 85) –;
(ii) outras vezes faltam vírgulas ou estão colocadas no lugar errado (p. 300), assim
como algumas falhas de concordância (p. 145) –;
(iii) como utiliza conectores de forma menos correta no plano semântico – p.e., «toda-
via» (24vezes), quando na maior parte das vezes o sentido do discurso é «contudo»
e «mas», uma vez que não está num discurso contraditório, mas adversativo,
(iv) trata alguns autores por Professor, outros por Prof. – pp.69, 121 (n. 223), 206, 208 –,
e outros apenas pelo nome, quando devia tratar todos os autores pelo nome cientí-
fico por que são conhecidos,
(v) e, até mesmo, trata o mesmo autor de várias formas: p.e., José Joaquim Gomes
Canotilho (pp. 30 e 31) ora Gomes Canotilho (pp. 32, 69) e Canotilho (pp. 44, 78),
(vi) o modo de citar é o de nota de rodapé, mas ao longo do texto temos situações de
citação de autor/data – pp- 78, 98 e 213 –, como coloca idem, quando devia colocar
ibidem, e ainda umas vezes coloca a indicação da nota de rodapé dentro do período
frásico e outras fora do período frásico – a título de exemplo vejam-se as pp.118,
119, 120, assim como a indicação do numerário das coimas é diferenciado;
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(vii) em suma, precisa de uma revisão para lhe dar maior consistência sistemático-
-científica.
No que respeita à bibliografia/referências bibliográficas, apresenta 24pp. com entradas
doutrinárias e documentais, sendo que, mesmo havendo alguma diversificação e autores
estrangeiros, há a falta de autores como Otto Bachof, Rolf Stober, Bernhard Schlink, cujos
textos referentes aos direitos fundamentais, à atividade de polícia e à restrição daqueles,
estão traduzidos pela Gulbenkian e a Editora da Lusíada; assim como exigia-se que tivesse
tido em conta obras e estudos que utilizou atualizadas e que ateriam ajudado a compreen-
der melhor a ideia de domínio público e domínio privado dos espaços, cujo tema lhe fala-
remos de seguida.
No que respeita ao modelo de investigação da sua tese, que nos apresenta a pp.23 –
«investigação doutrinal, comparativos e o histórico» –, consideramos que não o respeitou
de todo, pois foi mais uma análise do regime vigente seguindo descritivamente a posição
de autores no que respeita à restrição de direitos e liberdades fundamentais sociais.
Terceiro momento – Análise material
No plano material, sendo que, como dissemos, o tema que nos traz é de extrema relevância
jurídica, poder-se-ia dizer que muitas questões haveria para convocar e aqui debulhar, mas
o tempo é ditador e seremos diretos e trataremos dos pontos mais cruciais e prementes que
a sua tese nos suscitou.
1. Iniciaremos com as questões de partida e que refletem a espinha dorsal da sua tese, que
apresenta a páginas 21 a 22 e depois regressa nas conclusões, pp.298 e ss.
Quanto à primeira questão, parece-nos que falta a sua situalização temporal, porque a
resposta tanto pode ser sim ou não dependendo do tempo e do lugar em que possa ser inter-
pretada e aplicada a norma. Nós, lendo a tese, sabemos que estamos a falar de um regime,
e como bem diz «em vigor», e no atual Estado constitucional democrático, mas pensamos
que devia ter sido mais específica no tempo e no espaço, uma vez que o DL 406/74, de
29de agosto, é, como nos diz, um diploma de natureza compromissória. Ou podia ter feito
um melhor questionamento tendo em conta a evolução societária, em especial tecnológica,
e um melhor aprimoramento das forças e serviços de segurança desde 1974 até aos nossos
dias.
Mantendo-nos nesta questão e na linha das suas conclusões e perguntas que retoma,
gostaríamos que nos explicasse se mantém a posição: de ser necessário um regime com
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uma positivação da responsabilização dos promotores, dos danificadores etc., como acon-
tece em Espanha.
É que na p.94, diz-nos que o «Direito português tipifica penalmente a violação de
alguns termos impostos ao direito de manifestação, que importam sanções quer para os
participantes, quer para os promotores da manifestação. Nestes, incluem-se os indivíduos
que causem danos a terceiros em consequência de atos de violência no decorrer de uma
manifestação, os quais, além da responsabilidade civil, incorrem em responsabilidade cri-
minal. De igual forma, os promotores podem ser responsabilizados, nos termos dos arti-
gos 483.ºe 490.ºdo Código Civil (Responsabilidade dos autores, instigadores e auxiliares),
mesmo que não tenham praticado diretamente atos violentos, se estiverem preenchidos os
pressupostos da responsabilidade civil». Ficamos sem saber se o Direito português – na sua
unidade sistemática – garante o direito a e de se manifestar, e tutela os direitos e valores
da comunidade. Sabemos que talvez quisesse fixar-se numa atualização (pp. 210 e 298), mas
do quê?
Ou será que pretende proceder a uma extensão da responsabilidade penal dos atos pra-
ticados pelos manifestantes aos promotores, na linha da responsabilidade penal das pes-
soas coletivas (artigo 11.º, n.º8 e 9 do CP)? É que a responsabilidade civil solidária e subsi-
diária, como sabe, já pode ser assacada por força dos preceitos do código civil.
Os danos nos bens de terceiros pode enquadrar um facto subsumível a uma tipificação
criminal, p.e p.pelos artigos 212.º, 213.ºe 214.ºdo CP, assim como a desobediência a ordem de
dispersão de reunião pública, crime p.e p.pelo artigo 304.º, como nos diz na tese. Mas ficamos
sem saber se aplica este preceito à desobediência de dispersão de manifestação ou se opta
pelo crime de desobediência, p.e p.pelo artigo 348.ºdo CP, ou se aplica a desobediência qua-
lificada prevista no Dl n.º406/74, regime jurídico dos direitos de reunião e manifestação.
