GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
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O exercício do direito fundamental
demanifestação: a ingerência pelas
forçasdesegurança*
The exercise of the manifestation fundamental right:
interference by security forces
PAULA VEIGA
1
pveiga@fd.uc.pt
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
January Janeiro–30
TH
June Junho 2020 · pp. 160‑171
DOI: http://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.1.7
Submitted on October 6
th
, 2019 · Accepted on June 4
th
, 2020
Submetido em 6 de outubro, 2019 · Aceite a 4 de junho, 2020
Apresenta-se a provas públicas para a obtenção do grau de Doutor em Ciências Jurídicas,
pelo Departamento de Direito da Universidade Autónoma de Lisboa, a Mestre Ana Maria
dos Santos Batista Robalo, com uma Tese intitulada O exercício do direito fundamental de mani-
festação: a ingerência pelas forças de segurança.
Começo por agradecer à Universidade Autónoma de Lisboa, na pessoa do Presidente
deste Júri e Reitor desta Instituição, Professor Doutor José Amado da Silva, o convite que
me endereçou para estar aqui hoje – é uma honra –, apresentando os cumprimentos e
um agradecimento da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Cumprimento,
igualmente, os meus colegas de júri, Professores Doutores André Ventura, Manuel Guedes
Valente e Nuno Poiares.
Dirijo-me, agora, à candidata, Mestre Ana Robalo, dizendo-lhe que foi um gosto espe-
cial voltar a cruzar-me com estas matérias que tanto interessam à polícia, após a minha (já
distante) passagem pelo Ministério da Administração Interna, nos anos de 1998 e 1999,
momento em que lidei muito com as preocupações da segurança.
Tem a candidata um longo percurso na Polícia de Segurança Pública, que começou no
ano de 1990, onde tem obtido, genericamente, uma classificação de serviço de Muito Bom.
Em 2008, concluiu a Licenciatura em Direito, e em 2010 tornou-se Mestre em Direito, na
1 Doutora em Direito pela Universidade de Coimbra. Professora Associada da Universidade de Coimbra, onde
leciona Direito Constitucional e Direito Internacional Público. É membro do Instituto Jurídico da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra e integra a direção de dois Institutos: o Ius Gentium Conimbrigae (IGC) e o
Instituto Jurídico da Comunicação (IJC).
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especialidade de Ciências Jurídico-Criminais, tendo obtido ambos os graus por esta Insti-
tuição. Apresenta-se, agora, a provas públicas para a obtenção do grau de Doutor, com uma
tese composta por 314 páginas de texto e 24 de bibliografia.
Num momento histórico em que discutimos a refundação do paradigma societário,
em virtude de múltiplos factores (aumento da conflitualidade, acolhimento de pessoas de
outras culturas, expansão de novas formas de comunicação por via tecnológica, …) brinda-
-nos a candidata com uma tese sobre o direito de manifestação. Trata-se indiscutivelmente
de um tema actual e sobre o qual importa reflectir. E posso adiantar que, globalmente, o
trabalho revela uma investigação séria, densa e atenta. Também se mostra geralmente bem
escrito e de leitura agradável. Detectam-se, no entanto, gralhas aqui e ali e, por vezes, a
leitura é tolhida por um menor cuidado no uso da língua portuguesa, acrescido de algumas
imprecisões, como é o caso da referenciada na p.74, em que afirma que a Constituição esta-
belece a legalidade do exercício do direito de manifestação, o que é uma imprecisão muito
grave; as constantes referências a «estrageiros» em vez de «estrangeiros», nas pp.91 e
ss., ou o «Direito Constitucional coludente», palavra que não existe, na p.188. Mas, por
razões de graduação da importância dos assuntos a abordar, vou abster-me de reproduzir
tais imprecisões (umas mais ligeiras, outras mais graves).
