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GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
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July Julho – 31
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December Dezembro 2019 · pp. 192‑196
DIREITO PENAL DO INIMIGO: UMA MUDANÇA PARADIGTICA
DO DIREITO PENAL
1
CRIMINAL LAW OF THE ENEMY: A PARADIGMATIC CHANGE IN CRIMINAL LAW
BERNADETE LIMA DOMINGUES
2
bernadetedomingues@ya h o o.com.br
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
January Janeiro–30
TH
June Junho 2020 · pp. 192‑196
DOI: http://doi.org./10.26619/2184‑1845.XXI.1.1.01
Submitted on March 27
th
, 2020 · Accepted on June 4
th
, 2020
Submetido em 27 de mao, 2020 · Aceite a 4 de junho, 2020
1
Este artigo corresponde a um dos comentários científico da Unidade Curricular de Doutoramento em Direito
– Direito: da norma ao procedimento e à fase aplicativa –, lecionada pelo Professor Doutor Manuel Monteiro
Guedes Valente.
2 Doutoranda em Direito da Universidade Autónoma de Lisboa.
RESUMO
Percebe-se, no mundo contem-
porâneo, um claro desequilíbrio do Direito
penal que deve ser entendido como ultima
et extrema ratio e não como prima solo et
unica ratio. Impõe-se uma convergência
das atuais linhas de pensamento cientí-
fico, para fins de afirmação do ser humano
como ser de liberdade e como ser de responsa-
bilidade, consubstanciado no Direito penal
do ser humano.
PALAVRAS-CHAVE Direito penal do inimigo
– Direito penal garantista – liberdade e
responsabilidade – dignidade humana.
ABSTRACT In the contemporary world,
there is a clear imbalance in criminal law,
which should be understood as an ultima
et extrema ratio and not as a prima, solo et
unica ratio. A convergence of the current
lines of scientific thought is necessary, for
the purpose of affirming the human being
as a being of freedom and as a being of
responsibility, embodied in the criminal
law of the human being.
KEYWORDS Enemys criminal law –
Guarantee criminal law – freedom and
responsibility – human dignity.
As mudanças paradigmáticas do Direito
penal, na modernidade, vêm sendo objeto
de debates nomeadamente na comunidade
jurídico-criminal, onde se destacam duas
linhas de pensamento divergentes, consis-
tentes naqueles que defendem um Direito
penal humanista e naqueles que defendem
um Direito penal securitário ou policializado.
Há um claro desequilíbrio do Direito penal,
porquanto o princípio da subsidiariedade
cede lugar ao princípio prima solo et unica
ratio, concretizado no denominado Direito
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Penal do inimigo, em consenso com a teoria
de Günther Jakobs
3
. Essa teoria é rejeitada por
penalistas humanistas, a exemplo de Manuel
Monteiro Guedes Valente
4
, cuja obra funda-
menta a presente reflexão. Igualmente, neste
breve apontamento, traz-se a lume a concep-
ção sistêmica-funcional de Niklas Luhmann,
exposta por António Manuel de Almeida
Costa
5
, em obra de valor contributivo para o
pensar científico, acerca dos conteúdos nor-
mativos de opções ideológico-políticas. A tese
de Günter Jakobs tem na de Niklas Luhmann
seu ponto de partida, sendo ambas represen-
tativas do regresso ao positivismo jurídico, de
pensamento racional, onde conceitos como
dignidade humana se despem de autonomia.
O “balanço literário”, de Günter Grass
6
, obra
também em referência, conta-nos sobre os
reflexos de Auschwitz na literatura, e nos traz
à lembrança o alcance do autoritarismo, da
3 Günther Jakobs (nascido em 1937) é apontado como o atual teorizador do Direito penal do inimigo, cujas bases
filosóficas residem na guerra ao terror, ao terrorista, ao traficante de armas, de drogas, de seres e de órgãos
humanos, ao crime organizado, de entre outros. Para um estudo aprofundado do tema, JAKOBS, Günther e
CANCIO MELIÁ, Manuel – Derecho Penal del Enemigo. Tradução do alemão Bürgerstrafrecht und Feindstrafrecht
de Manuel Cancio Meliá. 2.ªEdição. Madrid: Thomson-Civitas, 2003. Quanto a uma análise crítica, VALENTE,
Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal do Inimigo e o Terrorismo – O “Progresso ao Retrocesso”. 3.ªEd. Portuguesa.
Coimbra: Almedina, 2019, p.50.
4 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal do Inimigo …. 3.ªEd. Portuguesa, p.11.
5 COSTA, António Manuel de Almeida – O Funcionalismo Sistémico de N. Luhmann e os seus Reflexos no Universo Jurídico.
Coimbra: Almedina, 2018..
6 GRASS, Günter – Escrever Depois de Auschwitz. 2.ªEd. Português. Alfragide: Dom Quixote. 2008. ISBN 978-972-20-
3651-1.
7 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal do Inimigo …. 3.ªEd. Portuguesa, pp.7 e ss.
