REVISTA
DEDIREITO
EECONOMIA
ISSUE 1·1
ST
JANUARY–30
TH
JUNE·FASCÍCULO 1·1 DE JANEIRO–30 DE JUNHO 2020
VOLUME XXI
e‑ISSN 2184‑1845
OPEN ACCESS · LIVRE ACESSO
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA
VOLUME XXI · Issue 1 · 1
st
January–30
st
June 2020
Semiannual Publication. Scientic Journal of the Ratio Legis–Centro de Investigação e De-
senvolvimento em Ciências Jurídicas from the Universidade Autónoma de Lisboa–Luís de
Camões.
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Repositório Cientíco de Acesso Aberto de Portugal (RCAAP).
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Repositório Institucional da Universidade Autónoma de Lisboa (Camões).
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA
VOLUME XXI · Fascículo 1 · 1 de janeiro–30 de junho 2020
Publicação semestral. Revista Cientíca do Ratio Legis–Centro de Investigação e Desenvolvi-
mento em Ciências Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa–Luís de Camões.
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Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT–Fundação para a Ciência e a Tecnologia
no âmbito do projecto Ref.ª: UID/DIR/04441/2019.
This work was funded by national funds through FCT–Fundação para a Ciência e a Tecnologia–as part the
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E ‑ISSN 2184 ‑1845
DOI https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.1
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TITLE TÍTULO Galileu–Revista de Direito e Economia
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PERIODICITY Semiannual PERIODICIDADE Semestral
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SCIENTIFIC EDITOR EDITOR CIENTÍFICO RATIO LEGIS
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Brasil
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Vasco Branco Guimarães
ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa,
Portugal
vbrguimaraes@net.sapo.pt
Índice Index
6 Editorial Editorial
RUBEN BAHAMONDE
7 A dinâmica de construção constitucional do Brasil império: entre liberalismo e descentraliza
ção Brazil’s constitutional building dynamics between liberalism and decentralization
LUCIENE DAL RI | JAILSON PEREIRA
30 Sistemas de patentes e princípio da suficiência descritiva: uma abordagem a partir do Direito
Brasileiro e do Direito Internacional Patent systems and the descriptive suciency principle:
anapproach from Brazilian Law and International Law
JÓNATAS E.M. MACHADO | PAULO NOGUEIRA DA COSTA
52 Pandemia e teletrabalho no Brasil: aspectosgerais Pandemia and tele‑work in Brazil: general aspects
BRUNA CASIMIRO SICILIANI | BRUNA DIER | LUCIANE CARDOSO BARZOTTO
77 Mediação penal e a valorização da vítima: uma análise comparada entre as legislações portuguesa
e brasileira sobre a mediação antes do exercício da ação penal Criminal mediation and victim
valorization: a comparative analysis between Portuguese and Brazilian legislation on mediation
before the exercise of criminal action
RUBEN BAHAMONDE DELGADO | DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
111 A especialização do advogado emviolênciadoméstica The lawyer’s specialization in domestic
violence
EMANUEL CARVALHO
142 O Intervalo Descompassado entre a vigência e a efetividade da norma – A (Re)emergência
da questão ressocializadora Fostering the validity and the eectiveness of law – the (re)
emergence of the rehabilitation issue
INÊS FARINHA
ARGUIÇÕES TESES DOUTORAMENTO
160 O exercício do direito fundamental demanifestação: a ingerência pelas forçasdesegurança The
exercise of the manifestation fundamental right: interference by security forces
PAULA VEIGA
172 O exercício do direito fundamental demanifestação: a ingerência pelasforçasdesegurança The
exercise of the manifestation fundamental right: interference by security forces
MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE
COMENTÁRIOS DE LEGISLAÇÃO E JURISPRUDÊNCIA
COMMENTS ON LEGISLATION AND JURISPRUDENCE
180 O aproveitamento ilícito da semelhança com amarca de prestígio – O acórdão Gullón‑OREO The
unfair advantage taken of reputed marks similarity –TheGullón‑OREO case
RUBEN BAHAMONDE
NOTÍCIAS
NEWS
188 Medidas de prevenção e vigilância no contexto do surto de COVID‑19 consistentes em operações
de tratamento de dados pessoais no contexto das relações laborais Prevention and surveillance
measures in the context of the COVID‑19 outbreak consisting of operations involving the processing
of personal data in the context ofindustrial relations
PATRÍCIA CARDOSO DIAS
RECENSÕES
REVIEWS
192 Direito penal do inimigo: uma mudança paradigmática do direito penal Criminal law of the enemy:
a paradigmatic change in criminal law
BERNADETE LIMA DOMINGUES
197 Do Inimigo do Direito Penal ao Inimigo do Estado Penal From the Enemy of Criminal Law to the
Enemy of the Criminal State
MARINA CERQUEIRA
5
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
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January Janeiro – 30
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June Junho 2020 · pp. 6 6
Editorial Editorial
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
January Janeiro–31
TH
June Junho 2020 · pp. 6
DOI: http://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.1.1.1
Este número, onde nos propusemos assumir plenamente a digitalização da nossa
revista para uma melhor e mais ampla difusão, acabou por coincidir com a crítica situação
de pandemia em que o mundo se encontra, reafirmando a pertinência da opção adoptada.
Com efeito, pese embora as restrições ambulatórias, o encerramento de estabelecimentos
e/ou os confinamentos decretados, o conhecimento e a ciência jurídica continuam a fluir
livremente pelos meios digitais, o que muito nos satisfaz.
Conforme vem sendo habitual, apresentam-se diversos artigos de investigação cientí-
fica no domínio jurídico, com a especial e actual oportunidade de abordar, além de outras
matérias, o regime jurídico do trabalho em tempos de pandemia. Com o ensejo de enrique-
cer o contributo da revista para a sociedade, apresentam-se também trabalhos mais infor-
mais correspondentes a arguições de teses de doutoramento e ainda o comentário à recente
jurisprudência ou outras notícias de teor jurídico cuja actualidade e relevância mereceram
a nossa atenção.
Agradecemos todos os contributos dos autores cujos trabalhos são alvo da presente
publicação, estendendo um novo convite a todos aqueles que queiram contribuir com os
seus trabalhos, originais, inéditos e relevantes, nos próximos números da revista Galileu.
Muita saúde e uma boa leitura!
O Diretor da Galileu
Ruben Bahamonde Delgado
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A dinâmica de construção constitucional
do Brasil império: entre liberalismo
edescentralização
Brazils constitutional building dynamics between liberalism
and decentralization
LUCIENE DAL RI
1
luciene.dalri@univali.br
JAILSON PEREIRA
2
jailson@jailsonpereira.com.br
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
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January Janeiro–30
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June Junho 2020 · pp. 7‑29
DOI: https://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.1.1
Submitted on March 27
th
, 2020 · Accepted on June 4
th
, 2020
Submetido em 27 de Março, 2020 · Aceite a 4 de junho, 2020
RESUMO O objetivo deste artigo é analisar o movimento constitucionalista brasileiro a
partir da sua permeabilidade com o liberalismo e outros movimentos constitucionalistas,
principalmente durante a primeira metade do século XIX. Utilizando-se do método de
pesquisa indutivo observou-se o reflexo da contraposição de valores e de interesses entre
os conservadores e os liberais, na construção constitucional brasileira. A proclamação
de independência do Brasil fomenta a contraposição política que vem à contextualizar a
resistência à Constituição promulgada em 1824, evidenciando-se assim a busca por um lado
para manter o poder tão somente nas mãos do Imperador e por outro para limitar o poder do
Estado e promover a descentralização do governo central para as províncias e os municípios.
PALAVRASCHAVE Liberalismo. Constitucionalismo. Monarquia. Descentralização.
1 Doutora em Direito pela Università degli Studi di Roma – La Sapienza; Mestre em Estudos Medievais pela Ponti-
ficia Università Antonianum. Professora no Programa de Mestrado e Doutorado em Ciência Jurídica da Univer-
sidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) e na graduação em Direito do Centro Universitário Católica de Santa Catarina.
Opresente artigo se insere nas atividades de pesquisa do Programa de Mestrado e Doutorado em Ciência Jurí-
dica, UNIVALI, em específico na linha de pesquisa em Constitucionalismo e Produção do Direito e no grupo de
pesquisa emEstado, Constitucionalismo e Produção de Direito; e nas atividades do grupo de pesquisa Direito na
aceleração da dinâmica social e as novas tecnologias, da Escola de Direito da Católica/SC em Joinville.
2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica pela UNIVALI (CAPES 6) e pela De-
laware Law School (doutorado sanduíche), na linha de pesquisa Constitucionalismo e Produção do Direito. Mestre
em Ciência Jurídica pela UNIVALI (CAPES 6), Advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de
Santa Catarina e Seção de São Paulo, Membro do Instituto dos Advogados de Santa Catarina. Professor e Coorde-
nador do Curso de Direito na Faculdade Capivari – FUCAP – Univinte.
8
A dinâmica de construção constitucional do Brasil império: entre liberalismo edescentralização
LUCIENE DAL RI | JAILSON PEREIRA
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ABSTRACT The purpose of this article is to analyze the Brazilian constitutionalist movement
from its permeability with liberalism and other constitutionalist movements during the
first half of the nineteenth Century. Using the inductive research method, a reflection of
the opposition of values and interests between conservatives and liberals was observed in
the Brazilian constitutional construction. Brazil’s proclamation of independence promotes
political opposition that contextualizes the resistance to the Constitution promulgated in
1824, thus evidencing the search on the one hand to maintain power only in the hands of
the Emperor and on the other hand, to limit state power and promote decentralization from
central government to provinces and municipalities.
KEYWORDS Liberalism, Constitucionalism, Monarchy, Decentralization.
I. Introdução
A concepção moderna de constituição é inseparável dos movimentos constitucionalistas
e liberais, que visam limitar o poder do Estado e garantir direitos aos indivíduos. Nesse
sentido, constata-se que não existe um constitucionalismo, mas diversos movimentos
ou doutrinas constitucionalistas que se permeiam. No Brasil, o movimento constitu-
cionalista, na primeira metade do século XIX, denota tanto matizes nacionais quanto
a permeabilidade com movimentos constitucionalistas de outros países, antes e depois
da proclamação da independência. Os movimentos constitucionalistas e os princípios
liberais que o influenciaram eram contrapostos ao absolutismo e à consequente nega-
ção ou incerteza de direitos, que não permitia regras claras e segurança nas relações
econômicas.
A oposição da monarquia lusitana aos movimentos constitucionalistas atrasou a ela-
boração de uma constituição e gerou verdadeiras revoluções em Portugal e no Brasil, oca-
sionando que o primeiro texto sistematizado de natureza constitucional lusófono fosse a
“Súplica” à Napoleão (1808)
3
.
3 CANOTILHO, José Joaquim Gomes – Direito constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993,
p.149. Na proposta apresentada pelos portugueses a Napoleão não havia a pretensão de convocar uma assembleia
constituinte, mas simplesmente o pedido de concessão de uma carta normativa. A “Súplica” era uma proposta que
buscava a introdução em Portugal de formas representativas e princípios de igualdade civil e fiscal, liberdades e
educação. BONAVIDES, Paulo Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo: Malheiros, 2001, p.192.
HESPANHA, Manuel – «Sob o signo de Napoleão. A Súplica constitucional de 1808». In: Almanack braziliense. São
Paulo. ISSN 1808-8139. V.8, 2008, p.80-101.
9
A dinâmica de construção constitucional do Brasil império: entre liberalismo edescentralização
LUCIENE DAL RI | JAILSON PEREIRA
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Por sua vez, o primeiro ato voltado à confecção de uma constituição em terras brasi-
leiras ocorreu por meio da Revolução Pernambucana, movimento de cunho liberal, sepa-
ratista e republicano que não só estabeleceu o Governo Provisório da República de Per-
nambuco, como decretou em março de 1817 uma Lei orgânica
4
. A Lei orgânica da República
de Pernambuco constava de 28 artigos e pode ser considerada como um ato constituinte
provisório, visto que se almejava a elaboração de uma Constituição, por uma Assembleia
Constituinte
5
.
O ato constituinte provisório pernambucano teve a participação de Antônio Carlos
Ribeiro de Andrada Machado e Silva
6
, posteriormente deputado na assembleia constituinte
brasílica. O texto evidencia concepções de clara inspiração na Revolução Francesa, como a
concepção de soberania popular, a liberdade de imprensa e religiosa (mantendo, porém, a
religião de Estado), e a referência aos direitos do homem
7
.
Os ideais de liberdade e a sacralidade da propriedade encontram, porém, sérias dificul-
dades em lidar com interesses escravocratas e aristocráticos. Os proprietários rurais per-
nambucanos tinham como principal atividade o cultivo da cana de açúcar, com mão de obra
escrava, e viam na possível abolição da escravatura a inviabilidade da plantação canavieira.
O choque de interesses levou os revolucionários republicanos a dialogar com os pro-
prietários rurais, visando acalmá-los diante da proclamação do governo provisório que
atestava a igualdade dos homens, independentemente de cor, muito embora aceitasse e
“defendesse” a sacralidade e a inviolabilidade da propriedade. Impelida pelos interesses
opostos, o governo, então, defendeu um processo de abolição “lento, regular e legal”
8
.
O caráter liberal da Revolução Pernambucana, apesar de esbarrar nos interesses das
elites dos proprietários agrícolas, ainda refletia a influência francesa e estadunidense e se
refletiu em outros movimentos, como a independência do Brasil e a abdicação de Dom
Pedro I, em 1931.
9
4 Dentre os fatores que causaram a revolta pernambucana estão os gastos da Corte no Rio de Janeiro; a rivalidade
entre Brasileiros e Portugueses; a influência da Independência dos EUA; a influência da Revolução Francesa e a
independência de algumas colônias espanholas. BONAVIDES, Paulo – «As nascentes do constitucionalismo luso-
brasileiro, uma análise comparativa». [Consultado em 03 de Novembro de 2019] Disponível em: https://archivos.
juridicas.unam.mx/www/bjv/libros/4/1510/9.pdf.
5 BONAVIDES, Paulo – Teoria constitucional da democracia …, p.193.
6 Antonio Carlos Ribeiro de Andrada e Silva nasceu em Santos, em 1773, estudou em Coimbra e participou da
revolução pernambucana de 1817. Com o insucesso da revolta foi condenado a 4 anos de prisão.
7 BONAVIDES, Paulo – Teoria constitucional da democracia …, p.193.
8 Proclamação do Governo Provisório aos patriotas pernambucanos – In BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto
(orgs.) – Textos Políticos da História do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho editorial, 2002, p.481.
9 FAORO, Raymundo – Os Donos do Poder. Formação do patronato político brasileiro. 5.ª ed. Rio de Janeiro: Editora
Globo, 2018, p.301: “A aliança entre propriedade agrária e liberalismo, visível nos demagogos letrados, entrelaçada
pelos padres cultos, pelos leitores dos enciclopedistas e pelos admiradores da emancipação norte-americana,
ensaia seus primeiros e vigorosos passos, que darão os elementos de luta nos dias agitados de 1822 e expulsarão
10
A dinâmica de construção constitucional do Brasil império: entre liberalismo edescentralização
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II. Da vigência da Constituição de Cádiz à Constituição Vintista
Antes mesmo da independência do Brasil, D. João VI, em 21 de abril de 1821, por meio de
decreto, ordenava a vigência interina da Constituição espanhola de 1812, desde a data do
decreto “até a instalação da Constituição em que trabalharão as cortes atuais de Lisboa
10
.
Muito embora tenha vigorado apenas um dia, o decreto sobre a Constituição de Cádiz evi-
denciou a influência do constitucionalismo espanhol sobre aquele português e brasileiro,
trazendo à público as linhas mestras da elaboração da constituição “vintista” e posterior-
mente da constituição brasileira de 1824
11
.
A primeira Constituição portuguesa foi fruto das Cortes gerais, extraordinárias e cons-
tituintes, eleitas pela Nação e compostas por 130 deputados de Portugal e 75 provenientes do Brasil.
O trabalho das Cortes Gerais foi sentido no Brasil também pela intrincada participação dos
deputados brasileiros que tentaram manter a autonomia nacional e a união constitucional dos
dois reinos, mas defrontaram-se com uma política de governo portuguesa centralizadora e que bus-
cava reduzir o status político do Brasil.
Se no jogo de forças políticas os liberais estavam comprometidos com a soberania popu-
lar, os conservadores por sua vez fixavam suas forças na mantença das tradições da monar-
quia e, nesse cenário discutia-se também fortemente a organização do poder do Estado e
a centralização ou descentralização político administrativa do império português e poste-
riormente do Brasil.
Tal fato fomenta ainda mais a luta pela autonomia política brasileira em relação à Portu-
gal, ao ponto de antes mesmo da independência ter-se a convocação da ”Assembleia Geral
Brasílica e Constituinte e Legislativa, por meio do decreto de 03 de junho de 1822. Eviden-
cia-se ainda que apenas três meses após a convocação da assembleia constituinte e sem
o imperador em 1831”. Alerta Faoro, porém, que a aliança não teve a capacidade de promover a organização do
estado na forma como pretendia, mas que o movimento é uma “...amostra de uma tendência possível, como
possível foi o processo de independência e de fragmentação do mundo americano espanhol. ” E continua: “A
Revolução de 1817 deixou no solo germes de revivescimento, que se prolongarão em 1824, na Confederação do
Equador. Definiu num ideário, que se prolonga no curso de todo o Império, com o liberalismo forrado de energia
republicana. FAORO, Raymundo – Os Donos do Poder…. 5.ªed., p.303.
10 BRASIL. Decreto de Dom João VI, de 21 de abril de 1821. In BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto (orgs.) – Textos
Políticos da História …, p.493. Sobre a Constituição de Cádiz e seu influxo na América Latina, ver: RESTREPO,
Ricardo Sanín «A Constituição de Cadiz ou a antimatéria da Democracia Latino-Americana». In: Revista NEJ –
Eletrônica. ISSN Eletrônico 2175-0491, Vol. 16 – n. 3 – p.305-315 / set-dez 2011.
11 A constituição espanhola previa em seu artigo 4.º“A nação está obrigada a conservar e proteger, por leis sábias
e justas a liberdade civil, a propriedade e mais direitos legítimos de todos os indivíduos que a compõem”.
Constituição de Cádiz, Constituição Política da Nação Espanhola (19 de março de 1812). “A Constituição de
Cádiz fora deveras relevante em determinar as bases liberais da primeira Carta Magna de Portugal: a chamada
‘Constituição vintista’ de 23 de setembro de 1822”. A constituição portuguesa de 23 de setembro de 1822 foi vigente
durante dois curtos períodos, entre 1822 e 1823, e de 1836 a 1838. BONAVIDES, Paulo – «A evolução constitucional
do Brasil». In: Estudos Avançados. São Paulo. ISSN 0103-4014. Vol. 14, N. .º40, 2000, p.156. BONAVIDES, Paulo –
Teoria constitucional da …, p.194.
11
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luta armada, houve a proclamação da independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822,
afastando o Brasil da promulgação da Constituição portuguesa, que ocorreu em outubro
de 1822.
O texto constitucional “vintista, desde o preâmbulo, denota a influência do movimento
liberal, presente na conspiração de Gomes Freire, em 1817, e na Revolução do Porto, de 1820,
assegurando ‘direitos do cidadão’ e ‘leis fundamentais da monarquia’, e na Constituição
de Cádiz, de 1812 que propunha conservar e proteger a liberdade civil, a propriedade e os
demais direitos legítimos dos cidadãos espanhóis
12
.
O movimento liberal português para a afirmação de uma constituição e de direitos indi-
viduais não se reflete, portanto, numa política de descentralização de governo e devido a
tal fato afasta-se daquele brasileiro, que teve forte influência no âmbito jurídico e político
da independência
13
.
III. A Independência e o Movimento Constitucionalista
Se como evidencia Vieira
14
, a orientação dada às constituições brasileiras tem sido, em
linhas gerais, orientada por princípios liberais como a separação de poderes, os direitos
individuais e a representação política, mas também seguiu a linha traçada pelos demais
países latino-americanos, durante a sua formação, onde a ordem liberal possibilitou a sua
integração em nível internacional; para Bonavides
15
, as formas como o Brasil e os demais
países latino-americanos adequaram-se ao constitucionalismo são sensivelmente diferen-
tes. O Brasil não rompeu com o passado europeu, com o antigo regime, mas o transformou
dentro do que era necessário para a sua sobrevivência.
Nesse contexto, denota-se que o processo de independência e de constitucionalização
brasileiro é autônomo e original, se comparado aos países hispano-americanos que “foram
teatro de um confronto armado com a metrópole colonial, verdadeira revolução da inde-
12 A declaração de “direitos e deveres individuais”, da Constituição, assegura nos seus artigos 1.ºao 19.ºa liberdade,
igualdade, segurança e propriedade de todos os cidadãos. Nesta, extinguia-se a tortura, previa-se o direito de
petição e a inviolabilidade de domicílio e de correspondência, bem como se quebrava a concepção de cargo ou
função pública como patrimônio pessoal de seu ocupante.
13 LOPES, José Reinaldo de Lima – O Direito na História: lições introdutórias. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p.255.
14 Vieira evidencia o debate sobre a articulação do modelo liberal nas constituições brasileiras. Segundo o autor
podemos reduzir o debate a três linhas teóricas: 1 – afirma que os princípios liberais tornaram-se algo abstrato
e formal nas constituições brasileiras devido à incapacidade das elites e a inexistência de uma ordem burguesa;
2 – afirma que a ordem liberal foi “importada, sendo “ideias fora do lugar”; 3 – afirma que a ordem liberal surge
na sociedade brasileira como fruto das articulações sociais das relações de produção. VIEIRA, José Ribas – O
autoritarismo e a ordem constitucional no Brasil. São Paulo: Renovar, 1988, p.47 e 53.
15 “O influxo europeu, inglês e continental sobre o constitucionalismo brasileiro é traço marcante dos primeiros
momentos de definição do nosso estatuto institucional”. Cf. BONAVIDES, Paulo – «A evolução constitucional do
Brasil». In: Estudos Avançados. São Paulo. ISSN 0103-4014. Vol. 14, N. .º40, 2000, p.156.
12
A dinâmica de construção constitucional do Brasil império: entre liberalismo edescentralização
LUCIENE DAL RI | JAILSON PEREIRA
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pendência” e que implicou desde o princípio em uma ruptura sem alternativa, com o reino
de Espanha
16
.
No mesmo sentido, para Faoro, “O regime colonial não se extingue, moderniza-se; os
remanescentes bragantinos se atualizam, com a permanência do divórcio entre o Estado,
monumental, aparatoso, pesado e a nação, informe, indefinida, inquieta
17
.
Mesmo com essas possíveis vertentes quanto ao constitucionalismo brasileiro, o libe-
ralismo revela-se nesse primeiro momento amplamente vinculado à temas da autonomia
nacional, de patriotismo e de ruptura do domínio português, sendo contrário ao sistema
colonial mais do que à monarquia. Buscava-se maior autonomia para o comércio, a justiça,
e a administração pública
18
. O ideal republicano, que insurgia nas revoluções, não era com-
partilhado por todos os opositores da política e da administração reacionária portuguesa
19
.
O controle e a limitação do poder são elementos mais importantes para o liberalismo do
que a definição de quem detém o poder
20
. Nesse sentido, o constitucionalismo tornou-se o
instrumento de consubstanciação do liberalismo, defendia a descentralização do Estado, o
sistema bicameral (enfraquecendo o legislativo), o sufrágio eleitoral com um baixo censo, a
independência judicial e o sistema de júri, e a proteção de opinião pública, por meio de leis
de imprensa
21
. A limitação do poder e a luta pela autonomia nacional são elementos comun-
gados por todos os liberais naquele momento histórico.
A Assembleia instaurada apenas em 1823 deveria ter sido composta por 100 membros
eleitos indiretamente, mas acabou sendo composta apenas por 89 representantes das pro-
víncias. O primeiro projeto de constituição brasileira teve forte influência do constitucio-
nalismo europeu, tanto continental quanto inglês e foi muito marcada pela convicção libe-
ral dos Andradas
22
.
16 FRANCO, Afonso Arinos de Melo – Introdução. In O Constitucionalismo de D. Pedro I no Brasil e em Portugal.
Brasília: Ministério da Justiça, 1994, p. 22. BONAVIDES, Paulo – «As nascentes do constitucionalismo luso-
brasileiro…», p.200. [Consultado em 03 de Outubro de 2019] Disponível em: https://archivos.juridicas.unam.mx/
www/bjv/libros/4/1510/9.pdf.
17 FAORO, Raymundo – Os Donos do Poder. Formação do patronato político brasileiro. 5.ªed. Rio de Janeiro:
Editora Globo, 2018, p.331.
18 BONAVIDES, Paulo – História constitucional do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p.6.
19 Sobre liberalismo e democracia no século XIX, ver BOBBIO, Norberto – Liberalismo e Democracia. São Paulo:
Brasiliense, 2000, p.53.
20 BOBBIO, Norberto – Liberalismo e Democracia, p.55; CANOTILHO, José Joaquim Gomes – Direito constitucional….
6. ed., p.54.
21 HESPANHA, António Manuel – «Pequenas repúblicas, grandes Estados. Problemas de organização política
entre antigo regime e liberalismo». In: Brasil. Formação do Estado e da Nação. São Paulo-Ijuí: Ed. Unijuí, 2003, p.103.
22 PIRES, Alex Sander Xavier; TRINDADE, Carla Dolezel; AZNAR Filho, Simão – Constitucionalismo Luso-Brasileiro
– leitura normativa no âmbito do domínio da lei e da humanização das relações. Rio de Janeiro, 2017, p. 17: “Se a
Constituição Portuguesa de 1822 não produziu seus regulares efeitos no Brasil, ao menos serviu de inspiração
para a Assembleia Constituinte Brasileira reunida para elaborar um texto constitucional específico para o novo
Estado independente”.
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Em sua atuação, optando por uma tendência liberal e democratizante, a assembleia pri-
vou o monarca da faculdade de vetar os decretos da casa, afirmando a soberania do colé-
gio em detrimento das competências imperiais
23
. A pluralidade de funções fez com que a
Assembleia Geral, em sua primeira sessão ordinária cria-se a Comissão de Constituição,
para a confecção do projeto constitucional, sendo composta por Antônio Carlos Ribeiro
de Andrada, Antônio Luís Pereira da Cunha, Pedro de Araujo Lima, José Ricardo da Costa
Aguiar, Manoel Ferreira da Câmara Bithencourt e Sá, Francisco Muniz Tavares e José Boni-
fácio de Andrada e Silva
24
.
No projeto apresentado pela Assembleia, o imperador seria uma autoridade sagrada e
inviolável, que não poderia ser responsabilizada por seus atos. O imperador então exerceria
o poder executivo, mas seus atos seriam obrigatórios apenas com o referendo dos ministros
de governo, que lhe assumiriam a responsabilidade
25
. A autoridade inviolável e não respon-
sável do imperador era então distinta da autoridade dos ministros de governo, afastando-o
do exercício direto da atividade governamental. Diminuiu-se consideravelmente também
seu poder em relação à atividade parlamentar e aos parlamentares, como bem se observa
com a dispensa da ratificação imperial para a validade de normas jurídicas provenientes da
Assembleia Geral e a impossibilidade de dissolver a Câmara dos Deputados
26
.
Diante do esboço apresentado e devido a sua limitação de poderes, o imperador dissol-
veu a Assembleia Geral e criou o Conselho que passou a desenvolver o texto da Constituição
23 A Assembleia promulgou seis leis, sem a sanção do imperador, ampliando a divergência entre a Coroa e a
Assembleia, que resultou na sua dissolução. “Juridicamente a razão estava com a Coroa. A Constituinte não era
depositária única da soberania, visto que sua existência dependera da convocação da Coroa preexistente, que ela
reconhecera pelo simples fato de haver atendido à convocação. Sobretudo, depois de ocorrida a independência e
aclamado o Imperador, a Coroa, não como pessoa, mas como órgão, era parte da soberania do Estado”. FRANCO,
Afonso Arinos de Melo – «Introdução». In: O constitucionalismo de D. Pedro I no Brasil e em Portugal. Brasília:
Ministério da Justiça, 1994, p.24.
24 BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Coordenação de Arquivo. Inventário analítico do arquivo
da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil, 1823 [recurso eletrônico] / Câmara dos
Deputados. – 2. ed., rev. e reform. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2015. – (Série coleções
especiais. Acervo arquivístico; n. 2), p.39, 49 s., p. 67. Disponível em https://arquivohistorico.camara.leg.br/atom/
AC1823/sobre/Inventario_AnaliticoAcervoConstituinte1823.pdf. Acesso em 14/01/2019.
25 Ver Versão do Projeto de Constituição para o Império do Brazil, publicado em BRASIL. Congresso Nacional.
Câmara dos Deputados. Coordenação de Arquivo. Inventário analítico do arquivo da Assembleia Geral
Constituinte e Legislativa do Império do Brasil, 1823 [recurso eletrônico] / Câmara dos Deputados. – 2. ed., rev. e
reform. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2015. – (Série coleções especiais. Acervo arquivístico;
n. 2), artigos 138, 139, 174 e 175 [Consultado em: 14 de Outubro de 2019] Disponível em https://arquivohistorico.
camara.leg.br/atom/AC1823/sobre/Inventario_AnaliticoAcervoConstituinte1823.pdf.
26 Ver Versão do Projecto de Constituição para o Império do Brazil, publicado em BRASIL. Congresso Nacional.
Câmara dos Deputados. Coordenação de Arquivo. Inventário analítico do arquivo da Assembleia Geral
Constituinte e Legislativa do Império do Brasil, 1823 [recurso eletrônico] / Câmara dos Deputados. – 2.ªed., rev. e
reform. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2015. – (Série coleções especiais. Acervo arquivístico;
n. 2), artigos 110-121. [Consultado em 14 de Outubro de 2019] Disponível em https://arquivohistorico.camara.leg.br/
atom/AC1823/sobre/Inventario_AnaliticoAcervoConstituinte1823.pdf.
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outorgada
27
. O esboço de 1823 foi, porém, amplamente considerado pelo Conselho de Estado
que lhe fez aperfeiçoamentos técnicos de sistematização e linguagem, ampliou a atribuição
de poderes e manteve a irresponsabilidade dos atos do imperador, por meio da introdução
do Poder Moderador
28 .
O Poder Moderador não fazia parte do constitucionalismo português e a sua presença
na Constituição brasileira de 1824 ocorreu por meio dos trabalhos de revisão do projeto
constitucional pelo Conselho de Estado, remontando à teoria do poder neutro, de Benjamin
Constant e com claro apelo ao constitucionalismo inglês
29
.
Na teoria de Constant, o poder
neutro também seria um dos mecanismos para evitar o despotismo do povo, garantindo
junto com os direitos civis, a limitação da soberania popular.
O Poder Moderador é apresentado no texto constitucional como “chave de toda a orga-
nização Política, tendo competências que permitiram sob Dom Pedro I e a primeira parte
do reinado de Dom Pedro II a ingerência imperial sobre os poderes legislativo, executivo e
judiciário
30
. A vantagem do poder neutro estava exatamente na sobreposição do monarca e
27 - Sobre a instalação e dissolução da Assembleia Constituinte de 1823, bem como a outorga da Constituição de
1824, ver: Silva (1998, p.76), CERQUEIRA, Marcello – Cartas Constitucionais: Império, República e Autoritarismo. Rio
de Janeiro: Renovar, 1997, p.33 e Lopes (2008, p.258).
28 A redação final da Constituição de 1824 teria sido atribuída à Maciel da Costa e Carneiro de Campos. Sobre a
formação do Conselho de Estado, ver TORRES, João Camilo de Oliveira – A democracia coroada [recurso eletrônico]:
teoria política do Império do Brasil. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2017, p. 526 ss. Sobre
proximidades e diferenças entre o Projeto apresentado por Antonio Carlos e a Constituição de 1824, ver MELLO,
F.I. Marcondes Homem de – Escriptos históricos e literários. 2.ªed. Rio de Janeiro, 1866, p.57 ss. BONAVIDES, Paulo
– «As nascentes do constitucionalismo luso-brasileiro, uma análise comparativa», p.227. [Consultado em: 30 de
Agosto de 2019] Disponível em https://archivos.juridicas.unam.mx/www/bjv/libros/4/1510/9.pdf: “O novo projeto foi
enviado para às câmaras municipais para aprovação”.
29 Considerando que a influência não implica necessariamente em fidelidade à teoria de Constant, observa-se
dissonância na doutrina sobre o tema, por um lado alegando que a teoria foi desfigurada devido à pretensão
absolutista ou por outro afirmando que houve apenas as necessárias adaptações ao contexto brasileiro,
mantendo uma monarquia limitada. O primeiro posicionamento é defendido por: CARNEIRO DA CUNHA,
Pedro Octavio– «A Fundação de um Império Liberal». In: S. B. de Holanda (org.). História Geral da Civilização
Brasileira. 6.ªed. São Paulo: Difel, Tomo II, vol. 1, 1985, p.256); BONAVIDES, Paulo – «O poder moderador na
Constituição do Império». In: Revista de informação legislativa. Janeiro à março de 1974, p.28. FAUSTO, Bóris –
História do Brasil. 7.ªed. São Paulo, Editora da USP, 1999, p.152. FAORO, Raymundo – Os Donos do Poder…. 5.ªed.,
p.333. Nas palavras de Bonavides, porém, o poder moderador possuía “primazia sobre os demais poderes, o
que sem dúvida se arredava da teorização de Benjamin Constant, contrariando-a desde as bases”. O segundo
posicionamento é defendido por: PIMENTA BUENO, José Antônio – Marquês de São Vicente. São Paulo: Editora
34, 2002, p.96. LYNCH, Christian Edward Cyril – «O Discurso Político Monarquiano e a Recepção do Conceito
de Poder Moderador no Brasil (1822-1824)». In: DADOS – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, Vol. 48, n o 3,
2005, p.642.
30 Os dispositivos de divisão de poderes acabam encontrando eficácia apenas a partir de 1826, quando é instalado
o Parlamento e dois anos mais tarde quando se cria o Supremo Tribunal de Justiça, no Brasil. NOGUEIRA,
Octaviano – 1824. 3.ª ed. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2018, p. 18. BRASIL.
Constituição Política do Império do Brazil, 1824, ver artigos 98 e 101: “nomear os Senadores; convocar a
Assembléa Geral extraordinariamente nos intervalos das Sessões; sancionar os Decretos e Resoluções da
Assembléa Geral, para que tenham força de Lei; aprovar, e suspender as Resoluções dos Conselhos Provinciais;
prorrogar, ou adiar a Assembléa Geral, e dissolver a Camara dos Deputados, nos casos, em que o exigir a salvação
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se perderia se houvesse o rebaixamento do poder real ao nível do poder executivo, pois duas
questões indissolúveis surgiriam: a destituição do poder executivo e a responsabilidade do
monarca
31
.
A oposição ao texto constitucional e ao Poder Moderador são evidenciadas nos deba-
tes políticos de época. A defesa do Poder Moderador e da separação em quatro poderes,
por meio da forte referência ao modelo inglês, era presente entre os conservadores
32
. As
atribuições do Poder Moderador seriam então necessárias, pois não poderiam ser exerci-
das pela nação em massa, cabendo a sua delegação apenas ao imperador
33
.
Nesse sentido, a
inviolabilidade do imperador não é derivada da responsabilidade dos ministros pelos atos
de governo, mas é consequência do princípio da representação nacional, assim como da
perpetuidade do chefe de Estado nas monarquias
34
.
Paulino José Soares de Sousa, Visconde do Uruguai, com frequência comparava o sis-
tema brasileiro àquele inglês, francês e americano, com clara preferência ao modelo britâ-
nico. Nesse contexto e tendo a referência à Constant, o Visconde defendia o Poder Modera-
dor como instrumento mediador dos conflitos políticos e independente do referendo dos
ministros do Poder Executivo
35
.
Por sua vez, na pauta comum aos liberais, encontra-se a defesa da limitação dos poderes
imperiais, por meio da afirmação “o rei reina e não governa, difundindo-se a crítica de atri-
buição do poder executivo ao imperador, mesmo que condicionado à atuação dos ministros
de Estado.
Indo além do Poder Moderador, observa-se que a Constituição Política do Império do
Brazil, de 1824, correspondia às expectativas da época, apresentando além da soberania
nacional e da irresponsabilidade imperial, a separação de poderes, o bicameralismo legisla-
tivo, as eleições para ambas as casas, com censo baixo, bem como um considerável capítulo
sobre direitos civis, reconhecendo direitos políticos também aos analfabetos.
O texto reflete
também a inspiração nos princípios do constitucionalismo inglês ao afirmar que é consti-
do Estado e convocar outra, que a substitua; nomear, e demitir livremente os Ministros de Estado; suspender os
Magistrados quando houver queixas contra eles; perdoar, e moderar as penas impostas; conceder Amnistia em
caso urgente, e que assim aconselhem a humanidade, e bem do Estado”.
31 CONSTANT, Benjamin – Principes de politique applicables a tous les gouvernemens représentatifs et particulièrment a la
constitution actuelle de la France. Paris: Ches Alexis Eymery, De l’imprimerie de Hocquet, 1815, p.40: “Le roi, dans
un pays libre, est un être à part, supérieur aux diversitès des opinions, nayant d’autre intérêt que le maintien
de l’ordre, et le maintien de la liberté, ne pouvant jamais rentrer dans la condition commune, inaccessible em
conséquence à toutes les passions que cette condition naître, et à toutes celles que la perspective de s’y retrouver
nourrit nécessairement dans le coeur des agens investis d’une puissance momentanée.
32 PIMENTA BUENO, José Antônio – Marquês de São …, p.107.
33 PIMENTA BUENO, José Antônio – Marquês de São …, p.284.
34 BRAZ, Florentino Henrique de Souza – Do poder moderador. Recife: Typographia Universal, 1864, p.66 e 70 s.
35 URUGUAI, Visconde do – Visconde do Uruguai. Org. e introd. de José Murilo de Carvalho. São Paulo: Editora 34,
2002, p.323, 339 357 ss. e 401 ss.
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tucional apenas o que concerne aos poderes do Estado e aos direitos e garantias individuais,
contribuindo para a longevidade do texto constitucional brasileiro
36
.
A gradual inserção de direitos nos constitucionalismos francês, estadunidense, espa-
nhol e português fundamenta histórica e juridicamente a presença de direitos e garantias
na Constituição brasileira
37
. A influência liberal por meio da declaração de direitos civis,
muito embora seja reverenciada, está presente apenas no último artigo do texto constitu-
cional, contrastando com a constituição portuguesa “vintista” (1822) que a prevê desde seu
primeiro artigo da Constituição. Mesmo a participação da população na “comunhão polí-
tica, por meio do voto censitário e indireto, é descrita apenas a partir do artigo 91.
Não ocorre, porém, na Constituição de 1824, menção alguma à liberdade dos negros,
pois os artigos do projeto de 1823 que tratavam sobre a sua emancipação foram retirados
do texto constitucional outorgado. As linhas gerais dos direitos presentes na Constituição
imperial eram voltadas a afirmar um forte individualismo econômico, bem observado por
meio da legitimação do “cidadão-proprietário” e a exclusão dos direitos políticos da maioria
da população do país, porquanto seriam reconhecidos apenas aos cidadãos que, por atingi-
rem certa renda, seriam ‘independentes’
38
.
O texto constitucional segue, então, uma filosofia política de aguçamento da concepção
de liberdade civil com base econômica, presente nas obras de James Harrington, de Imma-
nuel Kant e de Benjamin Constant que justificam a condição censitária dos direitos polí-
ticos com a necessidade de confiar o direito de voto somente aos cidadãos que usufruam
de certa “independência civil”, porque titulares de bens que substancialmente os tornem
senhores de si mesmos
39
.
36 NOGUEIRA, Octaviano – 1824. 3.ªed., p.10.
37 Os direitos civis dos cidadãos brasileiros têm por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade.
Direitos típicos do liberalismo e das Declarações de direitos do século XVIII. Ver: BRAZIL, Constituição Política
do Império do Brasil, 1824, “Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que
tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela
maneira seguinte”. The Virginia declaration of rights (1776) e a Declaration des Droits de l’homme et du Citoyen (1789).
38 WOLKMER, Antonio Carlos – História do Direito no Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: ed. Forense, 2009, p.108. Sobre
a construção da cidadania e de direitos no Brasil, ver DAL RI, Luciene – «A construção da cidadania no Brasil:
entre Império e Primeira República». In: Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL]. Joaçaba. E- ISSN 2179-7943,vol.
11(1), p.7-36, 2011.
39 A ideia concernente à importância de uma mínima condição econômica dos cidadãos é presente na obra de
Aristóteles (Politica. 4. ed. Roma-Bari: Laterza, 1997, p.135). Para o filósofo grego a melhor forma de chegar à
constituição ideal, harmônica e, portanto, estável, ocorre através da construção de uma ampla classe de cidadãos
com uma situação econômica mediana, que lhe permita uma vida independente, formando um forte elemento
de moderação do conflito social. O aguçamento da concepção de liberdade civil com base econômica é bem
presente nas obras de James Harrington (The Commonwealth of Oceana, disponível em: http://www.constitution.
org/jh/oceana.htm), Immanuel Kant (Über den Gemeinspruch ‘Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht fûr
die Praxis’. Frankfurt-am-Main: Klostermann, 1992, p.62) e Benjamin Constant (Escritos de política. São Paulo:
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A distinção entre a cidadania passiva, que abarca a todos os nacionais da nação, e a
cidadania ativa (política), privilégio de alguns, fundamenta o enfoque “juridicista” em que
a cidadania reduz-se ao vínculo jurídico com o Estado-nação, em cuja “comunhão política
não todos necessariamente participam
40
.
Nesse sentido, a cidadania passiva constitui o laço jurídico por meio do qual todos os
cidadãos recebem as garantias jurídicas do Estado e tem como direito mais fortemente pre-
sente a liberdade
41
.
O Brasil muito embora tenha incorporado elementos das revoluções liberais por meio
da presença de direitos em sua primeira constituição, manteve aspectos da monarquia por-
tuguesa, como a clara tendência ao absolutismo monárquico
42
. Muito embora, o fraciona-
mento da América espanhola e as ‘juntas provisórias de governo independente’, decretadas
por D. João VI, em 1821, tivessem dado força para o fracionamento político e administrativo
do território brasileiro, essa aspiração foi embargada pela reação conservadora, que man-
teve a centralização do poder e a forma unitária do Estado.
Martins Fontes, 2005, p.282), que apresentam a condição censitária dos direitos políticos como a necessidade
de confiar o direito de voto somente aos cidadãos que usufruam de certa independência civil, porque titulares
de certa propriedade, que substancialmente os torne senhores de si mesmos. Com mais detalhes sobre o tema:
FERREIRA, Manuel Rodrigues – A evolução do Sistema Eleitoral Brasileiro. Brasília: Senado Federal, 2001,
p.130; FIORAVANTI, Maurizio – Costituzione. Bologna: Il Mulino, 1999, p.20, p.89; DAL RI Jr., Arno – «Evolução
histórica e fundamentos políticos-jurídicos da cidadania». In: DAL RI JR., Arno; OLIVEIRA, Maria Odete de (org.)
– Cidadania e Nacionalidade: efeitos e perspectivas: nacionais – regionais – globais. Ijuí: Unijuí, 2002, p.66;
HESPANHA, António Manuel – «Pequenas repúblicas, grandes Estados. Problemas de organização política
entre antigo regime e liberalismo». In: Brasil. Formação do Estado e da Nação. São Paulo-Ijuí:Ed. Unijuí, 2003, p.104.
40 CORRÊA, Darcísio – A construção da cidadania. Reflexões histórico-políticas. Ijuí: Unijuí, 2006, p. 218. A
distinção entre cidadania ativa e passiva foi apresentada por Sieyes em (1789, p.36):“Tous les habitants d’ un
pays doivent y jouir des droits de citoyen passif: tous ont droit à la protection de leur personne, de leur propriété,
de leur liberté, etc; mais tous n’ont pas droit à prendre une part active dans la formation des pouvoirs publics:
tous ne son pas citoyens actifs. Les femmes, du moins dans létat actuel, les enfants, les étrangers, ceux encore
qui ne contribueroient en rien à soutenir l’établissement public, ne doivent point influer activement sur la chose
publique. Tous peuvent jouir des avantages de la société; mais ceux-là seuls qui contribuent à l’établissement
public, sont comme les vrais actionnaires de la grande entreprise sociale. Eux seuls sont les véritables citoyens
actifs, les véritables membres de l’association”.
41 Sobre direito políticos no Brasil imperial, ver DAL RI, Luciene – «Os direitos políticos no Brasil Imperial: entre
constitucionalismo e liberalismo». In: Direitos Fundamentais & Justiça. Porto Alegre. ISSN 0100-9079, vol. 18,
2012, p.129-148,
42 “Foi uma constituição liberal, no reconhecimento de direitos, não obstante autoritária, se examinarmos a
soma de poderes que se concentram nas mãos do Imperador. É verdade que instituiu a supremacia do homem-
proprietário. Só este era full-member (isto é membro completo) do corpo social. Mas nisto fez coro a Locke e
à ideologia liberal. Esta marcou sua profunda influência no processo da independência e formação política
do Brasil, como bem sustentou Vicente Barreto”. “As instituições brasileiras dariam continuidade ao direito
português” também no Direito público (HERKENHOFF, João Baptista – Como funciona a cidadania. 2 ed. Manaus:
Editora Valer, 2001, p.67). Ver sobre o tema: CERQUEIRA, Marcello – Cartas Constitucionais: Império, República e
Autoritarismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.33; HORTA, José Luiz Borges – Direito Constitucional da Educação.
Belo Horizonte: Editora Decálogo, 2007, p.39; NOGUEIRA, Octaciano – «Voluntarismo jurídico e o desafio
institucional». In: Revista do Tribunal Regional Federal da 1.ªRegião. Brasília, Vol. 9, n. 3, 1997, p.26.
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A manutenção da monarquia com a Independência e após ela, objetivava maior estabi-
lidade em relação à república, visto as experiências da França revolucionária e dos demais
países latino-americanos. A pretensão de estabilidade não é, porém, concretizada a fundo
por conta das revoluções e crises institucionais que surgem durante todo o primeiro
período imperial.
IV. Da Resistência à Constituição e ao Poder Moderador
Durante o primeiro reinado, o liberalismo era quase uma ideia subversiva no primeiro rei-
nado, por buscar uma ulterior ruptura com Portugal e fomentar várias manifestações que
visavam um novo embasamento para a organização social e política do Brasil. A descentra-
lização era uma das pautas mais frequentes, com fortes críticas ao Poder Moderador, ao
Senado vitalício e ao Conselho de Estado
43
. De fato, a abdicação de Dom Pedro I é ocasio-
nada em grande parte por revoltas, pela crise econômica e pela pressão dos proprietários
agrários para liberalizar a política.
A centralização política do texto constitucional e a manutenção do poder nas mãos
no monarca fez eclodir, em 1824, o movimento da Confederação do Equador, uma revolta
armada, liderada entre outros por Frei Caneca, onde foi firmada forte oposição liberal à
constituição e ao Imperador.
44
Denotando liberalismo radical, Frei Caneca evidenciava as
distorções brasileiras diante da teoria de Benjamin Constant. A contrariedade à centraliza-
ção política imposta pelo Imperador D. Pedro I, assim como a contínua influência de Portu-
gal na vida política brasileira, mesmo já independente, insuflaram a revolta
45
.
43 Dentre os liberais, evidencia-se: Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, Manuel Alves Branco,
Holanda Cavalcanti, Teófilo Ottoni, Zacarias de Góis e Vasconcelos, Nabuco de Araújo. Martinho Campos,
Visconde de Sinimbu, José Antonio Saraiva, Souza Franco, Silveira Martins e Rui Barbosa.
44 CANECA, Frei Joaquim do Amor Divino – Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. Organização e Introdução Evaldo Cabral
de Mello. São Paulo: Editora 34, 2001, p.486 e 561. Frei Caneca foi um dos líderes da revolta ‘Confederação do
Equador’ (1824), com críticas apresentadas à Constituição Imperial: A constituição não garantia a independência
do Brasil, pois não definia com clareza o território nacional, a constituição também era contrária à liberdade
das províncias pelo excesso de centralismo e não era liberal principalmente por admitir o poder moderador
com capacidade de dissolver a Câmara. O argumento mais forte era a imposição do texto constitucional pelo
Conselho de Estado e não a promulgação pela Assembleia Constituinte e Legislativa.
45 Em manifesto na reunião popular no Recife para deliberar-se sobre o juramento do Projeto de Constituição,
Frei Caneca assim expos suas ideias: “O poder moderador de nova invenção maquiavélica é a chave mestra da
opressão da nação brasileira e o garrote mais forte da liberdade dos povos. Por ele o imperador pode dissolver a
câmara dos deputados, que é a representante do povo, ficando sempre no gozo dos seus direitos o senado, que
é a representante dos apaniguados do imperador. Essa monstruosa desigualdade das duas câmaras, além de se
opor de frente ao sistema constitucional, que se deve chegar o mais possível à igualdade civil, dá ao imperador,
que já tem de sua parte o senado, o poder de mudar a seu bel prazer os deputados, que ele entender, que se
opõem a seus interesses pessoais, e fazer escolher outros de sua facção, ficando o povo indefeso nos atentados
do imperador contra seus direitos, e realmente escravos, debaixo porém das formas da lei, que é o cúmulo da
desgraça, como tudo agora está sucedendo na França, cujo rei em Dezembro passado dissolveu a câmara dos
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Os idealistas da Confederação do Equador não eram separatistas desde o início, pois
apoiaram a Assembleia Constituinte e concordavam com a opção pela monarquia, porém,
não concordavam com a centralização do poder estabelecida. As lideranças exaltavam ainda
o sistema norte-americano em detrimento dos sistemas europeus que conheciam, os quais,
segundo eles, mantinham a centralização política e desprezavam a democracia
46
.
O movimento tornou-se separatista em razão da outorga da Constituição e tentou então
estabelecer uma união formada pelas províncias do norte do Brasil, intituladas de Confede-
ração do Equador, em projeto desenvolvido pelo então presidente deposto de Pernambuco
Manuel de Carvalho Paes de Andrade
47
. As províncias de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio
Grande do Norte consideravam ilegítima a constituição por ter sido outorgada despre-
zando o esboço constitucional de 1823 e pela criação do Poder Moderador.
A presença do Poder Moderador era considerada o principal instrumento para a
manutenção do poder centralizado nas mãos do Imperador e tolher os direitos do povo.
As tendências centralizadoras denotadas no texto constitucional ficaram ainda mais evi-
denciadas com a reação violenta e autoritária do Império à revolta pernambucana, que foi
sufocada militarmente.
O fim da Confederação do Equador não silencia a oposição liberal que desenvolve
então novos interesses e assume duas correntes políticas: a primeira contra a monarquia
e a sua tendência absolutista; e a segunda contra a centralização nacional buscando o
federalismo.
deputados, e mandando-se eleger outros, foram ordens do ministério para os departamentos a fim de que os
prefeitos fizessem eleger tais e tais pessoas para deputados, declarando-se lhes logo, que quando o governo
empregava a qualquer, era na esperança de que este marchará por onde lhe mostrassem a estrada.” CANECA,
Frei Joaquim do Amor Divino – «Manifesto». In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto (orgs.) – Textos Políticos
da História do Brasil. Brasília: Senado federal, Conselho editorial, 2002, p.779.
46 Do manifesto de Proclamação da Confederação do Equador, pelo seu Presidente Manuel de Carvalho Paes
de Andrade, em 02 de julho de 1824, extraímos: “ Brasileiros! Salta aos olhos a negra perfídia, são patentes
os reiterados perjuros do imperador, e está conhecida nossa ilusão ou engano em adotarmos um sistema de
governo defeituoso em sua origem, e mais defeituoso em suas partes componentes. As constituições, as leis e
todas as instituições humanas são feitas para os povos e não os povos para elas. Eia, pois, brasileiros, tratemos
de constituir-nos de um modo análogo às luzes do século em que vivemos; o sistema americano deve ser
idêntico; desprezemos instituições oligárquicas, só cabidas na encanecida Europa. ANDRADE, Manuel
de Carvalho Paes de – «Manifesto de Proclamação da Confederação do Equador». In: BONAVIDES, Paulo;
AMARAL, Roberto (orgs.) – Textos Políticos da História do Brasil. Brasília: Senado federal, Conselho editorial,
2002, p.786.
47 “Os rebeldes de 1824 não eram desde sempre separatistas. Apoiaram a Constituinte e aceitavam a unidade da
América sob o governo do Rio de Janeiro. Não eram sequer irredutivelmente republicanos. Concordavam coma
opção monárquica, desde que adotada a federação. Derrotados com o fechamento da Assembleia e a outorga da
Carta optaram pela separação e a república. Cf. DOLHNIKOFF, Miriam – História do Brasil Império. São Paulo:
Editora Contexto, 2019, p.42.
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A maior autonomia das províncias era um interesse comum aos dois grupos, sendo que
na segunda vertente a luta pela descentralização política não era contrária à monarquia e
defendia uma monarquia federativa
48
.
Após a promulgação da Constituição de 1824 inicia-se seu processo de sua implemen-
tação e observa-se a realização de uma série de leis ordinárias e complementares que dão
dinâmica à ordem constitucional
49
.
V. O Ato Adicional e a ‘Monarquia Federalista
A estrutura político-social do império, modifica-se consideravelmente, porém, desde o
período regencial, em 1831, evidenciando novas influências de constitucionalismo e mol-
dando a interpretação da constituição
50
.
Após a abdicação de Dom Pedro I e com o objetivo de diminuir tensões locais, entre os
conservadores e os liberais, foi proposta a Lei de Autorização da Revisão da Constituição,
em 1832
51
, que culminou na alteração da Constituição de 1834, ampliando a dimensão das
reformas liberais.
Cabe evidenciar que “a Constituição do império não estabelecia restrições ao poder
constituinte derivado. Todos os dispositivos, portanto, eram reformáveis, inclusive o que
consagrava a monarquia como forma de governo” e que o Imperador não podia negar a
sanção, se aprovada por duas legislaturas seguintes
52
.
48 Sobre a concepção de federalismo no século XIX ver PADOIN, Maria Medianeira – «República, federalismo e
fronteira». In: História Unisinos 14(1), Janeiro/Abril 2010, p.50: “O federalismo – ou a Federação – era concebido,
especialmente antes da Carta Constitucional dos Estados Unidos, como um conceito independente do regime
político, ou seja, da organização monárquica ou republicana, pois estava vinculado especialmente aos laços ou
alianças que congregavam povos e estados, tanto no sentido interno de organização estatal como no aspecto
externo. Da mesma forma, o conceito de República como forma de governo ainda não era o único apresentado
nos discursos. Sua fundamentação enquanto sociedade/comunidade/estado organizado pela vontade da
maioria do seu “povo, em que todos obedecem às mesmas leis (inclusive aquele que a mesma escolhe para
governá-la) – de forma que uma monarquia pode ser formada por várias repúblicas –, estava presente inclusive
nos discursos de alguns farroupilhas”.
49 A legislação ‘constitucional’ que se desenvolve durante o primeiro reinado e o período regencial prevê a
responsabilização dos ministros e conselheiros de Estado (lei de 15/10/1827), a criação e definição de atribuições
do Supremo Tribunal de Justiça (lei de 18/09/1828), a criação das câmaras municipais (lei de 01/10/1828), a criação
do segundo Conselho de Estado (lei n. 234 de 23/11/1841), cabe aqui evidenciar ainda o decreto n. 523 de 1947 que
cria o presidente do Conselho de Ministros.
50 “a verdade político-constitucional é, a maior parte das vezes, uma história externa aos documentos
constitucionais […] um conceito operativo de constituição, no plano historiográfico, deve aproximar-se da forma
estrutural político-social de uma época, o que aponta para uma noção de constituição mais ampla do que a de
simples documento escrito”. Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes – Direito constitucional. 6.ªed., p.247.
51 A lei preparatória de reforma da constituição do império, de 12 de outubro de 1832, aprovada na Câmara e no
Senado, determinava os artigos da Constituição que seriam objeto de reforma.
52 NOGUEIRA, Octaviano – 1824. 3.ªed., p.51.
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O projeto debatido entre as casas legislativas tinha como principais pontos a descen-
tralização do governo, a extinção do Poder Moderador e do Conselho de Estado. A intenção
federalista já era clara
53
.
Nicolau Vergueiro, Senador que integrou a Regência Trina provisória, um dos líderes na
defesa do projeto de revisão constitucional afirmava:
“O único meio de conservarmos unidas todas as nossas províncias consiste
em habilitá-las para poderem curar de suas necessidades e promover a sua pros-
peridade por meio da influência dos seus próprios governos”
54
.
O clamor democrático do projeto de revisão constitucional a ser proposto e discutido
entre a Câmara dos Deputados, de maior influência liberal, e o Senado, conservador por
excelência, restava claro pois os dois partidos influentes concordavam em adotar as bases
necessárias para um governo descentralizado e sua aprovação tinha a intenção de diminuir
as tensões políticas que existiam no país, após a abdicação de D. Pedro I em 1831.
Em discurso proferido quando da apresentação do Ato Adicional à Regência pela Câmara
dos Deputados, Antonio Paulino Limpo de Abreu, a quem viria a ser concedido o título de
Visconde de Abaeté, confirma a intenção dos então deputados com as alterações propostas:
“Senhor, esta obra verdadeiramente da nação, organizada pelos representan-
tes a quem ela delegou esta missão importante, oferece a estrutura de um gover-
no que parece ter sido até agora na Europa o sonho de alguns políticos, mas que
vai ser uma realidade na América, uma monarquia sustentada por instituições
populares”
55
.
Houve muita moderação e restrição de propostas revisionistas. O desentendimento
das casas levou à aprovação final em 9 de agosto de 1834, do Ato de revisão somente pela
53 Nesse sentido, observa-se que a Lei orçamentária de 1832 já previa a divisão entre receitas gerais e provinciais, no
final do período regencial observa-se a Lei orçamentária n. 108, de 20 de maio de 1840, que trouxe a classificação
dos tributos em receitas gerais, provinciais e municipais. Sobre o movimento federalista na segunda metade do
século XIX, no Brasil.Cf. FRAGA, Andrey J. Tafner; DAL RI, Luciene – «A construção do federalismo brasileiro e
a constituição de 1891». In: OLIVIERO, Maurizio; LOCCHI, Maria Chiara (org.) – Democracia e constitucionalismo:
novos desafios na era da globalização, p.09-32; BALTHAZAR, Ubaldo Cesar – História do tributo no Brasil. Florianópolis:
Fundação Boiteux, 2005, p.85.
54 DOLHNIKOFF, Miriam – História do Brasil …, p.51.
55 ABREU, Antonio Paulino Limpo de – «Apresentação do Ato Adicional à Regência pela Câmara dos Deputados».
In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto (orgs.) – Textos Políticos da História do Brasil. Brasília: Senado federal,
Conselho editorial, 2002. p.931.
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Câmara dos Deputados, gerando debate sobre a sua constitucionalidade, visto que a norma
também deveria ter sido aprovada pelo Senado. Tal dúvida foi sanada logo em seguida, em
23 de agosto de 1834 quando o Senado reconheceu a constitucionalidade do Ato Adicional,
não se opondo juridicamente a sua aplicação.
As propostas mais extremistas não foram acatadas, sendo mantido o Poder Moderador,
a vitaliciedade do mandado dos senadores, assim como a exclusão do uso da expressão
“monarquia federativa”
56
.
Entre liberais e conservadores um sentimento permanecia: o Ato Adicional não atendeu
ao que almejavam os liberais ao tempo que ultrapassou os limites que os conservadores
entendiam ser aceitável para aquele momento
57
. Para os liberais a necessidade de superar o
colonialismo ainda esbarrava na estrutura patrimonialista do poder
58
.
O Ato Adicional de 1834 rompeu com a tradição portuguesa de centralização do poder
político, criou as assembleias legislativas provinciais, com considerável autonomia para
legislarem, e inseriu a participação constitucional do presidente da província na atividade
legislativa, bem como unificou a Regência
59
.
56 “Entre o fascínio norte-americano, que já cega muitos teóricos e parlamentares, e a pasmaceira luso monárquica,
prevaleceu a permanência do Poder Moderador, do Senado vitalício e a descentralização, esta a verdadeira
conquista dos moderados, descentralização que tocaria na estrutura política do edifício monárquico. Todas as
reformas teriam uma inspiração maior, que seria o seu limite: a união das províncias, desafogadas de opressivos
freios, para melhor garantir a integridade territorial”. Cf. FAORO, Raymundo – Os Donos do Poder, p.354.
57 Nas palavras de Nogueira: “O Ato Adicional, no entanto, como momento de transação entre os dois extremos,
um que desejava tudo modificar e o outro que nada admitia mudar, terminou apenas abrandando o rigorismo
centralista e instituindo Assembleias Legislativas Provinciais, em lugar dos Conselhos Gerais de Província,
que na verdade eram simples órgãos consultivos, sem poderes. As demais aspirações liberais terminaram, na
verdade, umas adiadas e nunca realizadas; outras colocadas em ação pela força dos costumes, mas sem se mexer
na Constituição, e outras momentaneamente apenas realizadas. Enquanto os liberais exaltados achavam que
nada se tinha conseguido, os conservadores radicais acreditavam que se tinha ido longe demais”. Cf. NOGUEIRA,
Octaciano – «Voluntarismo jurídico e o desafio institucional». In: Revista do Tribunal Regional Federal da 1.ªRegião.
Brasília. ISSN 0103-703-X. Vol. 9, N. .º3, 1997, p.51.
58 WOLKMER, Antonio Carlos – História do Direito no Brasil. 5.ªed. , p.79.
59 Lei n. 16 – Ato adicional à Constituição do Império (12 agosto 1834) art. 10 e 11. Segundo Vieira (VIEIRA, José Ribas
– O autoritarismo e a ordem constitucional no Brasil. São Paulo: Renovar, 1988, p.54) “o colapso da estrutura
político-jurídica do Brasil-monárquico não se deve a essas meras crises formais, e sim ao surgimento de novas
forças sociais. Elas representam o deslocamento do processo social brasileiro, tanto a nível geográfico, do Vale
Paraíba para São Paulo, quanto a mudança dos interesses representados no nível político-social”. Faoro, que
não contempla com muito entusiasmo o Ato Adicional, diz que ele foi “[...]arrancado não às convicções, mas
ao medo dos moderados, procura organizar um feixe de poderes, concentrados nas províncias, de cuja aliança
se firmaria o Império. O esquema visa a desmontar, pela descentralização, quase federativa, mas adversa à
federação, o centralismo bragantino, ao tempo que foge da fragmentação municipal. Obra de convicção liberal –
aproximar o governo do povo – e obra de contemporização – fugir do extremado federalismo, casado com ideias
republicanas”.Cf. FAORO, Raymundo – Os Donos do Poder…. 5.ªed., p.354.
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O redator do Ato Adicional à Constituição do Império, Bernardo Pereira de Vasconcelos
era tido como liberal moderado, mas assumiu a posição de líder dos conservadores em 1835.
A redação da única emenda constitucional deixa em dúvida sua real posição política
60
.
Por mais que a criação das assembleias legislativas provinciais pudesse representar um
grande salto para a descentralização, pois permitiam legislar sobre diversos e importantes
assuntos, como por exemplo a divisão judiciária, civil e eclesiástica das províncias, a ins-
trução pública, a desapropriação por utilidade municipal ou provincial; criação e nomeação
para os empregos municipais e provinciais, entre outros
61
, sua funcionalidade não aconte-
ceu, ante as incertezas das atribuições de cada membro
62
.
A ideia da descentralização das províncias era um clamor dos liberais desde a indepen-
dência, pois a Constituição imposta por D. Pedro I as deixou presas à administração do
Imperador
63
. A descentralização trazida com a alteração constitucional era tida por alguns,
60 Bernardo Pereira de Vasconcelos foi deputado geral (1834-1837), apresentou os projetos do Código Criminal do
Império do Brasil (1830) e do Ato Adicional (1834), que alterou a Constituição de 1824 e ampliou a dimensão das
reformas liberais até então empreendidas. Após 1834 distanciou-se do grupo liberal moderado que integrava,
assumindo a liderança conservadora da oposição ao governo do regente Diogo Feijó (1835-37). Voltou ao governo
com a renúncia de Feijó e a subida ao poder do conservador Pedro de Araújo Lima, tendo sido indicado secretário
de Estado dos Negócios da Justiça (1837-1839) e do Império (1837-1839). Foi nomeado senador (1838-1850) e
integrou o Conselho de Estado (1842-1850). Foi reconduzido à pasta do Império em 1840, onde permaneceu por
algumas horas, na tentativa de impedir a maioridade de d. Pedro. Com o Golpe da maioridade afastou-se do
governo, mas manteve sua atuação política no Senado e no Conselho de Estado. Cf. CARVALHO, José Murilo
de –Bernardo Pereira de Vasconcelos. São Paulo: Editora 34, 1999.