Posso, igualmente, adiantar que não concordo com muitas das sugestões apresentadas
pela candidata na parte final do seu trabalho, que, se me permite, entendo assentarem num
retrocesso civilizacional relativamente ao direito político-civil de manifestação. Com efeito,
parece-me que toda a tese assenta no binómio ordem/desordem, adiantando a candidata
uma série de propostas que se baseiam na ideia geral de punição da desordem, sugerindo
um conjunto de hipóteses em que existiriam ilícitos de mera ordenação puníveis com coi-
mas, bem como outras cominadas com sanções penais. Cara candidata: percebo a sua preo-
cupação com a segurança, sei que são problemas que existem e com os quais se confronta
diariamente, mas acredito que as medidas de punição que propõe teriam um verdadeiro
efeito dissuasor no exercício do direito de manifestação, com o que, de todo em todo, não
concordo. Acresce que a adopção de tais propostas traduzir-se-ia quase numa substituição
de medidas de polícia, que têm carácter preventivo, por um conjunto de medidas de coa-
ção directa e de sanções administrativas, que, pela sua natureza, têm carácter punitivo. Por
outras palavras: a adopção das suas propostas implicaria uma mudança de paradigma no
direito de manifestação. De eventuais medidas preventivas de execução coerciva apenas
quando necessárias, passaríamos para um modelo de sanções administrativas e, por isso
mesmo, repressivas no que toca ao exercício deste direito.
A minha arguição terá três momentos: apreciação formal (primeiro momento), críti-
cas na generalidade (segundo momento) e críticas na especialidade (terceiro momento),
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tomando em consideração que, sendo uma das minhas áreas de investigação o Direito
Constitucional (além do Direito Internacional Público), o meu pensamento e as minhas
críticas se centrarão, sobretudo, na articulação entre os planos constitucional e legal e já
não tanto ao nível de uma eventual consequência da não observância da lei, aspecto que
penderá mais para o campo do direito administrativo ou do direito penal.
Primeiro momento – apreciação formal:
A tese encontra-se dividida em três partes, exceptuando a introdução e a conclusão. A pri-
meira parte diz respeito ao direito de manifestação no contexto de um Estado de direito
democrático. Pretende ser uma parte dedicada ao enquadramento geral da temática. Curio-
samente, é uma Parte com um só Capítulo, embora tal seja dissonante (o que é já uma crí-
tica) com o que é dito pela candidata nas páginas 16 e ss., em que faz a afirmação da exis-
tência, nessa Parte I, de 4 capítulos. Na segunda parte é tratado o direito de manifestação
propriamente dito. E na terceira parte aborda a ingerência no direito de manifestação pelas
forças de segurança.
1) Reserva de ordem formal: Da divisão e organização do trabalho, atendendo aos
objectivos da investigação
A Mestre Ana Robalo parece buscar dois objectivos com o seu trabalho, revelados logo a
pp.5, no resumo da tese: primeiro objectivo – o direito de manifestação e a sua regula-
ção infra-constitucional, cuja lei
2
data de 1974, sendo, portanto anterior à Constituição
de 1976; segundo objectivo – o problema da ingerência no direito de manifestação pelas
forças de segurança. Encontramos, desde já, uma reserva: qual é, afinal, a lógica da sua
abordagem? É jurídico-constitucional, como parece indiciar o primeiro problema referido
ou é jurídico-administrativa, como resulta da lógica do segundo problema destacado pela
candidata?
Admitimos uma tese de doutoramento com duas lógicas de abordagem distintas. Não
nos choca. No entanto, parece-nos que a delimitação formal do trabalho deveria ter sido
outra. Por razões de ordem metodológica, a candidata deveria ter dividido o trabalho em
duas partes, uma de carácter jurídico-constitucional e outra de cariz jurídico-adminis-
trativo. E teria sido fácil. Bastaria que a candidata tivesse juntado as que designa como
ParteIe II. Tal atitude ter-lhe-ia, também, resolvido o problema que lhe apontei de a Parte I
2 Para efeitos desta Arguição, usarei o termo Lei também para me referir ao Decreto-lei n.º 406/74, de 29 de agosto.
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ser constituída apenas por um único capítulo, que, como também já lhe referi, não corres-
ponde ao que afirma na Introdução (pp. 16 e 17).