Parece-nos que o olhar crítico que desenvolve entre as pp.205 e 213, seguindo sempre
de perto alguns autores, não está devidamente efetuado tendo em conta que olha para o
regime de forma separada e compartimentada, quando no seu todo o regime já soluciona
as questões que coloca. Impõe-se é um conhecimento do Direito e não apenas da norma ou
de algumas normas.
Acresce que para as questões de criminalização de condutas que lesem ou coloquem
em perigo de lesão bens jurídicos, devia convocar o princípio de reserva constitucional da
restrição de direitos e liberdades fundamentais pessoais (artigo 18.º, n.º2 da CRP), que se
impõe sempre que estamos na seara criminal.
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No que respeita à segunda questão de partida, consideramos que seria importante que
nos explicasse dois pontos que não estão devidamente esclarecidos na tese de doutora-
mento:
(a) o primeiro é se podemos falar em «interferir» ou «ingerência» das forças de segu-
rança, ou se o mais adequado juridicamente é falarmos em restrição de direito de
manifestação na linha do texto constitucional. Veja que se lermos as pp.131 a 138,
em que nos apresenta o princípio constitucional da restrição de direitos funda-
mentais, parece-nos que nos quer centrar na restrição e não na interferência ou na
ingerência, mas quendo lemos as conclusões voltamos a não entender o porquê de
não se centrar na restrição, porque ingerência das forças de segurança pode signi-
ficar ilegalidade e ilicitude da sua atuação;
(b) o segundo, é saber de que legitimidade nos está a falar quando se socorre do advér-
bio «legitimamente». Estamos a falar de uma legitimidade jus normativo-consti-
tucional ou se nos está a falar de uma legitimidade sociológica ou se de ambas:
se lermos as pp.50, 133 e 136, parece-nos que se fixa no quadro constitucional,
mas se lermos o terceiro § da p.243, pensamos que resvala para uma legiti-
midade natural (quase sociológica) nessa limitação ao exercício do direito de
manifestação – e se lermos a p.214, verificamos que resvala para a legitimi-
dade normativa.
Parece-nos que carece um pouco de explicação, uma vez que se socorreu de autores que
trabalham estas questões como Reinhold Zippelius e Guedes Valente.
2. Outro ponto crítico da sua tese é não ter procedido a uma adequada teorização e sistema-
tização dos espaços de manifestação: veja que nos fala de espaço aberto ao público, lugar
privado de acesso ao público, de lugar público como se tudo fosse e não fosse a mesma
«coisa», melhor, tivesse a mesma dimensão normativa. Veja como promove essa confusão
em dois exemplos: (i) «espaço público ou de domínio público» (p. 14) e (ii) de «o direito de
utilização dos lugares públicos e de domínio público» (p. 86). Segue a própria conflituali-
dade de 74 e a consequente imprecisão
Lamentamos que não tivesse aproveitado autores que trabalham estas matérias – Gue-
des Valente quando densifica os domínios público e privado da atuação do Estado na linha
iniciada por Harmut Maurer e Marcello Caetano – de modo a que ficássemos cientes de
que espaços está a falar.
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Hoje as forças de segurança deparam-se com duas dimensões de espaço que assenta
em domínios: domínio público (designado por outros como espaço de domínio do Estado) e
domínio privado ou não público (ou domínio de não Estado).
Os domínios públicos e privados subdividem-se em três categorias iguais: de acesso
livre ou de acesso comum (Marcello Caetano), de acesso condicionado e de acesso restri-
tivo. Gostaríamos que nos dissesse em que domínio se fixa a sua tese e em que categoria a
sua posição final tem maior relevância.
3. A Senhora candidata, na p.118, trata, citando Vieira de Andrade e José Alexandrino, de
perspetivas e de formas de análise de direitos fundamentais. Não entrando na discussão
dogmática de perspetivas e de formas, e fixando-nos nestes dois tópicos gostaríamos de
saber em que perspetiva ou em que forma se pode afirmar o direito de manifestação.
4. A Mestre Ana Robalo, nas pp.146-147, apresenta-nos uma tutela jurídica supranacional
dos cidadãos – DUDH e CEDH –, mas ficamos sem saber se ao direito de manifestação
é ou não garantida uma supranacionalidade jurídica; melhor, perguntamos se poder-se-á
afirmar que os cidadãos, no plano do direito de manifestação, é um sujeito de direito supra-
nacional e sujeito de uma jurisdição supranacional.
Por fim e antes de terminar, gostaria de saber se, quando trata do tema direito de mani-
festação face ao estado de sítio e ao estado de emergência – num campo de domínio dife-
renciado do que a Profa. Paula Veiga fala, mas quês e complementa –, o circunscreve ou não
a um estado de exceção absoluto ou relativo ou se estamos perante um estado de exceção
tácito. Quanto a este regime, consagrado no artigo 19.ºda CRP – falta-lhe o estudo da tese
de doutoramento de Jorge Bacelar Gouveia e dos textos de Giorgio Agamben.
5. Terminamos dizendo que gostamos de ler a sua tese, que levanta mais questões, mas o
tempo não permitiria que ficássemos a debater página a página. Desejamos-lhe continua-
ção de boas provas e responda apenas às questões materiais pela ordem que entender e
melhor lhe aprouver. Reafirmamos que somos da opinião de que deve ser aprovada nestas
provas de doutoramento, por ter apresentado um trabalho globalmente positivo.
Lisboa (UAL), 10 de julho de 2019