61 Lei do Ato Adicional à Constituição do Império (1834), artigos 10, 11 e 12.
62 “Os conselhos-gerais das províncias se elevam a assembleias legislativas provinciais, mantida a nomeação dos
presidentes. As províncias, embora desprovidas de autogoverno, ganham o poder legislativo emancipado, com
largas interferências e geral tutela sobre os municípios. Entre os três focos verticais do poder – o município, a
província e o Império – restaram, entretanto, zonas indefinidas, pelas quais se iriam infiltrar reinvindicações
revolucionárias e a pesada mó centralizadora. Sobretudo, as áreas dos governos geral e provincial não lograram,
na prática do sistema, fixar um mecanismo de harmonia e entendimento. O quadro constitucional não se
mostrou apto a estabelecer a partilha das forças em contraste, de articulação mal definida, num momento em
que falta uma estrutura homogênea na sociedade e na economia. ” In FAORO, Raymundo – Os Donos do Poder….
5.ªed, p.355.
63 Foi o Ato Adicional, segundo Tavares Bastos “[...]redigido sobre a constituição preparada em 1832. Com quanta
inexatidão, pois, afirmar-se-ia que ele é obra da precipitação e do acaso, concessão às paixões do dia, não
fruto de ideias amadurecidas! Embora a obscureçam algumas ambiguidades e vícios, aliás de fácil reparação,
abençoemos a gloriosa reforma que consumou a independência do Brasil. Não foi o ato adicional, não, um
pensamento desconexo e isolado na história do nosso desenvolvimento político. Foi elaborado, anunciado, por
assim dizer, pela legislação que o precedera. Inspirou-o a democracia. Ele aboliu o Conselho de Estado, ninho
dos retrógrados auxiliares de D. Pedro; decretou uma regência nomeada pelo povo, e permitiu que nossa pátria
ensaiasse o governo eletivo durante um grande número de anos; fez mais, criou o poder legislativo provincial.
Não é lícito menosprezar obra semelhante“. Cf. TAVARES BASTOS, A. C. – A Província. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1975.p. 63.
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como Visconde de Uruguai
64
, como excessiva pois “entregava às facções que se levantassem
nas províncias o Poder Executivo Central de mãos e pés atados”
65
.
O Ato Adicional foi, portanto, um importante marco para as mudanças nas atribuições
político-administrativas tanto das províncias quanto do governo central, porém, o cres-
cimento da instabilidade política gerado pelas revoltas em diferentes províncias – Caba-
nagem no Pará (1835), Farroupilha no Rio Grande do Sul (1835), a Balaiada no Maranhão
(1838) e a Sabinada na Bahia (1837), demonstrou de que a descentralização poderia ser uma
ameaça ao regime da Monarquia. O Ato Adicional para muitos trouxe uma “anarquia legis-
lativa, ao passo que pairavam muitas dúvidas acerca das atribuições da assembleia geral e
sua possível intervenção nas atribuições das assembleias provinciais
66
.
A vitória liberal então durou pouco tempo e recebeu o contragolpe conservador, por
meio da Lei de Interpretação do Ato Adicional de 1834, promulgada em 1840, que estabelecia
a restrição dos poderes das câmaras provinciais, em proveito da autoridade central, bem
como reduzia os poderes do presidente da província
67
.
64 Visconde de Uruguai e Tavares Bastos travaram grandes debates acerca da centralização e descentralização no
Império. O debate entre ambos vem exposto na obra de Ferreira (1999, p.78) “A diferença entre os olhares de um e
outro pode ser localizada no fato de que Uruguai, ao contrário de Tavares Bastos, toma o nosso “caráter nacional”
– a falta de tradição de autogoverno, a carência de educação cívica do povo – como o elemento explicativo
central de toda a sua análise e argumentação. O erro histórico dos liberais, pensava ele, era considerarem que
o despotismo provinha sempre de cima, do abuso da autoridade, e nunca do povo, independentemente de sua
educação e seus hábitos. No caso brasileiro, a reforma descentralizadora procurara adaptar instituições próprias
dos Estados Unidos em um país que não tinha as pré-condições básicas para suportá-las. Assim é que o chamado
Código de Processo, de 1832, entregara importantes atribuições aos juízes de paz, filhos da eleição popular e,
portanto, “criaturas da cabala de uma das parcialidades do lugar”. Independentes do Poder Administrativo por
serem eletivos, eram eles autores dos maiores arbítrios e atentados aos direitos individuais. Do mesmo modo, o
Ato Adicional de 1834, e principalmente a “inteligência” que lhe foi dada – atribuindo às Assembleias Provinciais
o poder de legislar e nomear para empregos relativos a objetos do Poder Central criou uma descentralização
excessiva.
65 URUGUAI, Visconde de – Ensaio sobre o Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa
Nacional, 1960, p.380.
66 Tavares Bastos descreve alguns exemplos acerca das dúvidas em relação à competência legislativa daquele
período: “A Câmara dos Deputados em 1836 adia certa proposta do governo sobre habeas- corpus até que se
adotasse uma medida sobre a lei de 14 de junho de 1835 da assembleia provincial de Pernambuco. Adia em 1837
um projeto sobre a formação da culpa até que se decidisse a questão sobre empregados gerais e provinciais.
Adia, no mesmo ano, outro que elevava a renda para ser jurado, por duvidar-se da competência da assembleia
geral para legislar sobre este cargo. O próprio Senado, em 1836, adiara projeto de suas comissões relativo a
juízes de paz, municipais e de direito, considerando muitos dos oradores a matéria primitiva das assembleias
provinciais”. Cf. TAVARES BASTOS, A. C. – A Província, p.64.
67 - “Quanto a nós, não nos limitaremos a pedir a execução da lei e o abandono de práticas perniciosas; vamos
também propor o complemento do sistema esboçado no ato adicional. Este sistema supõe nas províncias um
poder legislativo e uma administração próprios: que falta para que funcionem com regularidade? Até onde
devemos chegar no empenho de reabilitá-los? Quais as circunscrições da descentralização que os liberais
promovem? [...] É tempo! De sobra temos visto uma nação jovem oferecer aos olhos do mundo um espetáculo
da decrepitude impotente. Na América, onde tudo devera de ser novo, pretendem que o despotismo se perpetue
perpetuando a centralização. O que somos nós hoje? Somos os vassalos do governo – da centralização“. Cf.
TAVARES BASTOS, A. C. – A Província, p.78.
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A citada lei que restringia os efeitos da única emenda constitucional imperial, trouxe o
restabelecimento do Conselho de Estado, muito embora sem a obrigatoriedade de consulta
por parte do Imperador. Os liberais por outro lado sentiram o retrocesso, pois pela legisla-
ção que ora se impusera “não se interpretava, amputava-se o ato adicional; e tudo sem os
trâmites de uma reforma constitucional: obra por esses dois motivos odiosa
68
.
Tido com o “o ato mais enérgico da reação conservadora, a limitação da autoridade das
assembleias provinciais entregou novamente a administração da polícia e da justiça para
o governo central, com o fundamento da necessidade de manter a integridade da monar-
quia
69
.
A Lei de Interpretação de 1840, ao lado da Reforma do Código de Processo e do restabe-
lecimento doConselho de Estado entregou rumos à estrutura política do Segundo Reinado,
pois adequou a autonomia provincial à centralização pretendida, trazendo para o governo
central a administração da polícia e da Justiça, bem como todos os empregos voltados ao
exercício das atribuições do poder central
70
.
Sua promulgação foi fruto de um trabalho dos conservadores na defesa da centralização
e, ainda que não revisse a autonomia concedida às províncias pelo Ato Adicional, mantendo
o pacto federalista, promoveu os recuos necessários à manutenção do poder da monarquia.
Os debates acerca do binômio centralização/descentralização no império, porém, não
acabaram com o Ato Adicional. Os liberais continuaram a buscar a democratização das ins-
tituições por meio da descentralização e a restituição da autonomia para as províncias.
Árduo defensor da descentralização, Tavares Bastos
71
por um lado entende a Lei de
Interpretação como um grande retrocesso para as assembleias provinciais, por outro reco-
68 TAVARES BASTOS, A. C. – Cartas do Solitário. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975, p.61.
69 FAORO, Raymundo – Os Donos do Poder…. 5.ªed., p.380.
70 A lei de interpretação (12 de agosto de 1840), elaborada na esteira da apostasia regressista e conservadora de
Bernardo Pereira de Vasconcellos, sob o inocente pretexto de elucidar o Ato Adicional, infunde ao estatuto de
1834 alma oposta ao seu contexto. As assembleias provinciais, centro do poder local, cedem, em favor do poder
legislativo geral. A polícia e os empregos voltam à corte, duas molas que, desarticuladas do provincialismo,
levarão, mais tarde, a justiça e a Guarda Nacional aos pés do ministro da Justiça. A liberdade vigiada, a
descentralização consentida, a tutela do alto e de cima ensaiam as primeiras estocadas, prenunciando o quadro
fechado da organização política. [...] Duas colunas hão de emergir do aviltamento provincial, para sustentar o
edifício imperial: o Conselho de Estado, renascido com a Lei de 23 de novembro de 1841, e a reforma do Código
de Processo, renascido com a Lei de 3 de dezembro do mesmo ano. ” In FAORO, Raymundo – Os Donos do Poder….
5.ªed., p.379.
71 Para Tavares Bastos, deputado provincial que profundamente estudou os maiores sistemas políticos à sua época,
como Estados Unidos, Grã-Bretanha, Canadá e Austrália, entre outros países, a descentralização administrativa
era imperativa, e afirmava: “Apreciai as vantagens incomparáveis da administração independente, das liberdades
civis e políticas: com menos da metade da nossa população, o Canadá, essa terra hiperbórea da neve, dos lagos
e rios gelados, tinha há quatro anos, um movimento comercial igual ao nosso. As sete colônias da Austrália, a
quem aliás se dão somente 2.000.000 de habitantes, mais favorecidas pela natureza, mas também muito mais
distantes, já faziam em 1866 um comércio duplo ao Brasil, e seus governos já dispunham de rendas superiores às
nossas. Pungente paralelo!”. Cf. TAVARES BASTOS, A. C. – A Província, p.56.
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nhece que havia a necessidade de melhor interpretar o que prescrevia aquela norma, sua
crítica, porém, continua por entender que a necessária interpretação foi realizada ao avesso
da natureza da lei em que foi criada
72
.
Se por um lado a articulação da Regência em meio à tensão liberal-conservadora permi-
tiu o diálogo, ou administração das diferenças entre as linhas políticas, fortalecendo politi-
camente o país, legitimando o poder e superando a herança absolutista portuguesa. Tal fato
não impediu, porém, a proclamação da maioridade de Dom Pedro II, diante do perigo de des-
membramento
73
. A manobra liberal, que buscou o fim das regências, viu-se, porém, às voltas
com a política moderada e tendencialmente conservadora do Imperador Dom PedroII
74
.
VI. Considerações finais
O constitucionalismo brasileiro, que nasce e se desenvolve de forma permeada com o cons-
titucionalismo europeu e particularmente português tenta erguer o princípio do governo
limitado, dentro de um sistema impregnado de centralização do poder, em acertos e desa-
certos com os interesses liberais.
O liberalismo na ordem sócio-política brasileira agiu para a independência nacional,
mas não impôs inicialmente a república, como nos demais países latino-americanos,
lutando pela autonomia, segurança e expansão das relações econômicas e financeiras, bem
como pela inserção de direitos e garantias individuais que limitassem o poder do Estado.
Observa-se, portanto, desde os primeiros atos constitucionais brasileiros a tendência a
ordenar, fundar e limitar o poder político e reconhecer e garantir os direitos e liberdades
do indivíduo.
A comunhão de experiência constitucional entre Brasil e Portugal torna-se ainda mais
evidente quando da outorga, em Portugal, em 1826, da Carta Constitucional para o Reino
72 A censura que se faz à lei de 1834, cabe melhor, em verdade, à de 1840. Entretanto, devemos confessá-lo, a
experiência havia manifestar a necessidade de interpretar os citados §§ do ato adicional; havia ela patentear que
se devia tirar às assembleias dominadas pela paixão centralizadora pretextos para embaraçarem a autonomia do
município”. Cf. TAVARES BASTOS, A. C. – A Província, p.103.
73 SCHWARCZ, Lilia Moritz – As barbas do imperador: Dom Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p.74.
74 A influência liberal não ocorreu somente a nível político-constitucional e buscou a regulação da propriedade
em âmbito civil. Nesse sentido, ocorreram após o período regencial alguns movimentos infraconstitucionais
importantes, como a conversão das sesmarias em propriedade absoluta e individual moderna, com a lei de 1850
e de 1864 colocando em evidencia a influência do liberalismo muito além da constituição (VARELA, 2005, p.125);
e a acomodação de parte dos liberais aos interesses conservadores quando se tratava da “abolição lenta e regular
da escravidão” (Lei Feijó de 1831, Lei Eusébio de Queiroz de 1850, Lei Nabuco de Araújo de 1854, Lei do Ventre
Livre de 1871, Lei dos Sexagenários de 1885, Lei Áurea de 1888), denotando que o patrimonialismo exacerbado se
impôs mesmo diante dos valores de liberdade e de vida humana. Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu – A Constituição
na vida dos povos. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p.99.
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de Portugal, Algarves e seus domínios, com texto muito similar à Constituição Política do
Império do Brasil, de 1824.
O liberalismo que fomentou a independência e foi pouco aceito durante o primeiro
reinado, influenciou fortemente a elaboração e a dinâmica constitucional sob os demais
períodos do Império. A prática constitucional após a abdicação de Dom Pedro I foi além de
instrumentos absolutistas, desenvolvendo dinâmica específica. Nesse sentido, observou-
-se durante o período regencial não apenas descentralização político-administrativa, por
meio do Ato Adicional de 1834, mas também práticas constitucionais que aproximaram o
Brasil de uma ‘experiência republicana. As aspirações pelo modelo estatal descentralizado
e a forma federalista não era unânime nem mesmo entre os liberais, promovendo amplo
debate político e doutrinário no Brasil durante todo o segundo reinado.O florescer liberal
foi de certa forma contido pelo movimento conservador por meio da Lei de Interpretação,
promulgada em 1840, que restringia os poderes das câmaras provinciais e do presidente da
província, bem como a declaração da maioridade do Imperador não implicou em grande
abertura aos ideais do liberalismo, considerando a postura política moderada e tendencial-
mente conservadora do Imperador Dom Pedro II.
A prática imperial, porém, desenvolveu sensibilidade não apenas aos interesses dos
conservadores e assumiu postura constitucional de forte inspiração inglesa, consubstan-
ciando-se em árbitro na organização política brasileira.
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Sistemas de patentes e princípio da suciência
descritiva: uma abordagem a partir do Direito
Brasileiro e do Direito Internacional
Patent systems and the descriptive suciency principle:
anapproach from Brazilian Law and International Law
JÓNATAS E.M. MACHADO
1
jonatas@fd.uc.pt
PAULO NOGUEIRA DA COSTA
2
pcosta@autonoma.pt
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
January Janeiro–30
TH
June Junho 2020 · pp. 30‑51
DOI: http://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.1.2
Submitted on March 27
th
, 2020 · Accepted on June 4
th
, 2020
Submetido em 27 de Março, 2020 · Aceite a 4 de junho, 2020
SUMÁRIO 1. Introdução. 2. Os requisitos da patenteabilidade. 2.1. Enquadramento;
2.2.Novidade; 2.3. Atividade inventiva; 2.4. Aplicação industrial 3. A divulgação pública da
invenção. 3.1. A descrição escrita da invenção; 3.1.1 Objetivos; 3.1.2. âmbito; 3.2. Oprincípio
da suficiência descritiva; 3.2.1. Consagração legal; 3.2.2. O sentido geral do princípio;
3.2.3. O valor informativo e demonstrativo da descrição escrita; 3.2.4. Tecnologias
previsíveis e imprevisíveis; 3.2.5. Modo de apresentação; 3.2.6. Divulgação do conhecimento.
4.Conclusão
PALAVRASCHAVE patente(s); princípio da suficiência; valor; tecnologia.
SUMMARY 1. Introduction. 2. The requirements for patentability. 2.1. Framework;
2.2.Novelty; 2.3. Inventive activity; 2.4. Industrial application 3. Public disclosure of the
invention. 3.1. The written description of the invention; 3.1.1 Objectives; 3.1.2. scope;
3.2. The principle of descriptive sufficiency; 3.2.1. Legal consecration; 3.2.2. The general
sense of the principle; 3.2.3. The informative and demonstrative value of the written
description; 3.2.4. Predictable and unpredictable technologies; 3.2.5. Presentation mode;
3.2.6.Dissemination of knowledge. 4. Conclusion
KEYWORDS patent (s); sufficiency principle; value; technology
1 Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e da Universidade Autónoma de Lisboa.
2 Professor Adjunto do Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa.
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1. Introdução
Os sistemas de patentes pretendem incentivar o desenvolvimento tecnológico de duas
maneiras: em primeiro lugar, criando um monopólio temporário a favor do inventor, per-
mitindo-lhe colher os benefícios patrimoniais da sua criatividade e, se for o caso, recuperar
os custos do investimento que por ele ou por outros investidores haja sido realizado na
atividade de pesquisa e desenvolvimento que possibilitou a invenção. Em segundo lugar,
promovendo a divulgação e partilha do conhecimento inovador e inventivo, possibilitando
a comercialização dos inventos e o progresso científico. Estas são as principais virtualida-
des do sistema de patentes
3
.
É a esta luz, por conseguinte, que deve ser entendido o instituto jurídico da patente.
Esta confere ao seu titular o direito exclusivo temporário de beneficiar da comercializa-
ção do seu invento. Esta posição jurídica de monopólio tem como condição a divulgação
pública dos conhecimentos incorporados na invenção. Trata-se de uma troca estruturada
em termos de quid pro quo: o inventor divulga o conhecimento e o Estado concede-lhe um
monopólio temporário
4
.
Um dos objetivos da patente consiste em tornar acessíveis as características e especifi-
cações técnicas da invenção de forma a tornar possível a sua replicação. Para isso, a patente
deve pressupor uma descrição escrita do invento, a qual deve ser suficientemente clara e
precisa a fim de habilitar os técnicos com competência na arte ou na ciência em questão a
reproduzir a invenção
5
.
Este é hoje um elemento universalmente aceite, constando do artigo 29.ºdo Acordo
TRIPS
6
e integrando desde há muito todas as negociações internacionais envolvendo a
celebração de tratados em matéria de direito das patentes
7
. O mesmo reveste-se da maior
3 B, Stephanie Plamondon – «The Psychology of Patent Protection». 48, Connecticut Law Review, 2015, pp.247 ss.
4 Este entendimento tem sido acolhido na jurisprudência do Supremo Tribunal norte-americano, como se pode ver,
por exemplo, no caso Festo Corporation, Petitioner V. Shoketsu Kinzoku Kogyo Kabushiki Co., Ltd., Et Al. 535 U.S. 722; 122
S. Ct. 1831. J. E. M. AG Supply, Inc., Dba Farm Advantage, Inc., Et Al., Petitioners V. Pioneer Hi-Bred International,
Inc.534 U.S. 124; 122 S. Ct. 593; 151 L. Ed. 2d 508.
5 Sobre o alcance desta doutrina, G, John M. – «Construing Patent Claims According to their “Interpretive
Community”: A Call for an Attorney-Plus-Artisan Perspective». 21, Harvard Journal of Law and Technology, 2008,
pp.321 ss.
6 Sublinhamos os aspetos do artigo mais relevantes para o estudo em causa:
Article 29
Conditions on Patent Applicants
1. Members shall require that an applicant for a patent shall disclose the invention in a manner suciently clear and complete for
the invention to be carried out by a person skilled in the art and may require the applicant to indicate the best mode for carrying
out the invention known to the inventor at the filing date or, where priority is claimed, at the priority date of the application.
2. Members may require an applicant for a patent to provide information concerning the applicant’s corresponding foreign
applications and grants.
7 Sublinhando estes pontos, J Mark D. – «Patent Law And Policy Symposium: Re-Engineering Patent Law:
The Challenge Of New Technologies: Part I: Administrative Law Issues: On Courts Herding Cats: Contending
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importância no contexto das discussões litigiosas em torno do escopo das reivindicações
das patentes.
Um dos problemas que se suscita neste domínio é o que diz respeito aos limites da
exigência constitucional e legal da suficiência descritiva, no sentido de que não se pode
exigir, por exemplo, a descrição minuciosa pela carta patente de processos e materiais que
são amplamente conhecidos no estado da técnica e que se pressupõem sabidos pelo técnico
que vier a ler e executar a patente. Do ponto de vista jurídico pretende-se uma discussão
em torno do sentido e do alcance do princípio da suficiência descritiva, nomeadamente
do ponto de vista constitucional. É ao tratamento desta questão que dedicamos as páginas
subsequentes.
2. Os requisitos da patenteabilidade
2.1 Enquadramento
A promoção do desenvolvimento científico e tecnológico de um país, com as inerentes ati-
vidades de produção, aplicação e divulgação do saber, requer a adoção de uma estrutura de
incentivos realista e adequada. O direito de propriedade intelectual em geral e a criação dos
sistemas de patentes em particular, inscreve-se nesse objetivo essencial.
As patentes ajudam a proteger os seus titulares da concorrência de terceiros, conceden-
do-lhes o direito, limitado no tempo, de excluir outros de fazer, utilizar, importar ou ven-
der a invenção patenteada. Como bem imaterial, intelectual e incorpóreo dotado de valor
comercial, a invenção é o objeto central do direito das patentes
8
. Como se presume a vali-
dade das reivindicações constantes das patentes emitidas, estas conferem uma vantagem
significativa nos processos por infração da propriedade intelectual.
O direito das patentes assenta no pressuposto de que a capacidade de excluir tempora-
riamente outros de produzir ou utilizar uma invenção constitui uma forte motivação para
incentivar o inventor a divulgar os segredos de sua invenção.
Neste espírito, o Artigo 5.ºXXIX da Constituição Federal do Brasil de 1988 consagra a
proteção da propriedade intelectual. Aí se dispõe:
XXIX – a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário
para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das
with the “Written Description” Requirement (and Other Unruly Patent Disclosure Doctrines)». 2, Washington
University Journal of Law & Policy, 2000, pp.55 ss.
8 § 1. Hauptelemente des Patentsystems in der Bundesrepublik Deutschland, Kraßer/Ann Patentrecht 7. Auflage 2016, Rn.15-24
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marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o inte-
resse social e o desenvolvimento tecnológico e económico do País;
A dignidade constitucional do direito de propriedade intelectual (latu sensu) é inteira-
mente compreensível atenta a relevância económica, social e cultural do conhecimento
científico e do progresso tecnológico
9
. Da Constituição resultam importantes implicações
substantivas e processuais para a produção, interpretação e aplicação do direito infracons-
titucional, no que toca à promoção e proteção da atividade intelectual e criativa.
Essa proteção é concretizada, nalguns dos seus aspetos fundamentais, na Lei da Pro-
priedade Industrial, a Lei 9.279/96, 14 de maio, doravante por nós designada de LPI.
Seguindo uma orientação desde há muito radicada no direito das patentes, o Artigo
8.ºda LPI, dispõe:
“É patenteável a invento que atenda aos requisitos de novidade, atividade
inventiva e aplicação industrial.
Estabelecem-se, assim, os três requisitos fundamentais da patenteabilidade, sobre os
quais nos debruçaremos na estrita medida em que isso seja útil à discussão da questão em
apreço. Importa salientar que cada um deles deu origem à sua própria linha doutrinal de
invalidação das patentes e que, no seu conjunto, as mesmas sustentam as problemáticas
da patenteabilidade do objeto e da completude da invenção. Como veremos adiante, o tema
da descrição escrita da patente é indissociável de todas estas linhas problemáticas e doutri-
nais, embora conserve a sua autonomia conceitual e dogmática. Embora a insuficiência da
descrição escrita seja frequentemente invocada pelos tribunais de vários países para invali-
dar patentes, não é claro numa boa parte da doutrina que se esteja aqui diante de um quarto
requisito da patenteabilidade
10
. Vejamos brevemente em que consistem os três requisitos,
tendo por base o WIPO Patent Drafting Model.
2.2 Novidade
Uma invenção, por definição, tem que ser nova. Não admira, por isso, que a exigência de
novidade ocupe um lugar central no sistema de patentes. A novidade significa o pedido da
patente improcede se nesse momento ou no momento da criação do alegado invento, este
9 Sobre as implicações da natureza constitucional do direito da propriedade intelectual, veja-se M, Kali –
«Constitutional Patent Law: Principles and Institutions». 93 Nebraska Law Review, 2015, pp.901 ss.
10 KDmitry – «The Completeness Requirement in Patent Law». 56, Boston College Law Review, 2015,
pp.949 ss. e 988 ss.
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já estiver a ser usado ou for já conhecido ou cognoscível do público. Quer dizer, se uma pre-
tensa invenção for já conhecida, ela não é verdadeiramente uma invenção, não sendo por
isso patenteável. A novidade não significa uma rotura tecnológica com o passado. Mesmo
uma pequena novidade é relevante para o sistema de patentes. A novidade tem um regime
variável de país para pais, podendo ser absoluta ou relativa e incluir ou não prazos de graça
para permitir ao inventor a apresentação do pedido de patente mesmo depois de divulgar
o seu trabalho
11
.
2.3 Atividade inventiva
O requisito da atividade inventiva aponta para a presença de um salto inventivo, ou seja, a
invenção, para o ser realmente, não deve ser óbvia mesmo para pessoas com conhecimen-
tos especializados na arte ou ciência em questão. A invenção, para o ser realmente, tem que
representar um avanço significativo relativamente ao estado da arte. Se qualquer pessoa,
com conhecimentos e competências médios no setor tecnológico em causa, pudesse chegar
ao mesmo resultado a partir da agregação de diferentes segmentos da informação geral-
mente acessível, não se estaria aí perante uma atividade inventiva.
Uma pretensa invenção pode satisfazer o requisito da novidade, por ser desconhecida
do público, sem satisfazer o requisito da atividade inventiva, por ser demasiado óbvia à luz
do estado da arte
12
. Em conjunto, os requisitos da novidade e do salto inventivo pretendem
averiguar se a pretensa invenção já se encontrava na posse do público em geral ou se estava
ainda sob o domínio intelectual e imaterial do inventor
13
.
2.4 Aplicação industrial
O terceiro requisito da patenteabilidade diz respeito à aplicação industrial, também desig-
nado por utilidade. Para ser patenteável, a invenção deve realizar a função para que está
designada. Este terceiro requisito é clarificado no artigo 15.ºda LPI, onde se lê:
A invenção e o modelo de utilidade são considerados suscetíveis de aplica-
ção industrial quando possam ser utilizados ou produzidos em qualquer tipo de
indústria.
11 WIPO Patent Drafting Model, Ip Assets Management Series Wold Intellectual Property Organisation, 20 ss.
12 WIPO Patent Drafting Model, Ip Assets Management Series Wold Intellectual Property Organisation, 22 ss.
13 H, Timothy R. – «Patent Anticipation And Obviousness As Possession». 65 Emory Law Journal,
2016, pp.987 ss.
35
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A utilidade da invenção é a contrapartida que a sociedade recebe do inventor pela
atribuição do monopólio temporário que a parente representa. O grau de utilidade pode
variar significativamente de invenção para invenção, aceitando-se que possa ser mínimo. O
regime jurídico da aplicação industrial pode variar de Estado para Estado, podendo negar-
-se a patente a invenções nocivas para a sociedade e haver maior ou menor abertura à con-
cessão de patentes a invenções destinadas aos setores produtivo, transformador e comer-
cial e não apenas dirigidas ao consumidor final. Trata-se aí de opções soberanas de política
pública de propriedade industrial
14
.
Presentemente, a importância do requisito da aplicação industrial tem sido acentuada
para sublinhar que a proteção patentária deve ser dirigida para invenções com utilidade
prática e não para os resultados da pesquisa fundamental. Entende-se que o objeto das
patentes não inclui os princípios científicos fundamentais ou o merco conhecimento das
leis naturais, antes requer a passagem da teoria à prática, isto é, a transição da pesquisa
fundamental para a pesquisa aplicada
15
. Para esta orientação, a invenção deve apresentar
um benefício específico acima de tudo para o utilizador final.
3. A divulgação pública da invenção
Como anteriormente se disse, uma das funções do sistema de patentes consiste na divulga-
ção dos conhecimentos que conduziram à invenção. Por esse motivo, o direito da proprie-
dade industrial desde há muito que estabelece a exigência de uma descrição da invenção, a
oferecer pelo inventor, como condição de atribuição de uma patente.
3.1 A descrição escrita da invenção
Enquanto documento público, a patente encontra-se sujeita ao exame público. Como o pró-
prio nome indica, ela pretende tornar patente, de forma objetivamente controlável, a existên-
cia de uma invenção e a prioridade e o escopo das reivindicações do inventor
16
. Ela textualiza
a invenção em termos técnicos que prefiguram a atividade necessária à sua reprodução
17
.
A patente compreende duas partes fundamentais, a saber, a descrição escrita da patente e
14 WIPO Patent Drafting Model, Ip Assets Management Series Wold Intellectual Property Organisation, 21 ss.
15 Veja-se, sobre esta temática, K, Dmitry – «The Completeness Requirement in Patent Law». 56, Boston
College Law Review, 2015, pp.949 ss. e 975 ss.
16 H Timothy R. – «Patent Anticipation and Obviousness as Possession». 65 Emory Law Journal, 2016,
pp.987 ss.; PatG § 34 [Patentanmeldung], Schäfers Benkard, Patentgesetz11. Auflage 2015 Rn.80-85ª.
17 A Feroz – «Technical Speech: Patents, Expert Knowledge, and the First Amendment». 17 Minnesota Journal of
Law, Science & Technology, 2016, pp.277 ss.
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o quadro de reivindicações. As mesmas estão intimamente relacionadas, podendo conter
áreas significativas de sobreposição
18
.
A descrição escrita consiste na especificação detalhada das características técnicas da
invenção, sendo frequentemente designada por representação da forma técnica da invenção,
concretização preferida da invenção ou modo de realização divulgado da invenção
19
. Ela articula
e codifica o conhecimento especializado subjacente à invenção, propiciando a sua especi-
ficação e demonstração por escrito e proporcionando um ponto de referência estável para
determinar a identidade do intangível.
A exigência de apresentação, por parte do inventor, de uma descrição escrita pormeno-
rizada da invenção acompanha o procedimento de atribuição das patentes desde o início
20
.
Dessa descrição espera-se que, para além da invenção propriamente dita, inclua o melhor
modo de utilização ou os correspondentes processos de composição. Essa descrição deve
ser completa, clara e exata nos termos utilizados. A exigência de uma descrição escrita
suficientemente clara e precisa da invenção tem sido afirmada pela legislação e a juris-
prudência comparadas ao longo das décadas
21
, conservando ainda toda a sua atualidade e
relevância.
Da descrição escrita espera-se, de um modo geral, a especificação do campo técnico
a que a invenção pertence e do estado da técnica de que a invenção procede (estado da
técnica, a arte fundo) de forma a permitir compreender os elementos constitutivos de novi-
dade e da atividade inventiva. Segue-se a especificação do problema técnico, a menos que
seja claro a partir da solução dada ou a partir das explicações sobre os efeitos benéficos da
presente invenção.
A patente deverá especificar o modo em que o objeto da invenção é comercialmente
aplicável juntamente com quaisquer efeitos vantajosos da invenção com referência ao
estado da técnica. A mesma deve indicar, finalmente, pelo menos uma – não necessaria-
mente a melhor (EUA) – maneira de executar a invenção reivindicada, se necessário ilus-
trada com exemplos e com referência a quaisquer desenhos usando o numeral adequado
22
.
A descrição da patente não tem que incluir e não deve incluir informação que não seja
absolutamente necessária à representação técnica e inteligibilidade da invenção
23
.
18 A Feroz – «Technical Speech: Patents, Expert Knowledge, and the First Amendment». 17 Minnesota Journal of
Law, Science & Technology, 2016, pp.277 ss., 303 ss.
19 WIPO Patent Drafting Model, Ip Assets Management Series Wold Intellectual Property Organisation, 35 ss.
20 Essa exigência constava já na Secção III do Patent Act de 1793.
21 Veja-se, por exemplo, o caso In Re Ruschig, 379 F.2d 990 (C.C. P.A, 1967).
22 PatG § 34 [Patentanmeldung], Schäfers Benkard, Patentgesetz11. Auflage 2015 Rn.81.
23 Veja-se, no direito alemão, BPatGE, 23, 96, 07, mencionado em PatG § 34 [Patentanmeldung], Schäfers Benkard,
Patentgesetz11. Auflage 2015 Rn.81a. ss.
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O não cumprimento dos requisitos da descrição escrita é fundamento de recusa da con-
cessão de patente ou de invalidade da mesma se tiver sido concedida. Uma referência aos
objetivos da descrição escrita permitirá esclarecer melhor o sentido dos elementos consti-
tutivos.
3.1.1 Objetivos
A leitura dos instrumentos normativos que ao longo dos anos têm estruturado o direito das
patentes, juntamente com a doutrina e a jurisprudência em torno deles desenvolvida, per-
mite identificar os principais objetivos da exigência da descrição escrita da invenção. Em
termos gerais, ela pretende, (a) comprovar a verificação dos requisitos da patenteabilidade,
a saber, a presença de novidade, de salto inventivo e de aplicação industrial, (b) fundamen-
tar e validar as reivindicações do titular da patente, (c) habilitar os técnicos competentes
a operacionalizar a invenção e (d) divulgar publicamente os conhecimentos subjacentes
ao invento
24
. Vejamos brevemente estes quatro aspetos, sublinhando a íntima relação que
existe entre eles
25
.
Em primeiro lugar, a descrição escrita da invenção deve tornar claro o que distingue a
invenção do estado da arte, ou seja, de todas as coisas até então conhecidas. Além disso, a
mesma deve provar, no plano da pesquisa aplicada, que a invenção está efetivamente com-
pleta, do ponto de vista estrutural e funcional, evitando a concessão de patentes precoces a
desenvolvimentos ocorridos, a montante, em fases iniciais do processo de pesquisa funda-
mental
26
. Este aspeto prende-se, em primeira linha, com a verificação da novidade e do salto
inventivo, embora não esqueça a utilidade gerada, a jusante, pelos resultados da pesquisa. A
descrição escrita deve atestar que a invenção está efetivamente pronta para ser patenteada,
podendo beneficiar do direito de prioridade na proteção.
Em segundo lugar, a descrição escrita pretende igualmente constituir uma fundamen-
tação técnica e racional para as reivindicações da patente, a começar pela delimitação pre-
cisa do seu alcance temporal e avançando para a determinação do âmbito de proteção da
patente diante de reivindicações externas de sentido contrário. A descrição deve demons-
trar que o inventor estava efetivamente na posse do invento que a patente reclama, ou seja,
que o requerente é efetivamente o inventor do objeto reivindicado
27
.
24 C Kevin Emerson – «The Structural Implications of Inventors’ Disclosure Obligations». 69 Vanderbilt Law
Review, 2016, pp.1785 ss.
25 WIPO Patent Drafting Model, Ip Assets Management Series Wold Intellectual Property Organisation, 35 ss.
26 Uma discussão desta problemática pode ver-se em KDmitry – «The Completeness Requirement in
Patent Law». 56, Boston College Law Review, 2015, pp.949 ss.
27 Neste sentido, Frank S. Barker and Willis G. Pehl, 559 F.2d 588; 1977 Ccpa Lexis 128; 194 U.S.P.Q. (Bna) 470
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O monopólio temporário a conceder ao inventor não pode exceder o âmbito do seu
contributo para a arte ou ciência em causa tal como consta da descrição escrita. A reivin-
dicações da patente devem ser claramente definidas. Este aspeto adquire especial relevân-
cia nos casos em que as reivindicações sofrem alterações, dando azo a dúvidas sobre se as
mesmas correspondem ao invento inicialmente patenteado. Esta problemática remete-nos
novamente para a doutrina da habilitação e para as discussões doutrinais em torno do âmbito
da descrição escrita, que consideraremos a seguir.
A descrição escrita deve, em terceiro lugar, habilitar os técnicos com competência nas
artes e ciências em que o invento se insere, ou que lhe estão mais próximas, a obter a respe-
tiva produção, composição ou utilização. Neste ponto manifesta-se o requisito de aplicação
industrial. Este resultado deve ser conseguido a partir da leitura da descrição escrita, sem
que seja necessário proceder a um nível elevado, indevido e inexigível de experimentação,
em termos manifestamente desproporcionais
28
. Nisso se consubstancia já referida a dou-
trina da habilitação (enabling doctrine), que se consubstancia na capacidade de produzir e de
utilizar a invenção, como prescreve o princípio da unidade da invenção
29
.
Finalmente, importa salientar que a descrição escrita tem como objetivo último a par-
tilha, na esfera pública, do conhecimento incorporado na invenção, isto é, dos princípios
técnicos e científicos que lhe estão subjacentes
30
. Essa comunicação pública das especifica-
ções da invenção reveste-se de grande interesse, na medida em que a sua combinação com
outros conhecimentos na mesma ou noutras áreas do saber artístico e científico pode abrir
as portas a ulteriores desenvolvimentos no domínio da pesquisa científica e tecnológica,
favorecendo o surgimento de novas invenções.
Ao mesmo tempo, a divulgação pública do invento previne a duplicação e a redundância
do esforço de pesquisa, contribuindo para uma mais eficiente gestão dos recursos. Por estas
razões, a mesma deve ser levada a cabo com honestidade e boa-fé, embora sem prejudicar
a sua função jurídica de delimitação dos direitos exclusivos do inventor
31
. No seu conjunto,
estas considerações ajudam a iluminar a problemática do âmbito da descrição escrita e a
esclarecer o sentido do chamado princípio da suficiência da descrição escrita.
28 National Recovery Technologies, Inc., Plaintiff-Appellant, V. Magnetic Separation Systems, Inc. And Garry R.
Kenny, Defendants-Appellees, 166 F.3d 1190; 1999 U.S. App. LEXIS 1671; 49 U.S.P.Q.2D (BNA) 1671.
29 PatG § 34 [Patentanmeldung], Schäfers Benkard, Patentgesetz11. Auflage 2015 Rn.84-95.
30 A  Clark D. – «The Informational Value of Patents». 31, Berkeley Technology Law Journal, 2016, pp.259 ss.
31 A Feroz – «Technical Speech: Patents, Expert Knowledge, and the First Amendment». 17 Minnesota Journal of
Law, Science & Technology, 2016, pp.277 ss. e 304 ss.
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3.1.2 Âmbito
A doutrina da habilitação é especialmente útil para a tentativa de compreender o âmbito da
descrição escrita. Trata-se de dois conceitos com áreas quase totalmente sobrepostas, embora
a sua precisa delimitação extravase o âmbito do presente estudo
32
. A exigência de habilita-
ção pretende garantir que o conhecimento público seja enriquecido pela especificação da
patente até um grau pelo menos proporcional ao âmbito das reivindicações. Quer dizer, o
âmbito das reivindicações deve ser inferior ou igual ao âmbito da habilitação, mas nunca
superior. Idealmente, deve existir uma coincidência entre as especificações expressamente
reveladas na descrição escrita e as reivindicações do inventor. Os tribunais devem ter a
preocupação de garantir a correlação entre o escopo da descrição escrita e o escopo das
reivindicações, invalidando as reivindicações que vão além do escopo da descrição escrita.
O âmbito da habilitação, por sua vez, tem sido entendido na jurisprudência como aquilo
que é revelado na especificação juntamente com o âmbito do que seria conhecido por um
especialista na matéria sem ter que incorrer em experimentação indevida
33
. Isso significa
que não é absolutamente necessário que a descrição contenha também os elementos do
estado da arte necessários à produção, composição ou utilização da invenção. Importa ape-
nas que a descrição escrita da invenção contenha as especificações suficientes de forma
a permitir que um técnico competente consiga a partir delas e do seu conhecimento do
estado da arte, produzir, compor ou utilizar a invenção sem necessitar para isso de realizar
um nível indevido, irrazoável e desproporcionado de experimentação, ou seja, no fim de
contas, sem ter que realizar a sua própria e autónoma atividade empírica e científica de
pesquisa, desenvolvimento e invenção, de acordo com os correspondentes métodos de “trial
and error”.
Os tribunais há muito sustentam que a necessidade de alguma experimentação adi-
cional antes de se poder fazer ou usar a invenção não é fatal para a patente. Consequente-
mente, a exigência de habilitação tem em conta as informações divulgadas na especificação
da patente, as informações já disponíveis na arte e ciência pertinente e a informação adicio-
nal que pode ser recolhida pelos especialistas na área através de experimentação adicional
que não seja considerada desproporcional ou “indevida.
34
32 Uma discussão aturada pode ver-se em JMark D. – «Patent Law And Policy Symposium: Re-Engineering
Patent Law: The Challenge Of New Technologies: Part I: Administrative Law Issues: On Courts Herding Cats:
Contending with the “Written Description” Requirement (and Other Unruly Patent Disclosure Doctrines)». 2,
Washington University Journal of Law & Policy, 2000, pp.55 ss.
33 National Recovery Technologies, Inc., Plaintiff-Appellant, V. Magnetic Separation Systems, Inc. And Garry R.
Kenny, Defendants-Appellees, 166 F.3d 1190; 1999 U.S. App. LEXIS 1671; 49 U.S.P.Q.2D (BNA) 1671.
34 D Alan L. – «Patent Scope and Enablement in Rapidly Developing Arts». 94, North Carolina Law Review,
2016, pp.1099 ss. e 1106.
40
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O requisito de “descrição escrita” determina que o titular da patente deve descrever a
invenção. Mas isso não significa, como veremos adiante, que todas as invenções devam
ser descritas exatamente da mesma maneira, com o mesmo grau de detalhe. À medida que
cada domínio da ciência e da técnica progride, também evolui o equilíbrio entre o que é
conhecido e o que é adicionado por cada contribuição inventiva
35
. A exigência legal de des-
crição escrita da invenção deve ser aplicada a cada invenção em particular, tendo em conta
o estado da arte, ou seja, o conhecimento no domínio público.
3.2 O princípio da suficiência descritiva
3.2.1 Consagração legal
Importa analisar o princípio da suficiência descritiva, cuja existência se anunciava a partir
das considerações anteriores. O mesmo preocupa-se com a identificação dos “requisitos da
especificação” que a descrição escrita deve satisfazer. Ele tem acolhimento no Artigo 24 da
LPI onde se diz:
“O relatório deverá descrever clara e suficientemente o objeto, de modo a possibilitar
sua realização por técnico no assunto e indicar, quando for o caso, a melhor forma de exe-
cução.
Parágrafo único. No caso de material biológico essencial à realização prática do objeto
do pedido, que não possa ser descrito na forma deste artigo e que não estiver acessível ao
público, o relatório será suplementado por depósito do material em instituição autorizada
pelo INPI ou indicada em acordo internacional.
Por seu lado, o Artigo 25 do mesmo diploma estatui:
As reivindicações deverão ser fundamentadas no relatório descritivo, caracterizando
as particularidades do pedido e definindo, de modo claro e preciso, a matéria objeto da
proteção.
Mais adiante, o artigo 50º/2 da LPI comina a consequência jurídica da nulidade para as
patentes que não satisfaçam a exigência de suficiência descritiva. Aí se dispõe:
Art. 50. A nulidade da patente será declarada administrativamente quando:
II – o relatório e as reivindicações não atenderem ao disposto nos arts. 24 e
25, respectivamente;
35 Salientando este ponto, Daniel J. Capon (et alia) 418 F.3d 1349; 2005 U.S. App. Lexis 16865; 76 U.S.P.Q.2d (Bna) 1078.
41
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As exigências legais constantes da LPI correspondem ao teor de normas congéneres nos
mais diversos ordenamentos jurídicos
36
. Parafraseando parte do artigo 24.ºda LPI, pode-
mos dizer que o princípio da suficiência pretende determinar em que medida é que a descri-
ção escrita da patente consegue transmitir de forma clara e suficiente o objeto da invenção,
de modo a possibilitar sua realização por técnico no assunto e indicar, quando for o caso,
a melhor forma de execução. Essa determinação é tanto mais importante quanto é certo
que a introdução de ruído, incerteza e insegurança jurídica no sistema de proteção patentária
pode ter consequências económicas deletérias para os titulares das patentes, traduzidas no
risco de desvalorização significativa das mesmas, e para a comunidade técnica e científica
globalmente considerada.
Não obstante, a determinação do grau de suficiência da descrição escrita não se afi-
gura isenta de controvérsia
37
. Se é certo que o princípio da suficiência da descrição escrita
consubstancia uma exigência de otimização, também é verdade que o mesmo consagra uma
abertura à ponderação com outros princípios
38
. Em causa está a delicada e difícil operação de
procura do equilíbrio adequado entre a cobertura da proteção jurídica das patentes e a real
extensão da contribuição de um inventor. Se os tribunais limitarem o âmbito de proteção
de patentes aos exemplos específicos revelados na patente, os concorrentes poderiam facil-
mente contornar a patente através de pequenas alterações ao design. Mas se a proteção
for garantida de maneira demasiado generosa, o titular da patente pode obter benefícios
jurídicos e económicos inesperados que acabarão por travar o progresso técnico no futuro.
Reivindicações patentárias demasiado abrangentes podem impedir o processo cientí-
fico e técnico desencorajando a iniciativa de novos inventores, ao passo que reivindica-
ções menos abrangentes podem remunerar insuficientemente os inventores já existente,
travando também por essa via o progresso técnico. Como é sublinhado no WIPO Patent
Drafting Model, o agente de patentes deve usar seu melhor julgamento para não pecar por
excesso ou por defeito, isto é, para equilibrar as suas preocupações sobre ser subinclusivo
na especificação, deixando de fora matérias essenciais para a caracterização da invenção,
ou sobreinclusivo, abrangendo muitos aspetos desnecessários e que não sejam efetivamente
reivindicados no pedido
39
.
36 Cfr. por exemplo, 35 § U.S.C. 112 do United States Code.
37 Cfr. S Perry J. e L Kerry W. – «Describing A Design – When Enough is Enough!: Clarifying the
35 U.S.C. § 112 Written Description Requirement for Design Patents». 97, Journal of the Patent and Trademark Oce
Society, 2015, pp.256 ss.
38 DAlan L. – «Patent Scope And Enablement In Rapidly Developing Arts». 94, North Carolina Law Review,
2016, pp.1099 ss.
39 WIPO Patent Drafting Model, IP Assets Management Series Wold Intellectual Property Organisation, 21 ss.
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3.2.2 O sentido geral do princípio
Deve assinalar-se, desde logo, que o princípio da suficiência impõe uma descrição das
características inovadoras ou não convencionais relevantes que permitem identificar e
diferenciar o invento, devendo a mesma ser levada a cabo com um grau de detalhe e espe-
cificação que permita a sua operacionalização (redução à prática) por técnicos competentes
nas áreas técnicas e científicas por ele convocadas. Manifesta-se, aqui, a já anteriormente
apontada ligação íntima entre a descrição escrita e a doutrina da habilitação.
A descrição escrita deve ser mais do que um mero programa de pesquisa e muito mais do
que uma simples licença de caça
40
. Do mesmo modo, entende-se que as descrições escritas
que se limitem a detalhar o problema a ser resolvido e contenham meras hipóteses de pes-
quisa não satisfazem o princípio da suficiência. A patente deve descrever a estrutura e a
função da invenção sem se limitar a sugerir um caminho, método ou percurso que poderá,
se e quando percorrido, conduzir à invenção
41
. A especificação não necessita de divulgar, e
de preferência omite, informações que já seriam conhecidas pelos especialistas
42
.
Dito isto, a doutrina e a jurisprudência têm militado contra a imposição de requisitos
de descritibilidade desproporcionada e injustificadamente elevados. Uma vez verificados
todos os requisitos da patenteabilidade, ou seja, a novidade, o salto inventivo e a aplicação
industrial – ou seja, a existência de uma invenção completa, funcional e dotada de utilidade
prática – os tribunais tendem a invalidar as patentes por insuficiência descritiva somente
nos casos em que seja evidente a disparidade entre a descrição e as reivindicações ou a
impossibilidade de a descrição ser razoavelmente apta a habilitar a operacionalização do
invento por técnicos especializados na arte ou ciência relevante sem experimentação exces-
siva adicional.
A determinação do sentido do conceito de suficiência descritiva deve ser feita com base
em critérios de adequação, razoabilidade e proporcionalidade, apoiados numa boa base
factual, tendo em conta a tecnologia em causa, o estado da arte e os técnicos envolvidos.
Nalguns casos, mesmo com uma boa descrição escrita a reprodução do invento pode exigir
experimentação adicional sem que isso demonstre, por si só, a insuficiência descritiva da
patente
43
.
40 Neste sentido, University of Rochester v. G.D. Searle & Co., No. 03-1304 (Fed. Cir. Feb. 13, 2004).
41 Neste sentido, Ariad Pharmaceuticals, Inc. v. Eli Lilly & Co, 598 F.3d 1336 (Fed. Cir. 2010) (en banc).
42 D Alan L. – «Patent Scope and Enablement in Rapidly Developing Arts». 94, North Carolina Law Review,
2016, pp.1099 ss.
43 Sublinhando este ponto, B Dunstan H. – «Technically Speaking, Does It Matter? An Empirical Study
Linking the Federal Circuit Judges’ Technical Backgrounds to How They Analyze the Section 112 Enablement
and Written Description Requirements». 88 Chicago-Kent Law Review, 2013, pp.971 ss., 977 e 1003 ss.
43
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A decisão sobre se a experimentação adicional é excessiva, indevida ou desproporcional
não é uma simples determinação factual, mas antes uma conclusão alcançada pela ponde-
ração de muitas considerações factuais. A doutrina e a jurisprudência tendem a sustentar
que estas considerações se referem à relação entre a invenção reivindicada, as divulgações
incluídas na especificação da patente, e os conhecimentos e habilidades técnicos com habi-
lidade normal.
Uma lista bem estabelecida de fatores, conhecidos como fatores Wand, figura rotinei-
ramente nas decisões sobre a habilitação do Tribunal de Apelação do Circuito Federal, a
instância que nos Estados Unidos mais se ocupa destas matérias
44
. Esses fatores são:
(1) a quantidade de experimentação necessária;
(2) a quantidade de diretrizes ou orientações apresentadas;
(3) a presença ou ausência de exemplos de trabalho;
(4) a natureza da invenção;
(5) o estado da técnica anterior;
(6) a habilidade relativa dos especialistas na técnica;
(7) a previsibilidade ou imprevisibilidade da arte;
(8) a amplitude das reivindicações.
Mas para compreender melhor o princípio da suficiência importa analisar mais de
perto as questões respeitantes à informação que a descrição escrita deve conter e como é
que essa informação deve ser apresentada. Trata-se de duas questões decisivas para a vali-
dação das descrições escritas.
3.2.3 O valor informativo e demonstrativo da descrição escrita
Relativamente à informação que deve constar da descrição escrita, alguns entendem que,
nas patentes de utilidade, as mesmas devem especificar, de forma tão detalhada quanto
possível, todas as características estruturais e funcionais da invenção, de forma a retratar
e explicar os seus mais diversos aspetos. Contudo, esta posição maximalista é considerada
desnecessária e ineficiente do ponto de vista dos inventores, das autoridades nacionais de
propriedade intelectual e dos próprios tribunais
45
.
44 In re Wands, 858 F.2d 731, 737, 8 USPQ2d 1400, 1404 (Fed. Cir. 1988)
45 Sobre as várias posições em confronto, veja-se, S Perry J. e LKerry W. – «Describing A Design –
When Enough is Enough!: Clarifying the 35 U.S.C. § 112 Written Description Requirement for Design Patents».
97, Journal of the Patent and Trademark Oce Society, 2015, pp.256 ss.
44
Sistemas de patentes e princípio da suficiência descritiva…
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Casos há em que os tribunais se têm contentado com a apresentação de desenhos,
considerando com isso estar diante de uma descrição suficiente para efeitos de concessão
de patente
46
. Nestes casos, os tribunais tendem a considerar desnecessária uma descrição
detalhada de todas as características da invenção se as mesmas estiverem representadas
num desenho. Os detalhes menores podem ser omitidos da divulgação, na expectativa de
que os especialistas na matéria, armados com o conhecimento geral disponível para tais
pessoas, possam preencher lacunas e extrapolarem conforme necessário para praticar a
invenção reivindicada
47
. O importante é assegurar que as características que são associadas
à invenção reclamada se encontrem de algum modo representadas na descrição escrita.
O requerente da patente deve não apenas habilitar os técnicos a reproduzir o evento sem
dificuldades desmedidas, como também demonstrar-lhes, e ao público em geral, que estava
na posse do evento por si reclamado, ou seja, que efetivamente dominava, no plano intelec-
tual e técnico, a sua estrutura e o seu modo de funcionamento
48
. Alguma jurisprudência
considera que esta demonstração é, na verdade, a principal função da descrição escrita
49
.
Ela impede que o inventor obtenha uma patente com um âmbito de proteção maior do que
a sua efetiva contribuição para o setor técnico e científico relevante
50
.
3.2.4 Tecnologias previsíveis e imprevisíveis
Um outro aspeto muito importante prende-se com a natureza previsível ou imprevisível
das tecnologias em presença
51
. Subjacente a esta distinção encontra-se a noção de que a
determinação do que seja necessário para sustentar reivindicações genéricas de uma dada
matéria depende de um conjunto diversificado de variáveis, tais como o conhecimento
existente no campo específico, a extensão e o conteúdo da técnica anterior, a maturidade
da ciência ou tecnologia, a previsibilidade do aspeto em questão e outras considerações
apropriadas ao assunto em causa
52
.
46 Vas-Cath, Inc. v. Mahurkar (CA FC) 19 USPQ2d 1111, 935 F2d 1555.
47 Sublinhando este ponto, D Alan L. – «Patent Scope and Enablement in Rapidly Developing Arts». 94,
North Carolina Law Review, 2016, pp.1099 ss. e 1106 ss.
48 No caso Vas-Cath, Inc. v. Mahurkar (CA FC) 19 USPQ2d 1111, 935 F2d 1555, (1563-1564.) o tribunal sustentou que
“o objetivo da exigência de descrição escrita’ é mais amplo do que meramente explicar como ‘fazer e usar’; o
requerente deve também transmitir com clareza razoável para os peritos na arte que, a partir da data de depósito
pretendida, ele ou ela estava na posse da invenção. A invenção é, para os efeitos da investigação em torno da
“descrição escrita, aquilo que é agora reivindicado.
49 Ariad Pharms., Inc. v. Eli Lilly and Co, 598 F.3d 1336 (Fed. Cir. 2010) (en banc).
50 Neste sentido, B Dunstan H. – «Technically Speaking, Does It Matter? An Empirical Study Linking the
Federal Circuit Judges’ Technical Backgrounds to How They Analyze the Section 112 Enablement and Written
Description Requirements». 88 Chicago-Kent Law Review, 2013, pp.971 ss. e 976.
51 Esta distinção é desenvolvida no caso Ariad Pharms., Inc. v. Eli Lilly and Co, 598 F.3d 1336 (Fed. Cir. 2010) (en banc).
52 Neste sentido, Daniel J. Capon (et alia) 418 F.3d 1349; 2005 U.S. App. Lexis 16865; 76 U.S.P.Q.2d (Bna) 1078.
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De um modo geral, a doutrina e a jurisprudência consideram que as novas tecnologias
(v.g. software, ótica, biotecnologia, inteligência artificial, internet das coisas) são menos
previsíveis do que as tecnologias mecânicas, elétricas e químicas. As novas tecnologias, que
se encontram em fases iniciais de desenvolvimento e são menos conhecidas, carecem de
uma maior especificação na descrição escrita. Tanto mais quanto é certo que algumas delas
tendem a revelar um grau extremo e sem paralelo de complexidade e miniaturização (v.g.
biotecnologia). Nalguns casos, o grau de pormenorização pode exigir a divulgação precisa
de uma sequência de bases de DNA
53
. Nestas áreas, alterações aparentemente insignifican-
tes podem ter grandes consequências nos planos estrutural e funcional.
Nestes domínios, o risco de reivindicações excessivamente abrangentes é maior.
À semelhança do que sucede relativamente à satisfação da exigência de habilitação,
os inventores podem ter que fornecer uma quantidade maior de detalhes para satisfa-
zer a exigência da descrição escrita em patentes respeitantes a artes e ciências novas e
imprevisíveis (v.g. biotecnologia) do que quando se trate de patentes envolvendo outros
assuntos
54
.
Diferentemente, as tecnologias de base mecânica ou elétrica, por serem mais conhe-
cidas pela comunidade científica e técnica, são mais previsíveis, sendo por esse motivo
menor o grau de detalhe exigível na descrição escrita da patente. Estudos empíricos recen-
tes mostram uma maior propensão dos tribunais para invalidarem patentes com base na
insuficiência descritiva nas tecnologias novas e imprevisíveis, onde a exigência de detalhe
é maior, relativamente ao que sucede com as tecnologias mais conhecidas e previsíveis,
onde a exigência de detalhe é menor
55
.
Com efeito, diante das tecnologias mais conhecidas e previsíveis, a função habilitadora
da patente pode ser cumprida de maneira suficiente sem que a descrição escrita tenha que
incluir aspetos que se consideram adquiridos no estado da arte. O grau de pormenorização
necessário para satisfazer a suficiência de descrição escrita varia em função da natureza
e do âmbito das reivindicações e da complexidade e previsibilidade da tecnologia perti-
nente
56
.
53 The Regents of the University of California V. Eli Lilly, 119 F.3d 1559; 1997 U.S. App. LEXIS 18221; 43 U.S.P.Q.2D
(BNA) 1398.
54 B Dunstan H. – «Technically Speaking, Does It Matter? An Empirical Study Linking the Federal Circuit
Judges’ Technical Backgrounds to How They Analyze the Section 112 Enablement and Written Description
Requirements». 88 Chicago-Kent Law Review, 2013, pp.971 ss. e 1002 ss.
55 Veja-se, neste sentido, o exaustivo estudo empírico levado a cabo por A, John R. e O, Lisa
Larrimore – «How Courts Adjudicate Patent Definiteness And Disclosure». 65, Duke Law Journal, 2016,
pp.609ss.
56 Neste sentido, Daniel J. Capon (et alia) 418 F.3d 1349; 2005 U.S. App. Lexis 16865; 76 U.S.P.Q.2d (Bna) 1078; Ariad
Pharms., Inc. v. Eli Lilly and Co, 598 F.3d 1336 (Fed. Cir. 2010) (en banc).
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Depois de analisarem esta dicotomia, Perry J. S e Kerry L sublinham
um ponto que se afigura inteiramente pertinente e que sintetiza a orientação geralmente
seguida pela jurisprudência. Em seu entender, embora a lei seja a mesma para as artes “pre-
visíveis” e “imprevisíveis”, será geralmente mais difícil satisfazer a exigência de suficiência
da descrição escrita nas artes “imprevisíveis”
57
.
Isto, sem prejuízo de se admitir que mesmo nas tecnologias imprevisíveis e em rápido
desenvolvimento os tribunais exageram nas suas exigências de detalhe descritivo
58
. Este
problema pode ser tanto mais grave quanto existe a tendência, visível em todos os domí-
nios, no sentido de as empresas radicadas num determinado setor tecnológico optarem,
consoante a oportunidade, por intentar ações judiciais de infração ou invalidação total ou
parcial de patentes – estratégia que a doutrina designa por “bullying patentário” – contra
empresas inovadoras, com o objetivo de, por essa via, eliminar a concorrência atual ou
potencial
59
.
Como quer que seja, daqui resulta uma incontornável conclusão, que se reveste de
grande interesse prático: se existir alguma coisa que não tenha sido claramente revelada na
descrição escrita, mas que seja previsível para um especialista na técnica pertinente, deve
ainda assim considerar-se observado o princípio da suficiência descritiva. O princípio da
proporcionalidade em sentido amplo obriga a que não sejam feitas exigências descritivas
excessivas
60
, sob pena de o princípio da suficiência descritiva ser convertido num princípio de
exaustividade descritiva, sem que para tal exista base legal ou constitucional.
3.2.5 Modo de apresentação
A descrição escrita da patente inclui, normalmente, um sumário da invenção, uma des-
crição detalhada da mesma e os correspondentes desenhos
61
. A este propósito, importa
afirmar a sedimentação, na doutrina e na jurisprudência, de um dever de clareza, preci-
são e determinabilidade. Descrições escritas suficientemente claras e precisas fundamen-
57 S, Perry J. e L, Kerry W. – «Describing A Design – When Enough is Enough!: Clarifying the 35
U.S.C. § 112 Written Description Requirement for Design Patents”, 97, Journal of the Patent and Trademark Oce
Society, 2015, 259 ss.; Dunstan H. Barnes, “Technically Speaking, Does It Matter? An Empirical Study Linking the
Federal Circuit Judges’ Technical Backgrounds to How They Analyze the Section 112 Enablement and Written
Description Requirements». 88 Chicago-Kent Law Review, 2013, pp.971 ss. e 1002ss.
58 Este é o sentido geral da crítica formulada por DAlan L. – «Patent Scope And Enablement In Rapidly
Developing Arts». 94, North Carolina Law Review, 2016, pp.1099 ss.
59 Uma análise do problema do “bullying” de patentes pode ver-se em S Ted – «The Vonage Trilogy: A
Case Study In “Patent Bullying». 90, Notre Dame Law Review, 2014, pp.543 ss.,
60 PatG § 34 [Patentanmeldung], Schäfers Benkard, Patentgesetz 11. Auflage 2015 Rn.80-85a
61 B Dunstan H. – «Technically Speaking, Does It Matter? An Empirical Study Linking the Federal Circuit
Judges’ Technical Backgrounds to How They Analyze the Section 112 Enablement and Written Description
Requirements». 88 Chicago-Kent Law Review, 2013, pp.971 ss. e 975 ss.
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tam reivindicações mais resistentes à litigância, menos litigância, invenções mais úteis e
funcionais, procedimentos mais céleres de registo, patentes com maior valor de mercado,
royalties mais elevados para os detentores das patentes, mais investimento em investigação
e desenvolvimento e maiores possibilidades de progresso científico e tecnológico. Por seu
lado, as vantagens que poderiam resultar da ambiguidade descritiva e reivindicativa – que
também as há – são consideradas abusivas, injustas e indesejáveis
62
.
Uma vez que a descrição variará inevitavelmente em pormenor, a forma da divulga-
ção também poderá variar em função da tecnologia em questão. Como resultado, podem
e devem ser utilizados diferentes métodos de divulgação para descrever suficientemente
uma invenção de modo que seja compreendida por alguém com uma competência média
na arte ou ciência em questão. O princípio da suficiência descritiva é compatível com diferen-
tes modalidades de concretização consoante as tecnologias e as invenções em causa.
Significa isto, entre outras coisas, que a descrição escrita não tem que se limitar apenas
a palavras e desenhos
63
. Ela pode incluir, além disso, diferentes ilustrações, como sejam,
imagens, fotografias, diagramas, fórmulas e estruturas
64
. Neste caso, impõe-se a presença
de uma explicação sucinta suficientemente próxima da ilustração utilizada. A presença de
elementos visuais com níveis elevados de qualidade e especificação pode tornar menos
necessária uma extensa pormenorização por escrito
65
. A descrição escrita da patente deve
procurar ser razoavelmente clara, precisa e determinada, evitando termos ou formulações
desnecessariamente vagas ou ambíguas. Preferivelmente, ela deve distinguir de forma
clara as reivindicações não funcionais das funcionais, procedendo à identificação e porme-
norização das correspondentes estruturas
66
.
Se a invenção introduz um melhoramento incremental num sistema já existente, a
descrição deve centrar-se na respetiva pormenorização não sendo necessária a descrição
pormenorizada de todo o sistema. Importa, acima de tudo, assinalar e especificar a parte,
melhoria ou combinação do sistema que é reivindicada como invenção
67
. O fundamental é
que a descrição escrita identifique claramente o elemento inventivo da patente
68
. A satisfa-
62 B Norris – «Exercising a Duty of Clarity: Nautilus, Inc. v. Biosig Instruments, Inc». 30 Berkeley Technology
Law Journal, 2015, pp.445 ss.