Acresce que, no que toca à apreciação jurídico-constitucional, teria visto com bons olhos
não só uma melhor e mais clara fundamentação das situações em que a doutrina tem dis-
cutido a constitucionalidade da Lei de Manifestação e de Reunião, em virtude de ser ante-
rior à Constituição de 1976, como, também, um elenco sistematizado, ordenado e global,
de tais objeções doutrinais. É verdade que a candidata se vai referindo, aqui e ali, a alguns
problemas que vêm sendo levantados nesta sede (nomeadamente, nas pp.167, 206 e 210,
centrando-se nas análises dos Professores Doutores Jorge Miranda e Sérvulo Correia), mas
creio que, num trabalho desta natureza e com este objecto, não se teria perdido nada em
dotar o leitor desse elenco sistematizado em ponto autónomo.
Segundo momento – críticas na generalidade, em sede de apreciação
substantiva:
1) Do conceito do Direito Constitucional no Século XXI
A candidata afirma, mais do que uma vez, que a Constituição é a «lei suprema» (nomeada-
mente, nas pp.17 e 123). Não posso deixar de lhe assinalar uma crítica de fundo na concep-
ção que tem do Direito Constitucional no século XXI, com a implícita desconsideração da
importância:
de instrumentos de direito internacional que têm a natureza de normas imperati-
vas, que, inclusive, se sobrepõem ao poder constituinte, como o são a DUDH;
de instâncias internacionais a que os Estados se encontram submetidos, por adesão
a organizações internacionais. No caso concreto de Portugal, destaco, para o que
especialmente interessa no que toca ao direito de manifestação, as instâncias inter-
nacionais no quadro do Conselho da Europa.
A estas críticas acrescem a da desconsideração de que direitos fundamentais e direitos
humanos são diferentes categorias dogmáticas, a primeira é oriunda do Direito Constitu-
cional e a segunda do Direito Internacional, confusão que se denota quando alude, indistin-
tamente, a esses conceitos – direitos humanos / direitos fundamentais – na p.62.
Claro que a candidata não olvida que o direito de manifestação é um direito humano.
Logo na p.15 faz essa referência explícita. Contudo, nem analisa as dimensões protegidas
por instrumentos de Direito Internacional a que Portugal se encontra vinculado (em espe-
cial, os artigos 10.ºe 11.ºda CEDH), nem tira desse facto (o de ser internacionalmente reco-
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nhecido como direito humano) as necessárias consequências. Em concreto, foi criado, em
2010, um relator especial «on the rights to freedom of peaceful assembly and association»
no Conselho de DH, que a candidata nem sequer menciona em todo o seu trabalho.
Ainda considerando problemáticas de entendimento em termos gerais, surpreendeu-
-me o facto da candidata mencionar, em nota na p.114, e depois na p.115, que os direitos
fundamentais têm diferente valor. Não é verdade. Não é isso que a metódica dos direi-
tos fundamentais, desde que dotados de positivação constitucional, ensina, sobretudo
quando se trata de direitos da mesma natureza, como é o caso em apreço, em que a
Mestre Ana Robalo se encontrava a analisar a liberdade de manifestação vs. liberdade de
expressão.
2) Do conceito de Ordem Pública
A Mestre Ana Robalo usa amiúde o conceito de ordem pública. Com efeito, logo no resumo
da tese somos confrontados com a seguinte afirmação: «As imposições constitucionais ao
exercício do direito da liberdade de manifestação, entre outros, têm como principal objec-
tivo garantir a ordem pública e manter a paz social».
No entanto, percorra-se o texto da CRP. O conceito de «ordem pública» não aparece.