8 B C – Dos Delitos e das Penas. Tradução do italiano Dei Delitti e delle Pene de José de Faria Costa. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1998. Quanto a uma análise da dimensão iluminista em Cesare Beccaria, RAMOS,
Calebe Brito; OLIVEIRA DE SOUZA, Rodrigo Lobato e ESTRELA, Thiago Aires – «Direito Penal do Inimigo: para
além da Constitucionalidade do Direito Penal (?)».In: Manuel Monteiro Guedes VALENTE (Coord.). Os Desafios do
Direito (Penal) do Século XXI. Lisboa: Legit Edições, 2018, pp.121-144.
9 Sobre o sentido constitucional do “Estado de Direito Democrático, ver OTERO, Paulo – Direito Constitucional
Português. Vol I: Identidade Constitucional. Almedina: Lisboa, 2017, pp.51-53.
10 A República Portuguesa é baseada na dignidade da pessoa humana, na forma consagrada pelo artigo 1.ºda
CONSTITUIÇÃO da República Portuguesa.
racionalidade e do desprezo para com a dig-
nidade humana.
A crítica elaborada à teoria de Günther
Jakobs, tecida por Manuel Monteiro Guedes
Valente
7
, é um alerta sobre a transformação
que as bases do Direito Penal têm sofrido,
sobre a resistência que se deve impor ao auto-
ritarismo penal, em face da caracterização do
delinquente que se torna o “inimigo” da socie-
dade e do Estado. O que ocorre é um verda-
deiro ataque às normas penais e processuais,
de constitucionalidade duvidosa. É que, sob o
pálio da segurança pública, está-se a ver uma
inversão do Direito Penal garantista, postu-
lado desde o iluminismo penal de Cesare Bec-
caria
8
, cujas bases estão assentadas nos prin-
cípios do Estado de Direito Democrático
9
, nos
valores e garantias humanistas, na liberdade
e na dignidade da pessoa humana
10
.
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Nesse contexto, impende analisar a teo-
ria sistémica-funcional formulada por Niklas
Luhmann, cujos traçados fundamentais e
suas implicações no universo jurídico, evi-
denciados por António Manuel de Almeida
Costa
11
, demonstram como essa corrente fun-
cionalista sustentada por Günther Jakobs, em
que o juízo de antijuridicidade recai sobre o
autor, e a culpabilidade cede lugar à perigo-
sidade e à previsibilidade de sua conduta, faz
com que o Direito penal tenha como função
a proteção de suas próprias normas. Em face
disso, há de se perguntar se a teoria sistêmica
luhmanniana se aplica ao Direito Penal, se o
Direito se comporta como um sistema auto-
poiético
12
ou autorreferencial. A conclusão
é pela negativa de aplicação da teoria, por-
quanto a “neutralidade axiológica e ideoló-
gico-política
13
e a funcionalização da pessoa
que desveste o homem de sua individualidade
permitem a indiferença ao autoritarismo e,
consequentemente, permitem que a confec-
ção de normas penais fiquem ao sabor de
decisão política do legislador, sem que haja,
no organismo social, instâncias de críticas a
esse positivismo. Portanto, o Direito Penal,
11 COSTA, António Manuel de Almeida – O Funcionalismo Sistémico de N. Luhmann …, pp.42 e ss.
12 Niklas Luhmann desenvolveu a teoria dos sistemas, sob o conceito de autopoiese, ao argumento de que a
comunicação é a base operacional de uma sociedade (funcionalismo sistémico). O autor compreende o Direito
como um sistema autopoiético. Autopoiesis é um termo grego adaptado à sociologia, por Luhmann, inspirado em
dois biólogos chilenos, Umberto Maturana e Francisco Varela, conforme esclarece HESPANHA, António Manuel
O Caleidoscópio do Direito – O Direito e a Justiça nos dias e no mundo de hoje. 2.ªed. Coimbra: Almedina, 2019, p.216.
13 COSTA, António Manuel de Almeida – O Funcionalismo Sistémico de N. Luhmann …, p.76.
14 Nessa obra clássica da Sociologia, o autor chama a atenção para a percepção que se tem do mundo atual, das
sociedades, percepção essa moldada pelos perigos e riscos que nos cercam, tanto os naturais como os gerados
pelo próprio homem, a exemplo das alterações ambientais e climáticas, do terrorismo, das crises financeiras,
dos crimes transnacionais, que nos fazem buscar a segurança a qualquer preço, mesmo que em detrimento
das liberdades. BECK, Ulrich – Sociedade de risco mundial – em busca da segurança perdida. Lisboa: Edições 70, 2016.
pp.22-56.
que sabidamente sofre influências políti-
cas e econômicas, não pode ser entendido
como um sistema fechado, pois sua função
garantista está, dentre outras, em restringir
o âmbito de incidência de imposições penais
despropositadas, injustas e antidemocráticas.