63 PatG § 3 [Begriff der Neuheit] Melullis Benkard, Patentgesetz11. Auflage 2015 Rn.90-115
64 S Perry J. e LKerry W. – «Describing A Design – When Enough is Enough!: Clarifying the 35
U.S.C. § 112 Written Description Requirement for Design Patents». 97, Journal of the Patent and Trademark Oce
Society, 2015, pp.258 ss.
65 M, Jason Du e J, Mark D. – «Disclosing Designs». 69, Vanderbilt Law Review, 2016, pp.1631 ss.
66 B Norris – «Exercising a Duty of Clarity: Nautilus, Inc. v. Biosig Instruments, Inc». 30 Berkeley Technology
Law Journal, 2015, pp.445 ss.
67 Neste sentido se pronunciavam já os Patent Acts norte-americanos de 1836 e 1870.
68 Sobre este aspeto, B Norris – «Exercising a Duty of Clarity: Nautilus, Inc. v. Biosig Instruments, Inc». 30
Berkeley Technology Law Journal, 2015, 445 ss., 479 ss.
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ção do critério da suficiência deve ser entendida à luz da realidade da invenção e da patente
como um todo, no quadro de uma abordagem casuística, factual e contextual.
Isto significa, desde logo, que não basta olhar exclusivamente para a patente e para a
descrição escrita nela contida. É necessário atender, desde logo, à natureza mais ou menos
previsível da arte e da ciência em causa, com as implicações que isso tem no plano da exi-
gência de detalhe. Além disso, importa considerar todo o contexto da patente, ou seja, a
informação disponível no estado da arte, que se reveste da maior importância para a com-
preensão e reprodução da invenção.
A isso acresce, ainda no contexto da patente, a informação sobre a vigência da patente, a
sua importância comercial, a sujeição a licenças e outros ónus ou a sua detenção por razões
defensivas ou ofensivas, por exemplo. Tudo isso influencia o modo como o conteúdo inven-
ção é (ou não) difundido durante e após o termo da patente. Uma análise contextual é tanto
mais importante quanto é certo que a patente é um texto híbrido, com um pendor a um
tempo científico e jurídico, em que a componente jurídica sobressai ao ponto de a patente
não poder ser cabalmente entendida, lida e interpretada como se fosse simplesmente um
artigo de divulgação científica e técnica
69
.
O essencial é que a divulgação efetuada na descrição escrita transmita razoavelmente
aos especialistas na ciência e na técnica que o inventor estava efetivamente na posse da
matéria reivindicada na data do depósito. Por outras palavras, o que importa é que as ilus-
trações constantes da descrição escrita constante da patente mostrem claramente todas as
características do design nalgum contexto, de modo a provar que o inventor tinha o domí-
nio de cada característica no momento em que o projeto foi originalmente divulgado
70
.
A aplicação das exigências de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido
estrito, que densificam o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, impõe o entendi-
mento de que embora seja necessário que o requerente de uma patente ofereça ao público
uma divulgação completa e adequada em troca da concessão da patente, a certeza exigida
da divulgação não pode ser superior à que é razoável tendo devidamente em conta o assunto
envolvido
71
. Verifica-se uma habilitação suficiente ainda que a mesma se baseie, em parte,
no conhecimento tácito do estado da arte de um especialista na matéria, não sendo necessá-
ria a exigência de que a habilitação requer a divulgação de todos os detalhes da invenção
72
.
69 Estes e outros aspetos são destacados por C Colleen V. – «Contextualizing Patent Disclosure». Vanderbilt
Law Review, 2016, pp.1849 ss.
70 Neste mesmo sentido, In Re Timothy S. Owens, 710 F.3d 1362; 2013 U.S. App. LEXIS 5947; 106 U.S.P.Q.2D (BNA)
1248; In Re Scott J. Daniels 144 F.3d 1452; 1998 U.S. App. LEXIS 10171; 46 U.S.P.Q.2D (BNA) 1788.
71 Neste sentido, In Re Storrs 44 C.C.P.A. 981; 245 F.2d 474; 1957 CCPA LEXIS 149; 114 U.S.P.Q. (BNA) 293
72 Neste sentido, Invitrogen Corporation, 429 F.3d 1052; 2005 U.S. App. LEXIS 24810; 77 U.S.P.Q.2D (BNA) 1161
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3.2.6 Divulgação do conhecimento
As patentes são ferramentas de comunicação através das quais divulgamos e validamos
os avanços científicos e tecnológicos. Trata-se de uma forma de comunicação que, sendo
protegida pela liberdade de expressão, se encontra constitucionalmente vinculada ao pro-
gresso científico e ao desenvolvimento tecnológico e económico.
Ao conceder patentes, o sistema de patentes desempenha a função de divulgação e cer-
tificação do conhecimento especializado desenvolvido em várias disciplinas científicas e
técnicas
73
.
4. Conclusão
A dignidade constitucional do direito de propriedade intelectual (latu sensu) é inteiramente
compreensível atenta a relevância económica, social e cultural do conhecimento científico
e do progresso tecnológico.
Da Constituição Brasileira resultam importantes implicações substantivas e proces-
suais para a produção, interpretação e aplicação do direito infraconstitucional, no que toca
à promoção e proteção da atividade intelectual e criativa. Essa proteção é concretizada, nal-
guns dos seus aspetos fundamentais, na Lei da Propriedade Industrial, a Lei 9.279/96, 14 de
maio, doravante por nós designada de LPI.
Uma das funções do sistema de patentes consiste na divulgação dos conhecimentos
que conduziram à invenção, donde resulta a exigência de uma descrição da invenção, a
oferecer pelo inventor, como condição de atribuição de uma patente.
O princípio da suficiência pretende determinar em que medida é que a descrição escrita
da patente consegue transmitir de forma clara e suficiente o objeto da invenção, de modo
a possibilitar sua realização por técnico no assunto e indicar, quando for o caso, a melhor
forma de execução.
Se é certo que o princípio da suficiência da descrição escrita consubstancia uma exigên-
cia de otimização, também é verdade que o mesmo consagra uma abertura à ponderação com
outros princípios, na busca do equilíbrio adequado entre a cobertura da proteção jurídica
das patentes e a real extensão da contribuição de um inventor.
O princípio da suficiência impõe uma descrição das características inovadoras ou não
convencionais relevantes que permitem identificar e diferenciar o invento, devendo a
mesma ser levada a cabo com um grau de detalhe e especificação que permita a sua ope-
73 Ali, Feroz – «Technical Speech: Patents, Expert Knowledge, and the First Amendment». 17 Minnesota Journal of
Law, Science & Technology, 2016, pp.277 ss.
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racionalização (redução à prática) por técnicos competentes nas áreas técnicas e científicas
por ele convocadas.
A patente deve descrever a estrutura e a função da invenção sem se limitar a sugerir
um caminho, método ou percurso que poderá, se e quando percorrido, conduzir à invenção.
Uma vez verificados todos os requisitos da patenteabilidade, ou seja, a novidade, o salto
inventivo e a aplicação industrial, os tribunais tendem a invalidar as patentes por insufi-
ciência descritiva somente nos casos em que seja evidente a disparidade entre a descrição
e as reivindicações ou a impossibilidade de a descrição ser razoavelmente apta a habilitar a
operacionalização do invento por técnicos especializados na arte ou ciência relevante sem
experimentação excessiva adicional.
A determinação do sentido do conceito de suficiência descritiva deve ser feita com base
em critérios de adequação, razoabilidade e proporcionalidade, apoiados numa boa base fac-
tual, tendo em conta a tecnologia em causa, o estado da arte e os técnicos envolvidos.
Nalguns casos, mesmo com uma boa descrição escrita a reprodução do invento pode
exigir experimentação adicional sem que isso demonstre, por si só, a insuficiência descri-
tiva da patente.
A descrição escrita não tem que ser exaustiva; o importante é assegurar que as caracte-
rísticas que são associadas à invenção reclamada se encontrem de algum modo represen-
tadas na descrição escrita.
A determinação do que seja necessário para sustentar reivindicações genéricas de uma
dada matéria depende de um conjunto diversificado de variáveis, tais como o conhecimento
existente no campo específico, a extensão e o conteúdo da técnica anterior, a maturidade
da ciência ou tecnologia, a previsibilidade do aspeto em questão e outras considerações
apropriadas ao assunto em causa.
O grau de pormenorização necessário para satisfazer a suficiência de descrição escrita
varia em função da natureza e do âmbito das reivindicações e da complexidade e previsibi-
lidade da tecnologia pertinente.
Se existir alguma coisa que não tenha sido claramente revelada na descrição escrita,
mas que seja previsível para um especialista na técnica pertinente, deve ainda assim consi-
derar-se observado o princípio da suficiência descritiva.
Tendo em conta a complexidade de muitas invenções a que assistimos hoje, quando
se fala na necessidade de descrição escrita da patente ser suficientemente clara e precisa
para constituir uma habilitar um técnico especializado para a reprodução e utilização do
invento, isso pode referir-se, com mais propriedade, não a um único técnico individual-
mente considerado mas sim à intervenção de uma equipa multidisciplinar e multifuncio-
nal de técnicos especializados nas artes e ciências relevantes, cuja atuação concertada é
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adequada e necessária à luz da complexidade das tarefas envolvidas na reprodução e utili-
zação de uma invenção.
A satisfação do critério da suficiência deve ser entendida à luz da realidade da invenção
e da patente como um todo, no quadro de uma abordagem casuística, factual e contextual,
e tomando em linha de conta o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, nas suas
diversas dimensões.
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Pandemia e teletrabalho no Brasil:
aspectosgerais
1
Pandemia and tele‑work in Brazil: general aspects
BRUNA CASIMIRO SICILIANI
2
bruna.siciliani@gmail.com
BRUNA DIER
3
LUCIANE CARDOSO BARZOTTO
4
lcardoso@trt4.jus.br
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
January Janeiro–30
TH
June Junho 2020 · pp. 52‑76
DOI: http://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.1.3
Submitted on March 27
th
, 2020 · Accepted on June 4
th
, 2020
Submetido em 27 de Março, 2020 · Aceite a 4 de junho, 2020
SUMÁRIO I. Introdução. II. Teletrabalho antes da pandemia. III. Teletrabalho depois
da pandemia. IV. Direitos fundamentais do teletrabalhador em tempos de pandemia.
V.Aimportância da negociação coletiva. VI. Conclusão. VII. Índice bibliográfico.
I. INTRODUÇÃO
De acordo com a Organização Internacional do Trabalho – OIT, o COVID -19, também
conhecido popularmente no Brasil como Coronavírus, vai acabar com até 195 milhões de
empregos globalmente apenas no segundo trimestre de 2020. A partir de uma legislação
emergencial de calamidade pública, o teletrabalho tem sido utilizado em vários países do
mundo, em maior ou menor grau, como forma de manutenção do emprego, em função do
isolamento social e confinamento necessários para evitar a disseminação do vírus. Esta
inserção se dá num contexto de digitalização sempre maior no mundo do trabalho, no para-
1 O presente artigo é versão atual ampliada da publicação “Teletrabalho antes e depois da pandemia: a importância
da negociação coletiva” na Revista Justiça do Trabalho, v. 37, 2020.
2 Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestrado em Direito pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Especialização em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul.
3 Mestrado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Especialização em Direito do Estado pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
4 Professora adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professora permanente do Programa de Pós-
-Graduação em Direto da UFRGS. Doutorado em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Pós -doutorado
pela Universidade de Edimburgo. Juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região.
53
Pandemia e teletrabalho no Brasil: aspectosgerais
BRUNA CASIMIRO SICILIANI | BRUNA DIER | LUCIANE CARDOSO BARZOTTO
GALILEU · e‑ISSN 2184‑1845 · Volume XXI · Issue Fascículo 1 · 1
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digma da indústria 4.0, como o modelo de produção em que tudo está conectado, se comu-
nica e é compartilhado.
De modo geral, o teletrabalho foi o principal meio adotado pelas empresas para tentar
manter parte da sua capacidade produtiva no momento de isolamento do coronavírus. No
entanto, é evidente que o seu impacto não foi igual nas diversas sociedades, por diversas
razões: dificuldades para “controle de produtividade, estranhamento do teletrabalhor, difi-
culdades técnicas, econômicas, sociais, em razão da estagnação da produção do consumo
de bens e serviços.
Além disso, existem profissões extremamente presenciais que impedem o uso do tele-
trabalho – e especial referem -se ao setor da saúde. Portanto, estamos diante muitas empre-
sas que correm o risco fechar as portas de forma temporária e até definitiva, durante este
estado de calamidade que dura até dezembro de 2020, no caso brasileiro.
Sobre o teletrabalho, a Reforma Trabalhista, Lei n.13.467/2017 acrescentou 05 (cinco) arti-
gos na CLT. Na MP 927, alguns destes artigos foram relativizados enquanto duraroestado
de calamidade pública, mediante a regulação do teletrabalho nos artigos3.º, 4.º e 5.º.
Ao que se compreende, diferentemente, de outras estratégias para o enfrentamento dos
impactos da pandemia do Coronavírus, o teletrabalho não parece ser um fenômeno ocasional.
Verifica -se que o teletrabalho veio para se estabelecer e modificar as relações de trabalho. Se
o seu tratamento antes era de exceção, agora está sendo a regra e, talvez, permaneça deste modo
para algumas atividades. Empregadores que antes não visualizavam o teletrabalho como uma
oportunidade, pois a presença dos seus empregados era a forma de controlar o desempenho
e produtividade de seus trabalhadores, atualmente se veem na obrigação de se ajustar e apos-
tar nas ferramentas tecnológicas para prosperarem com suas empresas e manter empregos.
Diante desse cenário, a negociação coletiva revela sua importância como instrumento
eficaz para a regulamentação das relações trabalhistas em regime de teletrabalho devido
ao uso dos meios telemáticos por elevado número de categorias profissionais. Embora não
obrigatória, a participação do sindicato é bem vinda para a garantia dos direitos fundamen-
tais dos trabalhadores que foram lançados no mundo do teletrabalho.
Por isso, neste curto artigo, por meio do método dedutivo e valendo -se de revisão biblio-
gráfica, será analisado o regramento do teletrabalho, antes e depois da pandemia, no con-
texto da legislação brasileira
5
, para então tecer considerações acerca da relevância da nego-
ciação coletiva neste panorama.
5 No Brasil o Decreto Legislativo no 6, de 20 de março de 2020, do Congresso Nacional reconheceu o estado de
calamidade pública. Seguiram -se as seguintes normas, até 7 de abril de 2020: Leino 13.979, de 6 de fevereiro de
2020, Leino 13.982, de 2 de abril de 2020, Decretono 10.278, de 18 de março de 2020, Decreto n.º 10.288, de 22.3.2020,
Decreto n.º 10.289 de 24.3.2020, Decreto n.º 10.300, de 30.3.2020, Decreto n.º 10.285, de 20.3.2020, Decreto n.º
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II. TELETRABALHO ANTES DA PANDEMIA
Precisamos situar o teletrabalho num contexto de economia do compartilhamento que se
digitaliza cada vez mais
6
.
Mudanças de paradigma produtivo como se tem referido à da indústria 4.0 e gig eco-
nomy se expressam no termo digitalização do mundo do trabalho.
Teletrabalho é uma das expressões da digitalização do mundo do trabalho, o qual se
insere, atualmente neste contexto maior, da digitalização do mundo do trabalho. O teletra-
balho pode se dar modernamente mediante crowdwork, o chamado trabalho da multidão,
o qual expressa o trabalho digital tanto da forma o via aplicativos (sob demanda), como da
forma on line, através de plataformas, em uma espécie de fragmentação de uma determi-
nada atividade, a qual é desempenhada por micro tarefas fatiadas, divididas e distribuídas
entre uma série de trabalhadores
7
. Mas também pode referir -se a qualquer trabalho feito
mediante tecnologia da informação.
O que se observa no trabalho remoto e no trabalho tecnológico em geral é o problema
da regulação insuficiente, ou ausência de fiscalização que tende a levar o trabalhador a um
excesso de produtividade e talvez de esgotamento por se dar longe do controle físico do
empregador ou tomador de serviços.
Em 2017, a Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de Vida e de Trabalho e a
Organização Internacional do o relatório sobre “trabalhando a qualquer hora, em qualquer
lugar: os efeitos no mundo do trabalho”
8
. Ironicamente alguns referem que teletrabalho e
trabalho com tecnologia, na revolução 4.0, como se denomina a revolução tecnológica, a
exemplo do crowdworking e trabalho em plataformas, em diversos espaços e tempos, pode-
riam configurar o um trabalho a todo tempo e todo o lugar, expressando a exaustão dos
trabalhadores tecnológicos neste macro cenário. Este relatório investiga a influência do
trabalho móvel com recursos de tecnologia e meios informatizados no mundo laboral. O
10.284, de 20.3.2020, Decreto n.º 10.283, de 20.3.2020, Decreto n.º 10.282, de 20.3.2020, Medida Provisória n.º 924,
de 13.3.2020, Medida Provisória n.º 925, de 18.03.2020, Medida Provisória n.º 926, de 20.3.2020, Medida Provisória
n.º 926, de 20.3.2020, Medida Provisória n.º 945, de 04.04.2020, Medida Provisória n.º 930, de 30.03.2020, Medida
Provisória n.º 931, Medida Provisória n.º 936, de 01.04.2020, Medida Provisória No 938, de 2 de abril de 2020,
Medida Provisória no 944, de 3 de abril de 2020, Medida Provisória n.º 946, entre outras que se sucederam.
6 RIFKIN, Jeremy – The zero marginal cost society: the internet of things, the collaborative commons, and the
eclipse of capitalism. New York: Palgrave Macmillan. 2014.
7 BARZOTTO, L. C.; LANNER, M. B – Fraternidade e trabalho digital na Constituição da Organização Internacional
do Trabalho. In:I Congresso Internacional, Interinstitucional e Interdisciplinar de Pesquisadores em Direito e
Economia, 2019, Belo Horizonte. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2019. Veja -se também a
dissertação de Maíra Lanner. LANNER, Maíra Brecht –Trabalho decente em meio ambiente digital. 2019. 134 f.
Dissertação (Mestrado). Curso de Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.
8 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO E EUROFOUND – Relatório “Trabalhando a qualquer hora,
em qualquer lugar: os efeitos no mundo do trabalho”. [Consultado em: 26/07/2018]. Disponível em: http://www.
ilo.org
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ritmo acelerado da aplicação de tecnologias para se trabalhar à distância está mudando
o modelo tradicional da relação de trabalho em que o empregado se concentra na sede e
na estrutura empresarial. Tal mudança pode vir a melhorar a harmonia entre a família,
vida pessoal e profissional, como também atenuar o deslocamento trabalho/casa e, como
ponto de vantagem, aumentar a produtividade do trabalhador. No entanto, há desvanta-
gens acerca do teletrabalho como elevar o número de horas trabalhadas, e o isolamento de
se trabalhar em casa.
De acordo com o relatório, as conclusões sobre os efeitos da tecnologia da informação
e comunicação não passam uma mensagem unívoca. Refletem ambiguidades e, a despeito
do local de trabalho indicam efeitos inespecíficos e revelam a inexatidão das fronteiras
entre a vida profissional e familiar. Porém, não sem nega que as tecnologias de informação
e comunicação ajudam as pessoas a organizar o trabalho com mais flexibilidade e permi-
tem que o trabalho possa ser realizado a qualquer momento e em qualquer local, ofertando
certa autonomia no tempo de labor
9
.
O resumo executivo
10
deste relatório analisa que as Tecnologias da Informação e Comu-
nicação (TICS) são mais comuns entre gestores e administradores, sendo expressivo da
mesma forma entre os trabalhadores de apoio administrativo e comerciais.
O que se observa é a ocupação digital se expandindo paulatinamente, com um desem-
penho notável na última década. Como elucida Ramalho
11
, o fenômeno do teletrabalho teve
como suporte os progressos tecnológicos na área da informática e das telecomunicações
e a sua difusão, desde a décadas de oitenta
12
se fundamentou em razões econômicas e de
gestão.
9 EUROFOUND – Trabalhar a qualquer hora, em qualquer lugar e seus efeitos no mundo do trabalho. [Consultado
em: 26/07/2018]. Disponível em: https://www.eurofound.europa.eu
10 Cf. EUROFOUND – Trabalhar a qualquer hora, em qualquer lugar e seus efeitos no mundo do trabalho.
[Consultado em: 26/07/2018]. Disponível em: https://www.eurofound.europa.eu. Importante trazer alguns dados
como a incidência do uso das tecnologias da informação e comunicação, pois variam substancialmente, de
2% a 40% de todos os funcionários, dependendo da determinado país e a frequência com que os funcionários
executam o uso das tecnologias. Em toda a União Europeia, estima -se que pelo menos um total de cerca de 17%
empregados fazem o uso de tecnologias. Quando ocasionais as tecnologias da informação e comunicação, como
telefonemas ou e -mails fora do escritório, o número sobe para cerca de 40% de todos os funcionários no Japão
e nos EUA.
11 Cf. RAMALHO, Maria do Rosário Palma – Estudo de Direito do Trabalho. V. 1. Livraria Almedina, Coimbra: 2003,
p. 197.
12 Alguns autores como Jack M. Nilles, indicam que o teletrabalho surgiu por volta de 1973, quando este autor
desenvolveu seus estudos sobre política federal em relação à substituição do transporte pelas telecomunicações.
Logo veio o resultado quando trabalhou no Desenvolvimento de Políticas Relativas à Substituição do Transporte
pelas Telecomunicações, criando um conceito para tal nomenclatura que se chamou telecommuting, acompanhado
depois por teleworking para descrever aplicações mais amplas. NILLES, Jack M – Fazendo do teletrabalho uma
realidade: um guia para telegerentes e teletrabalhadores. Tradução Eduardo Pereira e Ferreira. São Paulo: Futura,
1997, p. 10.
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No Brasil
13
, a Reforma trabalhista mantém a distinção entre o teletrabalhador e o traba-
lhador a domicílio, optando por configurar o teletrabalho com espécie de contrato de traba-
lho subordinado
14
, com certas especificidades que são basicamente duas: exercício fora da
empresa e com utilização de meios telemáticos.
Como expresso no artigo 75 -B, Capítulo II -A da CLT
15
, “considera -se teletrabalho a
prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a
utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não se
constituam como trabalho externo. O parágrafo único do referido artigo dispõe ainda que
“o comparecimento às dependências do empregador para a realização de atividades especí-
ficas que exijam a presença do empregado no estabelecimento não descaracteriza o regime
de teletrabalho”.
Dessa forma, o estudo do teletrabalho após a Reforma Trabalhista, Lei n. 13.467/2017 da
CLT, deve ser conjugado com outros dispositivos desta Consolidação, como por exemplo
o art. 6.º da CLT, conferida pela Lei n. 12.551/2011, que alude sobre o trabalho realizado por
meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão equivalendo -se ao
trabalho subordinado, bem como o novo inciso III do art. 62 da CLT, que trata do não con-
trole de jornada de trabalho do teletrabalhador
16
.
Por meio da reforma, fugiu -se da teoria da parassubordinação
17
, uma espécie de ter-
ceiro gênero, entre trabalho autônomo e subordinado, adotado na Itália, a qual possui como
características a continuidade, a pessoalidade e a coordenação, ao invés da subordinação.
Ou seja, não há hierarquia entre colaborador e tomador, deixando -se ao último certa auto-
nomia quanto ao modo de prestar seu serviço. Portanto, no Brasil, não se adotou este meio-
-termo entre o trabalho autônomo e o trabalho subordinado, optando -se por classificar o
teletrabalho na categoria de trabalho subordinado.
18
13 FINCATO, Denise Pires –Teletrabalho na Reforma Trabalhista Brasileira. Revista Magister de Direito do
Trabalho, n.º 82, Jan -Fev/2018, p. 58.
14 WINTER, Vera Regina Loureiro –Teletrabalho: Uma forma alternativa de emprego. São Paulo: LTr, 2005, p. 91.
15 BRASIL – Consolidação das Leis do Trabalho – Decreto -Lei n. 5.452, de 1.º de maio de 1943. [Consultado em:
25/05/2018]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br
16 CARELI, Rodrigo – O teletrabalho. In: Resistência: aportes teóricos contra o retrocesso trabalhista. Coordenadores:
Jorge Luiz Souto Maior, et alii. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular: 2017, p. 333. O autor acredita que a inclusão
dos teletrabalhadores nessas hipóteses elencadas é inconstitucional uma vez que a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 é expressa no sentido de que a duração do trabalho é limitada em oito horas diárias
e 44 horas semanais (artigo 7.º, inciso XIII).
17 Cf. OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio – Relação de emprego, dependência econômica e subordinação
jurídica: revisitando os conceitos – critérios de identificação do vínculo empregatício. Curitiba: Juruá, 2014, p,
72. Explica o autor que a pequena parcela de autonomia do trabalhador que é parassubordinado decorre do poder
de organizar o seu trabalho de colaboração, o que afastaria a possível configuração da relação de emprego.
18 Cf. CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa; JORGE NETO – Francisco Ferreira. Uma reflexão sobre
a “Subordinação” como elemento essencial da relação de emprego. In: CLT – 70 anos de Consolidação: Uma
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O contrato de trabalho é norteado pelo consenso entre as partes, sendo desnecessárias, a
princípio, quaisquer formalidades, conforme o caput dos artigos 442 e 443 da CLT. No entanto
o contrato de teletrabalho é um contrato formal, como se verifica no art. 75 -C caput da CLT.
Tal artigo dispõe que a modalidade do regime de teletrabalho deva constar expressa-
mente no contrato individual de trabalho, especificando as atividades que serão desenvol-
vidas pelo teletrabalhador. Além do mais, poderá haver alteração entre os regimes desde
que exista mútuo acordo entre empregador e empregado e que tal alteração conste em um
aditivo contratual. Expressa a lei que tal novação para um regime presencial por imposi-
ção do empregador, seja realizada num prazo mínimo de 15 dias para ocorrer a transição e
mediante um aditivo contratual.
O artigo 75 -D da CLT
19
prevê que o teletrabalhador, através de um contrato escrito, fique
responsável pela aquisição, manutenção e fornecimentos dos equipamentos tecnológicos e
da infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho à distância. Observa -se que
tal artigo é uma inovação nas relações de trabalho quanto ao ônus do empreendimento
20
,
que em regra, é atribuído ao empregador no qual tem responsabilidade direta pelos riscos
da atividade econômica, conforme o caput do art. 2.º, da CLT
21
.
O artigo 75 -E prevê que o empregador instrua os empregados que trabalhem em regime
de teletrabalho “quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de tra-
balho”, determinando dessa forma que o empregado assine um termo de responsabilidade.
A escassa regulamentação do regime de teletrabalho encontrada somente nos artigos 75 -A
a 75 -E não exime o empregador na aplicação das normas fundamentais de proteção ao empre-
gado e, no que concerne ao empregado, este não se desonera de realizar a atividade de forma a
respeitar o poder de comando do empregador, à luz do art. 7.º da Constituição Federal de 1988.
Por fim, a expectativa do ordenamento jurídico trabalhista, ao ter inserido o teletra-
balho no rol do artigo 611 -A, inciso VIII, oportuniza aos envolvidos nessa relação ajusta-
rem de forma mais real as condições de trabalho do teletrabalhador, mediante negociação
reflexão social, econômica e jurídica. Jouberto de Quadros Pessoa Cavalcante e Marcos Antônio Cesar Villatore
(Organizadores). São Paulo: Atlas, 2013, p. 98.
19 BRASIL – Consolidação das Leis do Trabalho – Decreto -Lei n. 5.452, de 1.º de maio de 1943. [Consultado em:
25/05/2018]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br.
20 Cf. SIQUEIRA, Rodrigo Espiúca dos Anjos – A duração do trabalho na Lei 13.467/2017. In: Reforma trabalhista
na visão acadêmica. Gilberto Stümer e Leandro do Amaral Dorneles de Dorneles (Organizadores). Porto Alegre:
Verbo Jurídico, 2018, p. 93 – 118.
21 BRASIL – Consolidação das Leis do Trabalho – Decreto -Lei n. 5.452, de 1.º de maio de 1943. [Consultado em:
25/05/2018]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br
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coletiva
22
. Para a Organização Internacional do Trabalho (OIT)
23
, o teletrabalho é uma alter-
nativa viável para se conciliar o trabalho e a família, sendo assim desenvolvido graças ao
rápido desenvolvimento das TICs (Tecnologias da Informação e da Comunicação), fazendo
com que o teletrabalho cresça consideravelmente nos últimos anos. Como os estudos já
mencionados no relatório da EUROFOUND, a OIT confirma que o labor telepresencial per-
mite diminuição do custos da locomoção ao trabalho, ou mesmo a eliminação destes, tanto
em termos financeiros como de tempo, permitindo a adaptação de horários de trabalho a
tarefas domésticas e responsabilidades familiares. Para as empresas, o teletrabalho pode
reduzir custos de espaço de escritório embora sua continuidade por longo tempo possa
levar ao isolamento e a jornadas de trabalho muito extensas devido à ausência de uma
separação clara entre o tempo de trabalho e o tempo livre.
A OIT não possui uma Convenção sobre teletrabalho, mas há uma compreensão geral de
que a Convenção sobre trabalho a domicílio se aplicaria ao teletrabalhador.
Conforme a Convenção sobre o trabalho a domicílio de 1996, n. 177, a expressão trabalho
em domicílio significa o trabalho que uma pessoa, designada como trabalhador em domi-
cílio, realiza: (i) em sua casa ou em outras instalações que escolher, além das instalações de
trabalho do empregador; (ii) em troca de remuneração; (iii) com o propósito de produzir um
produto ou prestar um serviço de acordo com as especificações do empregador, indepen-
dentemente de quem fornece o equipamento, materiais ou outros elementos utilizados, a
menos que essa pessoa tenha o grau de autonomia e independência necessário ser conside-
rado trabalhador independente ao abrigo da legislação nacional ou de decisões judiciais[...].
(Tradução nossa)
24
.
Ou seja, a definição do trabalhador à domicílio para OIT é diversa legislação brasileira, mas
como ponto de identidade tem a equiparação no quesito de dependência ou subordinação.
22 Cf. STÜMER, Gilberto – Relações Coletivas e teletrabalho. In: IV Congresso Ibero -Americano de teletrabalho e
Teleatividades. Porto Alegre: Magister, 2011, p. 73.
23 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – Notas da OIT, trabalho e família n.5: Alternativas que
podem facilitar a conciliação entre o trabalho e a família. [Consultado em: 25/02/2018]. Disponível em: http://
www.ilo.org. As Notas da OIT sobre trabalho e família baseiam -se na série Work and Family Information Sheets
do Programa sobre Condições de Trabalho e Emprego (TRAVAIL). Sua tradução e adaptação ao contexto da
América Latina e do Caribe foram realizadas pelo Programa Regional de Gênero e Trabalho Decente. A adaptação
para o português foi realizada no âmbito do projeto “Gender equality within the world of work”, financiado pelo
Governo Norueguês. Esta iniciativa teve a participação do Escritório da OIT -Lisboa.
24 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – Convenio sobre el trabajo a domicilio, 1996 (núm. 177).
[Consultado em: 27/06/2019]. Disponível em: http://www.ilo.org (a) la expresióntrabajo a domiciliosignifica el
trabajo que una persona, designada como trabajador a domicilio, realiza: (i) en su domicilio o em otros locales
que escoja, distintos de los locales de trabajo del empleador; (ii) a cambio de una remuneración; (iii) con el fin de
elaborar un producto o prestar un servicio conforme a las especificaciones del empleador, independientemente
de quién proporcione el equipo, los materiales o otros elementos utilizados para ello,a menos que esa persona
tenga el grado de autonomía y de independencia económica necesario para ser considerada como trabajador
independiente en virtud de la legislación nacional o de decisiones judiciales [...].
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Ainda em termos de normativas gerais, a comunidade europeia constituiu uma comis-
são que propôs um relatório sobre a implementação do Acordo -Quadro sobre o teletrabalho,
também conhecido como Acordo Marco Europeu, para estabelecer o seguinte: a) definir
o conceito de teletrabalho para abranger uma variedade de novas formas de trabalho; e
(b) estabelecer uma série de princípios gerais a serem observados pelos empregadores e
trabalhadores que executam o teletrabalho. Esses princípios precisariam cobrir: a natu-
reza voluntária do teletrabalho e o direito de retorno, garantia de manutenção do status do
empregado, garantias de igualdade de tratamento, informações a serem fornecidas ao tele-
trabalhador, cobertura de custos pelo empregador, garantia de treinamento específico, pro-
teção no domínio da saúde e segurança, expediente, protecção da privacidade e protecção
de dados pessoais, manter contato com a empresa, direitos coletivos dos teletrabalhadores,
acesso ao teletrabalho. (Tradução nossa)
25
.
A comissão ainda considerou três fatores como essenciais na definição do conceito de
teletrabalho como o desempenho do trabalho à distância e a utilização da tecnologia da
informação e transmissão eletrônica de dados. Além disso, analisou se a atividade do tra-
balhador é de forma estável, com alguma permanência ou continuidade no tempo. E, por
último, se o teletrabalhador devia estar numa relação de trabalho.
A intenção da comissão era a de fornecer uma base para a discussão para futuramente
fazer ajustes alinhados com o desenvolvimento tecnológico que possibilitassem a inclusão
de novas formas de trabalho.
Assim, os parceiros sociais europeus em sua cláusula 2 do Acordo -Quadro definiram o
conceito de teletrabalho como:
O teletrabalho é uma forma de organização e/ou realização de trabalhos, uti-
lizando tecnologia da informação, no contexto de um contrato/ relação de traba-
25 COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS – Confederação Europeia dos Sindicatos (CES) a Confederação
das Empresas Europeias (UNICE), o Centro Europeu das Empresas com Participação Pública e das Empresas de
Interesse Económico Geral (CEEP); Associação Europeia de Artesanato, Pequenas e Médias Empresas (UEAPME).
Relatório sobre a implementação do Acordo -Quadro sobre o Teletrabalho de 16 de julho de 2002. [Consultado em:
28/04/2020]. Disponível em: http://repertoriojuslaboral.blogspot.com. (a) defining the concept of telework to cover
a variety of new forms of work; and (b) laying down a number of general principles to be observed by employers
and workers performing telework. These principles would need to cover: – the voluntary nature of telework
and the right to return; – a guarantee of maintenance of employee status; – guarantees of equal treatment; –
information to be provided to the teleworker; – coverage of costs by the employer; – a guarantee of specific
training; – protection in the field of health and safety; – working time; – protection of privacy and protection of
personal data; – keeping in contact with the firm; – collective rights of teleworkers;– access to telework.
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lho, onde o trabalho, que também pode ser realizado nas instalações do empre-
gador, é realizado fora dessas instalações numa base regular. (Tradução nossa)
26
.
Portanto, ao examinar as normativas europeias entende -se que o Brasil não fica dis-
tante das mesmas, sendo que, em recente pesquisa
27
, a SAP Consultoria em recursos huma-
nos em parceria com a SOBRATT – sociedade brasileira de teletrabalho e teleatividades,
mostrou que do ano de 2016 até 2018, houve um crescimento de 22% das empresas que
adotaram o teletrabalho.
Porém, num contexto de pandemia, muitas destas orientações europeias estão sendo
flexibilizadas, e no Brasil, a alteração contratual passou ser determinada pelo empregador,
como se passa a analisar, como forma de manutenção do emprego e renda.
III. TELETRABALHO DEPOIS DA PANDEMIA
Visando evitar as demissões e amenizar o impacto econômico e social, o governo brasileiro
lançou a Medida Provisória 927/2020, a qual elenca soluções para os empresários enfrenta-
rem a pandemia. Portanto, ainda estamos vivendo o teletrabalho no período de calamidade
pública que foi declarado até o final de 2020.
Aqui a crítica a esta medida provisória é no sentido que o Estado se retira num pri-
meiro momento da manutenção do emprego e lança para o empregador os mecanismos do
próprio contrato, via interrupção das atividades, pensando -se estritamente na manutenção
relação de emprego e da renda do trabalhador, como um ônus para as empresas. Isso, num
primeiro momento assustou os pequenos negócios e empresas, os quais representam 60%
da economia brasileira.
26 COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS – Confederação Europeia dos Sindicatos (CES) a Confederação
das Empresas Europeias (UNICE), o Centro Europeu das Empresas com Participação Pública e das Empresas
de Interesse Económico Geral (CEEP); Associação Europeia de Artesanato, Pequenas e Médias Empresas
(UEAPME). Relatório sobre a implementação do Acordo -Quadro sobre o Teletrabalho de 16 de julho de 2002.
[Consultado em: 28/04/2020]. Disponível em: http://repertoriojuslaboral.blogspot.com Telework is a form of
organizing and/or performing work, using information technology, in the context of an employment contract/
relationship, where work, which could also be performed at the employer’s premises, is carried out away from
those premises on a regular basis.
Importante destacar que o relatório afirma que a definição de teletrabalho escolhida pelos parceiros sociais
europeus exclui claramente o teletrabalho independente, que está fora do âmbito dos parceiros sociais. Por
conseguinte, as medidas nacionais de execução não abordam a situação dos trabalhadores independentes. O
risco inerente a essa abordagem é que, ao concordar com o teletrabalho, ex -funcionários possam ser encorajados
a se tornarem autônomos e, com isso, perderem os direitos e a proteção concedidos pela legislação trabalhista
geral e pelo Acordo -Quadro. Isto parece ser confirmado pela evidência de um alto índice de trabalho autônomo
entre os teletrabalhadores em vários países.
27 SAP CONSULTORIA EM RECURSOS HUMANOS – Pesquisa Home Office Brasil 2018. [Consultado em:
08/01/2019]. Disponível em: https://sapconsultoria.com.br
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Ou seja, o Estado, em lugar de adotar as medidas para solucionar a crise financeira,
optou por transferir a tomada de decisão em questões tão críticas para os particulares,
como medida de austeridade e enfrentamento da crise.
28
Após esta Medida Provisória o
Estado brasileiro entrou em jogo, pela MP 936 de 1/04/2020, garantindo a participação sua
com aporte financeiro em caso de suspensão das atividades.
Porém, nos deteremos na análise da MP 927, de 22 de março de 2020, a qual elenca o
teletrabalho como hipótese de manutenção de emprego e renda.
Durante o período de calamidade pública, num contexto de força maior, o art. 3° da MP
927 estabelece diversas medidas para minimizar os efeitos econômicos e tentar preservar o
emprego. Dentre elas figura o teletrabalho.
Nos atentaremos apenas à medida do teletrabalho, recordando que a palavra medida
refere a um tipo de legislação muito próxima a administrativa, mediante a qual se realizam
políticas públicas. Por isso, sendo uma legislação feita às pressas possui algumas impre-
cisões que devem ser complementadas à luz das normas anteriores sobre teletrabalho, as
quais, por sua vez também são criticadas por excesso de lacunas.
29
Alterando a regra do art. 468 da CLT, no sentido da novação contratual bilateral, o art. 4.º
da MP 927 permite que o empregador mude de forma unilateral, ou seja pelo jus variandi do
empregador, o regime de trabalho presencial para o teletrabalho.
Apesar da técnica do artigo, parece que o legislador regulou o teletrabalho como gênero
de trabalho remoto e à distância. Convém lembrar que home oce é modalidade de teletraba-
lho, desde que o profissional realize qualquer tipo de atividade intelectual e utilize os siste-
mas de informação e comunicação. Neste sentido, se distingue de um trabalho à domicílio
que é o realizado por costureiras, por exemplo.
Ainda temos, nos diversos parágrafos do artigo quarto, a seguintes medidas de teletra-
balho trazidas pela MP 927, sobre as quais teceremos rápidos comentários
30
:
O parágrafo primeiro distingue o teletrabalho de outro trabalho externo, aquele, em
tese, feito sem controle de jornada. Portanto, o teletrabalho da legislação emergencial da
MP é localizado, via de regra, pelo que se observa, na residência ou domicílio do empregado,
mantendo a orientação do art.75 da CLT.
O parágrafo segundo prevê o ajuste rápido entre empregado e empregador para iniciar
o regime de teletrabalho em 48 horas, o que pode ser feito com meios telemáticos.
28 FERREIRA, António Casimiro – Sociedade da austeridade: e direito do trabalho de exceção. Porto: Vida
Económica, 2012.
29 Neste sentido, um belo exemplo de legislação é o Código do Trabalho de Portugal que traz o teletrabalho
regulamentado nos art.165 a 171.
30 MIZIARA, Raphael; UMBERTO, Antonio; COELHO, Fabiano; GASPAR, Danilo –Medida Provisória 927 de 2020:
comentários artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais. Thomson Reuters, 2020, p. 121.
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O parágrafo terceiro permite que o empregado ajuste por aditivo contratual como serão
ressarcidos os seus custos, a título indenizatório.
O parágrafo quarto prevê que, enquanto não forem instalados os equipamentos, pela
ausência de adaptação do meio ambiente de trabalho, o empregado fica à disposição do
empregador, o que significa que, mesmo sem trabalho, ele tem direito ao salário pela inter-
pretação do art. 4 da CLT. Estas tratativas devem ser formalizadas em 30 dias. Seria interes-
sante que a empresa destinasse uma ajuda de custo para indenizar o uso de equipamentos
e gastos com internet, o que um acordo coletivo se ocupasse disso.
§ 5.º O tempo de uso de aplicativos e programas de comunicação fora da
jornada de trabalho normal do empregado não constitui tempo à disposição, re-
gime de prontidão ou de sobreaviso, exceto se houver previsão em acordo indi-
vidual ou coletivo.
A redação do parágrafo quinto parece confusa, visto que, por certo momento, encami-
nha que o empregado em teletrabalho não tenha controle de jornada, mas, por outro lado,
a lei indica que há controle e limita que o empregado exija horas extras de prontidão ou de
sobreaviso.
O artigo 5.º da MP 927 permite a adoção do regime de teletrabalho para estagiários
e aprendizes. No Brasil o contrato de aprendizagem diz respeito a um contrato de traba-
lho especial, focado na aprendizagem profissional definido no art.428 da CLT. Já a na Lei
n.º 11.788/08 define o estágio como ato educativo, focado na experiência profissional como
complemento curricular de cursos. Todos estes trabalhadores podem exercer o teletrabalho
e na eventual impossibilidade de desenvolver a ocupação costumeira, subsiste um dever da
empresa de fornecer espécie de treinamento, a ser feito de forma à distância, segundo nossa
interpretação, aproximando o estagiário e o aprendiz de atividades de formação, por aplica-
ção analógica ao artigo 16 da MP 927, norma que refere treinamentos em saúde e segurança.
Em síntese, para possibilitar a rápida adoção dessa modalidade de trabalho, a MP 927
dispensou a exigência de registro prévio no contrato de trabalho para alterações do regime
de trabalho presencial para teletrabalho ou seu retorno ao presencial, reduziu a antecedên-
cia mínima de notificação do empregado para 48 horas para tais modificações, as quais
passaram a poder ser definidas unilateralmente pelo empregador, além de permitir sua
aplicação a estagiários e aprendizes, sem a necessidade do sindicato participar deste ajuste.
Ainda, como se verifica do texto da lei o empregador emprestará os equipamentos ao empre-
gado e prevê certo reembolso das despesas. Fala -se em jornada normal do trabalho, motivo
pelo qual se pressupõe que o trabalho seja de 8 horas, para aqueles que foram colocados em
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trabalho remoto, por interpretação conforme o art. 7.º, inciso XIII da Constituição Federal
de 88. Pela redação confusa dos parágrafos do art. 4.º da MP, discute -se a possibilidade ou
não de controle de horário do teletrabalhador. Isso é importante porque a MP 936 permite
que o empregado receba um benefício se reduzir salário e jornada, medida para a qual não
fica excluído o teletrabalhador.
Além das medidas legislativas, até 21.08.2020, foram celebrados ao todo 625 negocia-
ções coletivas sobre teletrabalho no Brasil. A consulta foi realizada no Sistema de Nego-
ciações Coletivas de Trabalho – MEDIADOR
31
do Ministério realizadas entre 11.03.2020
até 21.08.2020, mencionando a palavra teletrabalho. O número se revela importante, pois
demonstra o avanço das negociações coletivas para regulamentar esta nova forma de tra-
balho após o início da pandemia.
Analisam -se algumas cláusulas negociais na seqüência: a) algumas mencionam que
o regime de teletrabalho poderá ser estendido para os estagiários e aprendizes, conforme
já trazia a previsão legal contida no artigo; b) outras adotam flexibilização do período de
transição previsto no § 2.º do art. 75 -C da CLT no caso de teletrabalho iniciado em razão
da pandemia: o retorno do empregado poderá ocorrer imediatamente após a requisição do
empregador, sem a necessidade de se aguardar o período mínimo de quinze dias; c) várias
negociações trazem regras atinentes ao uso da imagem do empregado e acidentes de traba-
lho, como se transcreve:
“c) A EMPRESA deverá instruir os empregados, de maneira expressa e osten-
siva, quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de traba-
lho, a partir de quando se presumirá que as doenças e os acidentes, que somente
poderiam ter origem no descumprimento dessas instruções, foram concebidos
ou agravados por culpa exclusiva do empregado, independentemente de prova
de fiscalização por parte do empregador, impedido de adentrar à casa do empre-
gado pela garantia constitucional da inviolabilidade de domicílio.
d) O empregado deverá assinar termo de responsabilidade comprometendo-
-se a seguir as instruções fornecidas pela empresa.
e) Fica ajustado que a visualização das imagens capturadas em eventual
chamada por vídeo com o empregado, equivalem a uma reunião pública, ocor-
rida no interior da empresa, podendo ser gravada e utilizada para fins lícitos de
31 MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Sistema de Negociações Coletivas de Trabalho – MEDIADOR.
Disponível em: http://www3.mte.gov.br/sistemas/mediador/. Acesso em: 22 agosto 2020
Estes dados podem sofrer revisões futuras devido à incorporação de negociações coletivas que ainda não haviam
sido depositados no sistema à época da consulta.
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exercício do poder empregatício, sendo dever do empregado, livrar o ambiente
filmado de acontecimentos íntimos e de sua vida privada.
f) A aceitação de chamadas por vídeo dependerá de ato próprio do emprega-
do, ficando proibida a ativação remota da câmara pelo empregador para qual-
quer finalidade”.
Da análise dos trechos transcritos, verifica -se que direitos com base em direitos cons-
titucionais já assegurados ao teletrabalhador aparecem nas normas coletivas e inclusive
direitos novos que estão contemplados na LGPD, Lei n. 13.709/2018, atinentes à imagem e
regulamentos que dizem respeito à vida privada.
Tanto a CLT como a MP 927/20 deixaram ao mútuo consentimento ou ao empregador a
decisão de adotar o teletrabalho. No entanto diversas normas coletivas têm regulado a pos-
sibilidade de tal iniciativa partir do empregado, criando a figura do teletrabalho eventual.
Da mesma consulta realizada no Sistema Mediador retromencionada, onze negocia-
ções coletivas trazem a previsão do teletrabalho eventual, assim conceituado:
“O Teletrabalho Eventual é aquele que ocorre de forma não programada, em
virtude de solicitações pontuais do EMPREGADO ou de situações emergenciais,
tais como paralisação de transporte público, bloqueio de vias de acesso, condi-
ções climáticas, etc, devidamente analisadas e aprovadas pelo gestor imediato.
No teletrabalho eventual o EMPREGADO mantém todos os seus benefícios, in-
clusive o vale transporte quando ordinariamente fornecido.
O que se nota é que este teletrabalhador eventual é na verdade um trabalhador hídrido
(presencial e teletrabalhador) cujos direitos fundamentais devem ser os mesmos do traba-
lhador celetista normal. Corre -se o risco, se isto não for reconhecido, de deixar este teletra-
balhador à mercê de uma desproteção, ao não se reconhecer a ele um status nem de teletra-
balhador, nem de trabalhador a domicílio. Veja -se que o trabalhador à domicílio segundo a
OIT é o que habitualmente trabalha em casa, segundo Convenção 177. Também a Recomen-
dação 184 da OIT dispõe que a ocasionalidade desconfigura o trabalho a domicílio. Por isso
no pós -pandemia urge a necessidade em falar -se e de regular o teletrabalho, o que, aliás, já
foi feito pela legislação mexicana
32
.
32 OPERAMUNDI. México aprova lei para que empresas paguem luz e internet de trabalhador em home office.
[Consultado em: 12/12/2020]. Disponível em: https://operamundi.uol.com.br/politica -e -economia/67779/mexico-
-aprova -lei -para -que -empresas -paguem -luz -e -internet -de -trabalhador -em -home -office
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VI. DIREITOS FUNDAMENTAIS DO TELETRABALHADOR EM TEMPOS
DE PANDEMIA
Teses de constitucionalistas afirmam que o período que vivemos todos os direitos funda-
mentais se reorganizam em torno da supremacia do interesse público que é a manutenção
da saúde do trabalhador
33
. Ou seja, o direito social à saúde passa momentaneamente na
frente dos demais direitos, por Medidas provisórias que atendem a necessidade e cor-
respondem aos requisitos de relevância e urgência, previstos na Constituição Federal. A
pandemia na legislação que lhe regula não suprime as garantias do trabalho contidas no
arts.6.º, 7.º e 8.º da Constituição Federal, além das garantias individuais, as quais são repu-
tadas como direitos inespecíficos do trabalhador, aqueles que possui como cidadão.
Importante sinalizar, que o teletrabalho, em tempos de pandemia, encontrou um tele-
trabalhador de emergência, despreparado. Por isso é necessário frisar que o momento
admite excluir -se um trabalhador que esteja despreparado para o teletrabalho, podendo o
empresário remetê -lo a outros mecanismos de manutenção de renda, como férias, suspen-
são do contrato, banco de horas. Ao contrário, alguns estarão aptos a serem incluídos, e até
mesmo uma série de ocupados vulneráveis teriam a chance de serem incorporados, ainda
que transitoriamente, em trabalhos temporários, conforme refere a OIT.
Para OIT a vivência da humanidade neste momento é de um desastre e, mesmo nesta
situação, aponta para a necessidade de que se tenha como meta o trabalho decente. Vale
recordar o conceito de trabalho decente no âmbito da OIT: O trabalho decente é definido
como “aquele desenvolvido em ocupação produtiva, justamente remunerada e que se
exerce em condições de liberdade, eqüidade, seguridade e respeito a dignidade da pessoa
humana
34
”.
Recentemente, atualizando este conceito, a OIT emitiu a Recomendação 205 – Reco-
mendação de emprego e trabalho decente para a paz e a resiliência, 2017 (n.º 205), consi-
derando o impacto e as consequências que os conflitos e desastres têm sobre pobreza e
desenvolvimento, direitos humanos e dignidade, trabalho decente e negócios sustentáveis.
Por este documento, Recomendação 205 da OIT, a situação vivenciada por todo o mundo
referente à pandemia pode ser classificada como um desastre em proporções globais que
não dispensa a proteção dos trabalhadores. Para a OIT “o termo “desastre” designa uma per-
turbação grave do funcionamento de uma comunidade ou sociedade em qualquer escala,
33 SARLET, Ingo – Direitos Fundamentais e Democracia em tempos de pandemia. [Consultado em: 01/05/2020].
Disponível em: http://fcr.edu.br/direitos -fundamentais -e -democracia -em -tempos -de -pandemia -e -tema -de -live-
-promovida -pela -faculdade -catolica -de -rondonia/
34
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – Documento GB 280/wp/sdg/1, de março de 2001.
[Consultado em: 29/04/2020]. Disponível em: http://www.ilo.org
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devido a fenômenos perigosos que interagem com as condições de exposição, vulnerabili-
dade e capacidade, causando um ou mais dos seguintes fatores: perdas e impactos huma-
nos; materiais, econômicos e ambientais;” já o “termo ‘resiliência’ designa a capacidade de
um sistema, comunidade ou sociedade exposta a uma ameaça de resistir, absorver, adaptar,
transformar e recuperar seus efeitos de maneira oportuna e eficiente, principalmente atra-
vés da preservação e restauração de suas estruturas e funções básicas através do gerencia-
mento de riscos”.
A OIT refere que epidemias e crises econômicas podem ter um impacto desproporcio-
nal em certos segmentos da população
35
. Desencadeia -se, provavelmente, neste contexto,
o agravamento da desigualdade. Com base em experiências anteriores e informações
atuais sobre a pandemia do COVID -19, vários grupos de trabalhadores seriam potencial-
mente identificados como possíveis incluídos pelo teletrabalho, a partir de um recurso de
capacitação. Listamos alguns, segundo nosso entendimento, os quais seriam candidatos a
serem aproveitados, pelo acréscimo de demanda de trabalho tecnológico no momento da
pandemia
36
: a) aqueles empregados com condições de saúde precárias e idososcom maior
risco de desenvolver sérios problemas de saúde; b) os jovens, que já enfrentam taxas mais
altas de desemprego e subemprego, os quais são mais vulneráveis à queda da demanda de
trabalho, como testemunhado durante a crise financeira global; c) as mulheresque estão
presentes em setores mais afetados (como serviços) ou em ocupações que estão na linha
de frente de lidar com a pandemia (por exemplo, enfermeiras); d) trabalhadores desprote-
gidos, incluindo trabalhadores independentes, casuais, informais, os quais serão provável e
desproporcionalmente atingidos pelo vírus, pois não têm acesso a mecanismos de licença
remunerada ou por doença e são menos protegidos por mecanismos convencionais de pro-
teção social e outras formas de renda, mas poderão ser incorporados em serviços temporá-
rios; e e) os trabalhadores migrantes, os quais são particularmente vulneráveis ao impacto
da crise do COVID -19, que restringirá sua capacidade de acessar seus locais de trabalho nos
países de destino e retornar para suas famílias.
A inclusão de mulheres, idosos, de pessoas com deficiência e jovens no mercado de tra-
balho poderá ser uma realidade para as economias que adotarem o regime de teletrabalho
como atividade central para o período de pandemia.
35 BARZOTTO, L.. C. ; RECKZIEGEL, T. – Coronavírus e OIT - Organização Internacional do Trabalho. In: Ricardo
Calcini. (Org.). Coronavírus e OIT. 1ed. São Paulo: JH Mizuno, 2020, v. 1, p. 7505 -7679.
36 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – Como o COVID -19 afetará o mundo do trabalho?
[Consultado em: 29/04/2020]. Disponível em: https://www.ilo.org/global/topics/coronavirus/impacts -and-
-responses/WCMS_739047/lang - -en/index.htm
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A ampla adoção dessa estratégia no atual momento, apresenta -se mais como um ele-
mento de aceleração de um processo já em curso, de digitalização da economia diante da
chamada indústria 4.0, do que como um evento situacional, por isso importante a manu-
tenção de suas bases de trabalho decente. Por isso é interessante que se contemplem garan-
tias fundamentais ou direitos fundamentais para estes prestadores de serviços telemáticos.
A adoção do teletrabalho por um número tão grande de trabalhadores, especialmente
de maneira tão repentina, exigiu diversas adaptações por parte não somente dos emprega-
dos, mas também dos empregadores. Inicialmente, pode excluir do trabalho aqueles que
estiverem despreparados, ao invés de ser forma de inclusão. Para o uso de meios telemá-
ticos, Aguiar explica que as mudanças decorrentes da tecnologia, de velocidade incrível,
devem encontrar as relações de trabalho capazes de se adaptar, envolvendo empregadores
e empregados. Necessita -se de uma capacitação transversal, como um processo de com-
plementação multifuncional de desenvolvimento profissional obrigatório para enfrenta-
mento dessas novas alterações funcionais
37
. Não houve, entretanto, tempo suficiente para
esta passagem, no período de pandemia, embora o teletrabalho tenha vindo para ficar.
Além do problema da formação emergencial do teletrabalhador, os outros direitos
sociais, como moradia, alimentação, lazer, que devem ser garantidos pelo Estado, em pri-
meiro lugar, clamam pela participação subsidiária do setor privado, sobrecarregando -se
de demandas. Verifica -se que, para o exercício do teletrabalho, o qual transformou -se em
trabalho em domicílio, reinventam -se os lares, os quais se tornaram espaços públicos/pri-
vados, espécie de coworking de famílias e empresas, nos quais os pais tem que regular suas
atribuições e garantir educação, saúde, alimentação aos seus dependentes, neste espaço
confinado. Isso exige uma reorganização dos espaços e tempos, para o que a OIT indica a
urgência de divisão equânime de tarefas e responsabilidades familiares, para que o espaço
da microeconomia seja compatível com o mundo laboral, conforme orienta a Convenção
146, e Convenções 100 e 111.
Neste espaço doméstico do teletrabalhador podem conviver pessoas que ficam impacta-
das de forma diferente pelas restrições sociais. Ainda que trabalhando em ambiente virtual
com colegas, estamos participando de uma experiência presencial e conjunta com os fami-
liares os quais se tornam espécie de colegas nem sempre colaborativos. A partir experiência
do confinamento, e, especialmente pela pandemia do COVID -19, deve -se repensar a saúde
mental de todos, mas em especial, de um outro grupo de pessoas, as que vivem sós. Con-
forme Hold -Lustad
38
, o isolamento social atua como fator de risco extremamente danoso
37 AGUIAR, Antonio Carlos – Direito do Trabalho 2.0 digital e disruptivo. São Paulo: LTr, 2018, p. 93.
38 HOLT -LUNSTAD, J.; SMITH, T. B.; LAYTON, J. B – Social Relationships and Mortality Risk: A Meta -analytic
Review. PLoS Medicine, vol. 7, n. 7, 2010. e1000316. doi:10.1371/journal.pmed.1000316.
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para o adoecimento da população em geral, em função da invisibilidade do trabalhador.
O isolamento reflete na ocupação ativa e no trabalho feito em casa de forma remota em
períodos normais e isto acentua -se no período de calamidade pública declarado pela OMS.
Outros problemas, além da educação para o teletrabalho e a reorganização do espaço pri-
vado do lar como espaço social do trabalho, podem ser apontados pela dificuldade de garan-
tia de alguns direitos previstos na Constituição, no art. 7.º, como os incisos XXI e XXVII. O
art. 7.º, inciso XXII prevê a redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de
saúde, higiene e segurança. Quanto aos riscos, temos a dificuldade de garantir ao teletraba-
lhador a fiscalização do trabalho, mas também uma obrigação de todos de zelar pelo meio
ambiente do trabalho. Como fazer isso no espaço da vida privada? O art. 7.º, incisoXXVII
prevê a proteção em face da automação, na forma da lei. Para o período do isolamento há os
problemas da desconexão e limitação de jornada. Quanto à esta proteção em relação à auto-
mação temos um risco, para um período pós -pandemia, de que o empregador descubra for-
mas que prescindam do empregado teletrabalhador. E aqui, na ausência de lei que garanta
ao teletrabalhador proteção em face da automação está o risco de desemprego futuro deste.
Ainda outros direitos fundamentais devem ser lembrados e protegidos. A Constituição
Federal prevê, em seu art. 5.º, parágrafo X, serem invioláveis “a intimidade, a vida privada, a
honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação, por isso o direito aos dados do empregado e da invasão do lar fora
dos momentos ajustados deve ser observada. Neste sentido, a Constituição Federal, seu art.
5.º, XII, também dispõe ser “inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegrá-
ficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial (...)”.
Na França temos a discussão do uso do domicílio pelo teletrabalho e também do ponto
de vista dos direitos fundamentais há um direito de retirada que é o empregado negar -se a
trabalhar se houver perigo grave e iminente para a vida e saúde.
Em Portugal o teletrabalho pode ser pedido por qualquer uma das partes da relação de
emprego. E, na família, o teletrabalhador pode ter apoio financeiro do Estado para cumular
o cuidado com os filhos.
O Ministro do Trabalho alemão, Hubertus Heil, afirmou que pretende inserir na legis-
lação da Alemanha o direito de trabalhar em casa após a pandemia. Ou seja, haverá um
direito ao teletrabalho. O avanço do teletrabalho, que já era tido como algo quase que certo
para o futuro do trabalho, conforme documentos da OIT, parece que foi impulsionado pela
situação atual.
39
39 BURKE, Jackson – As working from home becomes more widespread, many say they don’t want to go back.
[Consultado em: 29/04/2020]. Disponível em: https://www.cnbc.com/2020/04/24/as -working -from -home-
-becomes -more -widespread -many -say -they -dont -want -to -go -back.html Importante também destacar a
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Portanto, recorda -se que o período de desastre global não autoriza a dispensa de prote-
ção do teletrabalhador, o qual merece um trabalho decente em período de crise.
V. A IMPORTÂNCIA DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA
O crescente aumento do uso do teletrabalho como forma de prestação laboral tem exigido
uma regulamentação minuciosa por parte do ordenamento jurídico. Na falta de uma legis-
lação específica, segundo Fincato e Bublitz
40
, encontra -se na negociação coletiva o instru-
mento mais eficaz na realidade brasileira para preencher as lacunas legislativas a respeito
da regulamentação do teletrabalho, trazendo segurança jurídica aos empregados e empre-
gadores em seu relacionamento. O direito comparado nos traz a experiência do Acordo
Marco Europeu sobre Teletrabalho,
41
que estabeleceu o marco geral e mínimo sobre esta
forma de prestação de trabalho no âmbito europeu.
Apesar de ser de adesão voluntária dos Estados membros da Comunidade, o acordo
tem sido utilizado por vários países da Europa, assim como por entidades de representação
trabalhista e patronal nas negociações coletivas, como norte para o estabelecimento das
relações de teletrabalho. Cita -se particularmente a Itália como um bom exemplo de comple-
mentação da legislação sobre teletrabalho via negociação coletiva, que rege a matéria pelo
chamado Acordo Interconfederativo, de 9 de Junho de 2004, e que também tem como norte
o Acordo Marco Europeu
42.
A Convenção 154 da OIT,
43
em seu artigo 2.º, compreende a expressão negociação cole-
tiva como todas as negociações entre uma parte, um empregador, um grupo de emprega-
dores ou uma organização ou várias organizações de empregadores, e, de outra parte, uma
ou várias organizações de trabalhadores, com fim de: a) fixar as condições de trabalho e
emprego; ou b) regular as relações entre empregadores e trabalhadores; ou c) regular as
entrevista de um Ministro Alemão que apoia a lei a fim de incentivar o trabalho em casa. Disponível em: https://
abcnews.go.com/Business/wireStory/german -minister -backs -creating -legal -work -home -70351904. Consultado
em: 29/04/2020.
40 FINCATO, Denise Pires; BUBLITZ, Michelle Dias – A negociação coletiva como ferramenta regulamentadora de
norma aberta: o teletrabalho e a lei 12.551/2011. In: Revista Do Direito UNISC, Santa Cruz do Sul n.º. 44, set -dez
2014, p.127.
41 CONFEDERACIÓN EUROPEA DE SINDICATOS – Acuerdo Marco Europeo sobre Teletrabajo. [Consultado em:
29/04/2020]. Disponível em: https://www.ccooservicios.es/archivos/bbva/20110727_acuerdo_marco_europeo_
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42 FINCATO, Denise Pires; BUBLITZ, Michelle Dias – A negociação coletiva como ferramenta regulamentadora de
norma aberta: o teletrabalho e a lei 12.551/2011. In: Revista Do Direito UNISC, Santa Cruz do Sul n.º. 44, set -dez
2014, p.122 -128.
43 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – Convenção n. 154 – Fomento à Negociação Coletiva.
[Consultado em: 19/07/2018]. Disponível em: http://www.ilo.org.
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relações entre os empregadores ou suas organizações e uma ou várias organizações de tra-
balhadores, ou alcançar todos estes objetivos de uma só vez.
No âmbito brasileiro, a negociação coletiva se apresenta como a opção mais articu-
lada para que seja estabelecida a regulação da matéria. A inserção do teletrabalho no rol
do artigo 661 -A certamente é um indício desta opção para a criação de mecanismos como
forma de solucionar ou minimizar as questões controvertidas que forem surgindo, con-
forme as necessidades das categorias profissionais, especialmente quando este dispositivo
legal prevê a prevalência da negociação sobre a lei, ainda que não criada.
Em um mundo anterior à pandemia do COVID -19, o desafio residia exatamente no fato
de que o teletrabalhador encontra -se em situação de maior vulnerabilidade por estar dis-
tanciado da coletividade de classe. Conforme Stürmer
44
, a atividade e a dinâmica sindical
perderiam espaço ao não poder identificar os postos e locais de trabalho onde seus repre-
sentados exercem suas atividades. O Acordo Marco Europeu aparenta ter pensado em uma
solução, ao prever em seu item 11 que seja informado às representações sindicais acerca da
introdução do regime de teletrabalho. A toda evidência, convém aos sindicatos a aproxima-
ção com seus representados e a sua integração e sentimento de pertencimento à categoria
profissional, uma vez que, segundo o próprio item 11, o teletrabalho não pode ser obstáculo
para a comunicação com as representações sindicais.