Existe, sim, «ordem» no sentido de «ordem jurídica», isto é, ordem jurídica interna vs.
internacional (por exemplo, nos artigos 8.º e 277.º) e «ordem constitucional democrá-
tica» (artigo 19.º, n.º2 – «Suspensão de direitos») ou «ordem constitucional» (273.º, n.º2
– «Defesa Nacional»). Assim, no plano jurídico-constitucional português, o conceito de
ordem pública não existe. O bem constitucionalmente protegido, quando o legislador cons-
tituinte se refere a medidas de polícia, é o da «segurança interna» (e externa) (artigo 272.º),
que não coincide exactamente com o de ordem pública. Como cláusulas gerais de polícia, da
CRP, apenas podemos retirar: a defesa dos direitos dos cidadãos e a garantia da segurança.
E mesmo no plano infraconstitucional, o conceito não é recorrente. Veja-se que a Lei
de Segurança Interna apenas a ele se refere no último artigo, relativamente ao princípio da
necessidade, além do artigo 1.º, quando se menciona a garantia «da ordem, da segurança e
da tranquilidade públicas».
Não estamos com isto a dizer que a candidata não tenha consciência de tal inexistên-
cia. Mas a referência expressa a essa não constitucionalização, que não é despicienda, só
aparece na p.236, a propósito das funções das forças de segurança, dedicando-lhe, depois a
candidata a sua atenção.
A seriedade e o rigor de uma tese de doutoramento parecem requerer que, tratando-se
de um conceito que é transversal a todo o trabalho, tal explicitação devesse ter emergido
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antes, eventualmente introduzindo uma nota de rodapé, dando a indicação do tratamento
do problema mais adiante.
Sobre esta questão, a minha sugestão irá para que a candidata fundamente a adopção
do conceito «ordem pública», além das bases doutrinais que aponta na tese (justamente a
pp.236 e ss.), também no constitucionalismo multinível. Explico-me. A «ordem pública»
é um valor juridicamente protegido pela Convenção Europeia de Direitos Humanos pelo
menos em cinco normas, como fundamento para a restrição dos direitos protegidos por
esta Convenção, pelo que se pode afirmar que é um valor a defender no âmbito do patrimó-
nio comum europeu. E aí, a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos
podê-la-ia ter ajudado. Como vê, a crítica que anteriormente lhe apontei de a sua tese ter
poucas refracções de um Direito Constitucional no século XXI não é meramente teórica,
surgindo a «cláusula de ordem pública» como um princípio de Direito Internacional que
vincula o Estado português.
O tipo de fundamentação que lhe sugiro é específica para a restrição de direitos, não
sendo uma fundamentação que radica na importação de conceitos de direito privado, como
parece decorrer dos fundamentos apontados pela candidata a pp.251 e ss., e que, por mais
valiosos que sejam, necessitam sempre de ser adaptados ao direito público.
Acresce ainda, quanto a este conceito, uma importantíssima rectificação: na p.278 refe-
re-se à ordem pública como um direito. Cuidado. Não é um direito.
3) A questão da segurança como valor a proteger e o princípio da segurança jurídica
A Mestre Ana Robalo parece confundir a segurança, enquanto valor a tutelar pelo
Estado, e as dimensões do princípio da segurança jurídica, enquanto princípio integrado
no princípio fundamental do Estado de Direito, pelo menos na perspectiva vulgarizada
pelo Professor Doutor Gomes Canotilho. Com efeito, logo na p.44 e ss. tínhamos tropeçado
com essa questão, quando a candidata se encontrava a discorrer sobre a importância da
segurança no Estado de direito. Mas confirmámos a ideia da confusão na p.260, quando,
novamente, a elucidar sobre o conceito de segurança, a Mestre Ana Robalo volta a chamar
à colação as dimensões do princípio da segurança jurídica.
Terceiro momento – reservas e perguntas na especialidade
1) Da natureza do direito de manifestação
A candidata parece oferecer-nos o entendimento de que o direito de manifestação é um
direito de natureza colectiva. Com efeito, refere, na p.35, que: este direito, e cito-a, «per-
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mite aos cidadãos, por meio de uma união exteriorizar para a opinião pública, as suas
opiniões». Igualmente, ao encetar o capítulo da «caracterização do direito fundamental
de manifestação» (pp. 71 e ss.), refere-se às manifestações aludindo a, e cito-a, novamente:
«uma demonstração popular em lugar público de duas ou mais pessoas» (p. 71). Mais
adiante, refere, ainda, que «O direito de manifestação, ou a liberdade de se manifestar, ape-
nas pode ser exercido de forma conjunta através da junção de várias pessoas» (p. 116).