Tem-se que a função essencial do Direito
penal é a de limitar o poder soberano de punir
e o excesso de ação punitiva estatal. Entre-
tanto, a percepção de risco e da “sociedade
de risco”
14
, nos tempos atuais, tem levado a
uma hipertrofia legislativa e vulgarização
das normas penais, ao aparecimento de tipos
penais de perigo abstrato que prescindem
da ocorrência de dano material efetivo, a um
recrudescimento da criminalização, com inci-
dência de penas que justificam a prevenção
geral positiva e o controle social. O delin-
quente passa a ser visto como um inimigo
da sociedade, não como um Ser Humano que
deve ser tratado dignamente, mas como uma
coisa, uma não-pessoa, em total discordância
com os direitos e garantias fundamentais do
cidadão. O Direito penal é a ultima et extrema
ratio e, como tal, a ele se aplica o princípio da
subsidiariedade, e não o da prima solo et unica
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ratio, como está a se ver. A percepção é que a
imperiosidade de se combater outros crimes
e organizações criminosas, nomeadamente o
terrorismo, o tráfico de pessoas, de drogas e
de armas, homicídios e roubos qualificados,
levou o legislador a violar nomeadamente
o princípio da subsidiariedade, e a conceder
uma tal envergadura ao Direito penal, a ponto
de elevá-lo à condição de única solução de
combate ao crime.
O que deveria ser tratado tão somente
no plano ou dimensão do ser (a exemplo, ser
negro, ser homossexual, ser judeu ou mulçu-
mano, ser pobre etc.), passou a ser dimensio-
nado no âmbito do dever-ser, em que o Direito
penal passou a centralizar-se no autor e não
no facto. A ameaça de terrorismo é apontada
como uma das causas da demanda exces-
siva por segurança e consequentemente por
legislação descomedida, dando lugar a uma
intervenção penal mais adequada à guerra
(jus bélico) e à prevenção policial
15
(mesmo
diante da prática de atos preparatórios), do
que à retribuição ética da ofensa ao bem jurí-
dico lesado.
A política criminal
16
não pode ter como
objetivo a guerra ao terror, disseminando
mais terror, sob pena de se proceder a um ver-
15 Sobre a atuação e função da Polícia, sobre os princípios regentes e a conduta policial na prossecução de suas
atividades, conferir VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Teoria Geral do Direito Policial. 5.ª Ed. Coimbra:
Almedina, 2017.
16 O Estado de Direito material social democrático assenta suas bases na dignidade da pessoa humana, sendo a
dignidade “fundamento, razão, fim e limite dos operadores judiciários na materialização da política criminal
e do direito penal material, processual e penitenciário”. VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal –
Fundamentos Político-Criminais. Lisboa: Manuel Monteiro Guedes Valente, 2017, p.24.
17 GRASS, Günter – Escrever Depois de Auschwitz. 2.ªEd. , pp.11-52.
18 GRASS, Günter – Escrever Depois de Auschwitz. 2.ªEd., p.51.
19 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal do Inimigo …. 3.ªEd. Portuguesa,
pp.147-148.
dadeiro retrocesso jurídico e sócio-político.
Esse problema não pode ser subtraído à refle-
xão, não pode ser olvidado pelos operadores
do Direito.
O regime ditatorial de Hitler cometeu os
maiores excessos, fomentou a raiva e o ódio
contra os judeus, personificou a sanha puni-
tiva do Estado, por meio da concretização da
máxima de que os fins justificam os meios,
pois no ideal de purificar a raça ariana elege-
ram-se como verdadeiros inimigos do Estado,
não somente os judeus, mas os homosse-
xuais, os deficientes e todos aqueles que
supostamente eram contra o regime nazista.
Como bem diz Günter Grass
17
, em sua obra de
valor e beleza literários e de apropriada refle-
xão sobre esse passado da Alemanha nazista:
Auschwitz nos pertence, está gravado a ferro
e fogo na nossa história
18
. Esse passado de
genocídio organizado e de monstruosida-
des não pode ser esquecido, passado a largo,
muito menos significar um fim. Esse passado
serve de lição e demostra como o homem é
capaz de se autodestruir.
Concordamos com Manuel Monteiro
Guedes Valente
19
, quando nos exorta sobre
necessidade de repensar o Direito Penal, sob
a ótica do garantismo ou do humanismo,
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repensar a sua função de garantia que res-
tringe o âmbito de sua incidência e confere
uma visão mais crítica ao operador e aplica-
dor do direito, nomeadamente quanto à comi-
nação da sanção penal, que deve ser legítima
e se dar sobre uma lesão ou perigo concreto
20
de lesão.
Nesse contexto, impõe-se o questiona-
mento sobre o conteúdo das estruturas siste-
máticas e sobre a produção de leis e normas
penais, porquanto leis e normas devem ser
produzidas de acordo com critérios que jus-
tifiquem sua aplicação. Portanto, necessário
impor resistência àquela norma que não recai
sobre a ofensa a bem jurídico relevante, que
viola a dignidade da pessoa humana, prin-
cípio tão caro ao Direito Penal garantista ou
humanista.
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JAKOBS, Günther e CANCIO MELIÁ, Manuel –
Derecho Penal del Enemigo. Tradução do alemão
20 Uma das críticas que se faz à teoria de G. Jakobs está na defesa que ele faz dos tipos penais de perigo abstrato, os
quais prescindem da ocorrência do dano material efetivo a um bem jurídico.
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