Por outro lado, a pandemia do COVID -19 que acometeu o mundo transformou rapi-
damente as relações de trabalho diante da necessidade de se laborar em regime de tele-
trabalho, devido à efetivação do isolamento social como forma de prevenção e contenção
do vírus. A internet deixou de ser uma ferramenta de distanciamento para proporcionar o
contato social e familiar em tempos de pandemia, ainda que de forma telemática. De igual
modo, trabalhadores passaram a utilizar espaços virtuais para se encontrar com colegas de
trabalho e executar as suas atividades.
Em consulta ao Sistema de Negociações Coletivas de Trabalho – MEDIADOR
45
, do
Ministério do Trabalho e Emprego, foram localizados 210 instrumentos coletivos regis-
trados no período de 11/03/2020 a 30/04/2020 e vigentes, cujo título constasse a palavra
“teletrabalho”. Foi escolhida a data inicial de 11/03/2020 por se tratar do dia em que a OMS
declarou a pandemia de Coronavírus.
44 STÜRMER, Gilberto. Relações Coletivas e Teletrabalho – In: IV CONGRESSO IBERO -AMERICANO DE
TELETRABALHO E TELEATIVIDADES PORTO ALEGRE. Anais do IV congresso ibero -americano de teletrabalho
e teleatividades. Porto Alegre: Lex Magister, 2011, p. 73.
45 MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO – Sistema de Negociações Coletivas de Trabalho – MEDIADOR.
[Consultado em: 30/04/2020]. Disponível em: http://www3.mte.gov.br/sistemas/mediador/
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Destes, 8 (oito) instrumentos foram registrados no período de 11/03/2020 a 21/03/2020,
mas apenas 3 (três) dizem respeito a termos aditivos celebrados para iniciar o regime de
teletrabalho especificamente em razão da pandemia do COVID -19, expressamente men-
cionando este fato. Tratam -se de aditivos à convenções coletivas de trabalho, celebradas,
portanto entre os sindicatos dos empregadores e dos empregados, todos situados no Estado
do Rio Grande do Sul, registrados em 17/03/2020 e 19/03/2020. Embora pequeno o número, o
dado é importante, pois revela a percepção e o diálogo entre as coletividades para a preser-
vação e garantia do direito fundamental à vida, à saúde, de forma conciliada com o direito
ao trabalho, ambos direitos fundamentais do trabalhador, antes mesmo da promulgação da
MP 927.
Conforme previsto pela MP 927, ainda que seja unilateral a determinação de home oce,
alguns doutrinadores têm apontado que verbas como auxílio -alimentação, convênios e
auxílios como creches só poderiam ser retirados pela negociação coletiva revisada, caso
decorra dela estes direitos. Também seria interessante se a negociação coletiva previsse
cláusulas que determinem que o empregador arque com os custos de utilização de luz, tele-
fone e outras adaptações funcionais do teletrabalho.
Convém lembrar que o artigo 11, §4.º, da MP 936, que impõe expressamente que os
acordos individuais celebrados na MP 927, inclusive sobre questões de teletrabalho, “deve-
rão ser comunicados pelos empregadores ao respectivo sindicato laboral, no prazo de até
dez dias corridos, contado da data de sua celebração. Neste sentido, alguns doutrinadores
entendem que a obrigação de submeter o acordo individual ao sindicato [...] “integra a pró-
pria essência do acordo individual, já que foi a forma encontrada pelo governo para evitar
a inconstitucionalidade dos acordos individuais, por afronta ao artigo 7.º, VI, da Constitui-
ção”, como menciona Cesar Zucatti Pritsch
46
.
Apesar das divergências motivadas pela MP 936, que restringiu o papel negocial dos
sindicatos durante a crise do Coronavírus, e da decisão liminar do E. STF na ADI n. 6.363,
que havia decidido, num difícil exercício de equilíbrio entre atuação sindical e governa-
mental, pela necessidade da anuência sindical nos contratos individuais firmados entre
empregado e empregador para redução de jornada e salário, parece que a mais adequada
negociação na crise do Coronavírus é com a participação sindical, a qual, aliás, é incenti-
vada pela interpretação do art. 2 da MP 927
47
.
46 PRITSCH, Cesar Zucatti – MP 936: acordos individuais impedem a atuação dos sindicatos? [Consultado em:
29/04/2020]. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020 -abr -28/pritsch -acordos -individuais -impedem-
-atuacao -sindicatos.
47 MELO, Raimundo Simão de. Negociações coletivas na crise do Coronavírus. Disponível em: https://www.conjur.
com.br/2020 -abr -17/negociacoes -coletivas -crise -coronavirus. Consultado em: 29/04/2020.
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Aliás cumpre lembrar que sindicatos profissionais e econômicos
48
, na crise do Coro-
navírus podem e devem exercer o diálogo social fixando tempo, horário e remuneração,
mediando o afastamento presencial de trabalhadores de grupos de risco como por exem-
plo, pessoas com idade superior a 60 anos, com deficiência, doenças degenerativas, dentre
outras.
Se houver banco de horas para o teletrabalho, ou mesmo fixação regular de jornada,
como alguns admitem para efeitos da MP 936, seria importante a atuação sindical para
a sua fixação. Isso porque a lei não veda redução de jornada e salários inclusive para o
teletrabalhador, a partir da interpretação da MP 936 e da Portaria 10.486 que regula o
BEM (benefício emergencial). Ainda que o teletrabalhador fosse receber férias coletivas,
seria interessante o sindicato se fazer presente, nos termos da previsão do art.139daCLT
e mesmo que o art. 11 da MP 927 o dispense. Indicação semelhante é feita para o vale-
-transporte e alimentação, para o adiantamento do período de férias, para a flexibilização
de horários, e para as normas de saúde, segurança e medicina do trabalho, reguladas no
art.154e ss. daCLT. Otrabalho em casa, por meio remoto e digital, deverá ser privilegiado,
e novas plataformas de trabalho deverão ser desenvolvidas, sendo que o sindicato pode e
deve atuar neste novo cenário.
Na rede mundial de computadores assiste -se tendências opostas; isolacionismo ou uma
nova consciência fraterna, a qual vem se formando
49
, com mais velocidade e ímpeto a ser
visto pelas ações concretas de solidariedade para com os atingidos pela pandemia. A expe-
riência conjunta do isolamento social alavancou a implementação do regime de teletraba-
lho, que certamente não será mais a mesma após a epidemia. Novas formas de se relacionar
e de laborar de modo não presencial estão se desenvolvendo, superando as dificuldades
impostas pelo afastamento, que certamente refletirão nas relações coletivas.
Em um momento em que as próprias centrais sindicais estão realizando suas reuniões
por videoconferência
50
, votações de assembleias, as negociações coletivas no contexto do
teletrabalho revelam o debate atual de coordenação das ações sindicais com a nova reali-
48 SANTOS, Enoque Ribeiro dos – O Direito Coletivo do Trabalho em tempos de Coronavírus. [Consultado em:
29/04/2020]. Disponível em: https://genjuridico.jusbrasil.com.br/artigos/822599511/o -direito -coletivo -do-
-trabalho -em -tempos -de -coronavirus.
49 Ver FINCATO, Denise Pires – O Valor Social do Trabalho e o Princípio da Fraternidade: Reflexões sobre o
Teletrabalho. In Compedi Law Review. v. 1, n. 6, 2015, p. 105 -128. Veja -se a também em FINCATO, Denise. O
valor social do trabalho e o princípio da fraternidade: reflexões sobre o teletrabalho. In: GUEDES, Priscila Dal
Ponte Amado; GUEDES, Gabriel Pinto; BARZOTTO, Luciane Cardoso (org.). Direito e fraternidade: em busca de
respostas. Porto Alegre: Sapiens, 2016, pp. 76 -78.
50 SINDICATO DAS METALÚRGICAS – MPT e Centrais sindicais debatem atuação conjunta em defesa da classe
trabalhadora frente crise do Coronavírus. [Consultado em: 29/04/2020]. Disponível em: https://ctb.org.br/sem-
-categoria/formacao -sindical -ctb -inaugura -reuniao -por -videoconferencia -nesta -sexta/.
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dade na qual foi mergulhado o mundo. É conveniente ainda que os sindicatos aproveitem
a experiência telemática para ensaiar práticas não apenas de regulamentação dos direitos
dos teletrabalhadores, mas também de proteção e prevenção de conflitos e repressão con-
dutas antissindicais que possam surgir no futuro próximo, relacionado ao teletrabalho.
Enquanto durar a necessidade de isolamento, ainda que de forma intermitente, as nego-
ciações coletivas acerca da implementação do teletrabalho ficam à disposição como instru-
mentos ágeis para regulamentar as particularidades de cada categoria econômica e social, e
prometem ser importantes ferramentas para a efetivação massiva deste regime.
VI. CONCLUSÃO
Parece que o resultado dos estudos do futuro do trabalho, levados a efeito pela OIT e que
apontavam o teletrabalho como uma forma essencial de ocupação e renda para 2030, foi
antecipado pelos tempos da epidemia global. A massiva contratação de trabalhadores em
regime de teletrabalho e conversão de trabalhos presenciais nesta espécie de home oce
forçada poderá influenciar o futuro do trabalho, após a situação de surto, motivo pelo qual
urge a sua regulamentação com maior detalhamento e cuidado.
Dentre os americanos que passaram a realizar o teletrabalho a partir da pandemia de
COVID -19, 24% dos entrevistados afirmaram que gostariam de continuar trabalhando em
casa, de forma integral ou parcial, após a pandemia. Nessa mesma pesquisa, 60% dos entre-
vistados afirmam que sua produtividade está igual ou superior à de quando trabalhavam
fora de casa.
Embora não tenhamos dados suficientes no Brasil, acredita -se que a introdução ao tele-
trabalho na América do Norte pode ter efeito bastante semelhante nos trabalhadores daqui,
o que indica a ideia de permanência deste regime após a vigência do estado de calamidade e
além da produtividade mencionada nas pesquisas, outros benefícios podem advir da explo-
ração deste instrumental.
Ademais, empresas buscam alternativas para atuar no mercado de trabalho de um eco-
nomia, a qual passa também por este desafio de se modificar, de se inovar, cooperar para a
prosperidade, paz e resiliência de todos, encontrando no teletrabalho uma de suas melho-
res opções.
Nesse diapasão, o papel negocial dos sindicatos revela -se não apenas relevante do ponto
de vista normativo, como ferramenta para a regulamentação dos direitos dos teletrabalha-
dores, como também do ponto de vista econômico e social, fomentando o diálogo e a paci-
ficação entre empregados e empregadores, de modo a impulsionar o crescimento fraterno
da sociedade em tempos tão difíceis.
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Mediação penal e a valorização da vítima:
uma análise comparada entre as legislações
portuguesa e brasileira sobre a mediação antes
do exercício da ação penal
Criminal mediation and victim valorization: a comparative
analysis between Portuguese and Brazilian legislation on
mediation before the exercise of criminal action
RUBEN BAHAMONDE DELGADO
1
rbahamonde@autonoma.pt
DANIEL HENRIQUE SILVA MIRANDA
2
dh_miranda@yahoo.com.br
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
January Janeiro–30
TH
June Junho 2020 · pp. 77‑110
DOI: http://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.1.4
Submitted on March 27
th
, 2020 · Accepted on June 4
th
, 2020
Submetido em 27 de Março, 2020 · Aceite a 4 de junho, 2020
RESUMO O presente artigo objetiva analisar aspectos da mediação penal no ordenamento
jurídico português e brasileiro, especialmente antes do exercício da ação penal, ou seja,
durante a fase investigativa ou de inquérito. Centra-se este estudo no papel da vítima e
nos princípios da mediação diretamente ligados a ela, quais sejam: a voluntariedade e a
cooperação. Após discorrer sobre dispositivos da Lei n.º21/07 de Portugal, da Lei n.º9.099/95
e da Resolução n.º125/10 do CNJ, ambas do Brasil, serão traçadas análises comparativas,
para, finalmente, tecer algumas considerações sobre o estado atual da mediação penal no
panorama luso-brasileiro.
PALAVRASCHAVE justiça restaurativa – resolução alternativa de conflitos – mediação
penal – valorização da vítima – voluntariedade – cooperação
ABSTRACT This article aims to analyze aspects of criminal mediation in the Portuguese and
Brazilian legal systems, especially before the prosecution, that is during the investigative
phase. This study focuses on the victims role and the linked principles of mediation,
1 Professor Associado da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL). Diretor e investigador do Ratio Legis – Centro
de Investigação em Ciências Jurídicas da UAL.
2 Mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa. Graduado em Direito pela Universidade
Federal de Minas Gerais (2010).
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namely: voluntariness and cooperation. After discussing the provisions of Law n.º21/07
of Portugal, Law n.º 9.099/95 and Resolution n.º 125/10 of the CNJ, both from Brazil,
comparative analyzes will be drawn, finally to be able to make some conclusions about the
current state of criminal mediation in the Portuguese and Brazilian context.
KEYWORDS restorative justice – alternative dispute resolution – criminal mediation –
victim valorization – voluntariness – cooperation
I. INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende analisar criticamente o instituto da mediação penal nos orde-
namentos português e brasileiro, especialmente durante a fase anterior ao exercício da
ação penal ou acusação, portanto no inquérito ou congênere, focalizando a figura da vítima
e o seu papel, bem como os princípios da mediação que lhe dizem respeito.
A mediação penal exsurge no bojo das espécies ligadas à denominada justiça restau-
rativa ou restauradora, consistente em uma forma de tratamento de conflitos que não se
confunde com a justiça privada (vindicta privada), nem assume os contornos integrais da
justiça pública
3
. A principal característica da justiça restaurativa está nas suas “proprieda-
des curativas, restauradoras e reconstrutivas”
4
, que pretendem solucionar o conflito indi-
vidual, objetivando alcançar o status quo anterior à ofensa, quando possível, e pacificar as
relações sociais.
Já faz algum tempo que os instrumentos de justiça restaurativa estão a ganhar espaço
no âmbito criminal, em razão das vicissitudes enfrentadas pela justiça penal clássica, tam-
bém chamada de oficial ou tradicional, nomeadamente: elevados custos, dificuldades de
responder às especificidades das sociedades de massas, excessivo formalismo e inadmis-
sibilidade de soluções criativas
5
. Diante dessa “crise da Justiça”, a justiça restaurativa afir-
3 Há quem defenda a expressão “justiça reconstituinte” como a melhor tradução para restorative justice (ESTEVES,
Raúl – «A novíssima Justiça Restaurativa e a Mediação Penal». In: Sub Judice. Justiça e Sociedade. Coimbra: Almedina.
[sd] n.º37 (Out-Dez 2006), p.53). Outras expressões sinônimas para justiça restaurativa: “justiça transformadora,
“justiça relacional” e “justiça participativa” (PENIDO, Egberto – «Justiça Restaurativa». In: Mediação de conflitos
para iniciantes, praticantes e docentes. 2.ªed. Salvador: Juspodivm, 2019. p.652).
4 Sobre as mencionadas propriedades, vale acrescentar que a restauração não se resume à restituição ou
indenização de danos materiais, mas também envolve “(...) uma dimensão emocional e simbólica, plena de
significado e de esperança, que se pode materializar num pedido informal de desculpas por parte do agressor
ou em gestos simbólicos como um aperto de mãos ou um abraço entre aquele e a vítima” (FERREIRA, Francisco
Amado – Justiça Restaurativa: natureza, finalidades e instrumentos. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p.25).
5 São algumas das causas econômicas, organizacionais e processuais da denominada ‘crise da Justiça’ (ALMEIDA,
Rafael Alves de; PANTOJA, Fernanda Medina – «Os métodos “alternativos” de solução de conflitos (ADRS)». In:
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ma-se como alternativa mais eficiente, informal e eficaz para a solução de determinados
litígios e, principalmente, valoriza o papel da vítima no âmbito jurídico-penal.
Não se ignora, porém, que a justiça restaurativa e seus instrumentos também enfren-
tam diversas críticas, carecendo de aprimoramentos, como será abordado oportunamente
6
.
O motivo da escolha do tema reside exatamente no quadro de ajuste de novas tendên-
cias no processo penal, cenário que repercute – e muito – na esfera jurídica da vítima. Bus-
ca-se, portanto, caracterizar o instituto da mediação penal, traçar sua delineação normativa
e seus aspectos positivos e negativos, para, então, avaliar a posição da vítima, a partir de
recursos do direito comparado, nos ordenamentos propostos.
Desde já, vale consignar que esta pesquisa não tem como pressupostos teses abolicio-
nistas do Direito Penal, nem pretende reduzir a importância do processo penal clássico. Em
verdade, parte-se do pressuposto de que existe uma relação de complementaridade entre
a justiça oficial e a justiça restauradora, cada qual eficaz para a solução de determinada
natureza de crimes. Aliás, foi nesse cenário de complementaridade e diversificação que se
concebeu o termo “justiça multiportas”, valorizando distintas formas de se acessar o Poder
Judiciário, sem exclusão das entradas tradicionais
7
.
No bojo dessa diversificação, surgiu a figura da mediação penal, que foi conceituada
pelo art. 1.ºda Decisão-Quadro n.º2001/220/JAI do Conselho da União Europeia como “a
tentativa de encontrar, antes ou durante o processo penal, uma solução negociada entre a
vítima e o autor da infração, mediada por uma pessoa competente.
Essa solução foi buscada como forma de garantir que os crimes de menor potencial
ofensivo, ou a denominada “pequena criminalidade”, tivessem alguma resposta estatal, pois
se constatou que, em determinados níveis de criminalidade, muitas vítimas preferem não
comunicar às autoridades os delitos que suportaram, por desconfiança no sistema judiciá-
rio e pela excessiva onerosidade que ele comporta. Diante disso, a diversificação de formas
de solução se constitui em “factor de esperança” para as chamadas vítimas silenciosas
8
.
Mediação de conflitos para iniciantes, praticantes e docentes. 2.ªed. Salvador: Juspodivm, 2019. p.58-59).
6 A justiça restaurativa enfrenta severas críticas, dentre elas a de que as soluções encontradas, muitas vezes, dizem
mais respeito ao domínio do Direito Civil do que do Direito Penal. Outra resistência é de que a justiça restaurativa
“(...) não responde de forma adequada às exigências de culpa e de prevenção geral de intimidação”, já que, segundo
os críticos, se a consequência pelo delito for apenas a de restituir, cria-se, no imaginário do transgressor a ideia de
que vale a pena praticar o ilícito, pois nada mais terá a perder. Sobre o aprofundamento destas e outras críticas:
LEITE, André Lamas – A Mediação Penal de Adultos. Um Novo «Paradigma» de Justiça? Análise crítica da Lei n.º21/2007, de
12 de Junho. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. p.17 e 19.
7 Sobre o termo “multiportas”, em reconstituição histórica, Tereza Beleza e Helena Melo informam que o conceito
assumiu o contorno e significado atuais na Conferência Pound, em Chicago/EUA no ano de 1976, quando o
professor Frank E. Stander se referiu a “Multidoor Courthouse” (BELEZA, Teresa Pizarro; MELO, Helena Pereira
de – A mediação penal em Portugal. Coimbra: Almedina, 2012. p.39).
8 Sobre o mencionado “factor de esperança” para a resolução do conflito, o argumento foi extraído do já citado
texto: FERREIRA, Francisco Amado – Justiça Restaurativa: natureza, finalidades e instrumentos..., p.12 e 27.
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Como dito, no presente trabalho será analisada a mediação penal antes do exercício
da ação penal, ou seja, na fase investigativa ou de inquérito. Enfrentar-se-á o tema, carac-
terizando-o primeiro no ordenamento jurídico português e depois no brasileiro, fazendo
apontamentos e comparações sobre a participação da vítima. Ao final, serão tecidas as
correspondentes apreciações críticas, esperando, assim, oferecer algum contributo para o
desenvolvimento do sistema de mediação penal.
II. A MEDIAÇÃO PENAL EM PORTUGAL E O PAPEL DA VÍTIMA
Para delinear os aspectos gerais da mediação penal no ordenamento português, será ponto
de partida a Lei n.º21/07, de 12 de junho, que regula a mediação penal durante a fase do
inquérito
9
.
Em Portugal, há outros diplomas que, de alguma forma, disciplinaram a mediação
penal. Por exemplo, a Lei n.º115/09, de 12 de outubro (Código da Execução das Penas e Medi-
das Privativas da Liberdade), no seu art. 47º, n.º4, possibilita a mediação entre o recluso e o
ofendido. Cite-se, também, a Lei n.º112/09, de 16 de setembro, que, em sua versão original,
previa os chamados “encontros restaurativos” no âmbito de violência doméstica, durante
a suspensão provisória do processo ou o cumprimento de pena. Tratava-se do art. 39.ºda
referida Lei, revogado pela Lei n.º129/15, de 3 de setembro.
Sem prejuízo do exposto, a presente investigação centrar-se-á na mediação penal de
adultos durante a fase de inquérito, antes de o Ministério Público deduzir a acusação ou
oferecer a suspensão provisória do processo, na forma do art. 281.ºe seguintes do CPP por-
tuguês.
A. Caracterização geral da mediação penal em Portugal: análise da Lei n.º21/07,
de12 de junho, que criou o sistema de mediação penal no processo penal
A Lei n.º21/07 inaugurou o regime de mediação penal em Portugal, acolhendo determina-
ção do art. 10.ºda Decisão-Quadro n.º2001/220/JAI, do Conselho da União Europeia, de 15 de
março, relativa ao estatuto da vítima no âmbito penal. O aludido dispositivo da legislação
europeia privilegiou a mediação penal no processo penal, assegurando os acordos obtidos
entre vítima e agressor por tal instrumento de resolução alternativa de conflitos, e determi-
nou que cada Estado-Membro se esforçasse por promovê-la.
9 Durante o processo legislativo da Lei de Mediação Penal, havia fortes defensores da ampliação da mediação penal
para todas as fases do processo penal. Por exemplo: FERREIRA, Jaime Octávio Cardona – «A mediação como
caminho da Justiça. A mediação penal». In: Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa ao Professor Doutor Inocêncio
Galvão Teles: 90 anos. Coimbra: Almedina, 2017. p.524.
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Conquanto a Lei n.º21/07 expressamente tenha mencionado o dispositivo supracitado,
por seu caráter vinculante
10
, fato é que outros diplomas de natureza não obrigatória (soft
law) também influenciaram no estabelecimento da mediação penal em Portugal, quais
sejam: a Recomendação n.ºR (99) 19, aprovada pelo Comité de Ministros do Conselho da
Europa em 15 de setembro de 1999, sobre mediação penal, e a Resolução do Conselho Econô-
mico e Social da Organização das Nações Unidas n.º2002/12, de julho de 2002
11
.
Além das influências externas, o art. 202.ºda CRP, especificamente sobre a função juris-
dicional, estabeleceu que os tribunais são órgãos de soberania com competência para admi-
nistrar a justiça, e reconheceu, no n.º4 do referido preceito, que a lei poderá determinar
formas de composição não jurisdicional de conflitos, abrindo caminho para o legislador
ordinário normatizar a mediação.
Note-se que, conforme resulta da Lei n.º21/07, a mediação penal não está afastada do
processo penal, nem o antecede, mas foi instituída dentro dele, na fase de inquérito. Tra-
ta-se da opção legislativa lusitana, uma vez que a mediação penal poderia ter sido imple-
mentada antes mesmo de se iniciar o processo penal – seria a chamada mediação “pré-pro-
cessual” –, a teor da permissão do art. 1.ºda Decisão-Quadro n.º2001/220/JAI, que fixava o
seguinte marco temporal: “antes ou durante o processo penal”, como, na prática, acontece
com a mediação em geral.
Diante disso, conclui-se que, embora a mediação penal figure como instrumento da
justiça restaurativa, em Portugal ela está “enxertada” no bojo do processo penal, reforçando
a ideia de complementaridade entre a justiça oficial e a justiça restauradora
12
.
Os crimes passíveis de mediação penal são aqueles cujo procedimento depende de
queixa, i.e., os semipúblicos, desde que sejam crimes contra a pessoa e o patrimônio, além
daqueles de acusação particular, i.e., os particulares, excluídos aqueles com pena de prisão
10 Ivo Aersten e Tony Petes afirmam que a principal evolução entre a Recomendação do Conselho da Europa
de 1999 e a Decisão Quadro de 2001 reside na obrigatoriedade de adoção de medidas pelos estados-membros
para instituir a mediação penal (AERTSEN, Ivo; PETERS, Tony – «As políticas europeias em matéria de justiça
restaurativa». In: Sub Judice. Justiça e Sociedade. Coimbra: Almedina. [sd] n.º37 (Out-Dez 2006), p.40).
11 A resolução, no seu item I (use of terms), elenca os princípios básicos dos programas de justiça restaurativa
(“restorative justice programme”) em matéria criminal, incluindo a mediação como uma das formas de processos
restaurativos (“restorative processes”).
12 Quando o art. 2º, n.º1.º, da Lei da Mediação Penal fala em “pode”, traz figura alternativa ou complementar ao
processo penal. A mediação está “enxertada” no processo penal, mas “não serve à justiça penal” e sim à justiça
restaurativa, ou seja, tem regras e pressupostos diversos, por ser uma diferente forma de reação ao crime
(cf.MACHADO, Pedro Sá – «A Mediação Penal-Restaurativa e o Processo Penal-Consensual: uma discussão
acerca da verdade a partir da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho». In: Os Novos Atores da Justiça Penal. Coimbra:
Almedina, 2016. p.164 e 190).
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superior a cinco anos, contra a liberdade sexual, peculato, corrupção, tráfico de influência,
com vítima menor de 16 anos
13
ou quando aplicável o processo sumário ou sumaríssimo
14
.
Os denominados crimes públicos não estão contemplados no mencionado rol, em razão
do primordial interesse do Estado na persecução penal e da necessidade de se buscar a
prevenção geral de forma mais enfática, minimizando, assim, a importância da vontade da
vítima
15
.
O procedimento legal para a seleção dos casos enviados à mediação está desenhado da
seguinte forma: em qualquer momento do inquérito, o Ministério Público designará um
mediador para o caso, dentre as listas oficiais confeccionadas pelo Ministério da Justiça,
remetendo-lhe um sumário do conflito no qual devem constar informações sobre o arguido
e o ofendido e uma descrição do objeto do processo.
Como pressuposto prévio, o magistrado do Ministério Público deve averiguar se foram
recolhidos indícios suficientes da prática do crime e de sua autoria, já que não enviará para
a mediação fatos que comportem arquivamento. Acresça ainda que o titular do inquérito
deve avaliar se a mediação, no caso concreto, será adequada para responder às exigências
da prevenção – tanto na sua vertente geral quanto na vertente especial –, conforme resulta
do preceituado no art. 3.ºda Lei n.º21/07. Preenchidos os requisitos legais supra descri-
tos, o envio do caso para mediação constitui um poder-dever do magistrado do Ministério
Público
16
.
Sem prejuízo do exposto, as partes, de comum acordo, também podem requerer a media-
ção durante o inquérito. Nesse suposto, o Ministério Público deve designar um mediador,
independentemente da existência de indícios de verificação do crime e sua autoria ou da
análise das exigências da prevenção previstas no n.º2 do art. 3.ºda Lei n.º21/07. Em suma,
sendo requerida pelas partes a remessa dos autos para mediação, ao titular do inquérito
cabe apenas o controle do âmbito de aplicação da Lei de Mediação Penal, em outras pala-
vras, apenas verificará se o crime permite a mediação conforme resulta do art. 2.ºdaquele
diploma legal.
13 Sob os auspícios de proteção dos ofendidos, a doutrina questiona por qual razão o legislador protegeu os
inimputáveis pela idade, mas nada disse sobre aqueles que possuem anomalia psíquica, defendendo, assim, a
extensão da exclusão. (BELEZA, Teresa Pizarro; MELO, Helena Pereira de – A mediação penal em Portugal..., p.79).
14 Cf. art. 2.ºda Lei n.º21/07.
15 Nesse sentido: PINTO, João Fernando Ferreira – «O papel do Ministério Público na ligação entre o sistema
tradicional de Justiça e a mediação vítima-agressor». In: A Introdução da Mediação Vítima-Agressor no Ordenamento
Jurídico Português. Colóquio 29 de Junho de 2004. Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Ministério da
Justiça. Coimbra: Almedina, 2005. p.80.
16 André Lamas Leite defende que antes de enviar o caso à mediação o Ministério Público deve fazer um “juízo de
prognose” da efetividade da medida, porém, para o autor, inexiste discricionariedade daquele órgão, que deve
observar os critérios legais na seleção dos inquéritos (LEITE, André Lamas – A Mediação Penal de Adultos..., p.71
e 75/76).
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No caso de pluralidade de arguidos, a remessa do inquérito à mediação depende do
preenchimento individual dos pressupostos legais, como na suspensão provisória do pro-
cesso
17
.
Após notificadas da remessa do feito à mediação, as partes serão contactadas para ofere-
cerem seus “consentimentos livres e esclarecidos” e, oportunamente, serão informadas dos
direitos, deveres, fins e regras do processo de mediação. Posteriormente, assinados os ter-
mos de consentimento, inicia-se o processo de mediação propriamente dito. Não havendo
consentimento ou não obtido o acordo no prazo de três meses, o Ministério Público dará
continuidade ao processo penal conforme resulta do preceituado nos art. 3.ºe 5.ºda Lei
n.º21/07.
Acerca do processo de mediação propriamente dito, o art. 4.ºda Lei 21/07, ao conceituar
o instituto, dispôs sobre os seguintes princípios regentes: voluntariedade, informalidade,
flexibilidade, imparcialidade e confidencialidade.
Os princípios da informalidade e da flexibilidade dizem respeito ao procedimento e à
forma de condução dos trabalhos. Interessante salientar que tais axiomas não foram con-
templados pela Lei n.º29/13, de 19 de abril, que estabelece os princípios gerais aplicáveis à
mediação, mas estão expressamente estabelecidos para a mediação penal como forma de a
diferenciar do rígido e formal processo penal tradicional
18
.
Ao relevante papel do mediador estão ligados: o princípio da imparcialidade, proibin-
do-se qualquer propensão para prejudicar ou beneficiar quer a vítima quer o agressor, e o
princípio da confidencialidade, que implicará o dever de guardar segredo sobre tudo o que
for dito e de que tomar conhecimento nas sessões de mediação
19
.
Uma questão que se coloca é saber se o mediador deve funcionar como mero facilitador
ou como interventor. A principal diferença está na possibilidade de ele apresentar propos-
tas de acordo, o que seria inadmissível – em tese – no modelo não interventor. Segundo
17 Conforme lecionado em: CORREIA, João Conde – «O papel do Ministério Público no regime legal da mediação
penal». In: Revista do Ministério Público. Lisboa: Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. Ano 28, n.º112 (Out-
Dez 2007). p.67.
18 Na lição de Dulce Lopes e Afonso Patrão, a ausência de menção à informalidade e à flexibilidade na Lei n.º29/13
pode ter sido proposital, pois o legislador acabou por regular – algumas vezes de forma extensa – o processo de
mediação, os mecanismos anteriores (como a convenção de mediação) e os posteriores (como o reconhecimento
de força executiva e homologação) (LOPES, Dulce; PATRÃO, Afonso – Lei da Mediação Comentada. 2.ªed. Coimbra:
Almedina, 2016. p.30).
19 A Decisão-Quadro n.º 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, que substituiu a Decisão-Quadro
n.º2001/220/JAI do Parlamento Europeu e do Conselho, ao estabelecer normas de apoio, direitos e proteção à
vítima, preocupou-se com a possibilidade de a mediação penal acabar por fomentar a vitimização secundária.
Segundo consta do considerando n.º46, a garantia da confidencialidade pode ser mitigada se houver atos de
violência ou ameaça. Diante disso, a divulgação de tais atos poderia ocorrer a bem do interesse público, tudo com
o fim de se evitar retaliações à vítima.
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Mariana França Gouveia, a lei portuguesa, quando fala em mediação, refere-se sempre à
mediação facilitadora, consoante se extrai do art. 26º, b, da Lei n.º29/13
20
.
Finalmente, passa-se ao cardeal princípio da voluntariedade, que confere ampla liber-
dade aos mediados na fixação do conteúdo do acordo. A lei fixou três limitações ao con-
teúdo do acordo: (i) impossibilidade de sanções que impliquem privação de liberdade; (ii)
impossibilidade de sanções que ofendam a dignidade do arguido; e (iii) impossibilidade de
sanções cujo cumprimento se prolongue por mais de seis meses
21
.
Acerca da liberdade de acordo, André Lamas Leite defende que a lei, neste ponto, padece
de inconstitucionalidade material por violação do princípio da taxatividade das sanções e
proporcionalidade das penas, previsto no art. 29º, n.º3, da CRP
22
.
Em sentido oposto, os defensores da mediação lembram que tal liberdade é intencio-
nal nos mecanismos de justiça restaurativa, pois não é possível engessar a vontade dos
mediados na busca pela restauração do status quo ante
23
. Outrossim, entende-se que não há
que falar em taxatividade de sanções, porque não se está diante de penas ou medidas de
segurança
24
. Além disso, observa-se que o legislador deixou uma cláusula genérica sobre a
20 GOUVEIA, Mariana França – «Mediação (capítulo III)». In: Curso de Resolução Alternativa de Litígios. 3.ª ed.
Coimbra: Almedina, 2014. p.48-49.
21 Cf. art. 6.ºda Lei n.º21/07.
22 Observa o referido autor que “(...) fruto da excessiva liberdade modeladora do conteúdo do acordo, não se
estabelece ao menos de modo exemplificativo, quaisquer regras de conduta, injunções ou deveres impendentes
sobre o arguido (...)”. Ainda aprofunda sua crítica dizendo que a mediação não está fora do processo penal, mas
tem natureza complementar e, por tal razão, não pode se afastar do princípio da proporcionalidade das penas.
Afinal, não se alcançaria a prevenção geral e a paz social na hipótese de um acordo desproporcional ao ilícito,
gerando grave prejuízo ao arguido. Arremata afirmando que a voluntariedade não pode conduzir a uma “zona
de vale tudo” (LEITE, André Lamas – A Mediação Penal de Adultos..., p.82-88). Por outro lado, há quem defenda que
o princípio da proporcionalidade não se aplica à mediação, pelo menos da forma como é conhecido nos feitos da
justiça clássica. Isso porque o acordo celebrado por livre vontade e sem coação deve valer como norma entre as
partes (PINTO, João Fernando Ferreira – «O papel do Ministério Público na ligação...», p.83).
23 Sobre o mesmo ponto, vale invocar estudo de Pedro Sá Machado, segundo o qual a mediação restaurativa é uma
reação ao crime diversa do processo penal, embora reconheça que ela está “enxertada” nele. Por ser uma forma
de reação diferente ao crime, a ela não se aplicam os princípios e regras do processo penal tradicional. Diz o autor
que: “O processo penal procura uma verdade material, ao passo que a mediação penal basta-se com uma verdade
consensual privada. Com efeito, para dar resposta simplificadas à pequena criminalidade, o processo penal
prescinde da verdade material e devolve a verdade do conflito aos próprios intervenientes, isto é, reconhece-
lhes capacidade para gerir o seu próprio conflito através de uma instância restaurativa. Depois prossegue
dizendo que o Ministério Público garante uma “verdade indiciada pública, mas depois a “verdade privada” é
construída na sessão de mediação. Tal verdade privada é “formal”, ou seja, não é contraditada, existindo apenas
os elementos indiciários colhidos anteriormente. Exatamente por ser consensual, se afasta da ideia de justiça
privada (MACHADO, Pedro Sá – «A Mediação Penal-Restaurativa e o Processo Penal-Consensual...», p.164-166
e 176).
24 Acerca da criatividade dos acordos, “(...) limitar a mediação a um catálogo seria amputá-la de uma das suas mais
preciosas e fecundas virtualidade: a busca e construção da resposta adequada, do ponto de vista de ambas as
partes”. (ALMEIDA, Carlota Pizarro de – «A mediação perante os objetivos do Direito Penal». In: A Introdução da
Mediação Vítima-Agressor no Ordenamento Jurídico Português. Colóquio 29 de Junho de 2004. Faculdade de Direito
da Universidade do Porto. Ministério da Justiça. Coimbra: Almedina, 2005. p.48).
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proteção da dignidade do arguido, que serve de parâmetro para o controle da proporciona-
lidade do teor do acordo. Também, não se pode olvidar que o próprio mediador, dentro de
suas funções e incumbências, promove certo “controle” ao orientar os mediados acerca dos
limites legais
25
.
Ainda na esteira do conteúdo do acordo, vale notar que não há imposição de pena ou
medida de segurança, mesmo porque ausente atividade judicante. As partes podem acordar
a imposição de sanções ou deveres, o que não implica a assunção de culpa pelo arguido
26
.
Tanto é assim que o incumprimento da avença/acordo – verificado pelo Ministério Público
após a renovação da queixa em tempo hábil – conduz ao prosseguimento do processo penal
para a definição da culpa, segundo se extrai dos art. 5º, n.º4, e art. 6º, n.º3, da Lei n.º21/07
27
.
Celebrado o acordo, envia-se ao Ministério Público, que verificará o conteúdo das cláu-
sulas, observando se houve respeito aos limites legais. Na hipótese de verificar a existência
de alguma ilegalidade, o órgão ministerial devolverá o feito ao mediador para saná-la junta-
mente com as partes. Estando o acordo dentro das balizas normativas, o próprio Ministério
Público homologa a desistência da queixa, que operará ex lege com a assinatura do acordo,
e notificará as partes
28
.
A mencionada desistência da queixa não está livre de críticas. Há quem afirme que,
levando-se em conta a sistemática penal, o melhor teria sido admitir a suspensão provisória
do inquérito até o cumprimento do acordo, em vez da previsão de desistência da queixa.
Isso porque a desistência da queixa dá a entender que o processo penal finalizou, a teor
25 Enumerando as vantagens da técnica de mediação, Tereza Pizarro Beleza e Helena Pereira de Melo aduzem que
“os mediadores controlam o resultado obtido, na medida em que delimitam o conteúdo do acordo”. (BELEZA,
Teresa Pizarro; MELO, Helena Pereira de – A mediação penal em Portugal..., p.37).
26 Cuida-se de ponto polêmico. Com efeito, os diplomas internacionais vão na esteira da presunção de inocência,
de modo que a aceitação da mediação ou a celebração de acordo não podem implicar confissão de culpa. Todavia,
há vozes dissonantes que colocam a admissão de responsabilidade pelo autor como condição sine qua non para
a mediação penal. Nesse sentido, Frederico M. Marques e João Lázaro afirmam que “das fundações teoréticas
e conceptuais da mediação depreende-se que o infractor que participa voluntariamente no processo renuncia
à presença de inocência.” (MARQUES, Frederico Moyano; LÁZARO, João – «A mediação vítima-infractor e os
direitos e interesses das vítimas». In: A Introdução da Mediação Vítima-Agressor no Ordenamento Jurídico Português.
Colóquio 29 de Junho de 2004. Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Ministério da Justiça. Coimbra:
Almedina, 2005. p.36). Por outro lado, existe crítica à tendência dos instrumentos de justiça restaurativa de “(...)
esvaziar ao máximo o lugar central da culpa”, “(...) reduzindo-a a uma ideia de consenso aceite pela comunidade
(...)” (LEITE, André Lamas – «Alguns claros e escuros no tema da mediação penal de adultos». In: Revista
Portuguesa de Ciência Criminal. Ano 24, n.º4 (Out-Dez 2014), p.589-590).
27 Acerca do incumprimento, registre-se que deve ser aquele definitivo, não bastando a simples mora. Além
disso, por serem crimes particulares ou semipúblicos, o Ministério Público não pode sobrepor-se à vontade do
ofendido, razão pela qual somente poderá fiscalizar o incumprimento notório e dar sequência ao feito quando
houver renovação da queixa e reabertura do inquérito (CORREIA, João Conde – «O papel do Ministério Público
no regime legal da mediação penal...», p.76-77).
28 Cf. art. 5º, n.º4 e 5, da Lei n.º21/07.
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do que determina o art. 116.ºdo CP português, mas depois precisa de novo impulso com a
renovação da queixa
29
.
Sobre esta matéria, o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão que julgou recurso para
fixação de jurisprudência a respeito do término do prazo para o exercício do direito de
queixa no processo penal, ressaltou que o CPP não dispôs sobre a renovação do direito de
queixa. Todavia, a Lei n.º21/07 o fez de forma expressa, excepcionando o ordenamento.
Conquanto não fosse o objeto do recurso naquela oportunidade, o mencionado Tribunal
não vislumbrou vício ou inconstitucionalidade na expressa opção legislativa de excepcio-
nar a regra geral do CPP
30
.
A lei determina que o controle de legalidade será realizado pelo Ministério Público, cal-
cada, inclusive, na disposição do art. 51º, n.º2, do CPP português segundo a qual a homolo-
gação da desistência da queixa, no âmbito do inquérito, cabe ao Ministério Público.
A solução encontrada pela lei foi louvada por retirar o conflito dos tribunais, mas
enfrenta censuras pelo mesmo motivo
31
. Sustentam os críticos que a imposição de obri-
gações ou deveres sancionatórios atinge a esfera dos direitos fundamentais do arguido,
limitando-os, o que demandaria o controle de legalidade do magistrado com função juris-
dicional
32
.
Finalizando esse item sobre as principais normas procedimentais da mediação penal, o
art. 8.ºda Lei n.º21/07 determina que as partes podem fazer-se acompanhar de advogados
nas sessões. Conquanto parte da doutrina se oponha à norma que estabelece a facultativi-
dade de acompanhamento por advogado, é preciso relembrar que a mediação penal é regida
pelos princípios da flexibilidade e informalidade, razão pela qual a presença do advogado
não é obrigatória
33
.
29 Há quem defenda que aqui se tem uma desistência de queixa sob condição suspensiva, pois a desistência não
produz efeitos após assinado ou homologado o acordo, mas somente após o cumprimento (LEITE, André Lamas
A Mediação Penal de Adultos..., p.97-100).
30 Menção na análise sobre a queixa na dogmática penal portuguesa – Item “1. A exigência legal da queixa
(SUPREMO Tribunal de Justiça – Acórdão do processo n.º148/07.0TAMBR.P1-B.S1, de 2012. Relator Pires da Graça.
Diário da República n.º98/2012, Série I, 2012-05-21, p.2624 [Em linha] [Consultado em 31 Out. 2019]. Disponível
em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a953d1f5f66312b280257a0500576171?OpenDocument).
31 “(...) parece-nos ser de aplaudir a solução consagrada pelo legislador que, ao contrário do que sucede no âmbito
dos Julgados de Paz, optou por não exigir a homologação do acordo por um juiz, através de sentença. (BELEZA,
Teresa Pizarro; MELO, Helena Pereira de – A mediação penal em Portugal..., p.100).
32 Acerca da mencionada crítica, ver: LEITE, André Lamas – A Mediação Penal de Adultos..., p.115-117.
33 Há quem defenda a obrigatoriedade do advogado na mediação ao argumento da paridade de armas (ABREU,
Carlos Pinto de – A ineficácia do sistema penal na protecção à vítima e a mediação penal: um mal necessário
ou uma solução há muito possível e quase sempre esquecia?. In: Revista do Ministério Público. Lisboa: Sindicato
dos Magistrados do Ministério Público. p.274). No entanto, resulta sintomático que nos restantes sistemas de
mediação em Portugal a presença do advogado também é facultativa e não obrigatória (Vide BAHAMONDE,
Ruben – «The structuring principles of mediation in Portugal». In: Galileu – Revista de Direito e Economia. ISSN
2184-1845. Vol. XIX, n.º2, 2018, p.138).
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B. O papel da vítima na mediação penal em Portugal
O ordenamento jurídico português disponibiliza à vítima diversos instrumentos para a sua
intervenção no processo penal. Um dos mais celebrados é a já tradicional figura do assis-
tente, com faculdade de intervir nos autos, recorrer ou deduzir acusação, sempre como um
colaborador do Ministério Público, a cuja atividade subordina sua intervenção
34
.
Há poucos anos foi editada a Lei n.º130/15, de 4 de setembro, que instituiu o Estatuto
da Vítima, normatizando princípios e direitos do ofendido, sem prejuízo daqueles outrora
consagrados. Esta mudança legislativa nasceu da percepção de que a vítima goza de pouco
espaço no processo penal tradicional devido a que, muitas vezes, é impedida de expressar
os seus sentimentos sobre os fatos em causa e/ou de participar ativamente dos rumos da
investigação e do processo. As limitações as quais as vítimas estão submetidas no âmbito
do processo penal servem de argumento para a instituição da mediação penal como um
dos instrumentos da justiça restaurativa, buscando dar voz a quem teve o bem jurídico vio-
lado
35
. O mencionado Estatuto, no seu art. 17º, também se preocupa em evitar a vitimização
secundária, consistente naquela efetivada no transcurso e em razão do próprio processo
judicial, geralmente o penal.
Em sentido contrário, verifica-se corrente crítica à crescente participação da vítima no
processo penal, mesmo antes da promulgação do Estatuto da Vítima. Conquanto não negue
avanços pontuais, André Lamas Leite afirma que o movimento dos anos sessenta e setenta
do século passado – de atribuir papel ativo à vítima – avançou em direção a uma “vitimo-
dogmática, substituindo a polarização arguido-Estado pela triangular relação arguido-Es-
tado-vítima. Em nome da proteção da vítima, segundo o mencionado professor, há quem
advogue postulados incompatíveis com a lógica do sistema penal continental, como, por
exemplo, a substituição do in dubio pro reo pelo “in dubio pro victima. Por essas e outras, o
autor critica a insistência dos que afirmam que o ofendido estaria alijado do processo penal
tradicional
36
.
Respeitado o entendimento diverso, é forçoso reconhecer ser majoritária a corrente
segundo a qual o processo penal dito tradicional por muitos anos pouco fez em relação às
vítimas ou em relação ao seu papel no desenvolvimento do processo. Tanto é verdade que,
34 Caracterização e atribuições do assistente nos arts. 68.ºe 69.ºdo CPP português.
35 Acerca do ativo papel da vítima na justiça restaurativa, exibe-se, como trunfo, por exemplo, o fato de a mediação
possibilitar à vítima fazer perguntas ao autor do ilícito e mostra-lhe seus sentimentos. (PINTO, João Fernando
Ferreira – «O papel do Ministério Público na ligação...», p.76).
36 Em mais de uma obra o citado autor censura aquilo que acredita ser a excessiva participação da vítima no
processo penal. Nos seus dizeres, corre-se “(...) o risco de o nosso século ficar para a História – dizemo-lo de jeito
hiperbólico – como aquele em que a vítima passa de desprezada excrescência a déspota esclarecida” (LEITE,
André Lamas – A Mediação Penal de Adultos..., p. 15 e 47). Acerca do que denomina “vitimodogmática” e suas
críticas, ver: LEITE, André Lamas – «Alguns claros e escuros no tema da mediação penal de adultos...», p.581-583.
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em Portugal, foram muitos e de diversas fontes os impulsos para a normatização da media-
ção penal justificados na necessidade de ampliação da proteção da vítima.
A Lei n.º21/07 é fruto das influências legislativas europeias e internacionais, conforme
explanado no item anterior, do compromisso do XVII Governo Constitucional e dos impul-
sos no âmbito acadêmico, como o Colóquio de 29 de junho de 2004, na cidade do Porto
37
.
Ressalte-se, ainda, que, no âmbito da Assembleia da República, durante o processo legisla-
tivo, foram ouvidos especialistas quanto à introdução da mediação penal no ordenamento
português
38
.
Todos esses impulsos estavam imbuídos do ideal de valorização da vítima.
Por exemplo, no mencionado colóquio de 2004, realizado pelo Ministério da Justiça na
cidade do Porto, e cujas principais intervenções foram compiladas e publicadas num muito
interessante compêndio de artigos, não se escondeu a preocupação de se construir uma
legislação que valorizasse a vítima
39
. Naquela oportunidade, alguns especialistas defende-
ram, veementemente, que a mediação precisa ser encarada como “direito da vítima, cujas
garantias devem ser preservadas, a começar da seleção de casos susceptíveis à referida
forma de resolução conflitiva
40
.
a) A participação da vítima e os princípios da cooperação e da voluntariedade
Estabelecido o contexto legal, vale observar o papel da vítima na mediação penal à luz
de seus princípios regentes.
A Lei n.º29/13, de 19 de abril, estabeleceu princípios gerais para a mediação em Portu-
gal, chamados de “universais”, portanto aplicáveis também à mediação penal, consoante se
extrai do art. 3.ºdaquele diploma
41
.
37 Para aprofundamento sobre os impulsos legiferantes da instituição da mediação penal em Portugal, verificar:
BELEZA, Teresa Pizarro; MELO, Helena Pereira de – A mediação penal em Portugal..., p.14.
38 Nesse sentido, Maria Manuel Bastos, consultora de política legislativa, escrevendo antes da publicação da Lei
de Mediação Penal, registra que a Assembleia da República aprovou a Resolução n.º30/2003, de 20 de março,
propondo a realização de audição parlamentar acerca do tema proposto, o que ocorreu durante o ano de 2003,
com a pronúncia de várias entidades (BASTOS, Maria Manuel – «Breves considerações sobre a mediação
penal». In: Sub Judice. Justiça e Sociedade. Coimbra: Almedina. [sd] n.º37 (Out-Dez 2006), p.85).
39 A obra é: A Introdução da Mediação Vítima-Agressor no Ordenamento Jurídico Português. Colóquio 29 de Junho de 2004.
Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Ministério da Justiça. Coimbra: Almedina, 2005.
40 Frederico Moyano Marques e João Lázaro, então representantes da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima,
de forma sensata, teceram considerações sobre a inviabilidade de mediação penal nos delitos de cunho sexual
e naqueles que envolvem violência doméstica não episódica, sob pena de se agravar a espiral de violência
nas sessões de mediação. (MARQUES, Frederico Moyano; LÁZARO, João – «A mediação vítima-infractor e os
direitos e interesses das vítimas...», p.28-30).
41 Chamam-se universais aqueles princípios aplicáveis em qualquer mediação realizada em Portugal (LOPES,
Dulce; PATRÃO, Afonso – Lei da Mediação Comentada..., p.29).
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Os axiomas da confidencialidade, tratamento igualitário, imparcialidade, independên-
cia e competência estão estritamente ligados à figura do mediador, conforme discorrido no
tópico anterior. Intrinsecamente vinculados à vítima estão os princípios da cooperação e
da voluntariedade.
A cooperação deve ser encarada como um pressuposto à mediação. Com efeito, se o
espírito cooperativo não acompanhar as partes, não haverá nem desejo de requerer ou acei-
tar participar da mediação.
Sobre o princípio da voluntariedade, defendem Dulce Lopes e Afonso Patrão que, den-
tro da mediação, possui quatro dimensões: liberdade de escolha, liberdade de abandono,
conformação do acordo e liberdade de escolha do mediador
42
. No que concerne à liberdade
de escolha, o legislador português afastou a figura da mediação obrigatória
43
. O abandono
é possível a qualquer momento do processo de mediação, ainda que unilateralmente, sem
que isso configura prejuízo às partes. No campo penal, a liberdade de escolha fica mitigada,
pois o mediador é designado pelo Ministério Público dentro das listas oficiais, a teor do art.
3º, n.º1 e 2, da Lei n.º21/07
44
.
Acerca da dimensão da liberdade de conformação ao acordo, vale aduzir que a busca
pela verdade real do processo penal tradicional é substituída pela verdade consensual pri-
vada estabelecida nas sessões de mediação
45
. Portanto, a voluntariedade – nas dimensões
de liberdade de escolha e conformação do acordo – constitui o fundamento de validade que
permite a mitigação do princípio da busca da verdade real, caro à processualística criminal
tradicional. Resumindo, se partes se submetem à mediação penal e chegam ao consenso,
desde que passe pelo controle de legalidade do Ministério Público, o acordo se torna a solu-
ção do conflito.
Daí a importância do próprio comportamento colaborativo da vítima durante a media-
ção, devendo ter consciência que a prática restaurativa não existe para saciar desejos de vin-
gança. Nesse sentido, representantes da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) já
reconheceram que devem ser afastados da mediação aqueles ofendidos que estão movidos
42 LOPES, Dulce; PATRÃO, Afonso – Lei da Mediação Comentada..., p.33-35.
43 Exigência de que as partes litigantes passem por uma fase de mediação antes do ajuizamento de ações. A
mediação obrigatória, ou mediação pré-processual obrigatória, é criticada por criar mais uma etapa formal à
resolução de conflitos e impedir o livre acesso ao Poder Judiciário (IdemOp. Cit. p.31).
44 Em todo caso, esta é uma característica geral dos sistemas de mediação pública, pois a designação do mediador
também não é feita pelas partes no sistema de mediação familiar, conforme resulta do previsto na alínea b) do
n.º2.ºdo art. 3.ºdo Despacho Normativo n.º13/2018, que regulamenta a atividade do SMF, nem no sistema de
mediação laboral, conforme resulta do parágrafo a) da cláusula 4.ªdo Protocolo de Mediação Laboral.
45 Cf. lição já citada em nota anterior. Ver: MACHADO, Pedro Sá – «A Mediação Penal-Restaurativa e o Processo
Penal-Consensual...», p.164-166.
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apenas por desejos de vingança
46
. Isso porque o objetivo da mediação não é vingança, mas a
reparação de danos, buscando o restabelecimento do “laço social” entre os evolvidos
47
. Com
efeito, iniciar a mediação penal imbuído do estrito sentimento vingativo poderá conduzir à
indesejada (re)vitimização.
A reparação dos danos também está intimamente ligada ao papel da vítima e do espí-
rito colaborativo das partes. Ela pode ocorrer das formas mais diversas, desde pedidos de
desculpas até indenizações e serviços sociais, a depender da criatividade dos envolvidos.
Nesse ponto, invoca-se a lição de Cláudia Cruz dos Santos, no sentido de que não é
apenas articular um pedido improvisado de desculpas ou pagar certa quantia em dinheiro,
mas deve haver “(...) um esforço supremo de confissão e de luto psíquico e social por parte
do agente do crime (...)”
48
. Aliás, na lição da citada professora, duas importantes diferenças
entre a restauração da mediação penal para a reparação do Direito Civil são: (1) o fato de, na
mediação penal, a solução não ser imposta ou adjudicada, mas surgida de um consenso, e
(2) a pressuposição de “(...) um comportamento activo de reconhecimento da responsabili-
dade”
49
.
Para o sucesso da mediação, fala-se muito da necessidade de o agressor se esforçar para
reparar o dano em uma postura propositiva, o que é verdade incontestável. Todavia, como a
solução reparadora deve ser criativa e bilateral, a vítima também necessita de uma postura
colaborativa ativa, expressando seus sentimentos sobre o fato
50
. Somente assim a verdade
consensual privada será construída de forma a efetivamente restaurar os laços sociais.
A participação ativa da vítima, a possibilidade de ela se expressar e o papel colaborativo
em busca de um consenso são importantes fatores que diferenciam a mediação penal de
instrumentos da chamada justiça penal negociada ou contratada, como os acordos negocia-
dos de sentença ou “plea bargaining. Nestes acordos, embora também presentes elementos
de consenso, o papel da vítima é diminuído, uma vez que os negociantes são o agressor e o
titular da ação penal.
46 Cf. MARQUES, Frederico Moyano; LÁZARO, João – «A mediação vítima-infractor e os direitos e interesses das
vítimas...», p .32.
47 O restabelecimento de tal laço “(...) pode consistir num pedido de desculpas, em prestações de natureza
económica, na prestação de serviços”. (BELEZA, Teresa Pizarro; MELO, Helena Pereira de – A mediação penal
em Portugal..., p.98-99). Sobre as desculpas, “estudos feitos em Portugal, em que se concluiu que o pedido de
desculpas e a indemnização se destacam como as principais pretensões dos ofendidos, deixando muito longe
a vontade de que o delinquente seja condenado a uma pena de prisão” (ALMEIDA, Carlota Pizarro de – «A
mediação perante os objetivos do Direito Penal...», p.41).
48 SANTOS, Cláudia Cruz – «Uma finalidade específica da justiça restaurativa: a reparação dos danos sofridos pela
vítima (item 6, capítulo 1, parte II)». In: A Justiça Restaurativa. Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p.371.
49 IdemOp. Cit. p.379.
50 As vítimas sentem-se verdadeiramente compensadas ao serem capazes de se expressar num ambiente sereno,
ao sentirem a diferença de comportamento do agressor e ao ouvi-lo assumir e verbalizar o seu erro e o seu
compromisso para o futuro” (SANTOS, Leonel Madaíl – Mediação Penal. Lisboa: Chiado Editora, 2015. p.25).
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Essa diferença é substancial e assim o fez notar o Supremo Tribunal de Justiça em 2013,
quando decidiu que o direito processual penal português não admite os acordos negociados
de sentença, dentre os vários argumentos e doutrinas citadas, lembrou que nestes acordos
a vítima “é descartada do debate” e fica “à margem da negociação
51
.
b) A valorização da vítima e o direito de iniciar a mediação penal
A participação da vítima não pode se restringir ao momento dos encontros de restau-
ração, ou seja, ao processo de mediação propriamente dito, mas deve antecedê-lo. Um dos
grandes avanços da Lei n.º21/07 – cujo potencial nunca foi aproveitado – reside na facul-
dade de as partes requererem a mediação, conferida pelo art. 3º, n.º2, limitando, como dito
alhures, a análise do Ministério Público sobre a prevenção de delitos – o juízo de prognose
– e a existência de indícios da ocorrência do ilícito
52
.
Referido dispositivo está fundado na lógica da devolução do conflito aos envolvidos,
pois, se possuem o domínio ou empowerment para solucioná-lo, tanto mais para iniciar a via
alternativa da resolução
53
.
Atualmente, verifica-se um quadro de desprestígio da mediação penal na fase do inqué-
rito em Portugal
54
. Avaliando esse panorama, entende-se que a mudança de paradigma per-
passará por duas iniciativas. A primeira, uma atualização legislativa, no sentido de facultar
a cada parte, unilateralmente, o requerimento do início do processo de mediação penal,
prestigiando, sobretudo, o princípio da voluntariedade. A segunda, e independentemente
51 SUPREMO Tribunal de Justiça – Acórdão do processo n.º 224/06. de7GAVZL.C1.S1, 2013, Relator
Santos Cabral. [Em linha] [Consultado em 31 Out. 2019]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jstj.
nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/533bc8aa516702b980257b4e003281f0?OpenDocument.
52 Há quem critique o dispositivo legal citado (incluído ao cabo do processo legiferante), embora reconheça sua
presença em outros ordenamentos jurídicos. (LEITE, André Lamas – A Mediação Penal de Adultos..., p.76).
53 Sobre a referência ao empowerment das partes, Mariana França Gouveia, tratando da mediação em geral, afirma
que “(...) a mediação assenta na ideia de que é nas partes que reside a solução do problema, que é através delas
– as donas do litígio – que se encontra a solução adequada e justa. (GOUVEIA, Mariana França – «Curso de
Resolução Alternativa de Litígios...», p.48).
54 Quadro que pode ser evidenciado pelos seguintes dados: (1) Informações da Direção-Geral da Polícia de Justiça
(DGPJ) de que, entre 23/01/2008 e 31/12/2012, apenas 735 processos ingressaram no sistema de mediação penal e,
deles, 188 lograram um acordo (25,28%). Nesse período, o número de inquéritos abertos superou o de cinquenta
e cinco mil (cf. LEITE, André Lamas – «Uma leitura humanista da mediação penal. Em especial, a mediação
pós-sentencial». In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Coimbra: Coimbra Editora, ano XI,
(2014), p.17). (2) No intuito de reunir dados para este ensaio, obteve-se informação do Gabinete para a Resolução
Alternativa de Litígios (DGPJ) da inexistência de processos de mediação penal em curso no início do mês de
agosto de 2019 (cf. mensagem eletrônica de 06 de agosto de 2019, remetida por correio@dgpj.mj.pt). Tal fato pôde
ser confirmado em consulta às estatísticas oficiais do Ministério da Justiça [Em linha] [Consultado em 13 Fev.
2020). Disponível em: https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Paginas/Mediacao.aspx. (3) Segundo se extrai do
CITIUS (sistema do Ministério da Justiça), o último edital para a seleção de mediadores penais foi publicado
em julho de 2011 [Em linha] [Consultado em 13 Fev. 2020]. Disponível em: https://www.citius.mj.pt/portal/Artigos.
aspx?CategoryId=13.
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de modificação legislativa, é a maior conscientização dos cidadãos quanto à faculdade de
requerer o início da mediação penal.
A doutrina defende que dois dos maiores entraves à popularização da mediação penal
são a cultura da litigiosidade e a desconfiança dos operadores judiciários
55
.
O primeiro óbice está ligado ao strepitus processus e ao sentimento de vingança percebido
na expressão da vítima ao constituir o seu algoz como arguido, de forma que ele tenha de
se explicar ao juiz, sentimento que, por vezes, sobrepuja o próprio interesse na reparação.
A segunda dificuldade diz respeito à postura dos magistrados do Ministério Público de
preferirem deduzir acusação a remeter os feitos maduros, do ponto de vista indiciário, à
mediação, seja por razões pragmáticas ligadas ao volume de serviço, seja por juízos de prog-
nósticos preventivos conforme autoriza o art. 3º, caput, da Lei de Mediação Penal
56
.
Por esses dois motivos, a própria conscientização das partes quanto à possibilidade de
requerer a mediação no âmbito penal se mostra prejudicada, ofuscando-se as reais van-
tagens da medida alternativa: reconstrução do tecido social, celeridade, economicidade
57
,
informalidade
58
, entre outras já referidas.
Do ponto de vista do ofendido, além de várias benesses já citadas frente ao processo ofi-
cial, o rápido início da mediação – quando requerido pelas partes – potencializa a solução
da controvérsia e, consequentemente, torna célere a restauração do status quo ante, sem a
necessidade de se aguardar a colheita de indícios investigativos, como a confecção de lau-
dos periciais, oitiva de testemunhas, entre outros.
A celeridade da mediação, quando requerida pelas partes, também é favorável ao agres-
sor. Note-se que, se ele tem consciência de eventual irregularidade e pretende assumir sua
culpa, quanto mais rápido se resolver com a vítima e ficar “livre” do inquérito melhor, inclu-
sive sem condenações, anotações de antecedentes e interrogatórios. Por outro lado, caso
pretenda demonstrar que tudo não passou de um engano, que não houve intenção, que não
foi o autor, que agiu por falta de cuidado ocasional, enfim, dar alguma explicação, é a opor-
tunidade de fazê-lo diretamente ao ofendido, e não a autoridades policiais. Não é ocioso
55 Segundo o autor, são alguns dos motivos elencados para a decaída de mediações penais durante o inquérito
em Portugal. Enfatizou-se que a derrocada pode ser mais por razões de cultura e tradição jurídica, do que por
equivocadas escolhas legislativas (cf. LEITE, André Lamas – «Uma leitura humanista da mediação penal...»,
p.17-18).
56 Ibidem.
57 Para se ter uma ideia da economia em relação à justiça dita oficial, nos termos do art. 42.ºda Lei n.º29/13, os
valores a título de remuneração pelo trabalho dos mediadores no sistema de mediação penal são os seguintes:
25€ para a pré-mediação (explicação do processo e colheita do consentimento), 90€ para a mediação sem acordo
e 120€ para a mediação que resultou em acordo.
58 Em Portugal, ocorriam nas Câmaras de Freguesias ou nos locais de funcionamento dos Julgados de Paz.
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notar que o diálogo agressor-vítima poderá redundar na desistência da queixa, ainda que
não haja acordo de mediação propriamente dito.
Nessa senda, o advogado pode assumir papel importante, nada obstante a lei torne sua
presença facultativa na mediação penal. Com efeito, quando as partes – autor ou vítima –
procuram um advogado em razão de um crime de menor potencial ofensivo, este pode fun-
cionar como um incentivador da mediação, sugerindo-a ao cliente. Veja-se, por exemplo,
a vítima que procura o advogado para formular a queixa ou se constituir como assistente,
imbuída apenas do sentimento de vingança a todo custo. O profissional, na condição de
depositário da confiança do cliente, deve orientá-lo a sopesar as circunstâncias do autor
e do caso, conscientizando-o de que, em determinados tipos de delitos, vendetas somente
redundarão em despesas e atos de (re)vitimização, enquanto uma conversa franca entre
agressor-vítima e criativa, do ponto de vista da resolução mais adequada construída pelas
partes, poderá ser o melhor caminho.