No entanto, fica-me a dúvida, porque se a candidata, por vezes, nomeadamente nestas que
acabo de referir, parece entender o direito de manifestação nesse sentido, outras vezes faz
afirmações em sentido diferente, designadamente associando esse direito à liberdade de
expressão, como sucede na p.244, e, explicitamente, nas pp.53 e 84, dando inclusive o exem-
plo de Luaty Beirão (nota 72, na p.54).
É conhecida a discordância doutrinal portuguesa sobre a caracterização deste direito,
ora como «direito de reunião qualificado» (são as posições dos Professores Doutores Jorge
Miranda, Rui Medeiros e Sérvulo Correia), ora como «extensão qualificada da liberdade de
expressão» (posição defendida essencialmente pelos Professores Doutores Gomes Canoti-
lho e Vital Moreira).
Com efeito, segundo estes últimos, os direitos de reunião e manifestação são, sistemati-
camente, direitos de natureza pessoal e não de participação política e, não só, mas também
por essa razão, o direito de manifestação não é necessariamente colectivo. Ou seja, podem
existir manifestações individuais.
Peço à candidata esclareça este júri qual é afinal a sua posição, uma vez que não con-
segui encontrar uma só visão da sua parte, ainda que tenha percebido, pelo que escreve na
p.83, que, na sua opinião, o Decreto-lei 406/74, só é aplicável se estivermos perante mani-
festações de duas ou mais pessoas.
2) Da questão das compressões ao direito de manifestação por via legal
Nesta sede, a Mestre Ana Robalo e eu não temos a mesma visão. Com efeito, esclarece a can-
didata, logo na p.50, que o Decreto-lei n.º406/74, e cito: «regula o direito de manifestação,
na medida em que existe uma necessidade iminente de impor limites ao seu exercício».
Ora, não creio que uma lei reguladora tenha necessariamente de ser restritiva. De resto,
essa questão foi, desde logo, salientada (e criticada), no que se refere a esta lei em concreto,
na Assembleia Constituinte (nomeadamente, na Sessão do dia 3 de Setembro de 1975). Uma
lei reguladora pode ser restritiva, mas apenas em ultima ratio, sendo certo que entendo,
como também o faz a candidata, que as manifestações em lugares públicos terão que obe-
decer a maiores formalidades do que as que se realizem em lugares particulares. Também
concordo com a candidata quando se refere ao facto de a lei se encontrar desactualizada,
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embora já não a acompanhe no que toca às propostas feitas nas conclusões da tese, como
referi logo no início desta minha fala (pp. 298 ss.).
Mas, vamos «por partes».
Entendo que a consagrar limitações ao direito de manifestação constitucionalmente
garantido, a lei deve começar por estabelecer um âmbito de aplicação, prevendo que só se
aplica a manifestações «em lugares públicos ou abertos ao público» em que se reúnam
«Xmanifestantes», questão a que, curiosamente, a candidata não alude nas referidas conclu-
sões finais, parecendo que quer tratar todas as manifestações, independentemente do local e
do número de participantes do mesmo modo, sendo que o local e o número de participantes
são, a meu ver, aspectos determinantes para se invocar a tutela de outros bens constitucional-
mente protegidos, como o da segurança, e, por isso, para necessitar de comprimir o direito.
De resto, a Mestre Ana Robalo, na sua metódica de análise ao artigo 45.ºCRP (nomea-
damente, na p.130) deixa-nos esclarecidos, porque afirma considerar que o conteúdo subs-
tancial do direito de manifestação pode ser submetido a um regime mais restritivo do que
o do direito de reunião, embora não apresente qualquer justificação para essa afirmação.
Ainda em sede das compressões do direito de manifestação por via legal, a candidata
esquece o que dispõe a CEDH sobre este direito (nomeadamente, nas pp.154 e ss., em que
não se refere a este tratado internacional, ao qual Portugal se encontra vinculado) e que
muito a teria ajudado, vendo, nomeadamente, como tem o TEDH densificado a possibili-
dade de restrição em nome de interesses da vida estadual (por exemplo, segurança nacio-
nal e segurança pública) e da vida social (por exemplo, ordem pública) ou dos direitos de
outrem, tudo no quadro de uma sociedade democrática. Cito-lhe, a este propósito, os casos
Öllinger c. Áustria, de 2006, Bukta e outros c. Hungria, de 2007, e Alekseyev c. Russia, de 2011.
E considerando normas que permitem a restrição do direito de manifestação, devo
recordar à candidata que não estão todas no mesmo patamar hierárquico, como parece
decorrer das suas palavras na p.155. Com efeito, as restrições admitidas pela Constituição,
pela CEDH e pela lei interna estão em diferentes níveis.
De resto, deixe-me também deixar claro que, por maior respeito que tenha pelos Parece-
res da Procuradoria Geral da República, eles são isso mesmo, pareceres. Não são expressão
nem do poder constituinte nem do poder legislativo, isto é, não são nem a Constituição
nem a Lei. Assim como a jurisprudência dos tribunais não tem, no sistema português, o
valor de precedente judicial, como parece decorrer do que a candidata afirma na p.186.
3) Da questão do aviso prévio
No plano constitucional, a comunicação prévia não é um elemento constitutivo do direito
de manifestação. A Constituição é muito clara nesse sentido. Lembro o teor do artigo 45.º,
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n.º1: «Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos
ao público, sem necessidade de qualquer autorização». Entendo, assim, que toda a manifesta-
ção pacífica e sem armas, comunicada ou não às autoridades competentes, tem protecção
constitucional. Não sendo o dever de comunicação um elemento constitutivo do direito, ele
é, no entanto, uma exigência legal compreensível. Destina-se a assegurar a harmonização
entre um direito fundamental (o de manifestação) e outros direitos ou valores tutelados
pela Constituição (liberdade de circulação, segurança interna, etc.).
Já no plano legal, podemos admitir duas posturas de princípio: 1) qualquer evento decla-
rado está, em princípio, de acordo com a lei e pode ser mantido a menos que legitimamente
proibido; 2) todas as manifestações são proibidas, excepto aquelas explicitamente autori-
zadas pelas autoridades públicas. A diferença entre estas duas posturas está longe de ser
insignificante.
Parece-me que quanto mais detalhada for a lei na exigência dessa comunicação prévia,
nomeadamente com a imposição de múltiplas formalidades e de sanções para a sua falta,
mais acertadamente estaremos, ao arrepio do que a Constituição prevê, perante um acto de
autorização prévia. Nesse sentido, discordo frontalmente do que propõe na p.300, quando
refere que a lei deveria estipular que a falta de aviso prévio teria como consequência a prá-
tica de um ilícito de mera ordenação punível com coima. O fim da comunicação prévia é
preventivo e nunca repressivo ou condicionante do exercício do direito. Deverá, pois, ser
uma norma legal em branco em termos sancionatórios, sob pena de fazer «cair por terra» o
que constitucionalmente se reconhece, porque facilmente manipulável por quem concede
a «anuência» da comunicação prévia, ou seja, um obstáculo oculto ao direito de manifesta-
ção reconhecido e protegido constitucionalmente.
4) Neste contexto, permito-me relembrar dois casos apreciados pelo TEDH.
O primeiro, em 2007 (o caso Bukta e outros c. Hungria, a que já me referi), em que, apesar de
a lei húngara exigir comunicação prévia do exercício do direito de manifestação e de, por
força do não cumprimento de tal requisito, as autoridades policiais haverem interrompido
esse exercício, o Tribunal de Estrasburgo considerou que se estava perante circunstâncias
especiais, por força de um acontecimento político especial e que, portanto, exigiam o exer-
cício do direito no imediato, sob pena de perder a sua utilidade, pelo que a interrupção da
manifestação seria uma restrição desproporcional ao exercício do direito. E a lei húngara
exigia a comunicação prévia, relembro.