O que se deve ter em mente é o fato de que as partes, requerendo a mediação penal,
abrem o canal de comunicação para a construção de uma solução criativa e rápida, mesmo
antes da colheita de indícios investigativos. Em resumo, nos crimes de menor potencial
ofensivo em que a lei possibilita a mediação penal, o início da mediação antes da formação
da “verdade indiciada pública
59
, portanto por requerimento das partes, tem potencial para:
(1) evitar atos de (re)vitimização; (2) atender aos interesses do próprio suspeito/arguido; (3)
reconstruir o tecido social de forma mais célere; e (4) desonerar os órgãos de investigação,
de modo que se atenham à grande criminalidade, promovendo economia de recursos e efi-
ciência.
Ainda na vertente de conscientização das partes, destaca-se que o direito à informação
da vítima, introduzido no art. 67º-A, n.º4, do CPP, pelo Estatuto da Vítima – Lei n.º130/15,
deve englobar não apenas dados relativos ao que está registrado nos autos do processo ou
etapas procedimentais, mas deve alcançar todos os seus direitos e faculdades, de modo que
possa fazer suas escolhas e planejamentos. O referido direito também reflete na exposição,
ao ofendido, dos benefícios da solução do diferido pela mediação penal.
Nesse contexto, a Decisão-Quadro n.º 2001/220/JAI do Conselho da União Europeia,
mencionada como um dos impulsos da Lei de Mediação Penal, no seu art. 4º, n.º1, item
d, afirmava que cada Estado-membro deveria garantir ao ofendido informações sobre os
atos subsequentes à queixa. No mesmo sentido, o art. 4º, n.º1, item j, da Decisão-Quadro
n.º2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro, que substituiu a
59 MACHADO, Pedro Sá – «A Mediação Penal-Restaurativa e o Processo Penal-Consensual...», p.167.
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anteriormente citada, incluiu o direito à informação da vítima aos “serviços disponíveis de
justiça restaurativa.
III. A MEDIAÇÃO PENAL NO BRASIL E O PAPEL DA VÍTIMA
No Brasil, a mediação penal está a ganhar força como instrumento de realização da justiça
restaurativa, com o intuito de coexistir com o atual sistema penal, complementando-o
60
. Ao
contrário do que ocorre em Portugal, ainda não há lei específica que discipline a mediação
penal, mas grande parte da doutrina admite sua aplicação como instrumento da justiça
restaurativa, mediante interpretação sistemática de diplomas existentes. O grande desa-
fio, entretanto, é superar a “cultura da sentença” e a dependência da “solução adjudicada,
muito marcantes no Brasil
61
.
Tal qual se estruturou o capítulo anterior, far-se-á uma caracterização geral do instituto
da mediação penal no Brasil, centrando-se no objeto deste trabalho – mediação penal de
adultos antes do exercício da ação penal. Desde já, registre-se que não se ignora a defesa
da mediação penal após a denúncia, por exemplo na suspensão condicional do processo
mutatis mutandis, instituto equivalente à suspensão provisória do processo em Portugal.
Todavia, a suspensão condicional do processo, no Brasil, ocorre após o oferecimento da
denúncia, portanto extrapola o objeto deste trabalho.
A. Caracterização geral da mediação penal no Brasil: análise conjunta da Resolução
n.º125/10, de 29 de novembro, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e da Lei
n.º9.099/95, de 26 de setembro
No Brasil, as práticas de justiça restaurativa começaram a ganhar notoriedade com proje-
tos-piloto desenvolvidos nas cidades de Brasília/DF, Porto Alegre/RS e São Caetano do Sul/
SP, nestas duas últimas com foco no âmbito infracional envolvendo adolescentes
62
.
Em Brasília/DF
63
, as práticas envolvem matéria penal com a seguinte dinâmica. Alguns
dos procedimentos criminais que tramitam perante os Juizados Especiais Criminais
64
são
selecionados e encaminhados ao Centro Judiciário de Solução de Conflitos, onde as partes são
60 Cf. ALMEIDA, Diogo A. Rezende de; PANTOJA, Fernanda Medina – «Áreas de atuação da mediação de conflitos».
In: Mediação de conflitos para iniciantes, praticantes e docentes. 2.ªed. Salvador: Juspodivm, 2019. p.116-118.
61 PINTO, Hélio Pinheiro – «A Mediação Penal no Brasil e o Princípio da Reserva de Jurisdição». In: Os Novos Atores
da Justiça Penal, Coimbra: Almedina. 2016, p.134.
62 FERRAZ, Conrado – «A Justiça Restaurativa e o Sistema Jurídico-Penal Brasileiro». In: Os Novos Atores da Justiça
Penal, p.41.
63 IdemOp. Cit., p.56.
64 Unidades do Poder Judiciário previstas pelo art. 98 da CRFB e implementadas após a edição da Lei n.º9.099/95.
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recebidas pelos facilitadores e, desde então, iniciam-se os atendimentos. Caso não seja
possível iniciar de pronto, são marcados encontros preparatórios com a vítima e o ofen-
sor, separadamente. Depois, começam os encontros restaurativos propriamente ditos, que
ocorrem na forma de mediação vítima-ofensor. Em havendo consenso, ouve-se o Ministé-
rio Público e o juiz homologa o acordo.
Com a edição da Resolução n.º125/10, de 29 de novembro, do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), medidas mais concretas foram tomadas no intuito de incentivar, ampliar e
nacionalizar projetos bem-sucedidos
65
.
O art. 7º, inciso IV, da referida Resolução determina a criação dos Centros Judiciários
de Solução de Conflitos e Cidadania, responsáveis pela realização de sessões de conciliação e
mediação, a cargo de profissionais capacitados para tanto. Os referidos centros são unida-
des do Poder Judiciário que geralmente funcionam em prédios diversos dos fóruns ou em
dependências apartadas deles. As sessões são conduzidas por conciliadores e mediadores, e
aos juízes cabe o papel de supervisão
66
.
Em verdade, a Resolução n.º125/10 se constitui numa das principais “portas” de entrada
para a justiça penal restaurativa no país, assim como a Lei dos Juizados Especiais Criminais,
a Lei n.º9.099/95, de 26 de setembro. Tais “portas” consistem em instrumentos normativos
que “demarcam espaços de consenso” e possibilitam a aplicação de práticas restaurativas,
especialmente da mediação penal, já que o país ainda não possui um diploma regrador
específico nesse sentido
67
.
A Lei n.º9.099/95, instituidora dos Juizados Especiais Criminais, também é uma das
mencionadas “portas” para a busca de resolução alternativa quanto às infrações penais de
menor potencial ofensivo, que são as contravenções penais e crimes com pena máxima
não superior a dois anos
68
. Para tais infrações penais, o art. 72 da Lei n.º9.099/95 determina
a realização da audiência preliminar: ato complexo no qual as partes podem se compor, a
vítima pode representar oralmente nos crimes de ação penal pública condicionada – muta-
tis mutandis, equivalente aos crimes de natureza semipública em Portugal – e o titular da
65 O CNJ, dentre outras funções, é responsável pelo controle da atuação administrativa e financeira do Poder
Judiciário brasileiro, e suas resoluções – segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal – são dotadas de
generalidade e abstração, portanto são atos normativos primários (art. 103-B da CRFB).
66 Cf. arts. 8.ºe 9.ºda Resolução n.º125/10.
67 As “portas” de entrada são diplomas normativos cuja interpretação e aplicação sistemática permitem a aplicação
de formas de justiça restaurativa, principalmente a mediação penal, que não tem regramento específico no
Brasil (PINTO, Hélio Pinheiro – «A Mediação Penal no Brasil e o Princípio da Reserva de Jurisdição...», p.149).
68 Cf. art. 61 da Lei n.º9.099/95.
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ação penal pode propor ao autor dos fatos a aplicação imediata de pena não privativa de
liberdade, que é a conhecida transação penal
69
.
Dentre os mencionados institutos, aquele que melhor comporta a mediação é o da com-
posição dos danos, ou seja, a reparação dos prejuízos causados à vítima, um dos principais
objetivos da Lei n.º9.099/95
70
. Cuida-se de consenso a ser obtido pelas as partes, autor e
vítima, que independe da vontade Ministério Público ou do Juízo. Estes atuam no controle
da legalidade do acordo, que será judicialmente homologado após manifestação do Parquet.
Com a homologação, o ofendido passa a ter um título executivo, extinguindo-se a punibili-
dade do autor dos fatos, ou seja, não mais se discutirá eventual responsabilidade criminal.
Assim, bem próximo da citada experiência ocorrida em Brasília/DF, em se tratando de
crimes cuja natureza da ação admite a composição dos danos, sugere-se que o termo cir-
cunstanciado
71
seja encaminhado aos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania,
criados pela Resolução n.º125/10, “(...) onde as partes, com o auxílio do mediador, irão encon-
trar uma solução para o conflito que atenda às suas necessidades (...)”
72
. Nesse sentido, há
precedentes na jurisprudência brasileira
73
.
69 A audiência preliminar é um ato complexo. Data venia, é entendimento reducionista e equivocado entendê-
la como uma “sessão de mediação”, como ocorreu no seguinte trecho: “Na sessão de mediação, chamada de
audiência preliminar, estão presentes o representante do ministério público, o delinquente, a vítima, o
responsável civil, se o houver, acompanhados por advogado (...) A mediação seguirá depois, sob a orientação
do juiz ou do mediador (conciliador na letra da lei).” ESTEVES, Raúl – «A novíssima Justiça Restaurativa e a
Mediação Penal...», p.62.
70 NUCCI, Guilherme de Souza – Leis Penais e Processuais Penais Comentada. Vol. 2, 9.ªed., Rio de Janeiro: Forense,
2015. p.479.
71 É a formalização da ocorrência policial de uma infração de menor potencial ofensivo, em peça escrita, com dados
do fato (hora, data e local) e qualificação dos envolvidos e testemunhas (IdemOp. Cit., p.472).
72 PINTO, Hélio Pinheiro – «A Mediação Penal no Brasil e o Princípio da Reserva de Jurisdição...», p.152.
73 No Brasil, quem aprecia os recursos ordinários dos Juizados Especiais Criminais são as chamadas Turmas
Recursais (art. 98, inciso I, da CRFB e art. 82 da Lei n.º9.099/95), compostas por um grupo de juízes de primeiro
grau, e não por desembargadores dos Tribunais de Justiça. Tal fato dificulta a pesquisa de acórdãos sobre temas
relacionados aos Juizados Especiais Criminais, pois nem todos os tribunais estaduais do país disponibilizam os
acórdãos das referidas turmas.
Observa-se, todavia, que há casos nos quais o termo circunstanciado de ocorrência foi enviado a um centro
de resolução de conflitos em busca de uma composição restaurativa, conforme se defende neste tópico. Como
exemplo, cite-se um caso de ameaça e injúria no qual o trâmite do termo circunstanciado foi suspenso e
encaminhado a um núcleo de mediação e conciliação. Aberta a sessão da conciliação/mediação, as partes foram
alertadas dos princípios da Resolução n.º125/2010 do CNJ (confidencialidade, decisão informada, competência,
imparcialidade etc.) e, obtida a composição das partes, entendeu o Ministério Público que o caso deveria ser
arquivado na forma do art. 74, parágrafo único, da Lei n.º9.099/95, o que foi encampado pelo Judiciário, no caso,
em razão da atribuição originária, pelo Tribunal de Justiça (TRIBUNAL de Justiça do Estado do Amapá – Acórdão
n.º120529, de 2017 (Processo n.º0036494-07.2017.8.03.0001, Relator Gilberto Pinheiro. [Em linha] [Consultado
em 04 Nov. 2019]. Disponível em: http://tucujuris.tjap.jus.br/tucujuris/pages/consultar-jurisprudencia/consultar-
jurisprudencia.html). No citado caso, a sessão se aproximou de uma conciliação presidida por um magistrado,
todavia serve de exemplo da possibilidade de destacamento dos casos e remessa a centros de solução de conflitos
para aplicação da melhor técnica de resolução alternativa, antes mesmo da realização de audiência preliminar.
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É certo que o art. 71 da Lei n.º9.099/95 faculta ao juiz funcionar como conciliador em
audiência preliminar. Todavia, é preferível que se incentive a mediação vítima-agressor,
nos moldes propostos acima, já que um acordo obtido pelas próprias partes tende a ser mais
eficaz do ponto de vista da reconstrução das relações sociais. Repita-se, o fim restaurador é
mais abrangente do que mero escopo reparador.
Encontrada a solução pelas partes e firmado o acordo para compor os danos suportados
pela vítima, haverá automática renúncia ao direito de queixa ou representação. Consequen-
temente, remetendo-se ao feito ao Ministério Público e, posteriormente, ao Juízo, será de
rigor reconhecer a extinção da punibilidade do agente, com o fim das consequências crimi-
nais
74
. Tudo isso privilegia a reparação do dano como “terceira via
75
ou “terceiro degrau”
76
para a solução de conflitos criminais, ao lado das penas e das medidas de segurança.
Poder-se-ia cogitar se existe alguma vantagem em enviar o expediente ao Centro Judi-
ciário de Solução de Conflitos e Cidadania em vez de concentrar todos os atos em uma única
audiência preliminar. Do ponto de vista pragmático – entendido como a oportunidade de
finalizar o procedimento penal com celeridade –, não há vantagem, pois se adiciona uma
etapa ao procedimento, realizando-se algumas sessões de mediação em vez de uma única
audiência preliminar de poucos minutos. Mas, se o objetivo for solucionar o conflito e não
somente o processo, pensando-se nas consequências individuais e sociais, seguramente
promover a mediação vítima-agressor é a opção mais eficaz, ainda mais quando realizada
em ambiente próprio, diverso das salas forenses de audiência, coordenada por mediador
capacitado, pela quantidade de sessões necessárias para se atingir a conscientização e o
consenso.
Retome-se aqui a noção tratada anteriormente de que o objetivo da mediação penal na
esfera da criminalidade menos lesiva é mais amplo do que a mera reparação civil, pois “(...)
permite ao mesmo tempo, a reparação do dano decorrente do delito, a responsabilização
e reinserção social de seu autor, contribuindo efetivamente para a reconstrução do tecido
social, favorecendo ainda a prevenção do crime e reduzindo a reincidência
77
.
No mesmo rumo, observa-se que a mediação ocorrida fora do ambiente judicial e de
forma confidencial tende a ser mais eficaz, mormente porque intensifica a assunção de
responsabilidades pelo autor
78
.
74 Cf. art. 74, parágrafo único, da Lei n.º9.099/95.
75 BURIHAN, Eduardo Arantes – «Mediação Penal». In: Os Novos Atores da Justiça Penal, p.198.
76 MAGALHÃES, Inês Filipa Rodrigues de. O Princípio da Reserva de Juiz no Âmbito da Mediação Penal em
Portugal. In: Os Novos Atores da Justiça Penal; p.74.
77 BURIHAN, Eduardo Arantes – «Mediação Penal», p.205.
78 ALMEIDA, Diogo A. Rezende de; PANTOJA, Fernanda Medina – «Áreas de atuação da mediação de conflitos...»,
p.118.
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Em suma, mesmo não havendo lei expressa disciplinando a mediação penal no Brasil,
é possível aplicá-la como instrumento da justiça restaurativa, mediante interpretação sis-
temática e conjunta dos diplomas que se constituem em “portas” da justiça restaurativa,
especialmente a Lei n.º9.099/95, a Resolução n.º125/10 do CNJ e demais normativas que
se seguiram, como a Resolução n.º225/2016, de 31 de maio, também do CNJ, e a Resolução
n.º118/2014, de 1.ºde dezembro, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
B. O papel da vítima na mediação penal no Brasil
Promovendo-se uma análise macro, é possível afirmar que no processo penal brasileiro a
vítima é menos valorizada do que no português. Como dito alhures, Portugal recentemente
aprovou o Estatuto da Vítima, a Lei n.º130/15, mas, no Brasil, ainda são poucos os direitos
previstos, durante a persecução penal, para as pessoas ofendidas. Além de parcos, estão
espalhados pela legislação, e não sistematicamente reunidos em um diploma. Um exemplo
desse atraso legislativo está na demora para se editar uma lei buscando garantir os direitos
de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual durante suas escutas e depoimentos,
que foi a Lei n.º13.431/17, de 4 de abril.
Em relação à valorização da vítima, os objetivos da mediação penal são semelhantes
àqueles expostos no tópico II.B, explanados pela doutrina lusitana. Neste particular, as dife-
renças existentes entre os ordenamentos português e brasileiro são procedimentais na sua
maioria, mas não de finalidades. Busca-se inserir a vítima “(...) na centralidade do processo
de resolução de conflito, deixando de ser apenas um mero meio de prova para que, na rela-
ção entre Estado e o ofensor, se possa estabelecer a culpa deste último e puni-lo
79
.
Aplicam-se, também, no ordenamento jurídico brasileiro, os princípios da mediação
ligados à vítima: voluntariedade e cooperação.
Acerca do primeiro princípio, é evidente que a mediação penal somente acontecerá se a
vítima manifestar interesse, por exemplo, na oportunidade da composição dos danos. Caso
o ofendido manifeste desinteresse, o feito seguirá com a proposta de aplicação imediata
de pena não privativa de liberdade pelo titular da ação penal, se preenchidos os requisitos
legais. Nesse caso, a transação penal independe da vontade ou aceitação da vítima. Embora
seja um instituto despenalizador e de justiça negociada, a transação penal não constitui
instrumento de mediação vítima-agressor ou de justiça reparadora
80
.
79 PENIDO, Egberto – «Justiça Restaurativa...», p.648.
80 Na transação, o autor dos fatos e o Ministério Público entabulam acordo para a imediata aplicação de pena não
privativa de liberdade. A vítima fica alijada, portanto não se trata de mediação, ainda que do acordo exsurja
alguma consequência na esfera do ofendido. Daí entender-se que, embora seja importante instrumento de
justiça negocial, imbuída de intuito despenalizador, a mediação agressor-vítima não se adéqua à transação
penal como na composição dos danos.
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No que concerne à cooperação, as partes devem encontrar saídas criativas, forjando a
denominada verdade consensual, já tratada alhures
81
. Para tanto, não adianta esforço do
autor dos fatos, se a vítima não estiver disposta a colaborar, e vice-versa. Faz-se necessá-
rio abandonar a “tradicional postura adversarial” e “co-operar, ou seja, operar conjunta-
mente
82
.
Tendo em consideração os princípios norteadores da mediação penal analisados supra,
resulta inegável a valorização da vítima na utilização de instrumentos de justiça restaura-
tiva no âmbito da criminalidade de menor ofensividade
83
.
Infelizmente, no campo jurisprudencial, ainda existe resistência na implantação da
mediação penal, conforme se verá a seguir, citando-se dois casos.
O primeiro é um acórdão da 1.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro, que denegou a ordem em impetração cujo objetivo era modificar decisão do juízo
de primeiro grau que indeferiu pedido de remessa de processo criminal ao núcleo de con-
ciliação e mediação
84
. É certo que, por vedação do art. 41 da Lei n.º11.340/06, os institu-
tos despenalizadores da Lei n.º9.099/95 não podem ser aplicados aos crimes de violência
doméstica e familiar contra mulher, como no caso. Neste ponto, a decisão é incontestável.
Todavia, abstraindo-se deste argumento, o referido acórdão expressamente mencionou, em
sua fundamentação, que a Resolução n.º125/10 não se aplica ao campo criminal. Embora tal
argumentação talvez não tivesse o condão de modificar o resultado do julgamento, com o
devido respeito, não é possível concordar a afirmação. A Resolução n.º125/10 não fez restri-
ção a ser aplicada no campo penal, pelo contrário, no seu Anexo 1, ao fixar as diretrizes cur-
riculares para os cursos de conciliadores/mediadores, expressamente afirmou que o campo
penal e da justiça restaurativa estão dentre as áreas de utilização da conciliação/mediação
(Anexo 1, I, 1.1, “i”). Aliás, a interpretação restritiva contraria os princípios gerais e a própria
intenção do Conselho Nacional de Justiça quando editou a normativa.
O segundo acórdão é da 1.ªTurma Recursal dos Juizados Especiais do Tribunal de Jus-
tiça do Distrito Federal e Territórios, que negou provimento a uma reclamação do Minis-
81 Vide tópico II, B, a).
82 ALMEIDA, Diogo A. Rezende de; PAIVA, Fernanda – Princípios da Mediação de Conflitos. In Mediação de conflitos
para iniciantes, praticantes e docentes, 2.ªed. p.102.
83 Vide supra apartado II.B.
84 “(...) a mediação não é prevista para resolver conflitos de ordem penal ou criminal, sendo própria para atender
aos juízos com competência na cível, fazendária, previdenciária, de família ou dos Juizados Especiais Cíveis
e Fazendários...” (TRIBUNAL de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – Acórdão proferido no Habeas Corpus
n.º0038062-56.2013.8.19.0000, Relator Marcus Basilio. [Em linha] [Consultado em 04 Nov. 2019]. Disponível
em: https://tj-rj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/381530242/habeas-corpus-hc-380625620138190000-rio-de-janeiro-capital-i-
j-vio-dom-fam/inteiro-teor-381530250?ref=juris-tabs).
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tério Público
85
. Na instância inferior, a vítima de um crime de lesão corporal leve, conside-
rado de menor potencial ofensivo pela legislação brasileira, retratou-se da representação
em sessão extrajudicial de conciliação/mediação promovida no âmbito do próprio Minis-
tério Público
86
. Em havendo retratação, a legislação determina que o Ministério Público
se manifeste e, após, não havendo oposição, o Juízo avalia a extinção da punibilidade. No
caso dos autos, o Promotor de Justiça que participou da conciliação, julgando-se suspeito
para se manifestar sobre a legalidade da conciliação, requereu fossem os autos encaminha-
dos a outro membro do Ministério Público para fazê-lo, mas o Juízo rejeitou o pedido. No
recurso da Promotoria de Justiça, foram invocadas normativas internacionais, dispositivos
de ordem constitucional e da própria Resolução n.º125/10. Entretanto, o órgão julgador
não acatou os argumentos, afirmando, em suma, que o juiz de piso acertou ao não conferir
efeitos à conciliação extrajudicial, uma vez que a Lei n.º9.099/95 determina que a conci-
liação será realizada na audiência preliminar, conduzida por juiz ou conciliador sob sua
orientação.
Neste segundo caso, a decisão, data venia, não foi a melhor. Primeiro, porque valorizou
regras de formalidade, enquanto a própria Lei n.º9.099/95 elevou a informalidade a prin-
cípio geral dos juizados especiais, segundo se extrai dos arts. 2.ºe 62. Em segundo lugar,
porque foram respeitados os princípios da conciliação, destacando-se o da voluntariedade
e da imparcialidade, que também se aplicam à mediação. O Promotor de Justiça que con-
duziu os trabalhos de conciliação, em sessão extrajudicial realizada com esta finalidade,
tomou a cautela de pedir que outro membro da Instituição fizesse o controle de legalidade.
Além disso, a vítima desejou se retratar e não há diferença prática em fazê-lo extrajudicial-
mente ou em audiência preliminar. Certamente, na audiência extrajudicial, ela se sentiu
mais à vontade, bem como teve melhores esclarecimentos do que teria em uma audiência
preliminar formal no fórum, perante várias autoridades, com prazo reduzido etc. Em suma,
a voluntariedade e a cooperação não foram valorizadas pelas instâncias judiciais, que pre-
feriram a formalidade de “modo, forma e prazo previstos na lei”, tal qual constou da ementa
do acórdão.
Nada obstante os dois julgados citados acima, vale mencionar um caso de sucesso na
implantação da mediação penal no Brasil, que é o “Projeto Cantareira, hoje designado
85 TRIBUNAL de Justiça do Distrito Federal e Territórios – Acórdão n.º850.798 (Processo n.º2014.0020278803-
DVJ), Relator Luís Gustavo B. de Oliveira. [Em linha] [Consultado em 04 Nov. 2019]. Disponível em: https://
pesquisajuris.tjdft.jus.br/IndexadorAcordaos-web/sistj).
86 Ao contrário do julgado da nota anterior, a retratação em crimes de lesão corporal leve é possível em casos que não
envolvem violência doméstica e familiar. Por ser um crime de ação penal pública condicionada a representação,
a retratação da representação conduz à ausência de condição de procedibilidade para a persecução penal,
extinguindo-se a punibilidade do autor dos fatos sem análise meritória.
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Núcleo de Incentivo em Práticas Autocompositivas (NUIPA 1) – Região Norte da Capital,
desenvolvido pelo Ministério Público do Estado de São Paulo.
O referido projeto foi implantado no ano de 2005 na sede da Promotoria de Justiça de
Santana, com atribuição criminal no âmbito dos Juizados Especiais Criminais nos bairros
da Zona Norte da cidade de São Paulo, capital. Cuida-se de projeto interdisciplinar, com pro-
fissionais de Direito, Assistência Social, Psicologia e Educação, desenvolvido com o apoio
de institutos de formação e capacitação de mediadores, e que busca a formação da “cultura
de autocomposição”
87
.
Melhor explicando, nos crimes de menor potencial ofensivo, quando verificados indí-
cios de autoria, prova da materialidade delitiva e preenchidos os demais requisitos legais,
o Ministério Público requer a designação de audiência preliminar no Juizado Especial Cri-
minal, nos termos da Lei n.º9.099/95. No interstício entre o referido pedido e a designação
da audiência – cuja média é de alguns meses –, as partes são convidadas a participarem dos
encontros de mediação, facultada a presença de advogados, na sede do NUIPA 1
88
. As partes,
então, são preparadas para as sessões de mediação, nas quais o diálogo é facilitado por um
mediador capacitado e que observará os princípios da imparcialidade, da igualdade e da
confidencialidade. O mediador não apresenta solução para o litígio, pois esta deverá ser
construída pelos mediados. É importante que “(...) cada parte possa apresentar a sua versão
e seja ouvida pelo outro mediado, resguardando a equidade”
89
.
Obtido acordo entre as partes, o Ministério Público requer o arquivamento ou a extin-
ção da punibilidade, caso o feito comporte retratação ou desistência, e o Juízo é comunicado
para fins de retirada de pauta ou adiamento de audiência preliminar.
Verifica-se, pois, o respeito aos postulados da voluntariedade e da cooperação.
Ressalte-se que, para os fins de pacificação buscados pelo NUIPA, o acordo não é funda-
mental, desde que haja transformação na relação entre as partes
90
.
87 Dentre eles: o Instituto Familiae, o Mediativa – Instituto de Mediação Transformativa e o THEM – Transformação
Humana em Educação e Mediação. Cf. Projeto Cantareira de Mediação Penal Interdisciplinar – descrição
realizada por ocasião do Prêmio Innovare, 6.ªed., 2009 [Em linha]. [Consultado em 18 fev. 2020]. Disponível em:
https://www.premioinnovare.com.br/proposta/projeto-cantareira-de-mediacao-penal-interdisciplinar/print [np].
88 Uma das vantagens alcançadas é exatamente a de não paralisar o andamento do termo circunstanciado, mas
de aproveitar o lapso temporal (que varia de acordo com a agenda dos Juizados Especiais Criminais) entre a
análise ministerial e a audiência preliminar, para incentivar o diálogo entre as partes (cf. Projeto Cantareira de
Mediação Penal Interdisciplinar – descrição realizada por ocasião do Prêmio Innovare, 6.ªed., 2009 [Em linha].
[Consultado em 18 fev. 2020]. Disponível em: https://www.premioinnovare.com.br/proposta/projeto-cantareira-de-
mediacao-penal-interdisciplinar/print [np].
89 Idem – Ibidem.
90 Conforme extraído do sítio eletrônico do Ministério Público do Estado de São Paulo [Consultado em
18 fev. 2020]. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Nuipa/NUIPA_01_Regional_Norte_
Capital/813D928BBC9226D1E050A8C0DD013C91
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Em razão do alto grau de satisfação e dos resultados positivos, a prática foi alargada no
âmbito do Ministério Público do Estado de São Paulo, com a criação de outros Núcleos de
Incentivo a Práticas Autocompositivas – NUIPAs, na esteira da Resolução n.º118/2014, de
1.ºde dezembro, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que consiste em
outra “porta” de reconhecimento dos espaços de consenso no âmbito dos Juizados Especiais
Criminais
91
.
Em termos numéricos, o NUIPA 1 tem abrangência territorial da Zona Norte da cidade
de São Paulo, com mais de dez delegacias, jurisdição de cerca de 160km² e população supe-
rior a dois milhões de habitantes
92
. Segundo os dados oficiais colhidos do sítio eletrônico
do Ministério Público do Estado de São Paulo, os casos exitosos de mediação ultrapassam
a média de 70%, considerando-se o intervalo de 2015-2018
93
. Ainda, em dados obtidos direta-
mente junto à secretaria do NUIPA 1, observa-se que no ano de 2019 foi mantido percentual
de sucesso superior a 70% de casos com êxito em mediação
94
.
Consoante conclusão dos próprios idealizadores, o êxito da mediação não está apenas
no número de acordos formais celebrados, mas na transformação dos mediados, o que pode
ser aferido pelas retratações das representações e pelos dados colhidos no último encontro
feito com os mediados, tempos após a mediação propriamente dita, para avaliação do cum-
primento do quanto acordado
95
.
Vale ressaltar, ainda, que há casos nos quais, mesmo não havendo indícios suficientes
para o prosseguimento do feito no âmbito criminal, são realizadas sessões de mediação
preventiva. Isso quando se verifica a existência de um conflito latente entre as partes
96
.
91 Vide a Resolução n.º1.062/2017, de 14 de dezembro, da Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo.
92 Cf. Projeto Cantareira de Mediação Penal Interdisciplinar – descrição realizada por ocasião do Prêmio Innovare,
6.ªed., 2009 [Em linha]. [Consultado em 18 fev. 2020]. Disponível em: https://www.premioinnovare.com.br/proposta/
projeto-cantareira-de-mediacao-penal-interdisciplinar/print [np].
93 Segundo as estatísticas do NUIPA 1 – Regional Norte da Capital – Projeto Cantareira, os percentuais de sucesso
foram 74% (2015), 93% (2016), 77% (2017) e 67% (2018), considerando os casos nos quais houve acordo e/ou
transformação social verificada [Consultado em 18 fev. 2020]. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/
portal/Nuipa/NUIPA_01_Regional_Norte_Capital/III-Resultados%20Apurados.
94 Consoante mensagem eletrônica recebida no dia 20 de fevereiro de 2020, enviada do e-mail oficial
projetocantareira@mpsp.mp.br, no ano de 2019 foram atendidos 74 casos, com uma média de 174 pessoas (isso
excluindo aquelas pessoas contatadas e que não tiveram interesse, não foram localizadas ou que já haviam
resolvido a situação). Dentre os casos com adesão das partes que foram encerrados (ainda havia 5 casos em
andamento, razão da não publicação dos dados em sítio oficial), cerca de 71% foram concluídos com acordo, com
transformação ou houve desistência com transformação.
95 Cf. Projeto Cantareira de Mediação Penal Interdisciplinar – descrição realizada por ocasião do Prêmio Innovare,
6.ªed., 2009 [Em linha]. [Consultado em 18 fev. 2020]. Disponível em: https://www.premioinnovare.com.br/proposta/
projeto-cantareira-de-mediacao-penal-interdisciplinar/print [np].
96 Cf. extraído do sítio eletrônico do Ministério Público do Estado de São Paulo [Consultado em 18 fev.
2020]. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Nuipa/NUIPA_01_Regional_Norte_Capital/III-
Resultados%20Apurados.
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Em todo caso, seja de mediação preventiva seja de mediação curativa/transformativa, a
colaboração da vítima é de extrema importância para o sucesso da prática. Saliente-se que
ela inicia o processo de mediação em desvantagem, pois já se constatou nos autos indícios
de crime, confirmando a violação de algum bem jurídico, e, mesmo assim, ela aceita iniciar
o diálogo com o agressor em busca de uma solução.
CONCLUSÕES
A mediação penal insere-se num contexto mais amplo da denominada justiça restaurativa
e consiste na técnica de aproximação entre agressor e vítima, facilitada por um terceiro
imparcial, como forma de obtenção do consenso e, consequentemente, da solução de con-
flitos criminais.
Trata-se de um método alternativo/adequado
97
de solução do conflito criminal que,
embora não seja panaceia geral, alcança grandes vantagens, especialmente naqueles cri-
mes de menor repercussão ou potencial ofensivo, i.e., na pequena criminalidade
98
.
Os pontos positivos são muitos, razão pela qual a mediação penal já é realidade em
vários países. Tal como apontado por André Lamas Leite, um dos críticos da forma como o
instituto foi estruturado em Portugal, “o essencial, na actualidade, já não é discutir da bon-
dade ou não da introdução de sistemas de mediação. Esse tempo passou e a resposta é, em
regra afirmativa. A dificuldade está no modelo concreto de sua implementação
99
.
Dentre as propaladas vantagens da mediação penal, destaca-se a valorização da vítima
e de seu papel no contexto do processo penal. Dois dos princípios regentes da mediação
penal, tanto em Portugal quanto no Brasil, estão intrinsecamente ligados à vítima, quais
sejam: a colaboração e a voluntariedade.
O princípio da voluntariedade possui várias dimensões, como a liberdade de aceitar
participar da mediação, de deixá-la a qualquer momento sem prejuízo processual, de esta-
97 Defende-se o uso da expressão métodos adequados (e não alternativos) de resolução de conflitos (cf. ALMEIDA,
Rafael Alves de; PANTOJA, Fernanda Medina – «Os métodos “alternativos” de solução de conflitos (ADRS)...»,
2.ªed., p.60).
98 O Supremo Tribunal de Justiça, em julgamento que decidiu sobre o prazo para o direito à constituição de
assistente em procedimento de acusação particular, ressaltou que desde a revisão de 1995 no CPP português
o legislador buscou, nas situações de menor gravidade, a “(...) introdução de uma clara e inequívoca lógica de
consenso na resolução da conflitualidade criminal”. Isso para se chegar à resolução do conflito por mediação
ou outra forma de diversão, reduzindo a “estigmatizante ritualização da justiça penal” e deixando ao aparelho
estatal a “realização de actos que tenham a ver com um tipo de criminalidade realmente importante”. (SUPREMO
Tribunal de Justiça – Acórdão do processo n.º966/08.2GBMFR.L1–A.S1, de 2010, Relator Isabel Pais Martin.
Diário da República n.º18/2011, Série I, 2011-01-26 [Em linha] [Consultado em 31 Out. 2019]. Disponível em: http://
www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/fbded80192d6477080257823004e8ed3?OpenDocument ).
99 LEITE, André Lamas – «Alguns claros e escuros no tema da mediação penal de adultos...», p.581.
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belecer o conteúdo do acordo e, em alguns ordenamentos, de escolher o mediador. O prin-
cípio da colaboração, por sua vez, diz respeito ao estado de espírito e ao comportamento
dos mediados. Conforme salientado nos capítulos anteriores, para o sucesso da mediação
penal na busca de uma solução criativa que alcance o fim verdadeiramente restaurador, e
não somente reparador, os desejos de recriminação e vingança devem ser convertidos “(...)
numa atitude cooperativa e interactiva que favorecem a aceleração do processo cicatricial,
o arrependimento e o perdão
100
.
Da análise de direito comparado realizada, pode-se concluir que o fato de haver uma lei
específica disciplinando o tema em Portugal – a Lei n.º21/07 – conferiu maior segurança
jurídica na implementação do instituto. Isso porque, bem ou mal, o procedimento já está
sistematizado, bem como as consequências da aceitação, ou não, do acordo. Embora esteja
longe de ser uma legislação perfeita e definitiva – já que ela própria, no seu art. 14º, se colo-
cou como uma lei experimental – é digna de elogios. Por outro lado, no Brasil existe uma
pulverização de normas e a implementação da mediação penal depende de denominadas
“portas”, dentre elas, a Resolução n.º125/10 e a Lei n.º9.099/95. Em um país territorialmente
vasto como o Brasil, é vital a existência de uma lei federal atual e específica, evitando-se
interpretações regionais e decisões judiciais conflitantes que comprometam a eficácia do
instituto. A falta de segurança jurídica atinge o cerne da mediação penal. Trata-se de insti-
tuto que demanda confiança das partes, ou seja, elas primeiro precisam estar convencidas
da credibilidade da mediação para, então, se persuadirem sobre a importância do diálogo e
da criatividade na solução do conflito. Sobretudo a vítima – que começa todo o processo em
desvantagem, pois já teve algum bem jurídico lesado – precisa confiar no método alterna-
tivo para aceitá-lo, do contrário restará o processo penal clássico, pouco eficaz no combate
à pequena criminalidade.
Do ponto de vista histórico-legislativo, uma diferença entre os ordenamentos jurídi-
cos analisados, que parece justificar a falta de unificação da matéria no Brasil, consiste no
fato de a introdução da mediação penal no ordenamento português ter sido antecipada de
normativas internacionais, seminários, colóquios e manifestações de especialistas, o que
não ocorreu com igual intensidade e direcionamento no Brasil. Neste país, percebe-se mais
um movimento de sistematização colocada por órgãos de cúpula do Poder Judiciário, por
meio de resoluções, ainda que buscando fins previstos na Constituição e na legislação, do
que uma iniciativa legiferante. Em resumo, a sensibilização para as formas alternativas do
conflito penal é maior no Judiciário do que no Legislativo, talvez porque este Poder reflita
100 FERREIRA, Francisco Amado – Justiça Restaurativa: natureza, finalidades e instrumentos..., p.45.
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a característica da sociedade brasileira de valorização da solução adjudicada, a chamada
“cultura da sentença.
Ao nível procedimental, existem diversas diferenças relevantes entre a mediação penal
da Lei n.º21/07 de Portugal e a proposta brasileira de aplicação conjunta da Lei n.º9.099/95
com a Resolução n.º125/10. Citem-se três importantes: (1) Em Portugal há previsão legal
facultando às partes requererem que o feito seja remetido à mediação; já no Brasil a seleção
dos casos para audiência depende de manifestação do Ministério Público
101
. (2) O controle
da legalidade do acordo em Portugal é exercido pelo magistrado do Ministério Público, que
homologa a desistência da queixa; enquanto no Brasil o Ministério Público se manifesta
sobre o acordo obtido em composição de danos, por exemplo, e a homologação cabe ao
Judiciário. (3) No Brasil, em crimes de menor potencial ofensivo iniciados por ação penal
pública condicionada e ação penal privada, a homologação do acordo de composição de
danos conduz à renúncia do direito de queixa e retratação da representação, extinguindo-
-se os efeitos penais, restando à vítima um título executivo que poderá ser executado no
âmbito civil. Verifica-se, pois, a característica da executoriedade. Por sua vez, em Portugal,
o acordo também equivale à desistência da queixa, mas o incumprimento, quando verifi-
cado, renova a possibilidade de exercício do direito de queixa por um mês, podendo ensejar
a reabertura do inquérito.
Passando-se ao campo prático, em análise realística os números indicam que a media-
ção penal em Portugal seguiu em franco declínio nos últimos anos, nada obstante a exis-
tência de lei nacional sistematizadora
102
. Por outro lado, no Brasil, onde a aplicação do ins-
tituto depende da interpretação sistemática do ordenamento e de resoluções de cúpula do
Judiciário, verifica-se a notícia de iniciativas bem-sucedidas, como a do Projeto Cantareira
(NUIPA 1). Portanto, a falta de segurança jurídica de uma legislação específica não impossi-
101 No Brasil, nada impede que, com fundamento no direito geral de petição/representação, as partes requeiram
ao Ministério Público ou, mediante constituição de advogado, ao Juízo, que o feito seja remetido ao Cejusc para
conciliação/mediação. A diferença é que, em Portugal, há previsão legal de tal direito e o pedido vincula o órgão
acusador.
102 Retome-se, aqui, nota anterior com os seguintes dados estatísticos: (1) Informações da Direção-Geral da
Polícia de Justiça (DGPJ) de que, entre 23/01/2008 e 31/12/2012, apenas 735 processos ingressaram no sistema
de mediação penal e, deles, 188 lograram um acordo (25,28%). Nesse período, o número de inquéritos abertos
superou o de cinquenta e cinco mil (cf. LEITE, André Lamas – «Uma leitura humanista da mediação penal...»,
p.17). (2) No intuito de reunir dados para este ensaio, obteve-se informação do Gabinete para a Resolução
Alternativa de Litígios (DGPJ) da inexistência de processos de mediação penal em curso no início do mês de
agosto de 2019 (cf. mensagem eletrônica de 06 de agosto de 2019, remetida por correio@dgpj.mj.pt). Tal fato
pôde ser confirmado em consulta às estatísticas oficiais do Ministério da Justiça [Em linha] [Consultado em
13 Fev. 2020]. Disponível em: (https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Paginas/Mediacao.aspx). (3) Segundo se
extrai do CITIUS (sistema do Ministério da Justiça), o último edital para a seleção de mediadores penais foi
publicado em julho de 2011 [Em linha] [Consultado em 13 Fev. 2020]. Disponível em: https://www.citius.mj.pt/
portal/Artigos.aspx?CategoryId=13).
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bilitou a prática da mediação penal. Tal constatação reforça, de certa forma, o argumento de
que a informalidade e a flexibilidade são princípios constituidores da resolução alternativa
de conflitos.
Comparando-se dados estatísticos, pode-se afirmar que o NUIPA 1 – atendendo a um
quantitativo populacional
103
mais ou menos equivalente às comarcas de Porto e Lisboa
Oeste
104
, duas das comarcas na qual o SMP português funcionou a título experimental –
somente no ano de 2019 fez mais acordos por mediação penal do que todo Portugal nos
anos de 2015-2019
105
.
Evidencia-se, assim, a necessidade de impulsionar a mediação penal em Portugal com
o fim de buscar a harmonização do tecido social ainda durante a fase de inquérito. Para
tanto, dever-se-ia admitir que cada parte pudesse requerer a mediação, independentemente
da vontade da outra, privilegiando o axioma da voluntariedade. Nesse ponto, sugere-se a
alteração legislativa, a ponto de evoluir da atual previsão de requerimento conjunto do
ofendido e arguido, redação do art. 3º, n.º2, para facultar o pedido individual da vítima ou
do autor para o início do processo de mediação. A aposta é alta, mas realista, já que não é
comum ver autor e vítima fazendo requerimentos conjuntos pouco tempo após a ocorrên-
cia de um fato criminoso. Ademais, não se verifica prejuízo ou atraso procedimental, pois,
bastando a negativa da parte contrária, o processo de mediação propriamente dito não se
iniciará.
103 Detalhamento numérico: Conforme informações da Prefeitura Municipal de São Paulo, a população da Zona
Norte da Capital era de 2.214.654 de habitantes, segundo o censo de 2010 [Em linha] [Consultado em 18 Fev.
2020]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/urbanismo/infocidade/htmls/7_
populacao_recenseada_e_taxas_de_crescime_1980_10747.html. Considerando a taxa de crescimento populacional
anual de 0,55% entre 2010/2019 para a cidade de São Paulo (cf. dados extraídos em https://www.seade.gov.br/wp-
content/uploads/2019/02/Municipio_Sao_Paulo_.pdf), chegar-se-ia a um resultado entre 2.300.000 e 2.400.000 de
habitantes.
104 Detalhamento numérico: Segundo informações da Divisão Judicial e Administrativa de Portugal, a Comarca
de Porto abrange os municípios de Gondomar, Maia, Matosinhos, Porto, Póvoa de Varzim, Santo Tirso, Trofa,
Valongo, Vila Conde e Vila Nova de Gaia, enquanto a Comarca de Lisboa Oeste abrange os municípios de
Amadora, Cascais, Mafra, Oeiras e Sintra [Consultado em 18 Fev. 2020]. Disponível em: https://www.citius.mj.pt/
Portal/consultas/ConsultasDivJud.aspx. A população residente no dia 31-12-2018 estimada pelo Sistema Pordata,
somando-se os municípios da Comarca de Porto, seria de 1.338.159 residentes, e, pelos menos critérios, nos
municípios da Comarca de Lisboa Oeste seria 1.042.858 residentes. Ao total, ter-se-ia, segundo as estimativas,
uma população residente de 2.381.017 habitantes em 31-12-2018. Cálculo com análise da ferramenta Pordata [Em
linha]. [Consultado em 18 Fev. 2020]. Disponível em: https://www.pordata.pt/DB/Municipios/Ambiente+de+Consulta/
Tabela.
105 Segundo dados estatísticos do Ministério da Justiça, foram finalizados cerca de 40 pedidos de mediação penal
em Portugal nos anos de 2015-2019 [Em linha]. [Consultado em 18 Fev. 2020]. Disponível em: https://estatisticas.
justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Paginas/Mediacao.aspx . Já o NUIPA 1, somente em 2019, atendeu a mais de 50
casos, considerando-se aqueles nos quais houve adesão, com mais de 70% de sucesso (somando-se acordos e
transformações) (Consoante mensagem eletrônica recebida no dia 20 de fevereiro de 2020, enviada do e-mail
oficial projetocantareira@mpsp.mp.br). Vide nota 93.
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Paralelamente, e sem prejuízo da referida alteração legal, é imperioso conferir maior
efetividade ao direito de informação da vítima. Para tanto, sugerir-se-ia que, no ato de
registro da ocorrência policial, formulação de queixa ou constituição de assistente, a vítima
fosse efetivamente informada do seu direito de requerer a mediação penal.
Levando-se em conta as circunstâncias de abalo físico e emocional dos registros de
ocorrências policiais, as informações relativas à justiça restaurativa devem ser substan-
ciais, de preferência veiculadas por diversificados canais sensoriais, como a comunicação
escrita, verbal e visual – por exemplo: orientações, panfletos e vídeos educativos – e cumu-
lativamente direcionadas ao eventual acompanhante da vítima
106
. Considerando-se, ainda,
a opção pela solução consensual demanda ponderação, elaboração e amadurecimento, é
válido que as orientações sobre a mediação penal (No que consiste? Como acontece? Quem
requer? Quando?) também sejam reforçadas em condições espaço-temporais diferentes da
primeira vez na qual há oficialização do evento, por exemplo por mensagem eletrônica/
SMS/rede social alguns dias após.
Vale ressaltar que o mero envio de um e-mail à vítima, sem a correta orientação, poderá
causar efeito inverso do pretendido, fechando as portas para a resolução alternativa. Imagi-
ne-se a vítima que registra uma ocorrência e, dias depois, recebe uma mensagem dos órgãos
estatais sugerindo uma reunião com seu algoz. Se a ela não for conferida a oportunidade
de compreensão, inegavelmente poderá se sentir (re)vitimizada. Neste ponto, importante
papel realizam as entidades de proteção e esclarecimento, como a APAV, que, reunindo-se
com a vítima e ouvindo-a, expõem os caminhos legais a serem seguidos, de forma clara e
confiável, com as cautelas que cada caso merece
107
.
Como tratado durante o trabalho, efetivar o direito à informação preconizado em ins-
trumentos normativos internos e internacionais de proteção à vítima é medida capaz de:
(a) evitar atos de vitimização secundária; (b) atender aos interesses do próprio suspeito/
arguido; (c) reconstruir o tecido social de forma mais célere; e (d) desonerar os órgãos de
investigação, de modo que se atenham à grande criminalidade, promovendo economia de
recursos e eficiência.
106 Diante da possibilidade de abalo físico e emocional (ou por outra conveniência), o direito a ser acompanhado
de alguém à escolha da vítima no contato com as autoridades foi garantido na Decisão-quadro n.º2001/220/
JAI do Parlamento Europeu e do Conselho (art. 3º, n.º3) e pelo Estatuto da Vítima – Lei n.º130/15 (art.12º, n.º3).
107 Informações adicionais sobre a abordagem e acompanhamento às vítimas no sítio eletrônico da Associação
Portuguesa de Apoio à Vítima – APAV. [Consultado em 18 Fev. 2020]. Disponível em: https://apav.pt/apav_v3/index.
php/pt/a-vitima/como-apoiamos.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Referências doutrinárias
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necessário ou uma solução há muito possível e quase sempre esquecia?». In: Revista do Ministério Público.
Lisboa. ISSN 0870-6107. Ano 30, n.º118 (Abr-Jun 2009), p.269/274.
AERTSEN, Ivo; PETERS, Tony – «As políticas europeias em matéria de justiça restaurativa». In: Sub Judice.
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TRIBUNAL de Justiça do Distrito Federal e Territórios – Acórdão n.º850.798 (Processo n.º2014.0020278803-
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A especialização do advogado
emviolênciadoméstica
The lawyers specialization in domestic violence
EMANUEL CARVALHO
1
emanuelcarvalho-44900p@adv.oa.pt
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
January Janeiro–30
TH
June Junho 2020 · pp. 111‑141
DOI: http://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.1.5
Submitted on March 23
th
, 2020 · Accepted on June 4
th
, 2020
Submetido em 23 de Março, 2020 · Aceite a 4 de junho, 2020
RESUMO A erosão do tecido social português provocado pela violência doméstica é actual,
complexa e inquietante. Urge apreender o fenómeno e avoca-se, fundamentalmente, para
observação a dimensão técnico-jurídica, tão determinante para garantir a tutela efectiva
da vítima. Identifica-se, por sua vez, a meta-especialização em violência doméstica pelos
profissionais, que (em rede) amparam a vítima – em particular, do advogado –, como
desígnio de asseverar-se a evolução político-jurídica vigente rumo à afirmação da advocacia
como profissão baluarte na tutela dos direitos, liberdades e garantias fundamentais da
vítima. Pensar na especialização do advogado em violência doméstica é um desafio, sinuoso
entre proficuidades e percalços, que sendo bem-sucedido sobreleva o espírito e missão da
advocacia para o altar do humanismo.
PALAVRASCHAVE violência doméstica; tutela da vítima; técnico de apoio à vítima; advogado
especialista.
ABSTRACT In Portugal, the erosion of social fabric caused by domestic violence is current,
complex and unsettling. Its priority to understand that phenomenon and about that,
technical-legal angle will be, essentially, the field of observation because is so important to
guarantee the effective protection of the victim. Then, the analysis of meta-specialization in
domestic violence by professionals, who, in cooperated, support the victim – in particular,
the lawyer – is the purpose to ensure the current political-legal development towards the
affirmation of advocacy as a beacon profession for safeguarding basic rights, freedoms
and legal guarantees of victims. Thinking about the lawyers specialization in domestic
1 Advogado desde 2006. Doutorando em direito pela Universidade Autónoma de Lisboa desde 2018. Jurista em casa
de abrigo de vítimas de violência doméstica desde 2017
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violence is a serious challenge in a winding itinerary, with many twists and turns, which,
if will successfully, elevates the spirit and mission of advocacy to the altar of humanism.
KEYWORDS domestic violence; rights of victim; victim support technician; expert lawyer.
I. Intróito
Hoje e mais do que em qualquer outro período passado, urge a especialização do advogado
em violência doméstica, sendo que consubstancia um desafio seriamente exigente para a
profissão. Existirão, seguramente, advogados exímios na profissão, existirão profissionais
extraordinários na prestação de apoio à vítima de violência doméstica e existirão, diferen-
tes daqueles, os advogados especialistas em violência doméstica, focando-se entre estes
especialmente os que patrocinam a pessoa lesada.
A competência, disponibilidade e ponderação são chaves mestras para uma interven-
ção eficaz e efectiva por parte do advogado junto da vítima, sendo mister que tais traços
se estendam igualmente aos inúmeros profissionais que integram a cadeia operacional
existente para a protecção da vítima
2
. Noutro prisma, a vítima obtém confiança, segurança
e, até, conforto diante do advogado que evidencia conhecimento de causa e experiência
aprofundada sobre a temática, e promove uma concretização imediata dos direitos “espe-
ciais”
3
que lhe assistem, alicerçado num patrocínio sagaz e pragmático, bem como ajustado
e tendo em conta o contexto vivencial envolvente.
Há, assim, um elo fundamental que aproxima, ainda que de modo oposto, o advogado
da vítima de violência doméstica. Ao primeiro, como à Ordem dos Advogados, compete
promover a tutela dos direitos, liberdades e garantias fundamentais das pessoas e, assim,
contribuir para a sustentação do nosso Estado de direito democrático
4
. Para a vítima é con-
ditio sine qua non que a referida tutela seja efectiva de modo a que, por um lado, o estado de
vulnerabilidade e desigualdade que a consome seja comutado por um ambiente de paz,
liberdade e saúde. E por outro, o cepticismo que paira sobre a eficiência do sistema judicial
e que, malogradamente, continua a constituir uma razão de desmotivação para a vítima
2 Ex: polícias, procuradores do Ministério Público, juízes, médicos, enfermeiros, professores, educadores sociais,
professores, psicólogos, terapeutas familiares, assistentes sociais, et caetera.
3 A atribuição do estatuto de vítima é conditio sine qua non para aquela exercer os direitos vertidos no “regime
jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas”, aprovado pela
Lei n.º112/2009, publicada em Diário da República, 1.ªsérie – N.º180 – 16 de Setembro de 2009.
4 Artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e artigo 3.º, alínea a) do Estatuto da Ordem dos
Advogados (EOA).
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denunciar o crime às autoridades seja de vez afastado e, assim, se contribua para a almejada
mudança de mentalidade com o desígnio de, no futuro, a tolerância ser igual a zero diante
de uma situação de violência doméstica.
Nesta esteira, eleva-se a simbiose entre o advogado e a vítima dado que se tem reconhe-
cido socialmente a nobreza e a audácia daquele profissional em tomar frequentemente a
iniciativa de promover as contendas judiciais que visem proteger plenamente a dignidade
da pessoa humana constitucionalmente consagrada. Sendo que por vezes, mais frequente
do que raro, o advogado tem de actuar singularmente ou, comummente, “contra a maré”, e
demonstrar mesmo a sua máxima resiliência porquanto essas batalhas implicam a obriga-
ção de percorrer diversas instâncias jurisdicionais, internas e internacionais, com o tempo
que aquelas usualmente muito consomem.
Ademais, a vítima encontra-se, habitualmente, isolada das suas relações de confiança
por força da actuação do agressor, sobressaindo-se daquelas as pessoas com as quais possua
vínculo familiar, profissional ou pessoal. Como tal, a vítima carece vitalmente de suporte
profissional que seja, sobretudo, pela sua constância e confiabilidade capaz de assumir-se
como uma espécie de referência suficientemente motivadora para a mesma quebrar defi-
nitivamente o ciclo de violência.
Em suma, o papel do advogado representa para a vítima de violência doméstica uma
espécie de reduto de defesa indispensável (sendo, por vezes, mesmo o derradeiro) para
aquela obter o afastamento do agente do crime. De todo o modo, o apoio prestado pelo advo-
gado deve ser promovido, de preferência, num contexto de cooperação interprofissional
com as diferentes entidades que constituem a malha institucional de protecção da vítima.
II. Problemática
A violência doméstica é um flagelo social extremamente complexo que dificulta a padroni-
zação do perfil do agressor ou da vítima. Admite-se, em tese, que aquela pode ser infligida
por qualquer pessoa, independentemente da sua origem, residência permanente, cultura,
língua, religião, instrução, capacidade económica, profissão, religião, idade, orientação
sexual, saúde, et caetera
5
, sem descurar que na praxis os indicadores divulgados pelas auto-
ridades conduzem ao traçar de características predominantes que marcam a vítima ou o
agente do crime.
5 C, Emanuel – «Violência doméstica e estrangeiros em Portugal». In: Galileu – Revista de Direito e Economia,
Volume XX, 1.ºsemestre 2019, p.123.
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No que respeita em particular à qualidade profissional inerente ao advogado, esta não
configura excepção à possibilidade de ser vítima ou agressor. Em detalhe, os conhecimen-
tos superiores na área do direito e, até, do modus operandi da prática judiciária, detidos pelo
advogado, muito acrescidos face ao comum dos cidadãos, não o dota de meios de defesa
que o tornem imune, assim como não o inibe de praticar o crime, sendo que neste último
caso até o pode (lamentavelmente) apetrechar de técnicas para aquele ser concretizado de
modo a que as provas sejam de difícil (para não afirmar, de impossível) obtenção ou mesmo
ilícitas.
Atenta a referida complexidade, observar os indicadores respeitantes à violência domés-
tica configura um precioso meio para apreender o fenómeno. Contudo, é importante ter
consciência que essa ferramenta, focando-se nos casos reportados, vai ficar sempre aquém
da realidade e, consequentemente, da verdadeira quantidade e gravidade das situações
ocorridas.
Ainda assim, os indicadores denunciadores da violência doméstica em Portugal revelam
dados manifestamente inquietantes e têm, por isso, merecido uma intervenção do legisla-
dor, bem como uma frequente e ampla cobertura pelos mass media (se bem que esta tenha
sido concretizada em tons muito alarmistas
6
). Ao passo que se tem tornado numa temática
debatida frequentemente na nossa sociedade, desde contextos informais até científicos.
Oficialmente, os dados mais recentes (isto é, de 27/03/2020) divulgados pela Direcção-
-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, no Portal do Governo Português, dão conta que
a criminalidade associada à violência doméstica registada no 4.º trimestre do ano 2019
ampliou face ao anterior período homólogo
7
. O relatório sintetiza que se verificou um
aumento:
dos reclusos, quer em prisão efectiva (+14,1%), quer em prisão preventiva (+80,4%);
da aplicação de medidas de coacção de afastamento, ora com vigilância electrónica
(+63,1%), ora sem aquele controle (+24,2%);
6 A violência doméstica tem merecido um amplo destaque nos meios de comunicação social portugueses dada a
gravidade e frequência dos casos enquadrados nesse tipo de situações. Recentemente, a Entidade Reguladora
para a Comunicação (ERC) divulgou um estudo – denominado “Representações da Violência Doméstica nos
telejornais de horário nobre” – mediante o qual concluiu, globalmente, que aquela temática não foi abordada,
em diversas ocasiões, de modo adequado e apresentou um conjunto de recomendações para os referidos meios
evitarem exposições que conduzam a uma espécie de sensacionalismo noticioso (consultado a 01/05/2020).
Disponível em: https://www.flipsnack.com/ERCpt/representa-es-viol-ncia-dom-stica-nos-telejornais-de-hnobre/
full-view.html.
7 Comunicado do Governo Português com os dados da criminalidade associada à violência doméstica registados
no 4.ºtrimestre do ano 2019 (consultado a 01/05/2020) Disponível em: https://www.portugal.gov.pt/download-
ficheiros/ficheiro.aspx?v=8ed0c295-d1c7-4c67-be38-a179413ade57.
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de pessoas sujeitas a programas de reabilitação para agressores
8
(+28,2%);
de vítimas de violência doméstica apoiadas por meios técnicos de teleassistência
(+52,4%).
Do mesmo relatório resulta que, no ano 2019, as autoridades receberam 29.473 partici-
pações enquadradas no crime de violência doméstica, o que revela uma média aproximada
de 87 sinalizações por dia ou de 3 casos por hora. E, face ao ano precedente, verificou-se
um aumento de 11,5% de participações, dado que foram registados 26.483 casos, conforme
consta também do Relatório Anual de Segurança Interna referente ao ano 2018
9
.
Ainda que resulte do referido relatório um ligeiríssimo decréscimo de vítimas mortais,
designadamente de 37, em 2018, para 35, em 2019 (se bem que, no plano do género feminino,
verificou-se o inverso, tendo aumentado de 24 para 26), é factor de elevada consternação
social ter ocorrido uma média de 2 a 3 homicídios por mês.
É certo que a média do morticínio é impactante, porém não se deve menosprezar toda as
demais formas que constituem violência doméstica porque os efeitos negativos decorren-
tes, por exemplo, de abusos sexuais, actos de tortura, violência psicológica ou emocional,
privações de liberdade ou isolamento social forçado podem consubstanciar danos irrepará-
veis e com sequelas prolongadas ao longo da vida da vítima.
A par dos registos públicos têm emergido relatórios divulgados por organizações não-
-governamentais (ONG’s)
10
, que se dedicam a apoiar as vítimas de crimes, abrangendo as
situações de violência doméstica. Estes registos representam uma mais-valia complemen-
8 Em Portugal, a reabilitação dos agressores consubstancia uma resposta judicial muito recente (identificando-
se como pioneiros o programa “Contigo” aplicado desde 2009 nos Açores e desde 2010 em Cascais), ao invés
dos sistemas judiciais norte-americano e do Reino Unido que vêm desenvolvendo essa intervenção desde a
década de 70 e 80 do século passado. Neste sentido consultar: R, Daniel; C, Marta – «A reabilitação
dos agressores conjugais: dos modelos tradicionais de reabilitação ao Programa Português para Agressores de
Violência Doméstica (PAVD)». In: Ousar Integrar – Revista de Reinserção Social e Prova, Ano 5, n.º11, Jan. 2012, pp.83
a 97.
Identificam-se teoricamente diferentes modelos de intervenção – tais como, modelos cognitivo-
comportamentais, modelos psicodinâmicos, modelos de ventilação ou modelos de interação – e chama-se
à colação um dos modelos cognitivo-comportamentais mais populares nesta área designado por programa
“Duluth, quiçá, pelos resultados prácticos satisfatórios decorrentes da sua aplicação (consultado em 01/05/2020).
Disponível em: https://www.theduluthmodel.org/wheels/. Apreciar em detalhe o referido programa mediante
consulta de: C, Emanuel – «Violência doméstica …». In: Galileu – Revista de Direito e Economia, Volume
XX, 1.ºsemestre 2019, p.128.
9 Direcção-Geral de Política de Justiça – Relatório Anual de Segurança Interna de 2018, página 17 (consultado a
01/05/2020). Disponível em: https://www.portugal.gov.pt/download-ficheiros/ficheiro.aspx?v=ad5cfe37-0d52-
412e-83fb-7f098448dba7.
10 Destacam-se do universo das organizações não-governamentais, que se manifestam activamente contra a
violência doméstica, a Associação Ilga Portugal (AIP), a Associação de Mulheres Contra a Violência (AMCV),
a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas (APMJ) e a
União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR).
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tar aos dados oficiais porque, habitualmente, reportam dados temporalmente recentes
e retratam com elevada minudência os perfis das pessoas agressoras e ofendidas com o
intuito de descreverem os contextos e as características das dinâmicas da violência domés-
tica.
Entre estes últimos registos não-oficiais chama-se à colação o “Relatório Preliminar (01
de Janeiro a 12 de Novembro de 2019)”, divulgado pelo Observatório de Mulheres Assassi-
nadas da União de Mulheres Alternativa e Resposta. Este relatório revela terem ocorrido
naquele período 27 tentativas de femicídio e detalha que 28 dos 30 femicídios aconteceram
em contexto de relações de intimidade e familiares
11
.
Conjugando-se os indicadores oficiais com os relatos das ONGs amplia-se o retrato da
violência doméstica em Portugal (admitindo-se que qualquer pequena divergência exis-
tente entre os indicadores constitua um mal menor) e, assim, potencia-se a evolução de
implementação de normas, medidas e até prácticas que contribuam para prevenção do
fenómeno, protecção da vítima e efectiva responsabilização do autor do crime.
III. Conceitualização
No ordenamento jurídico português, a violência doméstica obteve (somente) expressão em
2007 com a tipificação legal do respectivo crime, mediante a vigésima terceira alteração
ao Código Penal
12
(CP), introduzida pela Lei n.º59/2007
13
. Em detalhe, a referida lei inseriu
uma redacção integralmente nova ao artigo 152.ºdo CP, desde a sua epígrafe, consagrando
literalmente a expressão “Violência Doméstica, até ao corpo da norma.
O texto normativo, que vigorava até essa alteração legal, foi projectado para o artigo
subsequente, embora o legislador tenha optado apenas por uma espécie de renumeração
alfabética e tenha atribuído ao tipo legal de crime de “Maus tratos” o artigo 152.º-A. É seguro
afirmar que este último artigo foi criado ex novo pela referida alteração ao CP, contudo ao
absorver maioritariamente o teor do anterior artigo 152.º, que tinha por epígrafe “Maus tra-
11 O referido relatório revela que “entre 2004 e 12 de Novembro de 2019 o Observatório de Mulheres Assassinadas
(OMA) registou um total de 531 vítimas de femicídio nas relações de intimidade (RI) e relações familiares (RF)
e 618 vítimas de tentativa de femicídio nas RI e RF” – página 2 (consultado a 01/05/2020). Disponível em: http://
www.umarfeminismos.org/images/stories/oma/Relat%C3%B3rio_OMA_2019.pdf.
12 O CP foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º400/82 e publicado em Diário da República, 1.ªsérie, 1.ºsuplemento –
N.º221 – 23 de Setembro de 1982, somando até ao presente mais de 40 alterações.
13 A Lei n.º59/2007 foi publicada em Diário da República, 1.ªsérie – N.º170 – 4 de Setembro de 2007.
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tos e infracção de regras de segurança
14
, provocou uma mudança atípica na sistematização
do CP porquanto fez antepor a forma de crime especial face ao crime geral
15
.