No outro caso, de 2008, estava em causa um cidadão contra a Rússia, em virtude da
realização de um piquete em frente a um tribunal, a fim de atrair a atenção para as vio-
lações do direito de acesso aos tribunais. A lei russa exigia a comunicação com 10 dias de
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antecedência para a manifestação, embora o cidadão só tenha comunicado 8 dias antes. O
TEDH considerou que se tratava de uma violação meramente formal de um «timelimit», o
que não havia impedido as autoridades de planearam a manifestação. Daí que tenha dado
razão ao cidadão.
Da questão da titularidade do direito de manifestação por estrangeiros
A pp.92 e ss., aborda a questão da titularidade do direito de manifestação por estran-
geiros, parecendo-me que compreendeu mal o que a Constituição da República Portu-
guesa estatui sobre este aspecto, nomeadamente pela confusão que parece surgir das suas
palavras entre o conceito de cidadania e de nacional (p. 94). Nesse sentido, gostaria de lhe
perguntar se entende que seria legítima, por hipótese (ainda que pouco provável), uma
manifestação em que apenas participem estrangeiros, considerando o que dispõe o artigo
45.º«A todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação», conjugado com o esta-
belecido no artigo 15.º, ambos da CRP.
5) Da questão do uso de certos equipamentos em manifestações
A pp.102 e ss., discorre sobre a possibilidade de uso de equipamentos de protecção em
manifestações. Contudo, não ficou claro para mim se:
admite o uso de máscaras ou de roupas especiais por manifestantes que até os pro-
tejam por parte de outros manifestantes. Se não admite, com que fundamento o faz?
defende a proibição do uso de máscaras ou similares por manifestantes por via
legal? Com que fundamento? E se as máscaras pretenderem traduzir algo para efei-
tos do direito de manifestação? Como ficará a autodeterminação do conteúdo e da
forma da mensagem?
6) Da questão da interrupção ou proibição da manifestação
A pp.189 e ss., a candidata dedica-se aos problemas da proibição e da interrupção de
uma manifestação, afirmando que nem o Código Penal, nem o Decreto-lei 406/74, estabele-
cem quais são as autoridades com essa competência.
Saliento, novamente, um problema de fundamentação do seu discurso e que gostaria
de ver esclarecido. Na p.192, alude à suspensão do exercício de direitos prevista na CRP (a
CRP prevê que não se podem suspender os direitos à vida, à integridade pessoal, à identi-
dade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroactividade da lei criminal, o direito
de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião). Em primeiro lugar, não
alcanço a razão da convocação do artigo 19.ºda CRP, já que ele nem sequer prevê a impos-
sibilidade de suspensão do direito de manifestação. Em segundo lugar, não visualizo como
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O exercício do direito fundamental demanifestação: a ingerência pelas forçasdesegurança
PAULA VEIGA
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
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January Janeiro – 30
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June Junho 2020 · pp. 160‑171
é que a partir dessa norma constitucional afirma, e cito: «Deste modo, só se apresenta
legítimo a aplicação de uma ablação preventiva no direito de manifestação em situações
extraordinárias». Quer referir-se às situações de estado de sítio e de estado de emergência?
Ou a outras situações «extraordinárias»? É que no seguimento desta afirmação passa para
a questão da possibilidade de proibição preventiva por autoridade administrativa quando
haja intenção da prática de um crime…
Ainda neste contexto, aludo a uma outra questão conexa com esta das autoridades
competentes para interferir no direito de manifestação, interrompendo-o ou proibin-
do-o. Propõe a candidata legislação a fim de legitimar a actuação policial no âmbito da
interferência no direito de manifestação, pelo facto de estarmos perante a necessidade de
ponderação deste direito com outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos.