Retomando o artigo 152.ºdo CP em vigor, que já contou com duas alterações desde
2007
16
, contém – no seu n.º1 – o que se pode considerar como sendo uma definição legal
de violência doméstica
17
. Porém, importa ter presente que tal definição, sendo de natureza
penal, foi construída tendo subjacente o princípio da intervenção mínima ou ultima ratio
da política criminal imposta pelo artigo 18.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa
(CRP), esta enquanto fonte de legitimação material da lei penal
18
.
Mais tarde, em 2013, por força de Portugal ter sido o primeiro Estado da União Europeia
a aderir
19
à “Convenção do Conselho de Europa para a Prevenção e o Combate à Violência
contra as Mulheres e a Violência Doméstica, comummente assinalada por Convenção de
Istambul, passou a estar internacionalmente vinculado a esse instrumento e, por conse-
guinte, vigora, desde então, no nosso ordenamento jurídico mais uma definição de violên-
cia doméstica
20
.
Realçada a Convenção de Istambul não se deve preterir que esse instrumento repre-
senta uma materialização dos princípios basilares consagrados na Declaração Universal
dos Direitos Humanos (DUDH), a qual pela mesma razão apontada possui plena efectivi-
14 D, Figueiredo – Comentário Conimbricense do Código Penal – Tomo I. Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p.332.
15 A, Paulo Pinto de – Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2015, pp.588 a 596.
16 A redacção imposta ao artigo 152.ºdo CP pela Lei n.º59/2007 foi sujeita a duas alterações legais. A primeira
introduzida pela Lei n.º19/2013, publicada em Diário da República, 1.ªsérie – N.º37 – 21 de fevereiro de 2013, e a
segunda pela Lei n.º44/2018, publicada em Diário da República, 1.ªsérie – N.º153 – 9 de Agosto de 2018.
17 Artigo 152.º
Violência doméstica
1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais,
privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de
namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.ºgrau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou
dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra
disposição legal.
18 B, Nuno – «Bem Jurídico e Direitos Fundamentais entre a Obrigação Estadual de Protecção e a Proibição
do Excesso». In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade. Coimbra: Instituto Jurídico, 2017,
página 239-266.
19 Por Decreto do Presidente da República n.º13/2013, publicado em Diário da República, 1.ªsérie – N.º14 – 21 de
janeiro de 2013, foi ratificada a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência
contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011, aprovada pela Resolução
da Assembleia da República n.º4/2013, em 14 de dezembro de 2012.
20 Artigo 8.º, n.º2 da CRP.
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dade no nosso ordenamento jurídico
21
, segundo a qual todas as pessoas são livres e iguais
em dignidade, devendo as relações assentar num espírito de fraternidade
22
. Nesta esteira,
a referida convenção reflecte, ainda, os ditames contemplados ora na Convenção Europeia
dos Direitos Humanos (CEDH), ora na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
(CDFUE) dado que ambas enaltecem a dignidade do ser humano
23
.
Apreciando-se, agora, o artigo 152.ºdo CP, a par do artigo 3.º, alínea b)
24
, da Convenção de
Istambul, constata-se uma significativa similitude conceitual. Contudo, qualquer divergên-
cia existente, atenta a coexistência e vigência de ambas as normas no nosso ordenamento,
deve merecer uma interpretação subjugada ao princípio da unidade do sistema jurídico
25
.
Da conjugação dos elencados preceitos torna-se, assim, viável construir um conceito
de violência doméstica mais robusto. E desta harmonização identifica-se em comum que
a violência doméstica subdivide-se entre uma dimensão subjectiva – assente na relação
existente entre a pessoa que controla ou exerce poder sobre outra, isto é, entre o agente do
crime e a ofendida – e uma dimensão objectiva – composta pelas condutas que preenchem
a sua ilicitude.
Na dimensão objectiva, a violência doméstica pauta-se por um comportamento lesivo
singular ou reiterado
26
. Ainda que o iter criminis usual em situações de violência domés-
tica seja aquele desenvolvido por acções sistemáticas e repetidas infligidas pelo agente do
crime sobre a vítima, o legislador foi claro em impor censura sobre qualquer acto grave
ainda que este seja denunciado como uma conduta singular.
21 Artigo 8.º, n.º1 da CRP.
22 Artigo 1.ºda DUDH, proclamada pela Resolução n.º217-A da Assembleia-Geral das Nações Unidas, de 10/12/1948.
23 Preâmbulo da CEDH (assinada pelo Conselho da Europa em 04/11/1950, ratificada pela Lei n.º65/78, publicada
em Diário da República I Série, n.º236, de 13/10/1978) e artigo 1.ºda CDFUE (publicado no Jornal Oficial da União
Europeia n.ºC 83 de 30/03/2010).
24 Artigo 3.º
Definições
b) «“violência doméstica” designa todos os actos de violência física, sexual, psicológica ou económica que
ocorrem no seio da família ou do lar ou entre os actuais ou ex-cônjuges ou parceiros, quer o infractor partilhe
ou tenha partilhado, ou não, o mesmo domicílio que a vítima»
25 Artigo 9.º, n.º1, do Código Civil (CC).
26 A jurisprudência tem considerado que, após a entrada em vigor da Lei n.º59/2007 que introduziu no nosso
ordenamento o tipo legal de crime de violência doméstica, foi dissipada a querela que pairava sobre o anterior
artigo 152.ºdo CP – “Maus Tratos” – dado que a actual redacção do artigo é expressa em considerar que, para o
preenchimento do mencionado tipo de crime, pode ser suficiente a práctica de um só acto ou pode ocorrer com
a repetição de condutas ilícitas. Conferir neste sentido os seguintes arestos: Acórdão do Tribunal da Relação
de Guimarães, no processo n.º639/08.6GBFLG.G1, de 15/10/2002; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa,
no processo n.º 3/16.0PAPST.L1-9, de 01-06/2017; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no processo
n.º1290/12.1PBAVR.C1, de 29/01/2004 (consultado a 01/05/2020). Disponível em: http://www.dgsi.pt).
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Na mesma dimensão, a violência doméstica pode ser traçada pelo tipo de dano provo-
cado na vítima, sendo que pode afectar a sua saúde – física e psicológica – e a sua condição
socioeconómica.
Em pormenor, o legislador reprova, primeiro, comportamentos que lesem a integridade
física da pessoa, independentemente da intenção (negligência ou dolo) ou intensidade
(simples ou grave) do seu autor.
Segundo, o legislador censura ofensas de natureza verbal (por exemplo, a injúria) que
afectem a vítima no plano psíquico ou emocional.
Terceiro, o legislador desaprova as condutas que coartem a liberdade e a autonomia da
vítima, quer aquelas sejam enquadradas no condicionamento da sua independência, quer
assumam um modo de coacção sobre a vítima para agir contra a sua vontade.
Quarto, o legislador condena a violação da liberdade sexual da vítima.
Quinto (e último), o legislador proíbe condutas que desrespeitem a autonomia finan-
ceira da vítima e sujeitem esta ao isolamento social
27
.
Na dimensão subjectiva, a violência doméstica assenta em relações pessoais, podendo
estas assumir o grau de parentesco (por exemplo, a relação entre cônjuges ou entre pais e
filhos, embora a relação entre o progenitor e descendente em linha recta não deva ir além
do primeiro grau), ou não (por exemplo, unidos de facto ou numa relação de namoro).
É consabido que a relação entre cônjuges, assumindo o marido o papel de agressor e
a esposa o papel de vítima, constituiu a forma em que a violência doméstica mais ocorre,
quer à escala global, quer em Portugal. De todo o modo e por força do princípio da igualdade
está tutelada a defesa de todas as pessoas, independentemente do género do agressor ou da
vítima, contemplando-se expressamente os mesmos direitos para as pessoas lésbicas, gays,
bissexuais, transexuais, intersexuais, et caetera.
O legislador decidiu conferir à dimensão subjectiva uma amplitude elevada ao prever,
por um lado, que a violência doméstica pode ocorrer em circunstâncias de coabitação, ou
não, entre o alegado agressor e a vítima. Neste sentido e a partir da alteração ao CP ocor-
27 A jurisprudência tem afirmado recorrentemente que a violência doméstica pode configurar-se mediante uma
“agressão económica” e, em exemplo, dessa dimensão autónoma tem sido decidido que se preenche o tipo
legal previsto no artigo 152.º quando o comportamento do agente impossibilita a ofendida de gerir os seus
rendimentos. Conferir neste sentido os seguintes arestos: Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no
processo n.º663/16.5PBCTB.C1, de 07/02/2018, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no processo
n.º201/16.06GBBCL.G1, de 06/02/2017 (consultado a 01/05/2020). Disponível em: http://www.dgsi.pt/).
Em sentido diferente, o Professor e Magistrado Pinto de Albuquerque afirma que a agressão financeira “deve
ser subsumida aos maus-tratos psíquicos, isto é, a uma particular modalidade de violência psicológica em
consonância com o conceito amplo de violência doméstica da Convenção de Istambul”. Conferir nota 7 do artigo
152.ºda obra citada na nota de rodapé n.º15.
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rida em 2013, a tutela da vítima passou a abranger as relações de namoro
28
. E por outro, ao
atribuir uma tutela particular às vítimas que estejam numa situação de especial vulnerabi-
lidade em função da “idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica”.
Assente a conceitualização de violência doméstica, importa agora reflectir sobre os
bens jurídicos tutelados pelo artigo 152.ºdo CP. Neste âmbito, o pensamento doutrinal e a
jurisprudência não convergem e, em síntese, apontam-se as principais posições.
No entendimento do professor Taipa de Carvalho, a par de demais ilustres penalistas,
o bem jurídico tutelado centra-se na saúde da vítima. No entanto, refere tratar-se de um
bem jurídico complexo uma vez que considera englobar a saúde física e psicológica. E, na
situação particular dos menores, defende mesmo que serão ilícitas as condutas que impos-
sibilitem ou restrinjam o desenvolvimento normal e saudável daqueles
29
.
O professor e magistrado Pinto de Albuquerque defende uma multi-tutela de bens,
desde a integridade física e psíquica, passando pela liberdade pessoal e, liberdade e autode-
terminação sexual, até à honra
30
.
Nos tribunais portugueses tem sido, ainda, preconizado que o artigo 152.ºdo CP visa
tutelar não só a saúde, mas igualmente a integridade pessoal, que merece dignidade cons-
titucional conforme o seu artigo 25.º
31
.
De todo o modo, seja por força da tutela da dignidade humana
32
ou da integridade pes-
soal
33
, o bem ou os bens jurídicos tutelados pela referida norma penal encontram expressão
e protecção na nossa Lei Fundamental.
Em remate, a estatuição da violência doméstica desdobrada entre normas de cariz nacio-
nal e transnacional exige ao advogado (e demais profissionais que actuem nesta área) uma
28 A Lei n.º19/2013, conferiu à alínea b), do n.º1, do artigo 152.ºdo CP a seguinte redacção: b) A pessoa de outro ou do
mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges,
ainda que sem coabitação. (sublinhado nosso) Afastando-se, assim, a versão anterior nos seguintes termos: b) A
pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges,
ainda que sem coabitação.
29 C, Taipa de – «Artigo 152.ºdo CP». In: Comentário Conimbricense do Código PenalTomo I, Coimbra:
Coimbra Editora, 1999, p.332. Comungam desta posição: S G, Catarina – O Crime de Maus Tratos Físicos e
Psíquicos Infligidos ao Cônjuge ou ao Convivente em Condições Análogas às dos Cônjuges, Lisboa: AAFDL, 2004, página
59; F, Plácido Conde – «Violência Doméstica: novo quadro penal e processual penal». In: Revista do
CEJ, n.º8, Lisboa, 2004, p.305; G, M. Miguez, R, J. M. Castela – Código Penal Anotado. Coimbra: Almedina,
2015, em notas ao artigo 152.º. Conferir os seguintes arestos: Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo
n.º176/11.1SLPRT.P1, de 26/09/2012 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo. n.º182/06.8TAACN,
de 19/11/2008 (consultado a 01/05/2020). Disponível em: http://www.dgsi.pt/.
30 Conferir nota 2 da obra citada na nota de rodapé n.º15.
31 Conferir o ponto I do sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º3/16.0T.L1-9, citado na
nota de rodapé n.º26.
32 Artigo 1.ºda CRP. C, Gomes e M, Vital Constituição da República Portuguesa Anotada Artigos 1.ºa
107º, Volume I, 4.ªedição revista, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, pp.193-203.
33 Artigo 25.º, n.º1 da CRP.
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intervenção técnica complexa e exigente. Por outro prisma, uma intervenção profissional
menos rigorosa conduz a uma diminuição do exercício dos direitos, liberdades e garantias
fundamentais que se quer plena na assistência da vítima, sendo que no caso particular da
vítima de violência doméstica contribuiu para o enfraquecimento da sua posição que, por
essência, já é débil.
IV. Tutela da vítima de violência doméstica
A tutela da vítima da violência doméstica em Portugal emergiu, em 2007, por via da intro-
dução do respectivo tipo legal de crime no CP. A inserção do crime de violência domés-
tica no catálogo do CP não veio colmatar uma lacuna legal e deve ser apreciada como uma
tutela especial, embora essa opção legislativa possa consubstanciar um reflexo do desig-
nado fenómeno da “hiper-criminalização”
34
. Com isto se pretende afirmar que a conduta
passível, desde então, de preencher os elementos previstos no artigo 152.ºdo CP merecia
anteriormente tutela penal, ainda que para o efeito uma acção pudesse ser subsumida
simultaneamente a diferentes tipos legais de crime (tais como a ofensa à integridade física,
a injúria, a ameaça, entre outros).
A criminalização da violência doméstica abriu caminho para uma sucessiva e múltipla
legiferação tendente a contribuir para a macro erradicação do presente flagelo social e para
a protecção individual da vítima. Neste sentido, começa-se por destacar a Lei n.º112/2009
35
,
dado ter consagrado um regime jurídico focado especificamente na prevenção da violência
doméstica e, na protecção e assistência das respectivas vítimas”.
O referido regime provocou uma alteração substancial no nosso ordenamento jurídico
e constituiu, antecipa-se, uma manifesta optimização no desígnio para o qual foi projec-
tado, dado que traçou e concentrou, estruturadamente, uma tutela politica-jurídico-crimi-
nal em abono da vítima de violência doméstica.
Em detalhe, sobressai-se, primeiro, a obrigação governamental de elaboração de um
“Plano Nacional Contra a Violência Doméstica” (PNCVD)
36
e, de promoção pela educação e
sensibilização-informação da sociedade sobre a presente temática
37
.
34 A possibilidade de uma conduta ser subsumida, simultaneamente, a diferentes tipos legais de crime pode dar
azo ao denominado fenómeno da “hiper-criminalização”. E no que respeita, por exemplo, à tutela da “integridade
física, enquanto bem jurídico, aquela não deve oscilar em função da relação entre o agente do crime e a pessoa
ofendida. V, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal do Inimigo e o Terrorismo. Coimbra: Almedina, 2017,
p.21.
35 Conferir nota de rodapé n.º3.
36 Artigos 3.º, alínea g) e 4.º, n.º1 da Lei n.º112/2009.
37 Artigos 3.º, alínea a), 77.ºe 78.ºda Lei n.º112/2009.
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Segundo, a possibilidade das autoridades atribuírem um estatuto de vítima
38
, que con-
fere um conjunto considerável de direitos exclusivos à vítima, embora determinadas prer-
rogativas poderão manter-se após a cessação do estatuto
39
.
Terceiro, a previsão de um serviço complementar de teleassistência que a vítima pode
accionar em qualquer instante, leia-se, em modo de socorro
40
.
E, por fim, a definição de medidas e direitos projectados para garantir a máxima pro-
tecção policial, bem como a tutela judicial e social da vítima
41
, que se justificam pela sua
relevância apreender-se de imediato ainda com mais minúcia.
No âmbito da protecção policial realça-se a intervenção das autoridades mediante a
apresentação de um plano de segurança – com orientações de autoprotecção – ajustado à
situação vivencial de cada vítima
42
. E por outro, a obtenção de prova no mais breve período
de tempo (sem exceder as 72 horas) é um procedimento capital para a tomada das medidas
de protecção à vítima e as medidas de coacção ao arguido mais adequadas
43
.
Neste domínio poder-se-ia apresentar mais prerrogativas pro bono da vítima, porém e
sem menosprezo pelas mesmas, o que se revela peculiar na intervenção policial é medir
onde esta é verdadeira e positivamente impactante na vida da vítima.
Se há exemplo distinto no seio da intervenção policial é o caso afecto à concretização do
direito de recuperação dos bens e pertences da vítima, retidos habitualmente na residên-
cia onde permanece o agressor e fruto daquela não ter tido oportunidade ou capacidade
para planear uma saída de casa. Ainda que a lei apenas preveja a presença policial quando
seja efectivamente necessária, as autoridades policiais têm no “terreno” revelado progres-
sivamente, maior voluntariedade no acompanhamento da vítima à residência
44
. Sem pre-
terir a consabida limitação dos recursos humanos das autoridades, bem como o constran-
gimento no serviço que a disponibilidade para esse acompanhamento pode causar, não
soçobra dúvida que uma diligência desta natureza sem a presença policial consubstancia
uma abordagem perigosa para a integridade da vítima. Ademais, a mediação policial é pre-
38 No seguimento do disposto no artigo 83.º, n.º1 da Lei n.º112/2009, foi publicada a Portaria n.º229-A/2010 em
Diário da República, 1.ªsérie, 1.ºSuplemento – N.º79 – 23 de Abril de 2010, mediante a qual foram aprovados
“os modelos de documentos comprovativos da atribuição do estatuto devitima”. O Despacho n.º 7108/2011,
publicado em Diário da República, 2.ªsérie, – N.º91 – 11 de Maio de 2011, estabeleceu “os critérios de atribuição
do estatuto de vítima, pela Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, à vítima de violência doméstica.
39 Artigos 14.º, n.º3 e 24.º, n.º3 da Lei n.º112/2009.
40 Artigos 20.º, n.º5 e 35.º, n.º3 da Lei n.º112/2009. No seguimento destes normativos foi publicada a Portaria
n.º 220-A/2010 em Diário da República, 1.ªsérie, 1.º Suplemento – N.º 74 – 16 de Abril de 2010, mediante a
qual foram estabelecidas “as condições de utilização inicial dos meios técnicos de teleassistência” e os “meios
técnicos de controlo à distância.
41 Secção II (artigos 25.ºa 40.º) e Secção III (artigos 41.ºa 52.º) do Capítulo IV da Lei n.º112/2009.
42 Artigo 27.º-A, n.º2 da Lei n.º112/2009.
43 Artigo 29.º-A, n.º1 da Lei n.º112/2009.
44 Artigo 21.º, n.º4 da Lei n.º112/2009.
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ponderante para a efectivação da restituição dos bens, o que por si só confere dignidade à
posição da vítima (sem negligenciar pela indispensabilidade da vítima ter acesso a bens
estritamente pessoais ou essenciais para cuidados de saúde), como representa uma acção
em que o agressor sendo intimado in loco a respeitar os direitos da vítima contribuiu para o
restabelecimento da igualdade entre ambos, sob pena de ser detido em flagrante delito pela
tentativa ou práctica de qualquer delito.
No domínio da tutela judicial ressaltam-se as declarações para memória futura
45
e, o
recurso à videoconferência ou à teleconferência
46
. A primeira é um procedimento proba-
tório que pode ocorrer na fase de inquérito, em ambiente informal, reservado e, desde que
autorizado pelo tribunal, com a presença de um técnico de apoio à vítima ou outro profis-
sional que preste apoio à vítima. É consabido que este tipo de prova potencia a dispensa-
bilidade da presença da vítima em sede de audiência de julgamento. Considerando que
essa exoneração afasta a designada revitimização secundária da vítima – tão peculiar nesta
forma de violência
47
e, in casu, provocada habitualmente por ser sujeita a recontar os factos
denunciados e, concomitantemente, a reviver memórias traumatizantes –, torna-se impe-
rioso ponderar mais assiduamente o seu recurso.
Por sua vez, o recurso à videoconferência ou à teleconferência, marcado pelo depoi-
mento da vítima ser concretizado à distância, constituiu um meio de prova abonador da
serenidade e consequente objetividade testemunhal, bem como garantidor da segurança
na deslocação ao tribunal e do sigilo acerca do paradeiro da vítima, eliminando qualquer
modo de perseguição. Pelas mais-valias descritas em prol da vítima, este é um procedi-
mento probatório que é recomendável ser amplamente requerido, do mesmo modo que a
eventual objecção deve merecer uma fundamentação minuciosa, quer de direito quer de
facto, da obrigação presencial da vítima. Nesta esteira, sendo a vítima compelida a compa-
recer na audiência de julgamento e, portanto, inevitável a possibilidade de confronto com
o arguido, impunha-se a tomada oficiosa do mais amplo conjunto de medidas de protecção
que fomentassem a entrada, permanência e saída da vítima em torno de elevados níveis
de segurança, reserva e bem-estar, convocando-se assim o uso das medidas presentes no
âmbito do regime de protecção de testemunhas em vigor
48
. Paradoxalmente, vive-se tem-
45 Artigo 33.ºda Lei n.º112/2009.
46 Artigo 32.ºda Lei n.º112/2009.
47 Q, Carina – «Violência Doméstica: As expetativas das vítimas e o papel das forças de segurança». In:
Politeia, Ano IX – Edição Especial, Lisboa: ISCPSI, 2014, p.45.
48 A Lei n.º93/99, publicada em Diário da República, 1.ªsérie-A – N.º162 – 14 de Julho de 1999, veio regular “a
aplicação de medidas para protecção de testemunhas em processo penal”. Posteriormente, o diploma foi sujeito
a duas alterações legais. A primeira imposta pela Lei n.º29/2008 (publicada em Diário da República, 1.ªsérie –
N.º128 – 4 de Julho de 2008) e a segunda introduzida pela Lei n.º42/2010 (publicada em Diário da República,
1.ªsérie – N.º172 – 3 de Setembro de 2010).
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pos em que são mais notórias as providências de protecção dirigidas, em Portugal, aos gru-
pos organizados de adeptos à entrada e saída de um estádio de futebol do que às vítimas de
violência doméstica no percurso até à domvs ivstitiæ.
Na área da tutela social começa-se por salientar, pela relevância do seu desígnio e por
constituir uma resposta que ainda continua a escapar ao conhecimento comum do cidadão,
a criação de uma rede nacional de casas de abrigo
49
.
Segundo, a isenção de taxas moderadoras foi aprovada para evitar qualquer entrave
económico à vítima na obtenção dos necessários cuidados de saúde, assim como na recolha
de prova tão crucial para a sustentação ab initio da denúncia e, a posteriori, da acusação e da
fundamentação subjacente à decisão de condenação
50
.
Terceiro, a prioridade no acesso às ofertas de emprego ou programas de formação, sob a
gestão do Instituto de Emprego e Formação Profissional, constituiu um modo de acelerar a
obtenção de autonomia financeira da vítima
51
.
Por fim, a justificação das faltas, com remuneração integral garantida durante 30 dias
52
,
consubstancia um suporte económico para a vítima, ao mesmo tempo que lhe confere pro-
tecção pois é altamente expectável que o agressor tente localizar o paradeiro daquela junto
da sua entidade patronal.
49 O Decreto Regulamentar n.º2/2018 (publicado em Diário da República, 1.ªsérie – N.º17 – 24 de Janeiro de 2018)
veio regular “as condições de organização e funcionamento das estruturas de atendimento, das respostas de
acolhimento de emergência e das casas abrigo que integram a rede nacional de apoio às vitimas de violência
doméstica, prevista na Lei n.º112/2009. Aquele diploma foi sujeito a uma correcção de natureza meramente
nominal imposta pela Declaração de Retificação n.º11/2018, publicada em Diário da República, 1.ªsérie – N.º57
– 21 de março de 2018.
50 Artigo 50.ºda Lei n.º112/2009. Neste sentido, o Despacho n.º20509/2008 (publicado em Diário da República,
2.ªsérie – N.º150 – 5 de Agosto de 2008) veio determinar o regime de isenção das taxas moderadoras às vítimas
de violência doméstica.
51 Artigo 48.ºda Lei n.º112/2009. Nesta esteira apontam-se duas medidas concretas: em concretização do Decreto-
Lei n.º132/99 (publicado em Diário da República, 1.ªsérie-A – N.º93 – 21 de Abril de 1999) que “estabelece os
princípios gerais de enquadramento da política de emprego”, foi aprovada a Portaria n.º20-A/2014 (publicada
em Diário da República, 1.ª série, 1.º Suplemento – N.º 21 – 30 de Janeiro de 2014, procedendo à segunda
alteração àPortaria n.º204-B/2013, de 18 de Junho, que criou “a medida Estágios Emprego”) que determina “a
comparticipação financeira do Instituto do Emprego e da Formação Profissional, I.P., nas despesas com a bolsa de
estágio, subsídio de alimentação e despesas ou subsídio de transporte visando abranger as vítimas de violência
doméstica como destinatárias da medida; em realização do Decreto-Lei n.º220/2006 (publicado em Diário da
República, 1.ªsérie – N.º212 – 3 de Novembro de 2006) que “estabelece o regime jurídico de protecção social da
eventualidade de desemprego dos trabalhadores por conta de outrem…”, foi aprovada a Portaria n.º20-B/2014
(publicada em Diário da República, 1.ªsérie, 1.ºSuplemento – N.º21 – 30 de Janeiro de 2014) para proceder à
integração de vítimas de violência doméstica nos “Contrato emprego-inserção” e “Contrato emprego-inserção+”.
52 Artigo 43.º da Lei n.º 112/2009. AAVV – Violência Doméstica – implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do
fenómeno – Manual Pluridisciplinar, Paulo Guerra e Lucília Gago (Coord.), Centro de Estudos Judiciários, Lisboa,
2016, página 339-348 (consultada a 01/05/2020). Disponível em: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/
Violencia-Domestica-CEJ_p02_rev2c-EBOOK_ver_final.pdf.
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Chegado a este ponto conclui-se que o referido regime jurídico consubstancia, de facto,
um progresso normativo na tutela da vítima de violência doméstica, porém já evoluiu para
corrigir imperfeições e adaptar-se ao tecido social
53
. Tanto assim é que, por exemplo, a Lei
n.º129/2015, de 03/09
54
derrogou o encontro restaurativo ou a mediação penal em casos de
violência doméstica. E a Lei n.º24/2017, de 24/05
55
, compeliu o Ministério Público da juris-
dição criminal a comunicar a aplicação de medidas de coacção que impeçam os contactos
entre os progenitores ao seu homólogo da jurisdição de família e menores, de modo a ser
urgentemente instaurado o “respetivo processo de regulação ou alteração da regulação do
exercício das responsabilidades parentais“
56
.
Em simultâneo foi aprovado outro regime jurídico em tutela da vítima de violência
doméstica marcado, essencialmente, pelo procedimento de “concessão de indemnização
57
pro bono da vítima. A tramitação encontra-se a cargo de uma comissão específica, decorre
num registo de celeridade e assenta numa lógica de adiantamento monetário a favor da
vítima por parte do Estado, ficando reservado a este ente a possibilidade de sub-rogar-se
nos direitos da pessoa lesada
58
.
O exercício dos direitos por parte da vítima de violência doméstica não dispensa, até
pelo emaranhado de regimes jurídicos que visam a sua tutela, a consulta de um profissio-
nal e, neste sentido, o legislador acautelou que fosse assegurada à vítima uma consulta com
prontidão por um advogado
59
. Seguindo a mesma linha de celeridade, a concessão de apoio
judiciário tem um carácter urgente e da praxis decorre a impressão (dada a ausência de
53 A Lei n.º112/2009 foi objecto, por ordem cronológica crescente, das seguintes alterações:
– Lei n.º19/2013, publicada em Diário da República, 1.ªsérie – N.º37 – 21 de Fevereiro de 2013;
– Retificação n.º15/2013, publicada em Diário da República, 1.ªsérie – N.º55 – 19 de Março de 2013;
– Lei n.º82-B/2014, publicada em Diário da República, 1.ªsérie, 1.ºSuplemento – N.º252 – 31 de Dezembro de
2014;
– Lei n.º129/2015, publicada em Diário da República, 1.ªsérie – N.º172 – 3 de Setembro de 2015;
– Lei n.º42/2016, publicada em Diário da República, 1.ªsérie – N.º248 – 28 de Dezembro de 2016;
– Lei n.º24/2017, publicada em Diário da República, 1.ªsérie – N.º100 – 24 de Maio de 2017.
54 Conferir nota de rodapé n.º53.
55 Conferir nota de rodapé n.º53.
56 Artigo 31.º, n.º4 da Lei n.º112/2009, na redacção imposta pela Lei n.º24/2017.
57 A Lei n.º104/2009, publicada em Diário da República, 1.ªSérie – N.º178 – de 14 de Setembro de 2009, aprovou o
“regime de concessão de indemnização às vítimas de crimes violentos e de violência doméstica. Em seguimento
desta lei foi aprovado o Decreto-Lei n.º120/2010, publicado em Diário da República, 1.ªSérie – N.º209 – de 27
de Outubro de 2010, que “ regula a constituição e o funcionamento da Comissão de Proteção às Vítimas de
Crimes”. Por sua vez, a Portaria n.º403/2012, de 7 de dezembro, publicada em Diário da República, 1.ªSérie –
N.º237 – de 7 de Dezembro de 2012, aprovou “os modelos de requerimento para a concessão do adiantamento da
indemnização por parte do Estado pelas vítimas de crimes violentos e de violência doméstica”.
58 Artigo 15.ºda Lei n.º104/2009.
59 Artigo 25.º, n.º1 da Lei n.º112/2009
Artigos 14.ºe 15.ºda Lei n.º34/2004 (publicada em Diário da República, 1.ªSérie-A – N.º177 – de 29 de Julho
de 2004), na redação dada pela Lei n.º47/2007 (publicada em Diário da República, 1.ªSérie – N.º165 – de 28 de
agosto de 2007), que define o regime de acesso ao direito e aos tribunais.
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estatísticas) do deferimento ser ágil e em prazo inferior a 30 dias, ressalvando-se que ainda
há situações em que o imbróglio burocrático prevalece. E recentemente foi introduzido,
mediante a aprovação do Orçamento de Estado para 2020, a presunção que a vítima de vio-
lência doméstica se encontra em situação insuficiência económica até prova em contrário
por forma a que a concessão do referido apoio seja efectivamente expedita
60
.
O legislador estabeleceu, ainda, a possibilidade do mesmo advogado acompanhar a
vítima nos diferentes processos conexos com a situação de violência doméstica
61
. Contudo,
ossos do ofício revelam que são raros os casos em que se verifica essa espécie de nomeação
múltipla, qui sapit por razões afectas à burocratização dos procedimentos interinstitucio-
nais (que se estabelecem, essencialmente, entre Segurança Social, Ordem Advogados, Tri-
bunais e Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça). Deste modo, crê-se que
uma imposição, por via legal, da obrigatoriedade do patrocínio multiprocessual teria sido
um regime mais favorável à vítima.
A vítima de violência doméstica conta, ainda, com o apoio informativo exercido sobre-
tudo pelas ONG’s, destacando-se o serviço de atendimento telefónico permanente assegu-
rado pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV)
62
.
Percorrer os dois principais regimes jurídicos vocacionados especificamente para a
tutela da vítima de violência doméstica teve como propósito evidenciar os mecanismos e
direitos mais relevantes que lhe assistem, porém serve para atestar que a dimensão norma-
tiva subjacente a esta temática não se cinge à mera criminalização da conduta prevista no
Artigo 1.º, n.º4, da Portaria n.º10/2008, publicada em Diário da República, 1.ªSérie – N.º2 – de 3 de Janeiro de
2008, que regulamenta o regime de acesso ao direito e aos tribunais.
60 A Lei n.º2/2020, publicada em Diário da República, 1.ªsérie – N.º64 – 31 de Março de 2020, aprova o Orçamento
do Estado para 2020 e provoca através dos artigos 389.ºe 390.º, respectivamente, um aditamento à Lei n.º34/2004
e uma alteração à Lei n.º112/2009 nos seguintes termos:
Lei n.º34/2004
Artigo 8.º-C
Vítimas de violência doméstica
1 – No caso de atribuição do estatuto de vítima do crime de violência doméstica previsto no artigo 152.ºdo
Código Penal, nos termos da Lei n.º112/2009, de 16 de setembro,presume-se, até prova em contrário, que a
vítima se encontra em situação de insuficiência económica.
2 – Nos casos previstos no número anterior,é garantida à vítima a célere e sequente concessão de apoio
judiciário, com natureza urgente.
Lei n.º112/2009
Artigo 25.º
[...] 1 –É garantida à vítima, com prontidão, consulta jurídica a efetuar por advogado, bem como a célere e
sequente concessão de apoio judiciário, com natureza urgente,nos termos legais. [...]
61 Artigo 25.º, n.º2, da Lei n.º112/2009.
62 O Protocolo n.º17/2000, publicado em Diário da República, 2.ªsérie – N.º118 – 22 de Maio de 2000 – foi celebrado
entre o Ministro da Justiça, a Ministra para a Igualdade e a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) com
o desígnio de consagrar o serviço de atendimento telefónico permanente às vítimas de violência doméstica.
Consultar, em particular, a cláusula 2.ª, alínea b).
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artigo 152.ºdo CP. Com isto se pretende afirmar que a especialização na área da VD vai mais
além do aludido conhecimento penal, sendo este apenas uma parte de um todo e é crucial
para o apoio profissional à vítima ser assertivo que o conhecimento do técnico seja o mais
denso e assente numa fluente articulação entre os diferentes instrumentos normativos.
Acresce que o contexto de violência doméstica que envolve a vítima é tão singular que
pode impor a necessidade de também ser apoiada na resolução – múltipla e em simultâneo
– de conflitos que implicam um enquadramento normativo mais vasto do antes retratado.
Provando com exemplos, a vítima de violência doméstica pode ser parte activa ou passiva
– para além do processo-crime – em processos (ora de natureza cautelar, ora definitiva)
de divórcio, de prestação de alimentos, de regulação das responsabilidades parentais ou
de promoção e protecção de menores (quando estes estejam sob a sua responsabilidade),
de partilha patrimonial, de insolvência pessoal, de execução de dívidas, de despedimento
laboral, de despejo habitacional, et caetera.
Em remate, a tutela da vítima de violência doméstica implica um apoio técnico pluri-
disciplinar que, também, se reflecte na dimensão jurídica dado que pode carecer de patro-
cínio em diversos processos, que cobrem diferentes áreas do direito para a qual o mesmo
advogado pode consubstanciar uma mais valia. Ademais, urge a presença obrigatória do
advogado, particularmente no âmbito penal e de família e menores, desde a fase processual
preliminar.
V. Apoio técnico-jurídico prestado à vítima de violência doméstica
O apoio técnico conferido à vítima de violência doméstica desdobra-se, consoante os casos,
em diferentes valências profissionais. Entre estas têm assumido maior protagonismo as
funções prestadas pelo polícia, médico (especialmente, o psicólogo), advogado e assistente
social, sem menosprezo pelas demais que avocam para si igual distinção, consoante as
necessidades que a vítima pretende colmatar.
Soma-se à multidisciplinaridade a complementaridade profissional. Somente um apoio
integrado (ou em rede) e sincronizado pode conduzir a vítima a obter maior estabilidade e
confiança, sendo estas atributos essenciais para o afastamento daquela do contexto mar-
cado pela violência doméstica.
Prova concreta deste aspecto extrai-se da situação em que a vítima recusa peremptoria-
mente apresentar queixa contra o agressor. Esta posição assumida configura um momento crí-
tico ou, mesmo, decisivo, para a assertividade da intervenção dos profissionais que a rodeiam.
Neste âmbito, é importante que o profissional reconheça, após tomar conhecimento do
crime practicado e da intenção vítima não apresentar queixa, o dever de denunciar a situa-
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ção às autoridades competentes, dado tratar-se de um crime de natureza pública
63
. É seguro
afirmar que ao jurista ou ao advogado é confortável, por hábito, medir as implicações que
envolvem a apresentação, ou não, de uma queixa-crime. Porém, igual dever germina para
os demais profissionais que naquele contexto contactem com a vítima.
Posto isto e ainda que exista o referido ónus de denúncia, tem sido praxis nos serviços
especializados de apoio às vítimas de violência doméstica efetuar-se uma espécie de gestão
do momento adequado para a denúncia sem desrespeito pelo prazo de seis meses, ao fim
do qual extingue-se o direito à queixa
64
. Para o efeito, tem sido considerado capital que a
denúncia ocorra somente após o momento em que já se tenha implementado uma estraté-
gia de protecção da vítima, dado que a natureza pública do crime promove o “accionamento
de várias medidas de protecção
65
. Com tal conduta pretende-se evitar que o conhecimento
da queixa por parte do autor do crime coloque a vítima numa situação de maior perigo do
que a vivida antes da respectiva participação.
Em particular, o advogado deve neste cenário assumir um papel igualmente proactivo,
sem descurar a reserva da factualidade encoberta pelo segredo profissional
66
, razão pela
qual se pensa que o levantamento do sigilo deve merecer um tratamento processual ágil
(dispensando-se procedimentos excessivamente burocráticos) em prol da tutela da vítima
de violência doméstica.
Aprofundando o apoio técnico-jurídico prestado à vítima de violência doméstica, alme-
ja-se destrinçar três tipos de profissionais: o técnico de apoio à vítima (comummente apeli-
dado pela sigla TAV), o jurista e o advogado.
O TAV é, em termos legais, “a pessoa devidamente habilitada que, no âmbito das suas
funções, presta assistência direta às vítimas”
67
. Os pressupostos e o procedimento a cum-
prir na aspiração a TAV
68
, controlados actualmente pela Comissão para a Cidadania e Igual-
dade de Género
69
, implicam que o candidato seja, por um lado, portador de uma habilitação
63 A natureza pública do crime de violência doméstica decorre da alteração provocada ao CP pela Lei n.º59/2007 e
é uma expressão de protecção máxima da dignidade da pessoa humana (artigo 1.ºda CRP).
64 Artigo 115.º, n.º1, do Código Penal.
65 Alves, Flávio Santos – «Resposta Organizacionais da PSP em Relação ao Crime de Violência Doméstica». In:
Politeia, Ano IX – Edição Especial, Lisboa: ISCPSI, 2012, p.79.
66 Artigo 92.º, n.º1, do EOA estatui que: “o advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional,
desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do
próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho
regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.
67 Artigo 2.º, alínea c), da Lei n.º112/2009.
68 Artigo 83.º, n.º5, da Lei n.º112/2009.
69 Alínea a), do Ponto 1-, do Despacho n.º6810-A/2010, publicado em Diário da República, 2.ªsérie, 1.ºSuplemento
– N.º74 – 16 de Abril de 2010, que “define os requisitos e qualificações necessários à habilitação dos técnicos de
apoio à vítima. No que respeita ao nível da habilitação, o Ponto 4- do mesmo diploma contemplou a seguinte
excepção: “as pessoas que, à data da entrada em vigor do presente despacho, sejam detentoras de habilitação
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académica de nível superior, preferencialmente na área das ciências sociais e humanas
ou, em alternativa a esta, deter experiência profissional relevante no domínio da violência
doméstica. E, por outro, o candidato deve obter aprovação numa formação teórico-práctica,
com a duração de 90 horas
70
.
Cruzando essa função com os recursos humanos admitidos em casas de abrigo, descor-
tina-se que esta resposta social dá preferência à contratação de TAV
71
. E adensa a mesma
quanto às habilitações, dando prevalência às áreas de serviço social, psicologia, educação
social e direito
72
.
O jurista ou jurisconsulto é um profissional habilitado, após a conclusão da formação
superior em direito, a proferir pareceres sobre questões de índole jurídica. Em contexto
de violência doméstica, destaca-se o papel de informar a vítima sobre os seus direitos e
deveres. Porém, esta função informativa não se deve equiparar à consulta jurídica que está
reservada ao advogado, como mais adiante se irá dar conta com detalhe, ressalvando-se
a situação especial dos “juristas de reconhecido mérito” e dos “mestres ou doutores em
Direito
73
.
O jurista pode prestar o referido apoio de modo individual ou institucional, sendo que
nesta última dimensão ressalta, logo, de exemplo a sua intervenção no âmbito da casa de
abrigo.
O advogado, considerado comummente como jurista particularmente qualificado, é
o profissional a quem está exclusivamente reservada a práctica dos denominados “actos
próprios dos advogados”
74
. Destacam-se destes “o exercício do mandato forense”, “a con-
sulta jurídica
75
e “todos aqueles que resultem do exercício do direito dos cidadãos a fazer-se
acompanhar por advogado perante qualquer autoridade”
76
.
A consulta jurídica reservada ao advogado
77
é uma actividade que funde os elementos de
interpretação das normas e respectiva aplicação em tese, tal como o jurista está apto a exe-
de nível secundário e exerçam, comprovadamente, a função de técnico de apoio à vítima ficam dispensadas do
cumprimento do requisito da posse de habilitação de nível superior previsto na alínea a) do n.º1.
70 Alínea b), do Ponto 1-, do Despacho n.º6810-A/2010.
71 Artigo 44.º, n.º1, do Decreto Regulamentar n.º2/2018.
72 Artigo 44.º, n.º2, do Decreto Regulamentar n.º2/2018.
73 Artigo 1.º, n.º2, da Lei n.º49/2004 (publicada em Diário da República, 1.ªsérie-A – N.º199 – 24 de Agosto de 2004)
e artigo 200.º, da Lei n.º145/2015 (publicado em Diário da República, 1.ªsérie – N.º176 – 9 de Setembro de 2015),
usualmente referida por Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA).
74 Artigo 1.º, da Lei n.º49/2004 e artigo 66.º, n.º1, do EOA.
75 Artigo 1.º, n.º5, da Lei n.º49/2004.
76 Artigo 1.º, n.º9, da Lei n.º49/2004.
77 Em modo de excepção, o advogado estagiário pode prestar consulta jurídica desde que esteja sob a orientação do
respectivo patrono – artigo 196.º, n.º1, alínea b), e n.º2 do EOA.
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cutar, com o de aconselhamento do modo como, a partir da casuística apresentada, devem
ser exercidos os direitos e satisfeitas as pretensões que legalmente assistem ao cliente
78
.
O referido aconselhamento pressupõe, em regra, uma remuneração
79
e é desencadeado
por uma solicitação, como reza a lei, “de terceiro”, no qual se inclui obviamente a vítima.
Por fim, o advogado pode conceder a consulta ora no âmbito do acesso ao direito, como
dever-desígnio diante da comunidade
80
, ora em modo individual ou liberal, sendo certo que
em ambos o exercício da advocacia comunga exactamente dos mesmos princípios deonto-
lógicos.
A consulta jurídica pode representar a antecâmara, ou não, do mandato forense que
venha a ser atribuído pela vítima ao advogado. Estando este devidamente mandatado pode,
destaca-se, exercê-lo diante de qualquer tribunal – mandato judicial – e actuar em repre-
sentação do mandante para negociar a constituição, alteração ou extinção de relações jurí-
dicas – mandato com representação
81
. Esta representação adquire, no âmbito da violência
doméstica, limitações e a melhor prova da indisponibilidade dos direitos da vítima é a sus-
pensão provisória do processo-crime depender da sua livre e esclarecida vontade
82
.
O mandato forense inicia-se por livre escolha do cliente ou por nomeação atribuída pela
entidade legalmente competente
83
. A execução do mandato pauta-se pelo equilíbrio entre,
por um lado, a liberdade, independência, isenção e plena autonomia técnica do advogado
84
,
e, por outro, a responsabilidade daquele prosseguir interesses estritamente profissionais
que visem defender os direitos, liberdades e garantias fundamentais do cliente, ao mesmo
tempo que pugna pela aplicação célere e mais adequada das normas (legais e deontológi-
cas)
85
.
Para finalizar, o TAV não tem de ser, necessariamente, expertise em direito, embora possa
ser jurista e não há impedimento legal para, simultaneamente, ser advogado da vítima. O
jurista pode aspirar a ser TAV e cumular funções com a advocacia. O advogado é o único
78 Artigo 3.ºda Lei n.º49/2004 e artigo 68.ºdo EOA.
79 A consulta jurídica prestada no âmbito do acesso ao direito confere ao advogado uma retribuição de 1/4 UC
(Unidade de Conta), que corresponde à módica quantia de 25,50€ – artigos 6.º, n.º1, 14.ºe 15.ºda Lei n.º34/2004,
e Ponto 11-, do Anexo da Portaria n.º1386/2004 (publicada em Diário da República, 1.ªsérie-B – N.º264 – 10 de
Novembro de 2004) por força do artigo 25.º, n.º1, da Portaria n.º10/2008 (publicada em Diário da República,
1.ªsérie – N.º2 – 3 de Janeiro de 2008). E fora daquele âmbito é, igualmente, saldada em dinheiro e esta quantia
deve obedecer à “compensação económica adequada pelos serviços prestados” – artigo 105.º, n.º1 do EOA -, salvo
se o advogado actuar a título do comummente designado pro bono.
80 Artigo 90.º, n.º2, alínea f), do EOA e artigo 20.º, n.º1 e n.º2 da CRP.
81 Artigo 67.º, n.º1, alíneas a) e b) do EOA e artigo 2.º, da Lei n.º49/2004.
82 Artigo 281.º, n.º7, do Código de Processo Penal.
83 Artigo 98.º, n.º1, do EOA.
84 Artigo 81.º, n.º1, e artigo 97.º, n.º2, do EOA.
85 Artigo 90.º, n.º1 e n.º2 alínea g), do EOA.
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profissional que pode prestar consulta jurídica à vítima e representá-la em juízo, porém
não está impedido de habilitar-se a ser TAV e exercer funções de jurista.
VI. A especialização do advogado em violência doméstica
A par da probidade, rectidão e honestidade
86
, a especialização do advogado é um factor de
interesse para o cliente dado que representa um estímulo à sua confiança
87
saber que, ao
solicitar os serviços de advocacia, pode estar diante de um profissional que apresente, ou
não, credenciais diferenciadas por domínio acrescido da área do direito em que vai operar.
Por princípio, está vedado ao advogado invocar uma área que considere ser a sua espe-
cialidade, particularmente por meios publicitários. Para divulgar a sua qualidade especial
carece de autorização da Ordem dos Advogados
88
.
O Estatuto da Ordem dos Advogados vigente expressa, desde 2015, diversas áreas em
que o advogado pode identificar-se como especialista
89
, as quais se crê subdividirem-se
entre as designadas áreas clássicas – tais como, o Direito Constitucional, Administrativo,
Fiscal, Financeiro e do Trabalho – e áreas contemporâneas – Direito Europeu e da Concor-
rência
90
.
A posteriori foi aprovado o “Regulamento Geral das Especialidades”, provocando uma
evolução no sentido de consagrar as áreas já reconhecidas – Direito Constitucional, Admi-
nistrativo, Fiscal e do Trabalho –, de ampliar e, assim, prever novas especialidades – Direito
da Família e Menores, do Consumo, do Ambiente, da Igualdade de Género, da Saúde e Bioé-
tica, Criminal e Societário – e de ajustar algumas áreas consagradas à realidade presente –
Direito da Propriedade Intelectual, Industrial e da Concorrência, e Direito Europeu (sendo
86 Ponto 2. das notas do artigo 97.ºdo EOA in Magalhães, Fernando Sousa – Estatuto da Ordem dos Advogados Anotado,
14.ªEdição, Coimbra, Edições Almedina, 2019, página 156.
87 Artigo 97.º, n.º1, do EOA.
88 Artigo 70.º, n.º3, e artigo 94.º, n.º2, alínea f), do EOA.
89 O EOA vigente veio tornar expressa a especialização do advogado no seu artigo 70.º, ao invés do EOA precedente
(Lei n.º15/2005, publicada em Diário da República, 1.ªSérie-A – N.º18 – 26 de Janeiro de 2005) que remetia para
regulamento autónomo essa abordagem. Encontra-se no Regulamento n.º204/2006 (publicado em Diário da
República, 2.ªsérie – N.º209 – 30 de Outubro de 2006) o regime de atribuição do título de advogado especialista
e as áreas de práctica consideradas especialidades, que por sinal são idênticas às expressas na Lei n.º15/2005. É
necessário recuar ao Regulamento n.º15/2004 (publicado em Diário da República, 2.ªsérie – N.º81 – 5 de Abril
de 2004) para encontrar uma lista de especialidades mais resumida composta pelas seguintes áreas: Direito
administrativo; Direito fiscal; Direito do trabalho.
90 Artigo 70.º, n.º3, do EOA.
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que esta última área foi autonomizada da anterior)
91
. Neste domínio, a mais recente altera-
ção determinou o reconhecimento da especialidade de Direito Marítimo
92
.
Releva, agora, prender-se com detalhe ao referido regulamento para apreciar os moldes
de atribuição do título de “especialista. Este impõe, essencialmente, que o advogado exerça
há pelo menos dez anos e de modo ininterrupto na área de que pretende arrogar essa qua-
lidade. Além disso, o advogado deve demonstrar competência teórico-práctica na especia-
lidade a que se candidata, sendo necessário para o efeito advogar e acumular formação
93
.
A obtenção do título de advogado especialista assenta num procedimento exigente pois,
além do dever de comprovar documentalmente a sua formação e práctica na área jurídica
a que se propõe
94
, que pode ser complementada com declarações abonatórias de terceiros
95
,
o advogado é sujeito a uma prova oral pública para esclarecer o seu currículo profissional e
demonstrar domínio da respectiva especialidade
96
.
Após a atribuição do título de especialista, o advogado deve apresentar, ao fim de 5 anos,
um “curriculum profissional” que dê mostras de ter acumulado experiência profissional e
formação teórica na mesma área, sob pena de caducar automaticamente
97
.
Posto isto, afirmar que um advogado seja especialista em violência doméstica não tem
sustento normativo (ora estatutário, ora regulamentar). Ainda que o cliente possa ques-
tionar ao advogado pelo grau de domínio em assuntos afectos à violência doméstica, é
seu dever esclarecer que a Ordem dos Advogados não reconhece aquela especialidade. No
entanto, o advogado não está impedido de expor ao seu cliente que tem acumulado práctica
forense, sobretudo judicial, na tutela das vítimas de violência doméstica, ao mesmo tempo
que tem acolhido formação teórica na área (como é exemplo notório o curso TAV).
De todo o modo, importa equacionar, em tese, a viabilidade do advogado requerer à
respectiva Ordem que seja reconhecido a qualidade de especialista em violência doméstica
pelo acumular, há mais de dez anos, de experiência teórico-práctica nesse âmbito.
Antevê-se, desde logo, o indeferimento liminar dessa pretensão como reacção prelimi-
nar e imediata do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, caso o candidato invoque espe-
cificamente a especialidade em “violência doméstica”, a qual não é legalmente reconhecida
consoante já foi frisado
98
.
91 Artigo 5.ºe Anexo do Regulamento n.º9/2016 (publicado em Diário da República, 2.ªsérie – N.º3 – 6 de Janeiro
de 2016).
92 Deliberação n.º1004/2016 (publicado em Diário da República, 2.ªsérie – N.º116 – 20 de Junho de 2016).
93 Artigo 3.ºe 4.º, n.º1, do “Regulamento Geral das Especialidades” (RGE).
94 Artigo 6.º, n.º2 e n.º3, e artigo 7.ºdo RGE.
95 Artigo 6.º, n.º4, do RGE.
96 Artigo 10.º, n.º2, do RGE.
97 Artigo 4.º, n.º2, do RGE.
98 Artigo 6.º, n.º3, do RRGE.
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Avançando na equação explora-se, agora, em que medida a experiência acumulada no
âmbito da violência doméstica pode constituir fundamento para o advogado ser conside-
rado especialista numa área efectivamente reconhecida, testando-se – por razões óbvias – o
“Direito Criminal”, o “Direito da Família e Menores” e o “Direito da Igualdade de Género”.
Seguindo a linha de pensamento anteriormente explanada, não restam dúvidas que a
violência doméstica emergiu no nosso ordenamento pelo Direito Criminal, com a introdu-
ção do tipo legal de crime que visa reprimir aquela conduta. Porém, a violência doméstica
é um flagelo social que não se resume ao foro criminal até porque a recusa da vítima na
denúncia do crime (e este configura um cenário mais real do que hipotético) exclui a inter-
venção penal, ainda que não elimine a qualidade de pessoa ofendida. Acresce que a tutela da
vítima implica, consoante os casos, o recurso judicial por áreas do direito distintas da penal,
sobressaindo-se o domínio da família e de menores.
A mesma linha de raciocínio desenvolvida serve para vetar a candidatura do advogado
à especialidade em “Direito da Família e Menores”. E dado que o regulamento sub judice não
contempla uma candidatura conjunta a diferentes especialidades, julga-se insustentável
que o advogado com experiência acumulada em violência doméstica aglomere a qualidade
de especialista em “Direito Criminal” e “Direito da Família e Menores”. Analisando por
outro prisma, a candidatura às especialidades invocadas pode ser efectuada em simultâneo
e separadamente, porém crê-se improvável o deferimento pelo Conselho Geral da Ordem
dos Advogados, dado que a experiência afecta à violência doméstica funda-se exactamente
na mesma experiência e curriculum.
Por fim, a especialidade advocatória em “Direito da Igualdade de Género” não se coa-
duna com a violência doméstica. Ainda que esta se reproduza, pelos indicadores aludidos,
em larga escala no seio das relações conjugais, evidenciando a desigualdade ou o predo-
mínio do género masculino sobre o feminino, a dimensão pessoal subjacente à violência
doméstica é mais ampla, sendo a violência filio-parental um claro exemplo
99
.
Para concluir, conjecturam-se os obstáculos à inclusão da violência doméstica na refe-
rida lista da especialidade do advogado. Esta temática não corresponde a uma disciplina
autónoma do direito, além de que a defesa da vítima pode alastrar a intervenção por diver-
sos domínios jurídicos, sendo que determinados destes já estão reconhecidos como espe-
cialidades da advocacia (como, reitera-se, o direito criminal e, o direito de família e meno-
res). Em sentido inverso, a admissão da especialidade “Direito da Igualdade de Género” é
99 Conferir o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no processo n.º2255/15.7T9PRT.P1, de 12/10/2016
(consultado a 01/05/2020) Disponível em: http://www.dgsi.pt.
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um sinal claro da especialidade do advogado não ter, forçosamente, de corresponder a uma
típica área do direito.
Em suma, o “Regulamento Geral das Especialidades” não contempla a especialização do
advogado em violência doméstica, ainda que esse reconhecimento consubstanciasse um
reforço condigno da tutela da vítima, além de ampliar a sua confiança no advogado.
VII. Considerações ad futurum
Pensar na especialização do advogado em violência doméstica é uma cogitação focada
na posição da advocacia, quer na matriz institucional a cargo da Ordem dos Advogados,
quer na matriz individual exercida pelo advogado, enquanto profissão indispensável para
a efectivação dos direitos, liberdades e garantias fundamentais da vítima de violência
doméstica
100
.
Dado que a violência doméstica não é, aos dias de hoje, uma área reconhecida pela
Ordem dos Advogados que conduza à atribuição de um título de especialista, tem-se de
situar a apreciação do à-vontade do advogado no domínio da temática mediante duas pers-
pectivas: o da competência e o da disponibilidade
101
.
A disponibilidade é conditio sine qua non para o advogado aceitar o patrocínio. Contudo,
o advogado, ainda que preveja impossibilidade ou mera restrição que o afaste da gestão
imediata do assunto que lhe seja confiado, pode aceitar o patrocínio desde que actue con-
juntamente com outro colega que apresenta essa disponibilidade.
Este panorama de cooperação entre advogados, cujos moldes é desnecessário neste
momento verter, é uma práctica rotineira da actividade. Sucede, porém, que no âmbito da
violência doméstica, a referida actuação conjunta pode comprometer o apoio mais ade-
quado à vítima.
É consabido que a vítima procura obter suporte em determinada pessoa ou profissional,
que constitua a alavanca para abandonar definitivamente a relação marcada pela violência.
O advogado pode assumir ou, até, ser um forte candidato a desempenhar esse papel,
considerando a importância de deter elevados conhecimentos jurídicos. Indubitavelmente
está reservado ao advogado a capacidade para informar a vítima, esclarecer os procedimen-
tos e timings judiciais, bem como prestar as orientações que salvaguardem os interesses
da mesma conduzindo-a para uma situação futura em que venha a obter segurança e paz.
Desse modo, o vínculo entre o advogado e a vítima supera o patamar da confiança, a qual
100 Artigo 3.º, alínea a) e artigo 90.º, n.º1, do EOA.
101 Artigo 98.º, n.º2, do EOA.
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(reitera-se) ser essencial e recíproca para a harmonia da relação, e eleva-se para o grau de
“referência.
São vários os indicadores que revelam as circunstâncias em que o advogado se assume
diante da vítima como uma espécie de “técnico de referência.
Primeiro, a relação torna-se unidireccional e a vítima jamais toma uma decisão sem a
respectiva validação pelo advogado.
Segundo, a indispensabilidade da presença do advogado na fase pré e pós-judicial para a
efectiva tutela da vítima equipara-se à sua obrigatoriedade de estar em juízo
102
.
Terceiro, os atendimentos são, por norma e como costume da profissão
103
, executados
de modo presencial e em sessões contínuas, com um carácter de periodicidade frequente,
embora, adaptável às circunstâncias (oscilando, assim, entre o mínimo de 1 a 2 sessões
semanais, até ao máximo de um contacto quinzenal).
Quarto, qualquer diligência que exija a presença da vítima diante das autoridades é
cumprida sempre com o acompanhamento do advogado, ainda que a intervenção deste não
seja exigida por lei ou, tenha uma dimensão e oportunidade diminuta.
Quinto, o pedido de indemnização (em dinheiro) a favor da vítima não deve resumir-se
ao arbitramento oficioso
104
. O advogado deve trabalhar a motivação da vítima na formula-
ção desse pedido quando esta manifeste a habitual recusa ou desinteresse pelo ressarci-
mento. Para determinar esta transformação, é imperioso dar inicialmente por assente que
a compensação financeira nunca há-de representar uma digna alternativa à reconstituição
natural da realidade passada. A partir deste ponto, importa consciencializar a vítima que
a auto-negação do ressarcimento é abdicar de um direito que corrói o binómio “liberda-
de-responsabilidade” – princípio elementar e indispensável à convivência social – e, por-
ventura, com repercussões futuras em alterações normativas que diminuam a tutela das
demais vítimas. Neste âmbito, assinala-se que, em certos casos, tem obtido resultados prác-
ticos profícuos expor-se à vítima que o modo de pagamento pode ser concretizado com
base num adiantamento por parte do Estado Português
105
(o que afasta a indisponibilidade
102 A fase pré-judicial é marcada, basicamente, pelo direito à informação para capacitar ou empoderar a vítima na
adopção de condutas que contribuam para a erradicação da violência doméstica. Esta fase pode consubstanciar
a antecâmara da fase judicial, marcada pela propositura e prosseguimento de processos judiciais. E a fase pós-
judicial verifica-se após o trânsito em julgado de todos os processos e foca-se no apoio à vítima para em face
da evolução das circunstâncias ser apreciado quaisquer alterações que possam justificar nova intervenção
judicial.
103 M, Fernando Sousa – Estatuto da Ordem dos Advogados Anotado, 14.ªEdição, Coimbra: Almedina, 2019,
p.96 – ponto 9. das notas do artigo 68.ºdo EOA.
104 Conferir nota de rodapé n.º57.
105 Conferir nota de rodapé n.º57 e 58.
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financeira do efectivo responsável) e da indemnização consubstanciar um apoio extrema-
mente útil para a autonomização da vítima, dado ser frequente a sua fragilidade financeira.
Por fim, a advocacia deve assumir-se como um meio efectivo de suporte para a vítima
cambiar a violência pela paz doméstica e, quando este cenário se concretiza, a vítima vai
seguramente enaltecer o resultado obtido destacando o contributo do advogado.
Posto isto, o patrocínio aceite por um advogado na condição de ser exercido por outro,
que demonstre tal disponibilidade, pode constituir dois dilemas que merecem de seguida
atenção.
No momento em que a indisponibilidade do advogado ocorre ab initio, a vítima pode
ver gorada a confiança depositada no profissional que escolheu para o seu patrocínio. Em
sequência, antevê-se que a intenção da vítima em exercer os seus direitos seja enfraque-
cida, além de que compromete a futura confiança no advogado recomendado. Descendo à
realidade, pense-se na situação típica da vítima que vive anos a fio (para não dizer décadas)
sem se libertar da relação abusiva e, quando obtém coragem para dar esse passo, pode escu-
tar uma resposta ”meio-termo.
Por sua vez, no momento em que a indisponibilidade do advogado se verifica a poste-
riori ou durante o decurso do processo judicial, o sentimento de insegurança e descrédito
no advogado mandatado apossam-se da vítima e, em sequência, compromete-se a qualidade
de intervenção judicial e, concomitantementem a diminuição das respetivas garantias. Con-
cretizando, não é recomendável o advogado prescindir a reunião presencial com a vítima em
momento prévio à intervenção judicial e tão-pouco não estabelecer contacto com aquela antes
dessa diligência. Não é, de todo, recomendável que a vítima, em cumprimento de convocató-
ria para diligência judicial, seja, somente nesse momento, confrontada com a representação
por advogado, com base em substabelecimento, diferente daquele inicialmente mandatado.
No que concerne à competência, o advogado, nos mesmos moldes antes elucidados
quanto à disponibilidade, pode aceitar o patrocínio desde que actue conjuntamente com
outro colega que apresente essa aptidão.
A competência do advogado representa no apoio conferido à vítima de violência domés-
tica a outra face da moeda composta pela disponibilidade. Deste modo, as observações já
apresentadas acerca da confiança e (eventual) nível de “referência” no plano da disponibi-
lidade, consideradas essenciais para a harmonia da relação advogado-cliente/vítima, são
profícuas no plano da competência do advogado, mutatis mutandis.
Sob o ponto de vista da competência, aprecia-se o conforto do profissional mediante o
domínio das diversas áreas do direito (e, quiçá, de outras áreas científicas) que abarquem as
necessidades de tutela da vítima de violência doméstica, cuja amplitude está intrinsecamente
afecta à singularidade da casuística e à mutação frequente das circunstâncias envolventes.
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No seguimento da linha de pensamento anteriormente exposta, o campo jurídico sub-
jacente a uma situação de violência doméstica não se cinge ao código penal (e, obviamente,
ao processo penal). É indiscutível que idealiza uma óptima base de conhecimento o facto
do advogado manusear assiduamente esses códigos, conjugando-os com o “regime jurídico
aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas”,
sem preterir o respectivo entroncamento no direito constitucional, europeu e internacio-
nal. Porém, soma-se ao dever do advogado, este estar apto para observar e invocar as nor-
mas dos demais ramos de direito em que se enquadrem as necessidades e interesses que a
vítima pretende tutelar.
O domínio e a conjugação assertiva de diversos e vastos instrumentos normativos
implicam que o serviço do advogado atinja um nível de exigência considerável. Contudo, o
raio de acção do advogado pode ser superior quando ambiciona absorver conhecimentos de
outras áreas científicas que se debruçam sobre a mesma problemática.
Este plus gnosiológico potencia a qualidade do atendimento e orientação jurídica, dado
que amplia o leque de ferramentas e saberes que permitem ao advogado compreender
melhor a situação vivencial da vítima. Neste sentido, os contributos científicos mais pro-
fícuos situam-se nos domínios da psicologia, psiquiatria, criminologia, sociologia, assis-
tência e reinserção social. Em detalhe, conteúdos associados à vitimologia, às dinâmicas
da violência doméstica e, à reinserção e prevenção da revitimização dilatam o know-how do
advogado que pretenda patrocinar uma vítima de violência doméstica.
A absorção de conhecimento extrajurídico pelo advogado representa um engrandeci-
mento ad hoc à sua formação base, o qual pode ser obtido de modo informal ou programado,
sendo que este último confere habitualmente uma certificação ou diploma. Com isto não
se pretende induzir que a especialização do advogado em violência doméstica deve passar,
forçosamente, pela frequência de formação específica nessa área (identificando-se, neste
momento, o curso TAV como o melhor exemplo possível), porém essa opção aprimora sem
dúvida a sua actuação.
Nesta esteira, o advogado deve assumir, também, uma postura de cooperação em rede
com os demais profissionais que prestem assistência e protecção à vítima. O advogado que
promova esse envolvimento em rede, amplia a segurança da vítima ao mesmo tempo que
exerce um patrocínio proactivo e, consequentemente, fortalecedor da confiança essencial
para a relação profissional
106
.
106 Por exemplo: o advogado deve informar a vítima que tem o direito de recolher os seus pertences pessoais na
residência onde permaneça o agressor e ser acompanhada, quando necessário, pelas autoridades policiais;
o advogado pode estabelecer contacto com a esquadra competente para aferir qual o modus operandi no
acompanhamento da vítima à residência, porém uma vez efectuada essa ligação com as autoridades deve,
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Posto isto, todo o advogado deve realizar, previamente à aceitação do patrocínio de uma
vítima de violência doméstica, um exercício de consciência acerca da sua disponibilidade
e competência, reconhecendo que ao assumir o serviço está a comprometer-se com uma
intervenção proactiva, meticulosa, dinâmica e harmoniosa com os diversos modos de apoio
à vítima e apta a dar cobertura nas diferentes áreas do direito necessárias à efectivação dos
direitos, liberdades e garantias fundamentais do cliente.
Ao longo do presente artigo nunca foi proferido o termo “honorários”, porém neste
âmbito é um tópico que não pode passar em branco. De todo o modo, o critério legal defi-
nido no EOA é extramente claro. Este oferece a consabida amplitude de fixação de hono-
rários, mediante a qual o advogado justifica pelo serviço prestado uma compensação eco-
nómica concreta, sendo que na práctica a conta apresentada ao cliente pode resumir-se a
umas razoáveis centenas de euros até a uns sobejos milhões
107
.
A atenção rogada não deve prender-se, assim, com o critério de fixação de honorários
porque a partir do momento que o advogado descrimine os serviços e apresente um valor
em consonância com as directrizes legais – que, topicamente, vão desde a importância,
complexidade, urgência, criatividade, resultado, tempo até à responsabilidade –, o cliente
deve compreender e aceitar (pagar).
Ainda que se equacione o cenário de uma acentuada dicotomia entre o substancial valor
apresentado a título de honorários (calculado atenta a actuação exigente e exímia do advo-
gado) e a manifesta insuficiência financeira da vítima (fruto do contexto vivencial subja-
cente à violência doméstica condicionar a sua capacidade de pagamento), não se antevê
impedimento para a apresentação de uma nota de honorários com um valor final elevado,
nem a vítima está exonerada de cumprir a sua obrigação.
Neste tópico, o alerta que se pretende assinalar tem como destinatário, por um lado, as
entidades que contribuíram para, até aos dias de hoje, estar em vigor no âmbito do acesso
ao direito uma tabela de honorários aprovada em 2004
108
. Recorda-se que esta tabela prevê
valores de compensação que podem ficar muito aquém de uma remuneração consonante a
disponibilidade e competência exigida ao advogado que patrocine uma vítima de violência
doméstica
109
. Às mesmas entidades aproveita-se para apelar que é profícua a nomeação do
mesmo advogado para acompanhar a vítima nas diversas causas que tenha necessidade de
de seguida, orientar a vítima para o efeito; o advogado pode, ainda, monitorizar (preferencialmente, de modo
presencial) a diligência de recolha dos pertences da vítima e, na eventualidade, de ocorrer qualquer entrave ao seu
sucesso, deve promover, de imediato, os procedimentos previstos na lei para a vítima efectivar o referido direito.
107 Artigo 105.º, do EOA,
108 Conferir nota de rodapé n.º79.
109 Citam-se, a título de exemplo, duas situações remuneratórias: 25,50€ pela consulta jurídica e 280,50€ pelo
processo penal cujo crime seja da competência seja do tribunal singular.
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accionar pelas razões antes expostas, porém o ónus desse patrocínio múltiplo deve, igual-
mente, proporcionar uma remuneração adequada e, como tal, mais robusta do que o mero
somatório das parcelas tabeladas no referido diploma de 2004.
E por outro, dirige-se uma mensagem de apelo ao advogado, que actua no âmbito do acesso
ao direito, para reforçar que a aceitação de defesa de uma vítima de violência doméstica seja
feita com apreço pela elevada disponibilidade e competência inerente à situação, pelas razões
já apontadas. Recomenda-se, assim, a recusa da nomeação para patrocínio oficioso pelo advo-
gado que pretenda somente cumprir “pelo mínimo” as suas obrigações legais e deontológicas.
Em respeito pelo sentido de humanismo que a advocacia deve perseguir, não soçobram dúvi-
das que, se há pessoa que carece de um apoio jurídico extremosamente afincado e balançado
para o máximo empenho profissional, uma dessas é a vítima de violência doméstica.
Não se almeja com o presente ensaio justificar-se que a violência doméstica passe a
integrar o rol de especialidades da advocacia, embora, a admitir-se futuramente esse cená-
rio, antevê-se que representaria um passo institucional para afirmar a advocacia como pro-
fissão baluarte na tutela dos direitos, liberdades e garantias fundamentais da vítima.
É certo que esta prossecução combina, por si só, com o espírito e missão da advocacia, de
todo o modo, a dignidade associada a esta nobre profissão está, permanentemente, sujeita
a teste. E uma causa desta natureza exige sempre que o advogado abrace afincadamente a
tutela da vítima dado que é o caminho necessário percorrer para erradicar a desigualdade,
a privação individual e a arbitrariedade que tortura a mesma.
É consabido que são múltiplos os profissionais indispensáveis à assistência e protec-
ção da vítima de violência doméstica. Porém, defende-se que a obtenção do comum senti-
mento de justiça que a vítima persegue, envolve necessariamente um apoio executado por
advogado expertise em violência doméstica. Deve-se, assim, encarar que o caminho rumo à
máxima prevenção e repressão de violência doméstica passa pela especialização dos recur-
sos que cooperam para amparar a vítima, inclusive o advogado.
FONTES
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Protocolo n.º17/2000, 22 de Maio de 2000.
Regulamento n.º204/2006, 30 de Outubro de 2006.
Regulamento n.º15/2004, 5 de Abril de 2004.
Regulamento n.º9/2016, 6 de Janeiro de 2016.
Deliberação n.º1004/2016, 20 de Junho de 2016.
Jurisprudencial
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no processo n.º1290/12.1PBAVR.C1, de 29/01/2004.
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo. n.º182/06.8TAACN, de 19/11/2008.
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no processo n.º663/16.5PBCTB.C1, de 07/02/2018.
Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no processo n.º639/08.6GBFLG.G1, de 15/10/2002.
Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no processo n.º2255/15.7T9PRT.P1, de 12/10/2016.
Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no processo n.º201/16.06GBBCL.G1, de 06/02/2017.
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no processo n.º3/16.0PAPST.L1-9, de 01-06/2017.
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º176/11.1SLPRT.P1, de 26/09/2012.
Outros documentos
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portugal.gov.pt/download-ficheiros/ficheiro.aspx?v =ad5c fe37-0d52-412e-83fb-7f098448d ba7.
Entidade Reguladora Para a Comunicação Social – Representações da Violência Doméstica nos telejornais de
horário nobre, disponível em: https://www.flipsnack.co m/ERCpt/representa-es-viol-ncia-dom-stica-nos-
telejornais-de-hnobre/full-view.html.
Governo da República Portuguesa – Dados Trimestrais | Violência Doméstica, disponível em: https://www.
portugal.gov.pt/download-ficheiros/ficheiro.aspx?v=8ed0 c295-d1c7-4c67-be38-a179413ade57.
União de Mulheres Alternativa e Resposta, Relatório do Observatório de Mulheres Assassinadas de 2018,
disponível em: http://www.umarfeminismos.org/images/stories/ oma/Relat%C3%B3rio_OMA_2019.pdf.
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ea efetividade da norma – A (Re)emergência
daquestão ressocializadora
1
Fostering the validity and the eectiveness of law
– the (re)emergence of the rehabilitation issue
INÊS FARINHA
inesimoesf@gmail.com
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
January Janeiro–30
TH
June Junho 2020 · pp. 142‑158
DOI: http://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.1.6
Submitted on March 23
th
, 2020 · Accepted on June 4
th
, 2020
Submetido em 23 de Março, 2020 · Aceite a 4 de junho, 2020
RESUMO Os polos dinamizadores da execução da pena de prisão, que encontram na
proteção de bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade o seu expoente máximo,
continuam a ser a pedra angular do sistema penal. Contudo se o legislador se mostra fiel
ao ideário ressocializador, por outro lado, o paulatino desajustamento da cena carcerária
desvirtua a ratio essendi da aplicação da pena privativa da liberdade. A crescente taxa de
encarceramento que se tem verificado nos últimos anos aliada à replicação da deviance
criminógena no espaço carcerário, especialmente em Portugal, faz com que grassem vozes
a favor do desencarceramento, dando primazia a penas não privativas da liberdade. Da
sintomatologia registada, e positivada em relatórios e estudos internacionais e internos,
verifica-se uma “síndrome de decalque”, dado que os muros não conseguem filtrar os
fenómenos desviantes, ou, pelo menos, não têm almejado tal desiderato. É na especial
atenção ao cidadão privado da sua liberdade que se encontra o ponto ótimo de análise
para justificar a secundarização que tem vindo a ser dada à reintegração do indivíduo na
sociedade.
1 O presente trabalho foi elaborado no âmbito da unidade curricular do 1.ºsemestre do Curso de Doutoramento
em Direito na Universidade Autónoma “Direito: da norma ao procedimento e à fase aplicativa, lecionada pelo
Professor Doutor Manuel Monteiro Guedes Valente, a quem muito agradecemos os contributos académicos e
devemos os ensinamentos e, bem assim, os comentários críticos aquando da exposição oral do presente tema
em aula.
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PALAVRASCHAVE Sistema Punitivo, Prisão, Vigência, Eficácia, Reintegração, Tratamento,
Reincidência.
ABSTRACT The dynamic poles underlying the prison sentence enforcement, which find in
the legal assets protection and rehabilitation of the incarcerated its maximum expression,
are still the heart and soul of the penal system. However, if the legislator stands faithfully
committed to the principle of rehabilitation, on the other hand the gradual inadequacies
indoors distort the “ratio essendi” of the prison sentence enforcement. The incarceration
rate increase observed over the past few years and the the growing massification of criminal
deviance inside the prison walls, especially in Portugal, has led some enthusiastics to
believe in the “power of release” rather than the opposite, giving way to the non-custodial
sentences. Analysing the symptoms derived from international and domestic reports and
studies, one may recognise “a tracing syndrome” only illustrated by the total incapacity
of the prison walls to filter deviant phenomena. Focusing on the secluded men is the best
starting point to justify the lack of attention given in the field of reintegration back in the
society.
KEYWORDS Punitive System, Prison, Validity, Effectiveness, Reintegration, Treatment,
Recidivism.
I. Da atualidade do tema – notas introdutórias
Os fins das penas, no seio do estudo do direito penal substantivo puro sempre se mostrou
uma matéria votada a constante metamorfose.
À semelhança daquilo que B já idealizava há mais de dois séculos atrás, a finali-
dade da pena convoca e provoca, em pleno século XXI, novos olhares e sobretudo exige uma
profunda reflexão que ultrapassa a mera ratio legis de tal finalidade.
Face à corrente securitária que tem perpassado o direito penal, e mais ainda, diga-se,
naquele que é o seu epílogo – o da execução da pena – mostra-se vital aproximar os polos
dinamizadores que constituem a execução.
Pelo que, se por um lado se visa a proteção de bens jurídicos – prevenção geral – e a
manutenção da paz social, por outro lado, e, concomitantemente, pretende-se exaltar no
homem agrilhoado a sua remição, para que não regresse ao mundo do crime.
É precisamente aqui que tentaremos demonstrar a contradição em que se vê embre-
nhado o artigo 40.º, n.º1 do Código Penal.
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Se de uma banda o legislador se mostra fiel ao ideário ressocializador, promovendo uma
maior atuação sobre o espírito e menos sobre o corpo
2
, o que se repercute no acervo legislativo de
execução de penas português no seu todo, de outra banda, o paulatino desajustamento da
cena carcerária desvirtua a ratio essendi da aplicação da pena privativa da liberdade.
O fenómeno penitenciário, como o ponto de chegada – e simultaneamente como ponto
de partida – do iter (processual) penal do cidadão delinquente, deve, como bem salienta
A M R
, “privilegiar a eficácia e concorrer para a rentabilidade da
justiça, procurando evitar ou atenuar a estigmatização dos reclusos – impedir a dessociali-
zação e promover a não-dessocialização”.
O drama do homem recluído, muitas vezes secundarizado pelo sistema, encontra-se
agonizado na anomia organizada de uma estrutura em confronto consigo mesma, repercu-
tida nas crescentes tensões que abalam o desiderato ressocializador.
A crescente taxa de encarceramento que se tem verificado nos últimos anos aliada à
replicação da deviance criminógena no espaço carcerário, especialmente em Portugal, faz
com que grassem vozes a favor do desencarceramento, dando primazia a penas não priva-
tivas da liberdade.
O intervalo descompassado que neste ensaio se pretende afinar, visará (tanto quanto
nos for possível) encurtar o caminho entre a postulação da vigência da norma e a efetivi-
dade da mesma, reverberada no modelo ressocializador.
Cientes de que há (ainda) um longo caminho a percorrer para a plena e efetiva recons-
trução do fim último ínsito aos fins das penas, concluímos, na esteira de Z, que
a prevenção especial de ressocialização é o único fim das penas admissível num Estado de
Direito democrático e social”
4
.
II. Uma brevíssima aproximação ao problema ou uma leitura kelsiana do
artigo 40.ºdo Código Penal
A vigência, como a definiu H K
5
, é a existência específica de uma norma. Reconduzin-
do-se à ideia de validade, o que por sua vez se projeta naquilo a que aquele autor caracteriza
2 Acompanhamos aqui o que nos ensina Beccaria sobre os fins das penas. B, Cesare – Dos Delitos e das
Penas. 2.ª Edição. Tradução do italiano Dei Delliti e delle Pene de José de Faria Costa. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2007, p.85.
3 R, Anabela Miranda – Novo Olhar Sobre a Questão Penitenciária. 2.ªEdição. Coimbra: Coimbra Editora, p.9.
4 Z, Eugenio Raúl – Tratado de Derecho Penal. Parte General- Tomo I. Buenos Aires: Ediar, 1998, pp.70-72.
5 Nas palavras de Hans Kelsen, “com a palavra “vigência” designamos a existência específica de uma norma. (...) Se
designamos a existência específica de uma norma como a sua vigência, damos desta forma expressão à maneira
particular pela qual a norma – diferentemente do ser dos factos naturais – nos é dada ou se nos apresenta. In
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por “dever-ser
6
, uma norma tem de conter em si mesma um referente superior que a legi-
tima e a densifica para que possa ser exigida como válida
7
.
Neste sentido como bem referencia J R
, “a necessidade de cada norma estar
fundada na existência de outra norma de grau – necessariamente – superior que a autoriza
e lhe confere legitimidade, importa que o sistema normativo corresponda a uma estrutura
encadeada de comandos sucessivos, na qual cada norma de grau superior autoriza a norma
inferior”, rectius, a norma fundamental, a qual é, diz o mesmo autor “fundamento da obriga-
toriedade de cumprimento das normas constitucionais”.
O que, levado ao extremo, quererá dizer que a conduta que se extrai do ato normativo
deve ser considerada obrigatória “não apenas do ponto de vista do indivíduo que põe o ato,
mas também de um ponto de vista de um terceiro desinteressado”
9
, que se nivelará por uma
norma de valor superior
10
.
Donde, para afirmarmos que uma norma é válida, e, portanto, vigente, deverá ter um
mínimo de eficácia
11
. Como já referimos, para K, a validade (ou a vigência) de uma
norma “consiste na existência da norma jurídica, ou seja, em sua entrada regular dentro de
um sistema jurídico
12
.
Se atentarmos no teor do artigo 40.º, n.º1 do Código Penal
13
, verificamos que o seu
escopo é o de estipular as finalidades das penas. Por um lado, reconhecendo que da sua
aplicação se protegerão bens jurídicos, e que, por outro, se visará a reintegração do agente
na sociedade.
K, Hans – Teoria Pura do Direito6.ªEdição. Tradução de João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes,
1998, p.7.
6 K, Hans – Teoria Pura..., p.7.
7 Estamos aqui a referir-nos ao que Kelsen concetualiza como norma fundamental – Grundnorm – a qual é o
fundamento da obrigatoriedade de cumprimento das normas constitucionais e, por essa via, legitima todas as
normas integradas no sistema. Vide R, José Joaquim Monteiro – «A dupla perspetiva da norma fundamental
em Hans Kelsen». In: Politeia – Estudos Comemorativos dos 30 Anos do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança
Interna e dos 10 anos da Politeia, Volume I, Studia Varia, Ano X-XI-XII, 2013-2014-2015, p.221.
8 R, José Joaquim Monteiro – «A dupla perspetiva...» p.219.
9 K, Hans – Teoria Pura..., p.6.
10 O que, no caso português, encontra albergue constitucional por via do artigo 30.º, n.º5 da Constituição da
República Portuguesa, uma vez, como refere: “Os condenados a quem sejam aplicadas pena ou medida se segurança
privativas da liberdade mantêm a titularidade dos direitos fundamentais (...)”.
11 Para K – Teoria Pura..., p.8: “Uma norma jurídica é considerada como objetivamente válida apenas quando a
conduta humana que ela regula lhe corresponde efetivamente, pelo menos numa certa medida. Uma norma que
nunca e em parte alguma é aplicada e respeitada, isto é, uma norma que – como costuma dizer-se – não é eficaz
em uma certa medida, não será considerada como norma válida (vigente)”.
12 B, Eduardo – «A Justiça Kelsiana». In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 96,
p.544-545.
13 O artigo 40.º, n.º1 do CP refere o seguinte: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens
jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
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Diríamos assim que, para o artigo 40.º, n.º1 do CP se considerar válido, mormente no
que se refere à reintegração do agente na sociedade, terá de existir uma refração mínima
entre aquilo que prescreve e o fim a que se devota no plano da execução.
O que necessariamente quer dizer que a projeção do postulado na norma deverá encon-
trar pleno correspondente no campo da eficácia, in casu, ser atingida a vocação de reinte-
gração do agente que cometeu um crime, para que não volte a cometer crimes no futuro.
É precisamente aqui que se situa o ponto nevrálgico da discussão.
Então, se uma norma não é eficaz (em certa medida), quer dizer que não pode consi-
derar-se válida. Há assim uma propensão, da norma (ainda que ténue), para se esgotar no
plano da sua eficácia. O que faz com que tendam a existir duas realidades que se conexio-
nam e se relacionam complementarmente.
Como veremos não é inteiramente o que acontece no caso do artigo 40.º, n.º1, mas
podemos afirmar que em certa medida o é. E vejamos porquê.
Do ponto de vista do dever ser, a eficácia do sistema prisional apenas se verificaria se o
postulado do ideário ressocializador ou reintegrador lograsse uma plena efetivação, ou seja,
que através da aplicação da pena o agente interiorizasse o valor dos bens jurídico-penais
violados com a prática do crime.
Como bem ressalva N C

a execução das penas deveria ser o mais impor-
tante pilar da política criminal, pois é nele que convergem, de modo pleno, as grandes fina-
lidades do processo penal”. Porém, como se tem verificado, a execução das penas tem sido
pouco valorizada e parcos investimentos têm sido feitos do ponto de vista financeiro e dou-
trinal, muito por conta das características que modelam todo um sistema completamente
apartado do seu fim.
A privação da liberdade de um qualquer indivíduo é a ultima ratio do sistema punitivo,
que deve centrar-se na construção “do homem novo”, com vista a reintroduzi-lo mais tarde
de novo na sociedade, apto a dirigir a sua vida sem a prática de crimes. Assim, pode falar-se
de uma finalidade de prevenção da reincidência
15
.
14 C, Nuno – «A Política Criminal para a execução das penas e medidas uma ideia para uma década». In:
Revista Julgar, n.º28, 2016.
15 No preâmbulo do C.P. de 1995 (alterado pelo Decreto-Lei n.º48/95, de 15 de Março) pode ler-se a este propósito
o seguinte: “A realização dos ideais de humanidade, bem como a reinserção social assinalados, passam hoje,
indiscutivelmente, pela assunção do recluso como sujeito de direitos ou sujeito de execução, que o princípio do
respeito pela sua dignidade humana aponta de forma imediata. (...) Assinala-se, portanto, um decisivo movimento
de respeito pela pessoa do recluso que, reconhecendo, a sua autonomia e dimensão como ser humano, assaca
à sua participação na execução um relevantíssimo papel na obra de inserção social, em que não só a sociedade
como também o recluso são os primeiros interessados”
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III. O Desiderato da (Re)socialização – uma questão nova ou uma velha
questão?
O ideário da ressocialização não é de todo uma questão hodierna. É, como veremos, uma
verdadeira doutrina com plena aplicação, pelo menos, em Portugal, desde o Código Penal
de 1982 e que continua a modelar a forma como olhamos todo um sistema que se esgota e
se remodela nesta mesma base.
Concordamos que tal modelo, e dizemo-lo com M A
16
, “não trata de defender
a sociedade contra os delinquentes porque são perigosos, mas de defender estes, porque
estão em perigo, socializando-os”.
O fim ínsito à prevenção especial, é o de que, havendo um desvio aos cânones valorati-
vos comunitários, aquando da prática do crime, se isole o indivíduo do meio em que “socia-
liza, do “caos” societário a que está exposto, confinando-o a um outro meio ambiente onde
reaprenderá, querendo, a adquirir tais cânones, para ser, in fine, “devolvido” à sociedade,
como ser (re)socializado.
E reafirmamos esta voluntas
17
, porque precisamente, depende de uma adesão livre do
sujeito recluído. De tal sorte que, se não quiser aderir à sua própria ressocialização, o indi-
víduo não é obrigado. E mesmo, a não aplicação do efeito catalisador da ressocialização não
pode desvirtuar o que se envida com a aplicação de uma pena de prisão.
Donde, é precisamente a forma como este mesmo mecanismo é, ou está a ser modelado,
que aqui pretendemos colocar em crise, porque, como veremos está profunda e inapelavel-
mente em crise. Mas aqui voltaremos oportunamente.
Até agora, podemos afirmar que o sistema de execução de penas tem vindo a fazer um
caminho de melhoramento, sob o timbre que desde o século XIX, vem consolidando toda a
sua prática – o da recuperação do delinquente
18
.
Contudo, nem sempre assim foi. Desde meados do século XX que a ressocialização foi
colocada em crise e há vários autores
19
que nos meados daquele século já vinham apon-
tando uma certa descrença no modelo de encarceramento institucionalizado. Isto porque
16 A, Marc – A nova defesa social Tradução Osvaldo Melo. Rio de Janeiro: Forense, 1979.
17 Como não deixa de registar Anabela Rodrigues, o princípio do tratamento voluntário “é um princípio que não
pode deixar de se fazer valer, dado o perigo que para os direitos fundamentais do recluso representa a imposição
de um tratamento coativo. (...) O “direito a não ser tratado” é parte integrante do “direito de ser diferente” que
não pode ser posto em causa nas sociedades pluralistas e democráticas do nosso entorno cultural” [Novo Olhar...,
2.ªEdição, p.59].
18 A título esparso podemos dizer que a posição do recluso provoca, desde logo, o dever de assegurar um núcleo
de direitos que lhe não podem ser assacados por razões ligadas à execução. Por isso a previsão de uma esfera de
direitos e de garantias é a base fortificada do caminho para a ressocialização.
19 Referimo-nos aqui a Moritz Liepmann e Max Grünhut, citados por L, André Lamas – «Ressocializar, hoje?
Entre o “mito” e realidade». In: Revista do Ministério Público, 156, dezembro de 2018.
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face às elevadas taxas de criminalidade, não se lograva alcançar uma proporcional descida
da reincidência.
A adensar a este estado de coisas, o artigo de MWhat Works – Questions and
anwers about prison reform
20
, veio colocar em perspetiva o modelo ressocializador, defen-
dendo que os programas desenvolvidos em meio prisional não logravam demonstrar a efi-
cácia dos métodos de “tratamento” aplicados aos reclusos, acabando por concluir essencial-
mente que os programas de educação eram incipientes, as terapias não eram aplicadas com
competência e a supervisão e aconselhamento prestados aos reclusos não era suficiente,
afirmando mesmo que não existia um “full-hearted commitment to the strategy of treatment
21
.
Todavia, se a teoria do “nothing works” marcaria um período histórico com maior impacto
nos EUA, a verdade é que tal estudo não abandonava in totum uma visão reabilitadora, que
poderia ter resultados positivos na diminuição da reincidência.
A questão, volvidos mais de quarenta anos, situa-se precisamente, na densificação da
matriz ressocializadora do sistema prisional português, e, essencialmente, para onde cami-
nha.
Neste sentido podemos afirmar que a ressocialização se encontra num impasse, digla-
diando-se entre a sua função garantística
22
, seu propósito, e a nova demanda securitária
que define comportamentos e exige a eficácia do sistema punitivo.
A fase de execução não se pode mostrar arredada daquilo que são os novos fenómenos
e formas de delinquir. O surgimento da sociedade do medo, de permanente vigilância, do
futuro incerto inaugurou aquilo que já antes na obra Leviatã havia sido propugnado de que
“cada homem é inimigo de cada homem”
23
.
E nós, somos forçados a perguntar. E as prisões, neste novo binómio segurança-garan-
tismo, em que posição as deixamos? Estaremos novamente diante de uma apregoada e irre-
versível crise ressocializadora, incapaz de se reencontrar com o seu fim último?
Na sua profunda força propulsora, o crime traveste-se e dissimula as suas fronteiras. A
par das formas de criminalidade a que chamaremos de “doméstica, somos invadidos pelo
20 A publicação desta obra corresponde a um estudo levado a cabo por Martinson e a sua equipa, em 1966, para
o The New York State Governors Special Committee on Criminal Oenders para aferir da necessidade do escopo
reabilitativo das prisões de Nova Iorque.
21 A tradução mais fiel será “dedicação total à estratégia de tratamento.
22 Esta função garantística, é nas palavras de Anabela Rodrigues, um “dever que ao Estado incumbe – e que
entronca na sua vertente social – de ajuda e de solidariedade para com os membros da comunidade que se
encontrem em especial estado de necessidade, como é o caso do recluso” [Novo Olhar..., 2.ªEdição, p.188].
23 V, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal do Inimigo e o Terrorismo: O «progresso ao retrocesso». 2.ªEdição,
Coimbra: Almedina, p.51 e ss. Para Thomas Hobbes, autor da obra “Leviatã, “são inimigos os seres humanos que
estão no estado natureza, produtor de constante perigo e ameaça à existência humana (...), o que levou Hobbes a
pensar o Direito Penal para os cidadãos maus e outro Direito Penal para os inimigos”.
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crime transnacional, pelas complexas estruturas que o sustentam e pela alucinada cum-
plicidade do etéreo espaço cibernético, que fornece as vias (ainda mais) rápidas para a sua
consumação.
Ora como veremos, tal como antevira M, em parte, há uma consabida distân-
cia entre a boa intencionalidade da lei e os efeitos práticos que o encarceramento deverá
necessariamente produzir no afastamento da reincidência.
Este intervalo descompassado entre realidades, a do crime e a da execução da pena, faz
com que a necessidade de combater a primeira, esbarre na ineficácia da segunda. Proble-
mas velhos e realidades novas, fazem do conceito de ressocialização, um problema novo
que deve ser reajustado à voracidade e transmutação dos fenómenos criminais hodiernos.
IV. O intervalo descompassado entre a vigência e a efetividade
– a(re)colocação do problema
A população carcerária portuguesa, de acordo com os dados mais recentes
24
, era de 13.440
reclusos no ano de 2017, dos quais 275 inimputáveis. O número de preventivos era de 2.105
e o de condenados fixava-se em 11.335, sendo que cerca de 93,6% era do sexo masculino e
6,4% do sexo feminino.
Ainda que o número total de reclusos tenha diminuído cerca de 339 reclusos
25
, a verdade
é que continua a existir sobrepopulação carcerária. Para se ter uma ideia mais real, no ano
de 2016 o número de reclusos por cada 100.000 habitantes era de 133, quando idealmente
deveria ser de 100
26
.
O excesso de cidadãos encarcerados dita a falência do sistema, sob vários prismas. Se
um lado, persistem problemas a montante, designadamente no próprio sistema punitivo
que não deveria estar a encarcerar tanto, por outro lado eles desaguam inevitavelmente a
jusante, dentro dos muros da prisão.
Concordar-se-á que o parque prisional se encontra hoje obsoleto face à demanda res-
socializadora, chegando ao que podemos apelidar do paradoxo ressocializador (ou, se qui-
sermos ressocialização invertida), tão afastado de si próprio. A degradação dos espaços pri-
sionais, mercê do parco investimento nesses mesmos espaços, é a base da problemática. Se
para o homem recluído o fardo da “deportação” para um espaço, onde obrigatoriamente irá
24 Informação retirada do Relatório Anual de Segurança Interna, págs. 131 e ss.
25 Idem.
26 B, Joaquim – A Flexibilização da Prisão. Coimbra: Almedina, 2018, p.261. Este fenómeno, como denota o
autor tem-se vindo a agravar desde 2013, com uma média de entrada de sensivelmente 100 reclusos/ano. Nos
anos de 2007/2008 verificou-se um decréscimo de cidadãos encarcerados fruto das alterações aos códigos penal
e de processo penal.
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estar confinado por certo período, já é, de per si, estigmatizante, a ruína desse espaço com-
portará e transportará para o indivíduo uma sensação de inerente destruição.
Como bem aponta J B sem edifícios apropriados e com uma lotação
que seja adequada para s respetivas funções, todo o esforço das pessoas que intervêm na
execução das penas será fragmentário
27
.
À questão da deterioração física dos edifícios, alia-se a questão da “contaminação do
espaço prisional”. Quer isto dizer que nos mesmos espaços comuns convivem reclusos pri-
mários, condenados por crimes menos graves ou mais graves, reclusos tendencialmente
mais geradores de distúrbios, ou outros com melhores perspetivas de reintegração.
Todo este melting pot
28
carcerário é amplamente potenciador de ambientes propensos a
gerar situações de tensão, fomentando a criação interna de tendências desviantes. Algo que
não é inteiramente uma inverdade.
Em 2017, o Corpo de Guarda Prisional procedeu à apreensão de diverso produto estupe-
faciente, aumentando cerca de 92% no haxixe e 36% na cocaína. Por outro lado, a apreensão
de armas brancas e telemóveis aumentou respetivamente 19,7% e 6,4% respetivamente
29
.
Já mais recentemente, foi alegadamente detetado o contrabando de produto estupefa-
ciente e outros objetos, como baterias e telemóveis, para dentro do Estabelecimento Prisio-
nal de Vale de Judeus através do uso de drones
30
, ou ainda também o uso de telemóveis para
veicular para o exterior imagens do interior do E.P. de Paços de Ferreira
31
.
Ora, estes acontecimentos devem ser lidos como uma expressão da desadequação do
meio prisional face ao que se pretende que ele produza sobre o homem recluído, ou seja,
fornecer-lhe os meios adequados, garantindo a criação de oportunidades para a jornada de
preparação para além dos muros que se inicia com o cumprimento da pena privativa da
liberdade.
Tudo isto diríamos nós, coadjuvado por um outro problema trespassa não só o sistema
prisional, mas, enfim, todo o sistema de justiça. A insuficiência ou a deficitária alocação de
recursos financeiros. Questão que afeta recursos humanos, instalações físicas, programas
de reabilitação, et ceterae.
27 B, Joaquim – A Flexibilização..., p.264.
28 Numa tradução mais corrente significa “caldo de culturas”.
29 Relatório Anual de Segurança Interna, p.134.
30 In Observador, “Presos recebem contrabando por drones”, publicado a 27.02.2019, https://observador.pt/2019/02/27/
presos-recebem-contrabando-por-drones/.
31 In Jornal de Notícias, “Festa de arromba de presos na cadeia filmada com telemóveis”, publicada a 10.02.2019, https://
www.jn.pt/justica/videos/interior/festa-de-arromba-de-presos-na-cadeia-filmada-com-telemoveis-10562686.
html.
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Não digamos, porém, que nenhum investimento tenha sido feito, continuando a ser
uma preocupação dos governos. Aliás, na Estratégia Plurianual de Requalificação e Moder-
nização do Sistema de Execução de Penas e Medidas Tutelares Educativas 2017/2027
32
,
constata-se essa mesma preocupação de requalificação das estruturas, da recomposição
dos recursos humanos, da valorização da oferta educativa à população reclusa, dando-se
mesmo enfoque à “eliminação do fosso que separa o direito legislado da sua aplicação efe-
tiva
33
.
A contrastar com a boa intenção das estratégias e de alguns progressos assinalados,
o Comité para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos e Degra-
dantes, na sua mais recente visita aos estabelecimentos prisionais portugueses, em 2016,
apontou a questão da sobrelotação bem como as condições degradantes e desumanas dos
estabelecimentos prisionais de Caxias, Lisboa Central e Setúbal
34
.
E é aqui precisamente que o sistema se aparta daquilo a que se projeta.
A ressocialização deve almejar uma solução eficaz que coloque em marcha um plano
que acompanhe o sujeito condenado à reclusão. Isso significa, na esteira de A E

a colocação dos meios adequados ao serviço do agente do crime para que o mesmo não
reincida.
Efetivamente, pode-se constatar que no que aos programas de educação, formação pro-
fissional e atividade laboral diz respeito, os números têm sido evidência do investimento
que tem sido feito, com uma melhoria a partir do ano de 2012 até 2016, com a percentagem
de reclusos inativos a passar de 49,5% para 27,2%, os reclusos em formação escolar de 12,6%
para 23,7% e em formação profissional de 3,7% para 6,6%
36
.
Concordamos e defendemos que tais programas são efetivamente um caminho,
podendo fazer renascer no recluso competências que não se encontravam adquiridas ou
fazendo emergir outras que não exatamente as relacionadas com o exercício diário da ati-
vidade laboral.
32 Consultar: “Olhar o Futuro para Guiar a Ação Presente – Relatório sobre o Sistema Prisional e Tutelar”, Setembro
de 2017”, disponível em https://www.portugal.gov.pt/download-ficheiros/ficheiro.aspx?v=29dd78f7-d076-4d80-
a09b-6b2c94ec09d5.
33 Consultar: “Olhar o Futuro..., p.11.
34 Tal como se refere no Relatório daquele Comité acerca da visita a Portugal que ocorreu entre 27 de setembro e 7 de
outubro de 2016, as situações dos estabelecimentos prisionais de Setúbal e Caxias eram bastantes preocupantes
quando se refere: “The conditions for certain vulnerable prisoners at both Caxias and Setúbal Prisons were particular poor,
with less than 3m2 of living space per prisoner and inmates confined to their cells for up to 23 hours per day. The authorities
are urged to provide all prisoners with a minimum of 4m2 of living space in multiple-occupancy cells and urgently to renovate
the above-mentioned deficiencies.” Disponível em https://rm.coe.int/168078e1c8.
35 E, Albin – Resozialisierung in der Krise?, citados por L, André Lamas – «Ressocializar, hoje? …». In: Revista
do Ministério Público, p
36 B, Joaquim – A Flexibilização..., p.277.
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Todavia, estudos há que sugerem “haver bloqueios a que o ensino e a formação pro-
fissional sejam efetivamente considerados como vetores importantes na reinserção social
do recluso, denunciando que em muitos casos (...) serão apenas uma forma de ocupação
durante o período de reclusão havendo por isso (...) uma taxa de sucesso ainda reduzida
37
.
V. Um Direito à (Res)Socialização
Ao longo dos tempos muitos conceitos têm sido trazidos para o campo do direito peniten-
ciário, modelando a lei escrita, conforme razões de política criminal têm vindo a ditar.
Destarte, o conceito de “reintegração” do indivíduo dá azo à multiplicação de outros
conceitos que, não raramente aludem a fins distintos, mas que podem induzir a uma certa
desorientação que colide com aquilo que pretende ser a verdadeira prevenção especial posi-
tiva.
Ressocialização, tratamento ou reinserção do recluso são conceitos que convivem no
mesmo espaço de atuação, e não só na lei, indiciando uma sinonímia que pode gerar equí-
vocos
38
, porque precisamente se situam em diferentes estádios da execução da pena. Não
queremos com isto dizer que os mesmos não tenham validade, até porque os vamos encon-
trar positivados na lei de execução de penas e os mesmos acabam por ter refração no conti-
nuum de execução.
Apesar de na Lei n.º115/2009, de 12 de outubro, não encontrarmos previsto o termo
“ressocialização, o diploma começa no seu artigo 2.ºpor referir que a execução das penas
e medidas de segurança privativas da liberdade visa a reintegração do agente na sociedade,
falando no artigo 3.º, n.º6, em tratamento prisional e reinserção social, através do ensino, for-
mação, trabalho e programas.
37 G, Conceição, D, Madalena e A, Jorge – «Crimes, Penas e Reinserção Social: um olhar sobre o
caso português». In: Atas dos Ateliers do V Congresso Português de Sociologia, Sociedades Contemporâneas: Reflexividade
e Ação, Atelier: Direito, Crimes e Dependências, disponível em https://aps.pt/wp-content/uploads/2017/08/
DPR4628adea6692c_1.pdf. Estes autores apontam ainda uma outra questão que decorre da “discrepância
verificada entre a formação ministrada e a oferta do mercado de trabalho. De facto, as entrevistas realizadas
evidenciaram a ausência de uma estratégia de enquadramento da formação profissional dos reclusos, no
sentido de lhes criar competências e de os adaptar às necessidades do mercado de trabalho actual. Predominam,
há vários anos, as actividades de mecânica, serralharia, cestaria, sapataria, encadernação, tapeçaria, horticultura,
polimento e marcenaria. Com excepção da informática, a formação, em geral, não se abriu a novas áreas, embora
existam estabelecimentos prisionais que têm “uma dinâmica diferente. Para além disso, nem sempre se atende
à identificação de carências e de necessidades especiais dos próprios reclusos, individualmente considerados”.
38 M apud L André Lamas – «Ressocializar, hoje?...». In: RMP, p. 81, descreve os “(...) variados
métodos aptos a atingir a reabilitação do recluso: a formação educativa e vocacional nas prisões, as terapias
psicológicas individuais e de grupo, (...) o tratamento médico, o sentencing, o cumprimento da pena em meio
aberto, a probation e a liberdade condicional, a intensive supervision e o tratamento comunitário.
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O conceito de tratamento prisional tem de nesta sede ser interpretado cum grano salis.
O uso da expressão na norma legal está nos antípodas da ideia de “cura”, no sentido de
intervenção num sujeito doente. Contudo, se lida por referência às medidas de segurança
privativas da liberdade, aí, parece-nos fazer mais sentido, atenta a componente de trata-
mento e intervenção.
Embora a lei coloque em traços gerais os ditames pelos quais se deve modelar todo um
sistema de execução, o leit motiv terá sempre de ser a pessoa humana sob a qual assentam
os holofotes da sua própria dignitas. O direito à socialização deverá, nestes termos, de ser
lido sob diversos prismas.
Primo, deve hoje reconhecer-se a prisão como um espaço homogeneizado e multicultu-
ral que exige diferentes tipos de intervenção, numa lógica de multi-level intervention. Quer
isto dizer que, por um lado, cada recluso exigirá uma planificação distinta
39
, atendendo ao
tipo de crime por que vem condenado, ao período de encarceramento por que vem conde-
nado, ou ao seu estado psicológico, et ceterae.
O que necessariamente traduzirá ao menos que, ultrapassada a relação especial de
poder
40
a que esteve submetido ao longo de (demasiados) anos, o recluso seja um sujeito de
direitos de forma plena.
Assim advogamos a posição de que o espaço carcerário mais do que evitar a regressão
a um estádio anterior ao da execução, promova efetivamente a não (des)socialização do
recluso. E neste sentido, na senda de C A

, a (res)socialização deverá ser “um
direito do recluso” e simultaneamente “uma obrigação para o Estado, o que se encontra
espelhado na conjugação dos artigos 2.ºe 9.º, al. d) da Constituição da República Portu-
guesa e que se giza no princípio da socialidade ou solidariedade.
Secundo, é necessário que o Estado, através da instituição penitenciária, forneça o caldo
materializador do plano de reintegração do sujeito condenado. Isto equivale a dizer que se
terá de buscar o justo termo entre o efeito que se pretende com a pena (que não deixa de ter
39 Aliás essa planificação já existe. O artigo 18.ºdo CEPMPL (Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da
Liberdade), já prevê a elaboração de um Plano Individual do Recluso, incluindo o plano individual de readaptação
e as necessidades de segurança e ordem no estabelecimento.
40 O conceito de relação especial de poder – Besonderes Gewaltverhältnis – conquistou a execução, especialmente no
período que se inicia após a II Guerra Mundial. Segundo K. Hesse, não existe uma “relação especial de poder,
mas sim “relações especiais diversificadas de sujeição, que consubstanciam um estatuto jurídico especial
(Sonderstatus). Apud Anabela R, A P J  R     
 , Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 1999, p.27.
41 A C, Manuel da – «Um (novo) Direito Penal para os (novos) Direitos Fundamentais: Aspectos
Éticos das pessoas em situação de doença». In: Actas do V Seminário Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Lisboa,
1999, p.24.
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na sua essência um caráter puramente retributivo
42
) e a humanização que deve ser o motor
de combustão do sistema penitenciário globalmente considerado.
Há até quem advogue, como é o caso de G C
43
que o Estado poderá ser
responsabilizado pela “violação, por ação ou omissão, de normas ou princípios (...) que des-
respeitem regras de ordem técnica ou deveres objetivos de cuidado, resultando na ofensa
de direitos ou interesses protegidos.
O que, transposto para a realidade que nos acerca, o Estado seria responsabilizado pela
não ressocialização do recluso, isto é, nas palavras daquele autor, “quando o serviço prisio-
nal aquando do seu internamento, não tenha garantido a materialização dos meios neces-
sários para a sua integração na sociedade.
Contrariando esta tese André Lamas Leite
44
, refere que “quanto à reinserção do agente
na comunidade, o dever do Estado cessa ao colocar ao seu dispor os meios para que ele,
querendo, o faça. Se o não fizer, não falhou a tarefa estatal, porquanto consideramos que ela
não pode ser levada tão longe. Seria farisaico aceitar-se a inexistência de uma metanoia do
condenado e, depois, afirma-se o falhanço da ressocialização quando o condenado a não
pretende.
Apesar de sermos partidários desta segunda posição há que indagar: mas o Estado coloca
ao dispor do condenado todos os meios, para que, querendo, se reintegre na sociedade?
Neste aspeto cremos que o Estado tem de procurar colocar-se não só um, mas vários
passos à frente. Acreditamos que o presente modelo de sistema carcerário existente, ainda
fechado sobre si mesmo, não logra conceder ao homem recluído o exercício de forma plena
do seu direito à socialização.
Embora existam instituições de solidariedade social
45
que prossigam o escopo de recu-
peração e reintegração de ex-reclusos numa fase posterior ao cumprimento da pena, a tran-
sição para a liberdade, é, no epílogo da fase de execução da pena, a verificação da efetividade
do modelo ressocializador, o que significará que se alcançou, de forma absoluta o ideário
preventivo-especial.
42 Bem esgrimido o conceito “retribucionista” atribuído à pena, se se pensar na pena de prestação de trabalho
a favor da comunidade, a mesma tem um caráter sancionatório efetivo, isto é, para ser atingido o grau
ressocializador na sua plenitude, há primeiro que ser cumprida a pena, no sentido da contraprestação que há-de
ser exigível da prática do crime.
43 C, Gonçalo da Costa Castanho – A Responsabilidade do Estado pelo processo de ressocialização do Recluso.
Dissertação de Mestrado – Orientação Científica do Professor Doutor Mário Aroso de Almeida, Porto, maio de 2016,
p.32 e ss.
44 L, André Lamas – «Ressocializar, hoje?...». In: RMP, p.109.
45 Exemplo de uma dessas instituições é a Associação “O Companheiro” que tem como principal atividade a
inserção pessoal, social, laboral e cultural de pessoas que se encontrem em situação de exclusão social, tentando
contribuir para a sua inclusão e reintegração societária. Informação disponível em http://www.companheiro.
org/historial.html.
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Reconhecer esta complementaridade é também por isso acreditar no poder regenera-
dor que a execução da pena pode ter sobre a persona do indivíduo recluso, nomeadamente
fornecendo ferramentas que, de outro modo, não teria, ou pelo menos muito dificilmente,
acesso.
Mas a questão coloca-se, porém, a montante, intrinsecamente ligada à relação entre a
própria penologia e a prevenção especial positiva. Não sendo nosso ensejo exaurir o tema,
contudo indagamos: será que as longas penas de prisão logram atingir o desiderato resso-
cializador? Quid iuris para as penas mais curtas de prisão?
Mas mais. Haverá tipos de crime com níveis de exigência ressocializadora diferente?
Poder-se-á falar em ressocialização a várias “velocidades”?
Reconhecendo que os efeitos da prisonização
46
serão diferentes em casos de encarce-
ramento mais ou menos longos, eles serão necessariamente diferentes quando se esteja
a falar de um condenado por homicídio e de um condenado por corrupção ativa ou por
terrorismo.
Se estes são os desafios permanentes que se colocam a este nível, mais de pode aven-
tar que, outros desafios ao sistema prisional e ao seu modelo ressocializador se colocam
quando falamos das novas roupagens que o crime enverga.
Que sistemas prisionais necessitamos para ressocializar condenados por criminalidade
económico-financeira, associação criminosa, terrorismo, criminalidade altamente organi-
zada?
A tensão criada por todas estas perguntas, e, bem assim a clivagem que o polo securi-
tário e polo ressocializador criam, cada vez mais apartam a realidade vigente da norma da
sua correspondente eficácia.
Nas palavras de A R
47
, “ao direito penal exige-se uma reflexão no
sentido tendente a tornar cada vez mais compatível o momento garantístico e o momento
funcional do magistério punitivo. Nesta mesma senda, e, cremos, que pela mesma lente
argumentativa, podemos afirmar que ao sistema punitivo deveria ser assacada uma visão
holística, por forma a enlear dois sistemas que não podem nem se devem excluir mutua-
mente.
Por um lado, reconhecer que a função judicativa não pode permanecer dissociada da
realidade prisional é reconhecer que a dimensão da execução deverá pelo menos produzir
um mínimo de evidência que ofereça suporte à fase de determinação da medida da pena.
46 Numa tradução literal do termo “prisonization, retirado do artigo “How prison changes people”, disponível em
http://www.bbc.com/future/story/20180430-the-unexpected-ways-prison-time-changes-people.
47 R, Anabela Miranda – A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade: os Critérios da culpa e da
Prevenção. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p.273.
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Neste sentido, já aquela autora
48
profetizava nos anos noventa, que “a necessidade de
uma ligação entre a determinação da medida e execução da pena é de tal forma evidente,
que tanto basta para se perceber que a empiria que se desenvolveu no terreno a execução é
vital para aquela atividade”.
Pelo que o próprio artigo 70.ºdeveria contemplar nesta lógica sequencial, uma alusão
expressa às necessidades de (res)socialização que face à prática de certo tipo de crime se
impõem. Retirar essa dimensão à determinação da medida concreta da pena é retirar a sim-
biose que uma e outra fase devem assumir no restabelecimento da paz social e da futura
reintegração daquele indivíduo na sociedade.
VI. Conclusões – notas finais
“Walls are terrible but man is good”
B
49
Platão, no seu Protágoras, afirmava o seguinte: “Quando na inflicção das penas se procede
acertadamente, o castigo não se applica por causa da falta perpetrada, pois é impossível
impedir o mal consummado, mas para obviar a uma falta futura, afim de que o réu não
reincida e sirva de exemplo às testemunhas do seu castigo
50
.
O ponto de partida do legislador penal na modelação jus-valorativa do artigo 40.º, n.º1
repousa no princípio da dignidade da pessoa humana, o qual traz, para o campo da execu-
ção da pena, um outro, que postula a manutenção da titularidade dos direitos fundamen-
tais, onde encontra albergue, a teoria da prevenção especial positiva.
É na especial atenção ao cidadão privado da sua liberdade que se encontra o ponto
ótimo de análise para justificar a secundarização que tem vindo a ser dada à reintegração
do indivíduo na sociedade.
O rumo voraz dos acontecimentos que temos testemunhado, especialmente nas ten-
dências criminógenas, na transnacionalização da fenomenologia do crime e do seu multi-
facetado e intrincado iter, devem fazer suscitar nos doutrinadores que tipo de prisões que-
remos e que homens (res)socializados precisa a sociedade. Mas não estará a sociedade ela
própria agrilhoada, numa crise identitária? De onde devem partir os ditames axiológicos?
48 R, Anabela Miranda – A Determinação da Medida da Pena…, p.275.
49 B apud F, Michael – «Complete and Austere Institutions». In: Imprisonment, The International
Library of Criminology, Criminal Justice & Penology, 1999.
50 C B, António D’Azevedo – Estudos Penitenciarios e Criminaes, Lisboa, 1888.
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De fora para dentro, ou de dentro para fora dos muros? Questões que permanentemente
nos assolam e que exigem aturado labor científico para respostas se imponham.
Da sintomatologia registada, e positivada em relatórios e estudos internacionais e
internos, verifica-se uma síndrome que poderíamos apelidar de “síndrome de decalque,
dado que os muros não conseguem filtrar os fenómenos desviantes, ou, pelo menos, não
têm almejado tal desiderato.
Em Portugal todos os dias se vêm multiplicando casos de efetiva transgressão de nor-
mas de segurança e da legalidade dentro dos estabelecimentos prisionais, tornando os
muros invisíveis para a perpetuação do crime, e deitando por terra qualquer intento para a
paralisação do ato criminoso.
Se em face do último relatório sobre o sistema prisional e tutelar de 2017, ressalta a boa
intenção em aproximar o direito legislado e sua aplicação efetiva, a verdade é que o estado
de coisas, talqualmente fomos descrevendo, entorpece e delapida aquilo que é o fim último
da instituição penitenciária – o da reintegração do agente, para que possa voltar à sua vida
regular sem a mácula que até ali carregou e sem o intento de voltar a cometer crimes.
Aqui chegados, afigura-se estabelecer um renovado ponto de partida. Para que pontos
de chegada sejam construídos e plenamente alcançados.
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Relatório do Comité para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos e Degradantes,
disponível em https://rm.coe.int/168078e1c8
Relatório do Comité para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos e Degradantes,
disponível em https://rm.coe.int/168078e1c8
Site:
http://www.companheiro.org/historial.html
ARGUIÇÕES
TESES DOUTORAMENTO
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O exercício do direito fundamental
demanifestação: a ingerência pelas
forçasdesegurança*
The exercise of the manifestation fundamental right:
interference by security forces
PAULA VEIGA
1
pveiga@fd.uc.pt
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
January Janeiro–30
TH
June Junho 2020 · pp. 160‑171
DOI: http://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.1.7
Submitted on October 6
th
, 2019 · Accepted on June 4
th
, 2020
Submetido em 6 de outubro, 2019 · Aceite a 4 de junho, 2020
Apresenta-se a provas públicas para a obtenção do grau de Doutor em Ciências Jurídicas,
pelo Departamento de Direito da Universidade Autónoma de Lisboa, a Mestre Ana Maria
dos Santos Batista Robalo, com uma Tese intitulada O exercício do direito fundamental de mani-
festação: a ingerência pelas forças de segurança.
Começo por agradecer à Universidade Autónoma de Lisboa, na pessoa do Presidente
deste Júri e Reitor desta Instituição, Professor Doutor José Amado da Silva, o convite que
me endereçou para estar aqui hoje – é uma honra –, apresentando os cumprimentos e
um agradecimento da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Cumprimento,
igualmente, os meus colegas de júri, Professores Doutores André Ventura, Manuel Guedes
Valente e Nuno Poiares.
Dirijo-me, agora, à candidata, Mestre Ana Robalo, dizendo-lhe que foi um gosto espe-
cial voltar a cruzar-me com estas matérias que tanto interessam à polícia, após a minha (já
distante) passagem pelo Ministério da Administração Interna, nos anos de 1998 e 1999,
momento em que lidei muito com as preocupações da segurança.
Tem a candidata um longo percurso na Polícia de Segurança Pública, que começou no
ano de 1990, onde tem obtido, genericamente, uma classificação de serviço de Muito Bom.
Em 2008, concluiu a Licenciatura em Direito, e em 2010 tornou-se Mestre em Direito, na
1 Doutora em Direito pela Universidade de Coimbra. Professora Associada da Universidade de Coimbra, onde
leciona Direito Constitucional e Direito Internacional Público. É membro do Instituto Jurídico da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra e integra a direção de dois Institutos: o Ius Gentium Conimbrigae (IGC) e o
Instituto Jurídico da Comunicação (IJC).
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especialidade de Ciências Jurídico-Criminais, tendo obtido ambos os graus por esta Insti-
tuição. Apresenta-se, agora, a provas públicas para a obtenção do grau de Doutor, com uma
tese composta por 314 páginas de texto e 24 de bibliografia.
Num momento histórico em que discutimos a refundação do paradigma societário,
em virtude de múltiplos factores (aumento da conflitualidade, acolhimento de pessoas de
outras culturas, expansão de novas formas de comunicação por via tecnológica, …) brinda-
-nos a candidata com uma tese sobre o direito de manifestação. Trata-se indiscutivelmente
de um tema actual e sobre o qual importa reflectir. E posso adiantar que, globalmente, o
trabalho revela uma investigação séria, densa e atenta. Também se mostra geralmente bem
escrito e de leitura agradável. Detectam-se, no entanto, gralhas aqui e ali e, por vezes, a
leitura é tolhida por um menor cuidado no uso da língua portuguesa, acrescido de algumas
imprecisões, como é o caso da referenciada na p.74, em que afirma que a Constituição esta-
belece a legalidade do exercício do direito de manifestação, o que é uma imprecisão muito
grave; as constantes referências a «estrageiros» em vez de «estrangeiros», nas pp.91 e
ss., ou o «Direito Constitucional coludente», palavra que não existe, na p.188. Mas, por
razões de graduação da importância dos assuntos a abordar, vou abster-me de reproduzir
tais imprecisões (umas mais ligeiras, outras mais graves).
Posso, igualmente, adiantar que não concordo com muitas das sugestões apresentadas
pela candidata na parte final do seu trabalho, que, se me permite, entendo assentarem num
retrocesso civilizacional relativamente ao direito político-civil de manifestação. Com efeito,
parece-me que toda a tese assenta no binómio ordem/desordem, adiantando a candidata
uma série de propostas que se baseiam na ideia geral de punição da desordem, sugerindo
um conjunto de hipóteses em que existiriam ilícitos de mera ordenação puníveis com coi-
mas, bem como outras cominadas com sanções penais. Cara candidata: percebo a sua preo-
cupação com a segurança, sei que são problemas que existem e com os quais se confronta
diariamente, mas acredito que as medidas de punição que propõe teriam um verdadeiro
efeito dissuasor no exercício do direito de manifestação, com o que, de todo em todo, não
concordo. Acresce que a adopção de tais propostas traduzir-se-ia quase numa substituição
de medidas de polícia, que têm carácter preventivo, por um conjunto de medidas de coa-
ção directa e de sanções administrativas, que, pela sua natureza, têm carácter punitivo. Por
outras palavras: a adopção das suas propostas implicaria uma mudança de paradigma no
direito de manifestação. De eventuais medidas preventivas de execução coerciva apenas
quando necessárias, passaríamos para um modelo de sanções administrativas e, por isso
mesmo, repressivas no que toca ao exercício deste direito.
A minha arguição terá três momentos: apreciação formal (primeiro momento), críti-
cas na generalidade (segundo momento) e críticas na especialidade (terceiro momento),
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tomando em consideração que, sendo uma das minhas áreas de investigação o Direito
Constitucional (além do Direito Internacional Público), o meu pensamento e as minhas
críticas se centrarão, sobretudo, na articulação entre os planos constitucional e legal e já
não tanto ao nível de uma eventual consequência da não observância da lei, aspecto que
penderá mais para o campo do direito administrativo ou do direito penal.
Primeiro momento – apreciação formal:
A tese encontra-se dividida em três partes, exceptuando a introdução e a conclusão. A pri-
meira parte diz respeito ao direito de manifestação no contexto de um Estado de direito
democrático. Pretende ser uma parte dedicada ao enquadramento geral da temática. Curio-
samente, é uma Parte com um só Capítulo, embora tal seja dissonante (o que é já uma crí-
tica) com o que é dito pela candidata nas páginas 16 e ss., em que faz a afirmação da exis-
tência, nessa Parte I, de 4 capítulos. Na segunda parte é tratado o direito de manifestação
propriamente dito. E na terceira parte aborda a ingerência no direito de manifestação pelas
forças de segurança.
1) Reserva de ordem formal: Da divisão e organização do trabalho, atendendo aos
objectivos da investigação
A Mestre Ana Robalo parece buscar dois objectivos com o seu trabalho, revelados logo a
pp.5, no resumo da tese: primeiro objectivo – o direito de manifestação e a sua regula-
ção infra-constitucional, cuja lei
2
data de 1974, sendo, portanto anterior à Constituição
de 1976; segundo objectivo – o problema da ingerência no direito de manifestação pelas
forças de segurança. Encontramos, desde já, uma reserva: qual é, afinal, a lógica da sua
abordagem? É jurídico-constitucional, como parece indiciar o primeiro problema referido
ou é jurídico-administrativa, como resulta da lógica do segundo problema destacado pela
candidata?
Admitimos uma tese de doutoramento com duas lógicas de abordagem distintas. Não
nos choca. No entanto, parece-nos que a delimitação formal do trabalho deveria ter sido
outra. Por razões de ordem metodológica, a candidata deveria ter dividido o trabalho em
duas partes, uma de carácter jurídico-constitucional e outra de cariz jurídico-adminis-
trativo. E teria sido fácil. Bastaria que a candidata tivesse juntado as que designa como
ParteIe II. Tal atitude ter-lhe-ia, também, resolvido o problema que lhe apontei de a Parte I
2 Para efeitos desta Arguição, usarei o termo Lei também para me referir ao Decreto-lei n.º 406/74, de 29 de agosto.
163
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ser constituída apenas por um único capítulo, que, como também já lhe referi, não corres-
ponde ao que afirma na Introdução (pp. 16 e 17).
Acresce que, no que toca à apreciação jurídico-constitucional, teria visto com bons olhos
não só uma melhor e mais clara fundamentação das situações em que a doutrina tem dis-
cutido a constitucionalidade da Lei de Manifestação e de Reunião, em virtude de ser ante-
rior à Constituição de 1976, como, também, um elenco sistematizado, ordenado e global,
de tais objeções doutrinais. É verdade que a candidata se vai referindo, aqui e ali, a alguns
problemas que vêm sendo levantados nesta sede (nomeadamente, nas pp.167, 206 e 210,
centrando-se nas análises dos Professores Doutores Jorge Miranda e Sérvulo Correia), mas
creio que, num trabalho desta natureza e com este objecto, não se teria perdido nada em
dotar o leitor desse elenco sistematizado em ponto autónomo.
Segundo momento – críticas na generalidade, em sede de apreciação
substantiva:
1) Do conceito do Direito Constitucional no Século XXI
A candidata afirma, mais do que uma vez, que a Constituição é a «lei suprema» (nomeada-
mente, nas pp.17 e 123). Não posso deixar de lhe assinalar uma crítica de fundo na concep-
ção que tem do Direito Constitucional no século XXI, com a implícita desconsideração da
importância:
de instrumentos de direito internacional que têm a natureza de normas imperati-
vas, que, inclusive, se sobrepõem ao poder constituinte, como o são a DUDH;
de instâncias internacionais a que os Estados se encontram submetidos, por adesão
a organizações internacionais. No caso concreto de Portugal, destaco, para o que
especialmente interessa no que toca ao direito de manifestação, as instâncias inter-
nacionais no quadro do Conselho da Europa.
A estas críticas acrescem a da desconsideração de que direitos fundamentais e direitos
humanos são diferentes categorias dogmáticas, a primeira é oriunda do Direito Constitu-
cional e a segunda do Direito Internacional, confusão que se denota quando alude, indistin-
tamente, a esses conceitos – direitos humanos / direitos fundamentais – na p.62.
Claro que a candidata não olvida que o direito de manifestação é um direito humano.
Logo na p.15 faz essa referência explícita. Contudo, nem analisa as dimensões protegidas
por instrumentos de Direito Internacional a que Portugal se encontra vinculado (em espe-
cial, os artigos 10.ºe 11.ºda CEDH), nem tira desse facto (o de ser internacionalmente reco-
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nhecido como direito humano) as necessárias consequências. Em concreto, foi criado, em
2010, um relator especial «on the rights to freedom of peaceful assembly and association»
no Conselho de DH, que a candidata nem sequer menciona em todo o seu trabalho.
Ainda considerando problemáticas de entendimento em termos gerais, surpreendeu-
-me o facto da candidata mencionar, em nota na p.114, e depois na p.115, que os direitos
fundamentais têm diferente valor. Não é verdade. Não é isso que a metódica dos direi-
tos fundamentais, desde que dotados de positivação constitucional, ensina, sobretudo
quando se trata de direitos da mesma natureza, como é o caso em apreço, em que a
Mestre Ana Robalo se encontrava a analisar a liberdade de manifestação vs. liberdade de
expressão.
2) Do conceito de Ordem Pública
A Mestre Ana Robalo usa amiúde o conceito de ordem pública. Com efeito, logo no resumo
da tese somos confrontados com a seguinte afirmação: «As imposições constitucionais ao
exercício do direito da liberdade de manifestação, entre outros, têm como principal objec-
tivo garantir a ordem pública e manter a paz social».
No entanto, percorra-se o texto da CRP. O conceito de «ordem pública» não aparece.
Existe, sim, «ordem» no sentido de «ordem jurídica», isto é, ordem jurídica interna vs.
internacional (por exemplo, nos artigos 8.º e 277.º) e «ordem constitucional democrá-
tica» (artigo 19.º, n.º2 – «Suspensão de direitos») ou «ordem constitucional» (273.º, n.º2
– «Defesa Nacional»). Assim, no plano jurídico-constitucional português, o conceito de
ordem pública não existe. O bem constitucionalmente protegido, quando o legislador cons-
tituinte se refere a medidas de polícia, é o da «segurança interna» (e externa) (artigo 272.º),
que não coincide exactamente com o de ordem pública. Como cláusulas gerais de polícia, da
CRP, apenas podemos retirar: a defesa dos direitos dos cidadãos e a garantia da segurança.
E mesmo no plano infraconstitucional, o conceito não é recorrente. Veja-se que a Lei
de Segurança Interna apenas a ele se refere no último artigo, relativamente ao princípio da
necessidade, além do artigo 1.º, quando se menciona a garantia «da ordem, da segurança e
da tranquilidade públicas».
Não estamos com isto a dizer que a candidata não tenha consciência de tal inexistên-
cia. Mas a referência expressa a essa não constitucionalização, que não é despicienda, só
aparece na p.236, a propósito das funções das forças de segurança, dedicando-lhe, depois a
candidata a sua atenção.
A seriedade e o rigor de uma tese de doutoramento parecem requerer que, tratando-se
de um conceito que é transversal a todo o trabalho, tal explicitação devesse ter emergido
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antes, eventualmente introduzindo uma nota de rodapé, dando a indicação do tratamento
do problema mais adiante.
Sobre esta questão, a minha sugestão irá para que a candidata fundamente a adopção
do conceito «ordem pública», além das bases doutrinais que aponta na tese (justamente a
pp.236 e ss.), também no constitucionalismo multinível. Explico-me. A «ordem pública»
é um valor juridicamente protegido pela Convenção Europeia de Direitos Humanos pelo
menos em cinco normas, como fundamento para a restrição dos direitos protegidos por
esta Convenção, pelo que se pode afirmar que é um valor a defender no âmbito do patrimó-
nio comum europeu. E aí, a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos
podê-la-ia ter ajudado. Como vê, a crítica que anteriormente lhe apontei de a sua tese ter
poucas refracções de um Direito Constitucional no século XXI não é meramente teórica,
surgindo a «cláusula de ordem pública» como um princípio de Direito Internacional que
vincula o Estado português.
O tipo de fundamentação que lhe sugiro é específica para a restrição de direitos, não
sendo uma fundamentação que radica na importação de conceitos de direito privado, como
parece decorrer dos fundamentos apontados pela candidata a pp.251 e ss., e que, por mais
valiosos que sejam, necessitam sempre de ser adaptados ao direito público.
Acresce ainda, quanto a este conceito, uma importantíssima rectificação: na p.278 refe-
re-se à ordem pública como um direito. Cuidado. Não é um direito.