Ora, os problemas de legitimação de uma intervenção policial neste domínio são sensi-
velmente os mesmos de outros domínios, pelo que, como bem sabe a candidata, a inter-
ferência policial deve pautar-se sempre pelo princípio da proporcionalidade e pela ideia
de que as medidas de polícia devem ter um carácter preventivo e não dissuasor, além da
obediência ao princípio da legalidade. Assim, não vejo nenhuma vantagem na criação de
legislação específica sobre esta questão. E também nesta sede pode ajudar um parâmetro
fixado pelo TEDH, designadamente no caso Barankevich c. Russia de 2007 (em especial,
§33). O Tribunal entendeu que não bastava a mera afirmação da existência de um risco
de violência. Assim, as autoridades deveriam poder apresentar estimativas concretas da
escala potencial da agitação, a fim de «avaliar os recursos necessários para neutralizar o
risco de confrontos violentos». Por outras palavras: para o TEDH não basta o mero risco
em abstracto, é necessária a existência de estimativas concretas da escala potencial da
agitação. Talvez esta ideia a ajude a densificar as intervenções que não são meramente
reactivas, a que alude na p.289.
7) Da questão dos 100 metros exigidos pela actual lei
Na p.195 alude à situação prevista no artigo 13.ºdo Decreto-lei sobre o direito de mani-
festação e à faculdade de as impedir «em lugares públicos situados a menos de 100 m das
sedes dos órgãos de soberania, das instalações e acampamentos militares ou de forças mili-
tarizadas, dos estabelecimentos prisionais, das sedes de representações diplomáticas ou
consulares e das sedes de partidos políticos», mas refere que a autoridade administrativa
tem a faculdade de impor uma distância inferior a 100 metros. Como assim? Ao arrepio do
que estatui a lei?
Além disso, refere na p.212, que considera desnecessária a exigência de um despacho,
fundamentado em parecer prévio das autoridades competentes, para determinar que se
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respeite essa distância. Permito-me discordar, porque tal acto tem por intuito a fundamen-
tação da restrição do direito de manifestação em cada caso.
Já no que toca à coima que propõe no final do seu trabalho, em virtude do incumpri-
mento desta norma, não me choca.
8) Da questão da responsabilização dos organizadores ou promotores de
uma manifestação pelos danos materiais causados ao património público em
consequência dessa manifestação
Em matéria de responsabilização, e tomando por referência as suas propostas a pp.299 e ss.,
abster-me-ei de considerações em torno do direito penal, até por respeito ao meu colega, e
outro arguente nestas provas, Professor Doutor Manuel Guedes Valente.
A solução prevista na lei espanhola de 2005, muito contestada quer internamente, quer
ao nível europeu (com efeito, o anteprojecto desta lei foi criticado pelo Conselho da União
Europeia), tendo já sido esta lei apelidada de «lei da mordaça», mas, dizia, a solução prevista
nessa lei é a da responsabilização dos organizadores ou promotores de uma manifestação
pela prática de danos ao património público. Apesar das críticas apontadas à lei, concordo
com essa responsabilização dos organizadores ou promotores de uma manifestação (por-
que se trata de proteger outros direitos e bens constitucionalmente garantidos, nomeada-
mente o património cultural), embora só concorde na parte referente a danos materiais
causados ao património público (no sentido de monumento público ou património cultu-
ral legalmente classificado), e não da forma extensiva como parece indiciar a candidata na
p.301 (em que refere danos ao património, em equipamentos urbanos, na propriedade pri-
vada e nos bens das pessoas). Nesse sentido, gostaria de conversar consigo também sobre
esta questão.
São estas algumas das objecções que coloco à Mestre Ana Robalo como expressão do
grande interesse com que li o seu trabalho, e na convicção de que saberá dar-lhes uma res-
posta ponderada e competente.
Resta-me reiterar-lhe as maiores felicidades na dedicação à carreira, que protege a nossa
segurança, e que quis escolher.
Tem a palavra.