3) A questão da segurança como valor a proteger e o princípio da segurança jurídica
A Mestre Ana Robalo parece confundir a segurança, enquanto valor a tutelar pelo
Estado, e as dimensões do princípio da segurança jurídica, enquanto princípio integrado
no princípio fundamental do Estado de Direito, pelo menos na perspectiva vulgarizada
pelo Professor Doutor Gomes Canotilho. Com efeito, logo na p.44 e ss. tínhamos tropeçado
com essa questão, quando a candidata se encontrava a discorrer sobre a importância da
segurança no Estado de direito. Mas confirmámos a ideia da confusão na p.260, quando,
novamente, a elucidar sobre o conceito de segurança, a Mestre Ana Robalo volta a chamar
à colação as dimensões do princípio da segurança jurídica.
Terceiro momento – reservas e perguntas na especialidade
1) Da natureza do direito de manifestação
A candidata parece oferecer-nos o entendimento de que o direito de manifestação é um
direito de natureza colectiva. Com efeito, refere, na p.35, que: este direito, e cito-a, «per-
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mite aos cidadãos, por meio de uma união exteriorizar para a opinião pública, as suas
opiniões». Igualmente, ao encetar o capítulo da «caracterização do direito fundamental
de manifestação» (pp. 71 e ss.), refere-se às manifestações aludindo a, e cito-a, novamente:
«uma demonstração popular em lugar público de duas ou mais pessoas» (p. 71). Mais
adiante, refere, ainda, que «O direito de manifestação, ou a liberdade de se manifestar, ape-
nas pode ser exercido de forma conjunta através da junção de várias pessoas» (p. 116).
No entanto, fica-me a dúvida, porque se a candidata, por vezes, nomeadamente nestas que
acabo de referir, parece entender o direito de manifestação nesse sentido, outras vezes faz
afirmações em sentido diferente, designadamente associando esse direito à liberdade de
expressão, como sucede na p.244, e, explicitamente, nas pp.53 e 84, dando inclusive o exem-
plo de Luaty Beirão (nota 72, na p.54).
É conhecida a discordância doutrinal portuguesa sobre a caracterização deste direito,
ora como «direito de reunião qualificado» (são as posições dos Professores Doutores Jorge
Miranda, Rui Medeiros e Sérvulo Correia), ora como «extensão qualificada da liberdade de
expressão» (posição defendida essencialmente pelos Professores Doutores Gomes Canoti-
lho e Vital Moreira).
Com efeito, segundo estes últimos, os direitos de reunião e manifestação são, sistemati-
camente, direitos de natureza pessoal e não de participação política e, não só, mas também
por essa razão, o direito de manifestação não é necessariamente colectivo. Ou seja, podem
existir manifestações individuais.
Peço à candidata esclareça este júri qual é afinal a sua posição, uma vez que não con-
segui encontrar uma só visão da sua parte, ainda que tenha percebido, pelo que escreve na
p.83, que, na sua opinião, o Decreto-lei 406/74, só é aplicável se estivermos perante mani-
festações de duas ou mais pessoas.
2) Da questão das compressões ao direito de manifestação por via legal
Nesta sede, a Mestre Ana Robalo e eu não temos a mesma visão. Com efeito, esclarece a can-
didata, logo na p.50, que o Decreto-lei n.º406/74, e cito: «regula o direito de manifestação,
na medida em que existe uma necessidade iminente de impor limites ao seu exercício».
Ora, não creio que uma lei reguladora tenha necessariamente de ser restritiva. De resto,
essa questão foi, desde logo, salientada (e criticada), no que se refere a esta lei em concreto,
na Assembleia Constituinte (nomeadamente, na Sessão do dia 3 de Setembro de 1975). Uma
lei reguladora pode ser restritiva, mas apenas em ultima ratio, sendo certo que entendo,
como também o faz a candidata, que as manifestações em lugares públicos terão que obe-
decer a maiores formalidades do que as que se realizem em lugares particulares. Também
concordo com a candidata quando se refere ao facto de a lei se encontrar desactualizada,
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embora já não a acompanhe no que toca às propostas feitas nas conclusões da tese, como
referi logo no início desta minha fala (pp. 298 ss.).
Mas, vamos «por partes».
Entendo que a consagrar limitações ao direito de manifestação constitucionalmente
garantido, a lei deve começar por estabelecer um âmbito de aplicação, prevendo que só se
aplica a manifestações «em lugares públicos ou abertos ao público» em que se reúnam
«Xmanifestantes», questão a que, curiosamente, a candidata não alude nas referidas conclu-
sões finais, parecendo que quer tratar todas as manifestações, independentemente do local e
do número de participantes do mesmo modo, sendo que o local e o número de participantes
são, a meu ver, aspectos determinantes para se invocar a tutela de outros bens constitucional-
mente protegidos, como o da segurança, e, por isso, para necessitar de comprimir o direito.
De resto, a Mestre Ana Robalo, na sua metódica de análise ao artigo 45.ºCRP (nomea-
damente, na p.130) deixa-nos esclarecidos, porque afirma considerar que o conteúdo subs-
tancial do direito de manifestação pode ser submetido a um regime mais restritivo do que
o do direito de reunião, embora não apresente qualquer justificação para essa afirmação.
Ainda em sede das compressões do direito de manifestação por via legal, a candidata
esquece o que dispõe a CEDH sobre este direito (nomeadamente, nas pp.154 e ss., em que
não se refere a este tratado internacional, ao qual Portugal se encontra vinculado) e que
muito a teria ajudado, vendo, nomeadamente, como tem o TEDH densificado a possibili-
dade de restrição em nome de interesses da vida estadual (por exemplo, segurança nacio-
nal e segurança pública) e da vida social (por exemplo, ordem pública) ou dos direitos de
outrem, tudo no quadro de uma sociedade democrática. Cito-lhe, a este propósito, os casos
Öllinger c. Áustria, de 2006, Bukta e outros c. Hungria, de 2007, e Alekseyev c. Russia, de 2011.
E considerando normas que permitem a restrição do direito de manifestação, devo
recordar à candidata que não estão todas no mesmo patamar hierárquico, como parece
decorrer das suas palavras na p.155. Com efeito, as restrições admitidas pela Constituição,
pela CEDH e pela lei interna estão em diferentes níveis.
De resto, deixe-me também deixar claro que, por maior respeito que tenha pelos Parece-
res da Procuradoria Geral da República, eles são isso mesmo, pareceres. Não são expressão
nem do poder constituinte nem do poder legislativo, isto é, não são nem a Constituição
nem a Lei. Assim como a jurisprudência dos tribunais não tem, no sistema português, o
valor de precedente judicial, como parece decorrer do que a candidata afirma na p.186.
3) Da questão do aviso prévio
No plano constitucional, a comunicação prévia não é um elemento constitutivo do direito
de manifestação. A Constituição é muito clara nesse sentido. Lembro o teor do artigo 45.º,
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n.º1: «Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos
ao público, sem necessidade de qualquer autorização». Entendo, assim, que toda a manifesta-
ção pacífica e sem armas, comunicada ou não às autoridades competentes, tem protecção
constitucional. Não sendo o dever de comunicação um elemento constitutivo do direito, ele
é, no entanto, uma exigência legal compreensível. Destina-se a assegurar a harmonização
entre um direito fundamental (o de manifestação) e outros direitos ou valores tutelados
pela Constituição (liberdade de circulação, segurança interna, etc.).
Já no plano legal, podemos admitir duas posturas de princípio: 1) qualquer evento decla-
rado está, em princípio, de acordo com a lei e pode ser mantido a menos que legitimamente
proibido; 2) todas as manifestações são proibidas, excepto aquelas explicitamente autori-
zadas pelas autoridades públicas. A diferença entre estas duas posturas está longe de ser
insignificante.
Parece-me que quanto mais detalhada for a lei na exigência dessa comunicação prévia,
nomeadamente com a imposição de múltiplas formalidades e de sanções para a sua falta,
mais acertadamente estaremos, ao arrepio do que a Constituição prevê, perante um acto de
autorização prévia. Nesse sentido, discordo frontalmente do que propõe na p.300, quando
refere que a lei deveria estipular que a falta de aviso prévio teria como consequência a prá-
tica de um ilícito de mera ordenação punível com coima. O fim da comunicação prévia é
preventivo e nunca repressivo ou condicionante do exercício do direito. Deverá, pois, ser
uma norma legal em branco em termos sancionatórios, sob pena de fazer «cair por terra» o
que constitucionalmente se reconhece, porque facilmente manipulável por quem concede
a «anuência» da comunicação prévia, ou seja, um obstáculo oculto ao direito de manifesta-
ção reconhecido e protegido constitucionalmente.
4) Neste contexto, permito-me relembrar dois casos apreciados pelo TEDH.
O primeiro, em 2007 (o caso Bukta e outros c. Hungria, a que já me referi), em que, apesar de
a lei húngara exigir comunicação prévia do exercício do direito de manifestação e de, por
força do não cumprimento de tal requisito, as autoridades policiais haverem interrompido
esse exercício, o Tribunal de Estrasburgo considerou que se estava perante circunstâncias
especiais, por força de um acontecimento político especial e que, portanto, exigiam o exer-
cício do direito no imediato, sob pena de perder a sua utilidade, pelo que a interrupção da
manifestação seria uma restrição desproporcional ao exercício do direito. E a lei húngara
exigia a comunicação prévia, relembro.
No outro caso, de 2008, estava em causa um cidadão contra a Rússia, em virtude da
realização de um piquete em frente a um tribunal, a fim de atrair a atenção para as vio-
lações do direito de acesso aos tribunais. A lei russa exigia a comunicação com 10 dias de
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antecedência para a manifestação, embora o cidadão só tenha comunicado 8 dias antes. O
TEDH considerou que se tratava de uma violação meramente formal de um «timelimit», o
que não havia impedido as autoridades de planearam a manifestação. Daí que tenha dado
razão ao cidadão.
Da questão da titularidade do direito de manifestação por estrangeiros
A pp.92 e ss., aborda a questão da titularidade do direito de manifestação por estran-
geiros, parecendo-me que compreendeu mal o que a Constituição da República Portu-
guesa estatui sobre este aspecto, nomeadamente pela confusão que parece surgir das suas
palavras entre o conceito de cidadania e de nacional (p. 94). Nesse sentido, gostaria de lhe
perguntar se entende que seria legítima, por hipótese (ainda que pouco provável), uma
manifestação em que apenas participem estrangeiros, considerando o que dispõe o artigo
45.º«A todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação», conjugado com o esta-
belecido no artigo 15.º, ambos da CRP.
5) Da questão do uso de certos equipamentos em manifestações
A pp.102 e ss., discorre sobre a possibilidade de uso de equipamentos de protecção em
manifestações. Contudo, não ficou claro para mim se:
admite o uso de máscaras ou de roupas especiais por manifestantes que até os pro-
tejam por parte de outros manifestantes. Se não admite, com que fundamento o faz?
defende a proibição do uso de máscaras ou similares por manifestantes por via
legal? Com que fundamento? E se as máscaras pretenderem traduzir algo para efei-
tos do direito de manifestação? Como ficará a autodeterminação do conteúdo e da
forma da mensagem?
6) Da questão da interrupção ou proibição da manifestação
A pp.189 e ss., a candidata dedica-se aos problemas da proibição e da interrupção de
uma manifestação, afirmando que nem o Código Penal, nem o Decreto-lei 406/74, estabele-
cem quais são as autoridades com essa competência.
Saliento, novamente, um problema de fundamentação do seu discurso e que gostaria
de ver esclarecido. Na p.192, alude à suspensão do exercício de direitos prevista na CRP (a
CRP prevê que não se podem suspender os direitos à vida, à integridade pessoal, à identi-
dade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroactividade da lei criminal, o direito
de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião). Em primeiro lugar, não
alcanço a razão da convocação do artigo 19.ºda CRP, já que ele nem sequer prevê a impos-
sibilidade de suspensão do direito de manifestação. Em segundo lugar, não visualizo como
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é que a partir dessa norma constitucional afirma, e cito: «Deste modo, só se apresenta
legítimo a aplicação de uma ablação preventiva no direito de manifestação em situações
extraordinárias». Quer referir-se às situações de estado de sítio e de estado de emergência?
Ou a outras situações «extraordinárias»? É que no seguimento desta afirmação passa para
a questão da possibilidade de proibição preventiva por autoridade administrativa quando
haja intenção da prática de um crime…
Ainda neste contexto, aludo a uma outra questão conexa com esta das autoridades
competentes para interferir no direito de manifestação, interrompendo-o ou proibin-
do-o. Propõe a candidata legislação a fim de legitimar a actuação policial no âmbito da
interferência no direito de manifestação, pelo facto de estarmos perante a necessidade de
ponderação deste direito com outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos.
Ora, os problemas de legitimação de uma intervenção policial neste domínio são sensi-
velmente os mesmos de outros domínios, pelo que, como bem sabe a candidata, a inter-
ferência policial deve pautar-se sempre pelo princípio da proporcionalidade e pela ideia
de que as medidas de polícia devem ter um carácter preventivo e não dissuasor, além da
obediência ao princípio da legalidade. Assim, não vejo nenhuma vantagem na criação de
legislação específica sobre esta questão. E também nesta sede pode ajudar um parâmetro
fixado pelo TEDH, designadamente no caso Barankevich c. Russia de 2007 (em especial,
§33). O Tribunal entendeu que não bastava a mera afirmação da existência de um risco
de violência. Assim, as autoridades deveriam poder apresentar estimativas concretas da
escala potencial da agitação, a fim de «avaliar os recursos necessários para neutralizar o
risco de confrontos violentos». Por outras palavras: para o TEDH não basta o mero risco
em abstracto, é necessária a existência de estimativas concretas da escala potencial da
agitação. Talvez esta ideia a ajude a densificar as intervenções que não são meramente
reactivas, a que alude na p.289.
7) Da questão dos 100 metros exigidos pela actual lei
Na p.195 alude à situação prevista no artigo 13.ºdo Decreto-lei sobre o direito de mani-
festação e à faculdade de as impedir «em lugares públicos situados a menos de 100 m das
sedes dos órgãos de soberania, das instalações e acampamentos militares ou de forças mili-
tarizadas, dos estabelecimentos prisionais, das sedes de representações diplomáticas ou
consulares e das sedes de partidos políticos», mas refere que a autoridade administrativa
tem a faculdade de impor uma distância inferior a 100 metros. Como assim? Ao arrepio do
que estatui a lei?
Além disso, refere na p.212, que considera desnecessária a exigência de um despacho,
fundamentado em parecer prévio das autoridades competentes, para determinar que se
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respeite essa distância. Permito-me discordar, porque tal acto tem por intuito a fundamen-
tação da restrição do direito de manifestação em cada caso.
Já no que toca à coima que propõe no final do seu trabalho, em virtude do incumpri-
mento desta norma, não me choca.
8) Da questão da responsabilização dos organizadores ou promotores de
uma manifestação pelos danos materiais causados ao património público em
consequência dessa manifestação
Em matéria de responsabilização, e tomando por referência as suas propostas a pp.299 e ss.,
abster-me-ei de considerações em torno do direito penal, até por respeito ao meu colega, e
outro arguente nestas provas, Professor Doutor Manuel Guedes Valente.
A solução prevista na lei espanhola de 2005, muito contestada quer internamente, quer
ao nível europeu (com efeito, o anteprojecto desta lei foi criticado pelo Conselho da União
Europeia), tendo já sido esta lei apelidada de «lei da mordaça», mas, dizia, a solução prevista
nessa lei é a da responsabilização dos organizadores ou promotores de uma manifestação
pela prática de danos ao património público. Apesar das críticas apontadas à lei, concordo
com essa responsabilização dos organizadores ou promotores de uma manifestação (por-
que se trata de proteger outros direitos e bens constitucionalmente garantidos, nomeada-
mente o património cultural), embora só concorde na parte referente a danos materiais
causados ao património público (no sentido de monumento público ou património cultu-
ral legalmente classificado), e não da forma extensiva como parece indiciar a candidata na
p.301 (em que refere danos ao património, em equipamentos urbanos, na propriedade pri-
vada e nos bens das pessoas). Nesse sentido, gostaria de conversar consigo também sobre
esta questão.
São estas algumas das objecções que coloco à Mestre Ana Robalo como expressão do
grande interesse com que li o seu trabalho, e na convicção de que saberá dar-lhes uma res-
posta ponderada e competente.
Resta-me reiterar-lhe as maiores felicidades na dedicação à carreira, que protege a nossa
segurança, e que quis escolher.
Tem a palavra.
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O exercício do direito fundamental
demanifestação: a ingerência
pelasforçasdesegurança
1
The exercise of the manifestation fundamental right:
interference by security forces
MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE
2
manuelmonteirovalente@gmail.com
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
January Janeiro–30
TH
June Junho 2020 · pp. 172‑178
DOI: http://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.1.8
Submitted on October 6
th
, 2019 · Accepted on June 4
th
, 2020
Submetido em 6 de outubro, 2020 · Aceite a 4 de junho, 2020
Iniciamos este debate por cumprimentar os membros do júri destas provas públicas de
doutoramento em Direito da nossa Universidade: Magnífico Reitor, Doutor José Amado
da Silva, sendo uma honra estar num júri presidido pela mais alta instância académica
e científica desta academia, Doutora Paula Veiga, Professora da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, à qual dirigimos um cumprimento especial por também a consi-
derar nossa casa científica, Doutor Nuno Poiares, Professor do Instituto Superior de Ciên-
cias Policiais e Segurança Interna, instituição que cumprimento de modo especial por ser a
nossa casa mãe, e Doutor André Ventura, Professor da Universidade Autónoma de Lisboa e
Orientador desta tese de doutoramento.
Um cumprimento especial à família e à plateia, aqui presentes, como legitimando o ato
público e solene, ao qual almejaram associar-se dignificando-o e prestigiando a candidata,
Mestre Ana Maria dos Santos Robalo, que cumprimentamos e fazemos votos de que estas
provas decorram com elevação, grandiosidade e sejam um momento de felicidade acadé-
mica e científica. A nossa arguição assenta em três partes – análise global, análise formal e
1
Arguição da tese de doutoramento da Mestre Ana Maria dos Santos Batista Robalo, apresentada a provas públicas
na Universidade Autónoma de Lisboa, no dia 10 de julho de 2019.
Scientific discussion of the PhD thesis of Master Ana Maria dos Santos Batista Robalo, presented to public tests
at the Autonomous University of Lisbon, on July 10, 2019.
2 Doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa. Professor Associado da Universidade Autónoma de
Lisboa. Presidente do Instituto de Cooperação Jurídica Internacional. Professor do Programa de Mestrado e
Doutoramento em Ciências Criminais da PUC-RS e Professor Convidado da ESP/ANP – Polícia Federal – Brasil.
Advogado e Jurisconsulto.
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análise material – devendo ver nas nossas críticas motivo de aprofundamento e de espaço
de debate científico para um melhor olhar sobre o tema em questão.
Primeiro momento – Análise Global
Tema sempre atual, pertinente e que suscita curiosidade científico-jurídica tendo em conta
a data do regime jurídico – 1974 – e a sequente Constituição da República Portuguesa (CRP)
que é de 1976.
Poder-se-ão levantar questões de inconstitucionalidade superveniente, como o faz a
candidata, mas também poder-se-á considerar que uma interpretação normativa conforme
a CRP76 afastará essas questões jurídicas. É se salientar que o legislador, não obstante
vários estudos desenvolvidos sobre a temática – como os que o ICPOL promoveu nos anos
2005 a 2008, cuja publicação dos mesmos a candidata procede –, ainda não se prendeu com
esta questão ou com a necessidade de proceder a uma alteração ou a aprovação de um novo
regime.
Esta preocupação está patente no seu trabalho, mas parece-nos que se prende muito á
questão da responsabilização dos atos desviantes – administrativos, civis e criminais – do
que com a novas nuances e formas de manifestações e reuniões próprias da era digital.
Veja-se que as suas conclusões (pp. 298 e ss.) têm um foco excessivo na questão da respon-
sabilização, talvez por existir em si uma tendência positivista que a possa conduzir a um
estado de normativização da vida e do exercício de direitos ou talvez seja a sua veia mais
de polícia a tentar dar um cunho operativo e sancionador às violações normativas ou ao
desrespeito por bens e valores jurídicos de uma sociedade constitucional democrática. Vol-
taremos a este tema em breve.
Coloca questões que à partida são de resposta simples se olharmos para o quadro jurí-
dico, mas se questionarmos as próprias questões de partida, a resposta não será fácil, desde
logo porque não nos explica que dimensão de legitimidade está presente na segunda per-
gunta (pp. 21, 22 e 298): se jus normativo-constitucional ou se apenas sociológica ou se
ambas?
Em termos gerais e na linha da Professora Paula Veiga, e apesar de ter optado por um
estudo de um regime, com pouca crítica assertiva político-constitucional e criminal, mesmo
que possa dizer que estudou o modelo do Reino de Espanha, mas sem apresentar em con-
creto uma visão que avocasse a unidade do sistema considerado nos seu todo – constitu-
cional-administrativo-criminal-civil –, consideramos que, e para a descansarmos, deve ser
aprovada nestas provas de doutoramento, por a nossa apreciação ser globalmente positiva.
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Segundo momento – Análise formal
No que respeita às questões de forma, temos alguns apontamentos a fazer. Quanto à divi-
são e sistematização da tese, consideramos que devia ter algum cuidado, uma vez que a sua
tese tem 3 partes em 348pp., sendo que a parte 1 tem apenas 21pp., ao passo que a parte 2
tem 167pp. e parte 3 tem 84pp.; e apresenta-nos uma conclusão com 27pp.
Veja que a parte 1 tem apenas um capítulo com as ditas 21pp., conquanto a parte 2 tem
5 capítulos – I, 13pp, II 9pp., III 46pp., IV 31pp., e o V 66pp. – e a parte 3 tem 3 capítulos –
I33pp., II 35pp. e o III 16pp.. Existe uma assimetria quer quanto às partes quer quanto aos
capítulos. É algo que no futuro tem de corrigir.
Veja que há matérias e questões/afirmações – v. g., «falta norma de responsabilização»
(pp. 299 e ss), «falta uma norma que tipifique claramente…» (p. 306 e ss.) – que se prendem
com a sua primeira questão de partida, e que recolocou nas conclusões que deviam ter sido
tratadas antes, p.e., no último capítulo da parte 3, obedecendo assim ao princípio da ultima
ratio do Direito sancionatório – penal e administrativo sancionador. As conclusões – 21pp. –
deviam ter sido mais concisas e não expositivas, caindo na armadilha de voltar a repristinar
o teor da Ley Orgânica 4/2015 de Espanha.
Quanto ao discurso escrito, que é percetível e compreensível, nota-se, em vários
momentos,
(i) o abandono do discurso jurídico para um discurso mais policial ou sociológico –
«escolha de um bom local» (p. 85) –;
(ii) outras vezes faltam vírgulas ou estão colocadas no lugar errado (p. 300), assim
como algumas falhas de concordância (p. 145) –;
(iii) como utiliza conectores de forma menos correta no plano semântico – p.e., «toda-
via» (24vezes), quando na maior parte das vezes o sentido do discurso é «contudo»
e «mas», uma vez que não está num discurso contraditório, mas adversativo,
(iv) trata alguns autores por Professor, outros por Prof. – pp.69, 121 (n. 223), 206, 208 –,
e outros apenas pelo nome, quando devia tratar todos os autores pelo nome cientí-
fico por que são conhecidos,
(v) e, até mesmo, trata o mesmo autor de várias formas: p.e., José Joaquim Gomes
Canotilho (pp. 30 e 31) ora Gomes Canotilho (pp. 32, 69) e Canotilho (pp. 44, 78),
(vi) o modo de citar é o de nota de rodapé, mas ao longo do texto temos situações de
citação de autor/data – pp- 78, 98 e 213 –, como coloca idem, quando devia colocar
ibidem, e ainda umas vezes coloca a indicação da nota de rodapé dentro do período
frásico e outras fora do período frásico – a título de exemplo vejam-se as pp.118,
119, 120, assim como a indicação do numerário das coimas é diferenciado;
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(vii) em suma, precisa de uma revisão para lhe dar maior consistência sistemático-
-científica.
No que respeita à bibliografia/referências bibliográficas, apresenta 24pp. com entradas
doutrinárias e documentais, sendo que, mesmo havendo alguma diversificação e autores
estrangeiros, há a falta de autores como Otto Bachof, Rolf Stober, Bernhard Schlink, cujos
textos referentes aos direitos fundamentais, à atividade de polícia e à restrição daqueles,
estão traduzidos pela Gulbenkian e a Editora da Lusíada; assim como exigia-se que tivesse
tido em conta obras e estudos que utilizou atualizadas e que ateriam ajudado a compreen-
der melhor a ideia de domínio público e domínio privado dos espaços, cujo tema lhe fala-
remos de seguida.
No que respeita ao modelo de investigação da sua tese, que nos apresenta a pp.23 –
«investigação doutrinal, comparativos e o histórico» –, consideramos que não o respeitou
de todo, pois foi mais uma análise do regime vigente seguindo descritivamente a posição
de autores no que respeita à restrição de direitos e liberdades fundamentais sociais.
Terceiro momento – Análise material
No plano material, sendo que, como dissemos, o tema que nos traz é de extrema relevância
jurídica, poder-se-ia dizer que muitas questões haveria para convocar e aqui debulhar, mas
o tempo é ditador e seremos diretos e trataremos dos pontos mais cruciais e prementes que
a sua tese nos suscitou.
1. Iniciaremos com as questões de partida e que refletem a espinha dorsal da sua tese, que
apresenta a páginas 21 a 22 e depois regressa nas conclusões, pp.298 e ss.
Quanto à primeira questão, parece-nos que falta a sua situalização temporal, porque a
resposta tanto pode ser sim ou não dependendo do tempo e do lugar em que possa ser inter-
pretada e aplicada a norma. Nós, lendo a tese, sabemos que estamos a falar de um regime,
e como bem diz «em vigor», e no atual Estado constitucional democrático, mas pensamos
que devia ter sido mais específica no tempo e no espaço, uma vez que o DL 406/74, de
29de agosto, é, como nos diz, um diploma de natureza compromissória. Ou podia ter feito
um melhor questionamento tendo em conta a evolução societária, em especial tecnológica,
e um melhor aprimoramento das forças e serviços de segurança desde 1974 até aos nossos
dias.
Mantendo-nos nesta questão e na linha das suas conclusões e perguntas que retoma,
gostaríamos que nos explicasse se mantém a posição: de ser necessário um regime com
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uma positivação da responsabilização dos promotores, dos danificadores etc., como acon-
tece em Espanha.
É que na p.94, diz-nos que o «Direito português tipifica penalmente a violação de
alguns termos impostos ao direito de manifestação, que importam sanções quer para os
participantes, quer para os promotores da manifestação. Nestes, incluem-se os indivíduos
que causem danos a terceiros em consequência de atos de violência no decorrer de uma
manifestação, os quais, além da responsabilidade civil, incorrem em responsabilidade cri-
minal. De igual forma, os promotores podem ser responsabilizados, nos termos dos arti-
gos 483.ºe 490.ºdo Código Civil (Responsabilidade dos autores, instigadores e auxiliares),
mesmo que não tenham praticado diretamente atos violentos, se estiverem preenchidos os
pressupostos da responsabilidade civil». Ficamos sem saber se o Direito português – na sua
unidade sistemática – garante o direito a e de se manifestar, e tutela os direitos e valores
da comunidade. Sabemos que talvez quisesse fixar-se numa atualização (pp. 210 e 298), mas
do quê?
Ou será que pretende proceder a uma extensão da responsabilidade penal dos atos pra-
ticados pelos manifestantes aos promotores, na linha da responsabilidade penal das pes-
soas coletivas (artigo 11.º, n.º8 e 9 do CP)? É que a responsabilidade civil solidária e subsi-
diária, como sabe, já pode ser assacada por força dos preceitos do código civil.
Os danos nos bens de terceiros pode enquadrar um facto subsumível a uma tipificação
criminal, p.e p.pelos artigos 212.º, 213.ºe 214.ºdo CP, assim como a desobediência a ordem de
dispersão de reunião pública, crime p.e p.pelo artigo 304.º, como nos diz na tese. Mas ficamos
sem saber se aplica este preceito à desobediência de dispersão de manifestação ou se opta
pelo crime de desobediência, p.e p.pelo artigo 348.ºdo CP, ou se aplica a desobediência qua-
lificada prevista no Dl n.º406/74, regime jurídico dos direitos de reunião e manifestação.
Parece-nos que o olhar crítico que desenvolve entre as pp.205 e 213, seguindo sempre
de perto alguns autores, não está devidamente efetuado tendo em conta que olha para o
regime de forma separada e compartimentada, quando no seu todo o regime já soluciona
as questões que coloca. Impõe-se é um conhecimento do Direito e não apenas da norma ou
de algumas normas.
Acresce que para as questões de criminalização de condutas que lesem ou coloquem
em perigo de lesão bens jurídicos, devia convocar o princípio de reserva constitucional da
restrição de direitos e liberdades fundamentais pessoais (artigo 18.º, n.º2 da CRP), que se
impõe sempre que estamos na seara criminal.
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No que respeita à segunda questão de partida, consideramos que seria importante que
nos explicasse dois pontos que não estão devidamente esclarecidos na tese de doutora-
mento:
(a) o primeiro é se podemos falar em «interferir» ou «ingerência» das forças de segu-
rança, ou se o mais adequado juridicamente é falarmos em restrição de direito de
manifestação na linha do texto constitucional. Veja que se lermos as pp.131 a 138,
em que nos apresenta o princípio constitucional da restrição de direitos funda-
mentais, parece-nos que nos quer centrar na restrição e não na interferência ou na
ingerência, mas quendo lemos as conclusões voltamos a não entender o porquê de
não se centrar na restrição, porque ingerência das forças de segurança pode signi-
ficar ilegalidade e ilicitude da sua atuação;
(b) o segundo, é saber de que legitimidade nos está a falar quando se socorre do advér-
bio «legitimamente». Estamos a falar de uma legitimidade jus normativo-consti-
tucional ou se nos está a falar de uma legitimidade sociológica ou se de ambas:
se lermos as pp.50, 133 e 136, parece-nos que se fixa no quadro constitucional,
mas se lermos o terceiro § da p.243, pensamos que resvala para uma legiti-
midade natural (quase sociológica) nessa limitação ao exercício do direito de
manifestação – e se lermos a p.214, verificamos que resvala para a legitimi-
dade normativa.
Parece-nos que carece um pouco de explicação, uma vez que se socorreu de autores que
trabalham estas questões como Reinhold Zippelius e Guedes Valente.
2. Outro ponto crítico da sua tese é não ter procedido a uma adequada teorização e sistema-
tização dos espaços de manifestação: veja que nos fala de espaço aberto ao público, lugar
privado de acesso ao público, de lugar público como se tudo fosse e não fosse a mesma
«coisa», melhor, tivesse a mesma dimensão normativa. Veja como promove essa confusão
em dois exemplos: (i) «espaço público ou de domínio público» (p. 14) e (ii) de «o direito de
utilização dos lugares públicos e de domínio público» (p. 86). Segue a própria conflituali-
dade de 74 e a consequente imprecisão
Lamentamos que não tivesse aproveitado autores que trabalham estas matérias – Gue-
des Valente quando densifica os domínios público e privado da atuação do Estado na linha
iniciada por Harmut Maurer e Marcello Caetano – de modo a que ficássemos cientes de
que espaços está a falar.
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Hoje as forças de segurança deparam-se com duas dimensões de espaço que assenta
em domínios: domínio público (designado por outros como espaço de domínio do Estado) e
domínio privado ou não público (ou domínio de não Estado).
Os domínios públicos e privados subdividem-se em três categorias iguais: de acesso
livre ou de acesso comum (Marcello Caetano), de acesso condicionado e de acesso restri-
tivo. Gostaríamos que nos dissesse em que domínio se fixa a sua tese e em que categoria a
sua posição final tem maior relevância.
3. A Senhora candidata, na p.118, trata, citando Vieira de Andrade e José Alexandrino, de
perspetivas e de formas de análise de direitos fundamentais. Não entrando na discussão
dogmática de perspetivas e de formas, e fixando-nos nestes dois tópicos gostaríamos de
saber em que perspetiva ou em que forma se pode afirmar o direito de manifestação.
4. A Mestre Ana Robalo, nas pp.146-147, apresenta-nos uma tutela jurídica supranacional
dos cidadãos – DUDH e CEDH –, mas ficamos sem saber se ao direito de manifestação
é ou não garantida uma supranacionalidade jurídica; melhor, perguntamos se poder-se-á
afirmar que os cidadãos, no plano do direito de manifestação, é um sujeito de direito supra-
nacional e sujeito de uma jurisdição supranacional.
Por fim e antes de terminar, gostaria de saber se, quando trata do tema direito de mani-
festação face ao estado de sítio e ao estado de emergência – num campo de domínio dife-
renciado do que a Profa. Paula Veiga fala, mas quês e complementa –, o circunscreve ou não
a um estado de exceção absoluto ou relativo ou se estamos perante um estado de exceção
tácito. Quanto a este regime, consagrado no artigo 19.ºda CRP – falta-lhe o estudo da tese
de doutoramento de Jorge Bacelar Gouveia e dos textos de Giorgio Agamben.
5. Terminamos dizendo que gostamos de ler a sua tese, que levanta mais questões, mas o
tempo não permitiria que ficássemos a debater página a página. Desejamos-lhe continua-
ção de boas provas e responda apenas às questões materiais pela ordem que entender e
melhor lhe aprouver. Reafirmamos que somos da opinião de que deve ser aprovada nestas
provas de doutoramento, por ter apresentado um trabalho globalmente positivo.
Lisboa (UAL), 10 de julho de 2019
COMENTÁRIOS
DE LEGISLAÇÃO
E JURISPRUDÊNCIA
COMMENTS ON LEGISLATION
AND JURISPRUDENCE
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O aproveitamento ilícito da semelhança com
amarca de prestígio – O acórdão Gullón-OREO
The unfair advantage taken of reputed marks similarity
–TheGullón‑OREO case
RUBEN BAHAMONDE
1
rbahamonde@autonoma.pt
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
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January Janeiro–30
TH
June Junho 2020 · pp. 180‑186
DOI: http://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.1.9
Submitted on June 6
th
, 2020 · Accepted on June 15
th
, 2020
Submetido em 6 de junho, 2020 · Aceite a 15 de junho, 2020
Introdução
No dia 28.05.2020 a Sétima Secção do Tribunal Geral proferiu o acórdão que será objecto
deste comentário, onde se julgou improcedente o recurso interposto pela sociedade Galle-
tas Gullón S.A., inconformada com a decisão da Segunda Sala de Recurso da EUIPO, que
recusou o registo de uma marca da União correspondente a um signo figurativo por exis-
tir uma marca anterior registada de prestígio “OREO” da International Great Brands LLC
2
.
A relevância desta decisão resulta da delimitação da protecção conferida pela normativa
comunitária às marcas de prestígio
3
, fornecendo parâmetros concretos para identificar a
existência de uma marca de prestígio, ainda quando este prestigio advenha da utilização
conjunta com outra marca, bem como da verificação das condições ou elementos que per-
mitem constatar a existência de um sinal distintivo idêntico ou semelhante posterior, que
possa implicar uma utilização parasitária ou “free riding problem.
1 Professor Associado da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL). Diretor e investigador do Ratio Legis – Centro
de Investigação em Ciências Jurídicas da UAL.
2 Processo T-677/18 – Galletas Gullón/EUIPO – Intercontinental Great Brands (gullón TWINS COOKIE SANDWICH),
disponível em: http://curia.europa.eu/juris/liste.jsf?oqp=&for=&mat=or&jge=&td=%3BALL&jur=C%2CT%2CF&nu
m=T-677%252F18&page=1&dates=&pcs=Oor&lg=&pro=&nat=or&cit=none%252CC%252CCJ%252CR%252C2008E%25-
2C%252C%252C%252C%252C%252C%252C%252C%252C%252Ctrue%252Cfalse%252Cfalse&language=pt&avg=&cid=6573263
3 Regulamento (UE) 2017/1001 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2017, sobre a marca da
União Europeia (DO 2017, L 154, p.1).
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Antecedentes
Em 26.03.2015, a sociedade Galletas Gullón S.A. apresentou um pedido de registo de marca
da União Europeia perante o Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (EUI-
PO)
4
para a classe 30 de Nice, que corresponde, entre outras descrições, a «biscoitos»
5
. A
marca solicitada, onde se reivindicaram as cores verde, amarelo, branco, azul e castanho
escuro foi a seguinte:
Após a publicação do pedido de registo no Boletim de Marcas Comunitárias, a Interna-
tional Great Brands LLC apresentou em 07.08.2015 oposição com fundamento na titularidade
das marcas anteriores registadas seguintes:
1 2
A marca figurativa da União registada em 22.02.2010, com o n.º8566176, «Primeira
marca anterior», e a marca figurativa espanhola registada em 22.06.2009 com o n.º2845539
«Segunda marca anterior» ambas para os produtos da classe 30.
Em 07.09.2017 a Divisão de Oposição aceitou a oposição com base no n.º5 do artigo 8.ºdo
Regulamento (UE) 2017/1001 e com fundamento na marca figurativa da União n.º8566176
4 A normativa em vigor à data do pedido era o Regulamento (CE) N.º207/2009 do Conselho, de 26 de fevereiro de
2009, sobre a marca da União Europeia (DO 2009, l78, p.1), posteriormente substituído pelo Regulamento (UE)
2017/1001. Todas as referências neste documento serão feitas ao Regulamento atualmente em vigor.
5 Classificação Internacional de Produtos e Serviços para o Registo de marcas, de 15 de junho de 1957, na sua versão
actual (11.ªEd.).
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(1ª), não permitindo o registo da marca solicitada pela Galletas Gullón S.A.. Inconformada
com esta decisão a Gullón recorreu da mesma perante a EUIPO, nos termos dos artigos
66.ºa 71.ºdo mencionado Regulamento, mas a Segunda Secção de recurso desestimou-o na
sua decisão de 05.09.2018, considerando que a marca solicitada obteria uma vantagem des-
leal do prestígio da primeira marca anterior, sufragando assim o entendimento da Divisão
de Oposição. Continuando inconformada, a Gullón recorreu esta nova decisão em 19.11.2018
perante o Tribunal Geral no âmbito do processo T-677/18, cujo acórdão é objecto do pre-
sente comentário, pedindo a anulação da decisão impugnada com base na violação do n.º5
do artigo 8.ºdo Regulamento (UE) 2017/1001.
Os contornos do litígio
O n.º5 do artigo 8.ºdo Regulamento (UE) 2017/1001 estabelece especificamente a seguinte
tutela para as marcas de prestígio:
o pedido de registo de uma marca idêntica ou semelhante à marca anterior é rejei-
tado, independentemente de essa marca se destinar a ser registada para produtos ou ser-
viços idênticos, afins ou não afins àqueles para os quais a marca anterior foi registada,
sempre que, no caso de uma marca da UE anterior, esta goze de prestígio na União ou,
no caso de uma marca nacional anterior, esta goze de prestígio no Estado-Membro em
causa, e sempre que a utilização injustificada da marca para a qual foi pedido o registo
tire
6
indevidamente partido do caráter distintivo ou do prestígio da marca anterior ou lhe
cause prejuízo
7
Este preceito pressupõe a verificação cumulativa da (1) existência de semelhança ou
identidade das marcas em conflito (2) verificação de uma marca de prestígio anterior legi-
timadora da oposição e (3) a constatação da possibilidade de que um uso injustificado do
signo permita retirar uma vantagem desleal ou possa causar prejuízo ao carácter distintivo
ou prestígio da marca anterior.
6 A versão original em inglês utiliza a conjugação verbal “would take” e a espanhola a conjugação verbal “pretendiera
obtener” o que resulta mais adequado para a interpretação que é dada a este requisito. O artigo 235.ºdo DL
n.º110/2018, de 10 de dezembro (CPI) utiliza um tempo verbal mais adequado que a tradução do Regulamento,
nomeadamente “procure tirar partido”, o que muito abono para uma maior harmonização e clareza.
7 É importante sublinhar que na sua versão espanhola, o Regulamento foi traduzido fazendo referência às marcas
de «renombre» adotando para as marcas nacionais a mesma nomenclatura (artigo 8.ºda Ley 17/2001, de 7 de
diciembre, de Marcas). Já em Portugal, os artigos 234.ºe 235.ºdo CPI mantém a confusa dicotomia entre marcas
notórias e de prestígio.
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A Gullón fundamentou o seu recurso nos seguintes argumentos relativos à primeira
marca anterior: (1) Falta do carácter distintivo da forma da bolacha; (2) falta de prestígio; (3)
Inexistência de semelhança e (4) inexistência de prejuízo.
No que diz respeito ao primeiro fundamento, a recorrente afirmou que nenhum opera-
dor pode deter um direito de exclusivo sobre a forma de uma bolacha redonda, preta e com
recheio de creme branco. Considerando que o elemento distintivo da primeira marca ante-
rior se baseava na palavra “oreo” escrita sobre a forma tridimensional em causa, e não a pró-
pria forma tridimensional. No entanto, este fundamento foi recusado por estar-se perante
uma marca tridimensional anterior registada, cujo carácter distintivo resulta demonstrado
pela análise realizada aquando da sua concessão.
No que respeita à inexistência de semelhança entre a marca anterior e a marca solici-
tada, o Tribunal pontualizou que o grau de semelhança entre as marcas para aplicação do
n.º5 do artigo 8.ºdo Regulamento é inferior ao grau de semelhança exigido na alínea b)
do n.º1 do mesmo artigo, onde esta semelhança deve implicar um risco de confusão no
espírito do público. No caso dos autos, nas marcas de prestígio, não é preciso que a seme-
lhança existente crie risco de confusão, basta com que tal semelhança exista. O exame da
semelhança entre as marcas deve ser efectuado no seu conjunto tendo em consideração a
impressão que deixa na memória do público pertinente.
No caso em apreço, a marca anterior consiste num sinal tridimensional composto pela
forma de duas bolachas pretas com recheio de creme branco, formato sandwich. As faces da
bolacha têm uma borda vincada, um interior cheio de elementos geométricos e no centro
um óvalo com o elemento denominativo «OREO».
A marca solicitada consiste numa marca composta, constituída pela imagem de duas
bolachas sandwich, com uma borda vincada, um interior cheio de elementos geométricos e
no centro um círculo. Esta marca também continha as palavras “Gullón, “twins”, “cookies”
e “sandwich, assim como duas setas e diversas cores.
Neste particular, o Tribunal começou por estabelecer que, se é certo que em princípio, os
elementos denominativos são mais distintivos do que os elementos figurativos, nada obs-
taria a que no caso concreto, o elemento figurativo fosse mais distintivo do que o elemento
denominativo. Ou seja, no caso em apreço, tratava-se de estabelecer se o elemento figurativo
– imagem tridimensional da bolacha -, era aquele mais distintivo nas marcas em confronto,
ou se porventura, seria o elemento denominativo, em cujo caso a diversidade e diferença de
palavras utilizadas pela Gullón permitiriam sustentar a inexistência de semelhança entre as
marcas quando apreciada no seu conjunto. O Tribunal entendeu que os elementos predo-
minantes na marca solicitada eram as duas bolachas, a palavra twins, cookies, sandwich e a
palavra gullón. Dentro deste conjunto, as duas bolachas castanhas escuras, com bordas vin-
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cadas e faces com figuras geométricas tinham uma posição relevante na percepção da marca
solicitada. Por seu turno, na marca anterior, a designação «OREO» aparece quase disfarçada
dentro do óvalo existente na face com formas geométricas e borda vincada da bolacha san-
dwich, pelo que também neste caso, não se pode considerar que o elemento denominativo
fosse nem o único, nem o mais distintivo, nem o mais predominante.
Feitas estas considerações, em termos visuais, e apesar da diversidade de elementos
denominativos e figurativos que acompanham a imagem das bolachas controvertidas na
marca solicitada, o Tribunal sufragou o entendimento da Sala de Recurso ao constatar uma
semelhança baixa com a marca anterior. No que respeita à semelhança conceitual das mar-
cas, tendo em consideração que a marca anterior sugere uma bolacha sandwich escura com
recheio branco e faces com desenhos, tal conceito também surge na marca solicitada, podendo
constatar-se in casu, uma escassa semelhança conceitual dos sinais em conflito devido à diver-
sidade de elementos que acompanham esta última. Assim, pese embora de forma escassa ou
baixa, foi ratificada a existência de semelhança entre os signos conflituantes.
No tocante à falta de prestígio da primeira marca anterior, o Tribunal relembra que o
preenchimento deste requisito implica que a marca anterior seja conhecida por uma parte
significativa do público destinatário dos produtos ou serviços designados por ela. Para esta
aferição será relevante a quota de mercado da marca anterior, a intensidade, a difusão geo-
gráfica e a duração do seu uso, assim como os investimentos realizados para a sua promo-
ção. Neste ponto, a recorrente afirmou que da documentação junta aos autos apenas resul-
taria a constatação do prestígio da marca denominativa «OREO» e não o da marca anterior
ora em conflito. Na sua fundamentação, o Tribunal relembra que quando uma marca de
prestígio, no caso «OREO», é utilizada em conjunto com outra marca anterior figurativa
com a imagem da bolacha, esta pode adquirir o carácter distintivo e prestígio daquela, sem-
pre que o público interessado continue aferindo que os produtos de que se trate provêm
da mesma empresa
8
. Nesta sequência, e face aos documentos juntos aos autos, o Tribu-
8 Acórdão de 28.02.2019, PEPERO, original, T.459/18, ponto 131. Nesta situação, a sociedade Lotte Corp. em 21.11.2008,
solicitou o registo de uma marca da união composta pela forma tridimensional de um conjunto de bolachas tipo
palitos cobertas nas suas três quartas partes por uma camada de chocolate e o sinal denominativo PEPERO. Em
22.03.2015 a sociedade Générale Biscuit-Glico France, detentora da marca figurativa consistente numa bolacha
tipo palito coberta de chocolate nas suas três quartas partes, associada à marca nominativa MIKADO, solicitou a
nulidade da mara figurativa PEPERO, por violação do actual n.º5 do artigo 8.ºdo Regulamento Regulamento (UE)
2017/1001. Na sua decisão final, o Tribunal confirmou a anulação da marca figurativa PEPERO (com os desenhos das
bolachas palito) com base na existência da marca figurativa anterior “bolacha tipo palito coberta de chocolate nas
suas três quartas partes” uma vez que esta tinha adquirido a qualidade de marca de renome ao ser comercializada
associada à marca nominativa MIKADO, cujo renome estava amplamente acreditado. Vid. http://curia.europa.
eu/juris/document/document.jsf;jsessionid=E25AFDE5A5FA30E67AA0BA46BF7EA1A9?text=&docid=211222&pageIndex
=0&doclang=FR&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=9385440.
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nal acompanhou o anterior posicionamento da Sala de Recurso, considerando ser a marca
anterior, devido ao seu uso prolongado e intensivo, uma marca de prestígio excepcional.
Chegados a este ponto, o Tribunal debruçou-se sobre o quarto fundamento do recurso,
baseado na inexistência de vinculação entre as marcas em conflito, a existência de justa
causa para a utilização da marca posterior, a inexistência de prejuízo para a marca anterior
e a falta de obtenção de uma vantagem desleal. Antes de prosseguir para esta análise, o Tri-
bunal esclarece que para aplicação da tutela do n.º5 do artigo 8.ºdo Regulamento 2017/1001,
basta que concorra apenas uma das três infrações previstas, i.e., (1) prejuízo causado ao
carácter distintivo da marca anterior, (2) prejuízo causado ao renome desta marca, ou (3) a
vantagem desleal que seja obtida do carater distintivo e prestígio da marca.
No que diz respeito ao risco de vinculação entre as marcas em conflito, foi sufragado o
entendimento da Sala de Recurso, ao concluir que o público pertinente iria associar a marca
solicitada com a marca anterior devido aos seguintes seis factores: (1) As marcas têm um ele-
mento figurativo preponderante, bolacha preta/escura tipo sandwich com decoração seme-
lhante, (2) a primeira marca goza de prestígio, (3) o objeto das marcas é o mesmo, bolachas, (4)
por serem produtos de consumo diário os consumidores não terão um elevado nível de aten-
ção, (5) nos pontos de venda os produtos aparecerão lado a lado, e (6) as semelhanças visuais
ganharão maior relevância uma vez que o método de compra dos produtos é o auto-serviço.
Confirmada a vinculação entre as marcas, a infracção que se verificou nos presentes
autos foi o possível aproveitamento de uma vantagem desleal com a utilização da marca
solicitada. Neste ponto, a recorrente alegou que os elementos denominativos da marca
solicitada “Gullón, “twins”, “cookies” e “sandwich, assim como as duas setas permitiam
claramente que os consumidores identificassem a origem empresarial do produto, sem o
confundir com a primeira marca registada. No entanto, neste particular, embora o Tribunal
concorde com este argumento, não deixa de frisar que tais elementos denominativos não
evitam o risco de parasitismo na medida em que o consumidor irá ver o produto idêntico
da recorrente como um possível substituto do produto oferecido pela titular da primeira
marca anterior e entenderá que têm características semelhantes. Nesta situação, a recor-
rente irá aproveitar-se do prestígio e do investimento em publicidade da marca anterior
para vender o seu próprio produto
9
.
9 Vid. pontos 122 e 128 do acórdão. De relevo também o ponto 125 de onde resulta que, versando as marcas sobre
idênticos produtos e apesar da escassa semelhança entre elas mercê da diversidade de elementos introduzidos
na marca posterior, o certo é que essa escassa semelhança se circunscreve à utilização de formas tridimensionais
para representar bolachas sandwich que são muito semelhantes à marca anterior. Por outras palavras, apesar
de a recorrente ter introduzido muitos elementos diferenciadores na marca solicitada, o certo é que continuou
a utilizar uma imagem muito semelhante à da marca anterior. Assim, entendemos que se a recorrente apenas
tivesse solicitado o registo da marca composta pela imagem de duas bolachas sandwich, com uma borda vincada,
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O aproveitamento ilícito da semelhança com amarca de prestígio – O acórdão Gullón‑OREO
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Por último, e no que diz respeito à existência de justa causa, a recorrente invocava que
a recorrida não pode monopolizar a imagem de uma vulgar bolacha sandwich redonda de
cor preta, pelo que a sua utilização seria justa. No entanto, o Tribunal clarifica que existem
marcas registadas que integram imagens de bolachas sandwich redondas e de cor preta,
mas nada justificava que a recorrente imitasse e se aproximasse tanto do desenho da marca
anterior em causa.
Conclusão
Esta decisão não é inovadora, no sentido de ter sido a primeira vez que a problemática foi
analisada pelo Tribunal de Geral, mas a sua relevância decorre do contributo para a solidifica-
ção da tutela conferida aos sinais distintivos que gozam de prestígio. Com efeito, na senda já
trilhada no caso PERERO, é reforçada a estratégia empresarial de utilizar vários sinais distin-
tivos registados individualmente, denominativos, figurativos, etc., e utilizados em conjunto,
podendo verificar-se nestes casos a transferência/partilha do prestígio entre o sinal presti-
gioso e o outro com o que se associe, conferindo assim ao seu titular um maior acervo de
direitos com a tutela alargada prevista no n.º5 do artigo 8.ºdo Regulamento 2017/1001.
Outro ponto importante da decisão prende-se com o facto de clarificar que a utilização
de sinais semelhantes a outros anteriormente registados, pese embora mitigada pela adi-
ção de novos elementos, quer figurativos quer denominativos, e ainda que sendo escassa a
semelhança, pode, no entanto, ser suficiente para acionar a proteção adicional das marcas
de prestígio. A este respeito, resulta interessante verificar que bastou à gullón modificar a
imagem das duas bolachas sandwich, agora sem borda vincada e com uns desenhos inte-
riores geométricos mais claramente diferenciados para diminuir drasticamente a eventual
semelhança com a marca anterior controvertida
10
.
Por fim, se é certo que os elementos desprovidos de carácter distintivo que integram
uma marca registada ou que se refiram às características do produto, não conferem ao seu
titular o direito de proibir a terceiros a sua utilização, como poderia ser a imagem de uma
bolacha, também é certo que esse sinal figurativo pode ter ganho um merecido prestígio
alicerçado no investimento e utilização intensiva que deve ser necessariamente tutelado.
Encorajar a iniciativa privada e a actividade económica que acrescenta valor também passa
pela repressão dos oportunismos e parasitismos.
um interior cheio de elementos geométricos e no centro um círculo, para a classe em causa, a semelhança com o
signo anterior seria obscena.
10 https://gullon.es/pt-pt/producto/twins-pt/bolachas-especialidades/twins/.
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Medidas de prevenção e vigilância no contexto do surto
de COVID-19 consistentes em operações de tratamento
de dados pessoais no contexto das relações laborais
Prevention and surveillance measures in the context of the COVID-19 outbreak
consisting of operations involving the processing of personal data in the context
ofindustrial relations
1 Doutoranda e Mestre em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa “Luís de Camões”. Professora Convidada
na Universidade Autónoma de Lisboa “Luís de Camões”.
2 Comité Europeu de Proteção de Dados, «Declaração sobre o tratamento de dados pessoais no contexto do surto
de COVID-19», (https://edpb.europa.eu/sites/edpb/files/files/file1/edpb_statementreopeningbordersanddataprotection_
pt.pdf), p.2, acesso em 2020-03-20.
3 Oportunamente a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) pronunciou-se quanto à recolha de dados de
saúde dos trabalhadores a 23 de abril de 2020, de forma a garantir a conformidade do tratamento de dados de saú-
de e a reserva da vida privada dos trabalhadores com o regime geral de proteção de dados pessoais. Cfr. Comissão
Nacional de Proteção de Dados, «Orientações sobre a recolha de dados de saúde dos trabalhadores), (https://www.
cnpd.pt/home/covid19/covid19.htm), acesso em 2020-04-26.
PATRÍCIA CARDOSO DIAS
1
padias@autonoma.pt
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
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January Janeiro–30
TH
June Junho 2020 · pp. 188‑190
DOI: http://doi.org/10.26619/2184‑1845.XXI.1.10
Submitted on March 27
th
, 2020 · Accepted on June 4
th
, 2020
Submetido em 27 de mao, 2020 · Aceite a 4 de junho, 2020
No âmbito das relações jurídico laborais
o tratamento de dados pessoais de saúde
pode ser necessário para cumprimento de
obrigações legais a que o empregador se
encontre sujeito.
Estas obrigações podem resultar de
dispositivos legais relativos à segurança e
saúde no trabalho, ou inclusivamente por
razões de interesse público, tal como é o
caso de patologias/doenças ou quaisquer
outras ameaças à saúde
2
.
Contudo, há que ter presente a dis-
ciplina legal tanto em sede de direito do
trabalho e como a disciplina relativa à
medicina e segurança no trabalho não
produzem efeitos isoladamente, tendo
necessariamente de ser apreciadas conju-
gadamente com a disciplina legal relativa à
proteção de dados pessoais
3
.
No contexto da retoma das atividades
económicas e transição progressiva do
regime de teletrabalho para o presencial as
entidades empregadoras implementaram
medidas tendentes a prevenir o contágio
entre os trabalhadores (v.g. organização do
espaço de trabalho, aquisição de soluções
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alcoólicas de desinfeção, reforço dos ser-
viços de limpeza e higienização)4, desig-
nadamente, a recolha e registo de dados
relativos à saúde suscetíveis de indiciar a
infeção provocada pelo SARS-COV-2, como
seja a temperatura corporal dos trabalha-
dores.
Mera consulta como operação de trata-
mento de dados pessoais
Ora, conforme se alcança do n.º 2 do
artigo 4.º do RGPD a mera visualização
(recolha), através da medição da tempe-
ratura consiste numa operação de trata-
mento de dados pessoais porquanto incide
diretamente em relação a uma pessoa sin-
gular identificada, ressalvando a particular
sensibilidade desta categoria de dado por
respeitar à saúde, estando por isso sujeita a
um regime jurídico reforçado de proteção.
Resulta do princípio da proporciona-
lidade que o empregador apenas poderá
exigir informações de saúde/sanitárias na
medida em que o direito nacional o per-
mita, sendo que informações relativas a
esta categoria de dados deve apenas ser
utilizada para cumprir obrigações legais,
bem como para organizar o trabalho em
conformidade com a legislação nacional
5 6.
4 Para os devidos efeitos consultar mais detalhadamente a Orientação 6/2020, de 26 de fevereiro da DGS. Direção
Geral de Saúde, «Orientação N.º006/2020 – Procedimentos de Prevenção, controlo e vigilância em empresas»,
(https://www.dgs.pt/directrizes-da-dgs/orientacoes-e-circulares-informativas/orientacao-n-0062020-de-26022020-pdf.aspx),
acesso em 2020-04-26.
5 Comité Europeu de Proteção de Dados, «Declaração sobre o tratamento de dados pessoais no contexto do surto
de COVID-19», (https://edpb.europa.eu/sites/edpb/files/files/file1/edpb_statementreopeningbordersanddataprotection_
pt.pdf) acesso em 2020-03-20, p.3-4.
6 Com relevância para as relações jurídicas de trabalho as disposições conjugadas da alínea b) e h) do n.º2 do artigo
9.ºdo RGPD e n.º1 do artigo 28.ºda Lei N.º58/2019, de 8 de agosto, e artigo 16.ºe n.º1 e 2 do artigo 17.ºdo Código
do Trabalho.
Da recolha de temperatura corporal
Com efeito, atendendo à natureza do
dado que procede da recolha da tempera-
tura corporal, revelador de aspetos de vida
privada do trabalhador que pode potenciar
discriminação, não tem aquele de ser do
conhecimento da entidade empregadora,
conforme resulta das disposições conjuga-
das do n.º1 do artigo 28.ºda Lei N.º58/2019,
de 8 de agosto e do n.º1 do artigo 17.ºda
Código do Trabalho (CT), donde resulta
que a entidade empregadora não conhece
dados relativos à saúde, nem pode por isso
recolher ou registar dados de saúde do tra-
balhador, conforme é o caso da tempera-
tura corporal.
O estado de exceção, em sentido estrito
e em sentido lato, não pode per se legitimar
a adoção de quaisquer medidas por parte
das organizações, particularmente as que
se afastem dos termos previstos em lei
nacional, que apenas permite a recolha de
informação de saúde no contexto da medi-
cina no trabalho.
Conforme observado pela CNPD em
orientação adotada a 23 de abril de 2020
«(…) o legislador nacional não transfe-
riu para as entidades empregadoras uma
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função que é exclusiva das autoridades de
saúde, nem estas delegaram tal função nos
empregadores»
7
, não se justificando assim
a adoção de quaisquer atos que se encon-
trem no âmbito da competências atribuí-
das às autoridades de saúde ou, enquanto
mecanismo de autorresponsabilização, em
procedimento de auto monitorização, con-
forme se verifica na medição da tempera-
tura corporal.
Fica, em todo o caso, salvaguardada a
eventualidade de no âmbito da medicina no
7 Comissão Nacional de Proteção de Dados, «Orientações sobre a recolha de dados de saúde dos trabalhadores),
(https://www.cnpd.pt/home/covid19/covid19.htm), p.2, acesso em 2020-04-26
trabalho um profissional de saúde avaliar o
estado de saúde do trabalhador através da
recolha das informações necessárias para
avaliar a aptidão para o exercício da pres-
tação da atividade, nos termos das dispo-
sições conjugadas do n.º2 do artigo 17.ºdo
CT e da Lei N.º102/2009, de 10 de setembro,
na versão introduzida Lei N.º79/2019, de 2
de setembro relativa à segurança e saúde
no trabalho.
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DIREITO PENAL DO INIMIGO: UMA MUDANÇA PARADIGTICA
DO DIREITO PENAL
1
CRIMINAL LAW OF THE ENEMY: A PARADIGMATIC CHANGE IN CRIMINAL LAW
BERNADETE LIMA DOMINGUES
2
bernadetedomingues@yahoo.com.br
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DOI: http://doi.org./10.26619/2184‑1845.XXI.1.1.01
Submitted on March 27
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, 2020 · Accepted on June 4
th
, 2020
Submetido em 27 de mao, 2020 · Aceite a 4 de junho, 2020
1
Este artigo corresponde a um dos comentários científico da Unidade Curricular de Doutoramento em Direito
– Direito: da norma ao procedimento e à fase aplicativa –, lecionada pelo Professor Doutor Manuel Monteiro
Guedes Valente.
2 Doutoranda em Direito da Universidade Autónoma de Lisboa.
RESUMO
Percebe-se, no mundo contem-
porâneo, um claro desequilíbrio do Direito
penal que deve ser entendido como ultima
et extrema ratio e não como prima solo et
unica ratio. Impõe-se uma convergência
das atuais linhas de pensamento cientí-
fico, para fins de afirmação do ser humano
como ser de liberdade e como ser de responsa-
bilidade, consubstanciado no Direito penal
do ser humano.
PALAVRASCHAVE Direito penal do inimigo
– Direito penal garantista – liberdade e
responsabilidade – dignidade humana.
ABSTRACT In the contemporary world,
there is a clear imbalance in criminal law,
which should be understood as an ultima
et extrema ratio and not as a prima, solo et
unica ratio. A convergence of the current
lines of scientific thought is necessary, for
the purpose of affirming the human being
as a being of freedom and as a being of
responsibility, embodied in the criminal
law of the human being.
KEYWORDS Enemys criminal law –
Guarantee criminal law – freedom and
responsibility – human dignity.
As mudanças paradigmáticas do Direito
penal, na modernidade, vêm sendo objeto
de debates nomeadamente na comunidade
jurídico-criminal, onde se destacam duas
linhas de pensamento divergentes, consis-
tentes naqueles que defendem um Direito
penal humanista e naqueles que defendem
um Direito penal securitário ou policializado.
Há um claro desequilíbrio do Direito penal,
porquanto o princípio da subsidiariedade
cede lugar ao princípio prima solo et unica
ratio, concretizado no denominado Direito
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Penal do inimigo, em consenso com a teoria
de Günther Jakobs
3
. Essa teoria é rejeitada por
penalistas humanistas, a exemplo de Manuel
Monteiro Guedes Valente
4
, cuja obra funda-
menta a presente reflexão. Igualmente, neste
breve apontamento, traz-se a lume a concep-
ção sistêmica-funcional de Niklas Luhmann,
exposta por António Manuel de Almeida
Costa
5
, em obra de valor contributivo para o
pensar científico, acerca dos conteúdos nor-
mativos de opções ideológico-políticas. A tese
de Günter Jakobs tem na de Niklas Luhmann
seu ponto de partida, sendo ambas represen-
tativas do regresso ao positivismo jurídico, de
pensamento racional, onde conceitos como
dignidade humana se despem de autonomia.
O “balanço literário”, de Günter Grass
6
, obra
também em referência, conta-nos sobre os
reflexos de Auschwitz na literatura, e nos traz
à lembrança o alcance do autoritarismo, da
3 Günther Jakobs (nascido em 1937) é apontado como o atual teorizador do Direito penal do inimigo, cujas bases
filosóficas residem na guerra ao terror, ao terrorista, ao traficante de armas, de drogas, de seres e de órgãos
humanos, ao crime organizado, de entre outros. Para um estudo aprofundado do tema, JAKOBS, Günther e
CANCIO MELIÁ, Manuel – Derecho Penal del Enemigo. Tradução do alemão Bürgerstrafrecht und Feindstrafrecht
de Manuel Cancio Meliá. 2.ªEdição. Madrid: Thomson-Civitas, 2003. Quanto a uma análise crítica, VALENTE,
Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal do Inimigo e o Terrorismo – O “Progresso ao Retrocesso. 3.ªEd. Portuguesa.
Coimbra: Almedina, 2019, p.50.
4 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal do Inimigo …. 3.ªEd. Portuguesa, p.11.
5 COSTA, António Manuel de Almeida – O Funcionalismo Sistémico de N. Luhmann e os seus Reflexos no Universo Jurídico.
Coimbra: Almedina, 2018..
6 GRASS, Günter – Escrever Depois de Auschwitz. 2.ªEd. Português. Alfragide: Dom Quixote. 2008. ISBN 978-972-20-
3651-1.
7 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal do Inimigo …. 3.ªEd. Portuguesa, pp.7 e ss.
8 B C – Dos Delitos e das Penas. Tradução do italiano Dei Delitti e delle Pene de José de Faria Costa. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1998. Quanto a uma análise da dimensão iluminista em Cesare Beccaria, RAMOS,
Calebe Brito; OLIVEIRA DE SOUZA, Rodrigo Lobato e ESTRELA, Thiago Aires – «Direito Penal do Inimigo: para
além da Constitucionalidade do Direito Penal (?)».In: Manuel Monteiro Guedes VALENTE (Coord.). Os Desafios do
Direito (Penal) do Século XXI. Lisboa: Legit Edições, 2018, pp.121-144.
9 Sobre o sentido constitucional do “Estado de Direito Democrático, ver OTERO, Paulo – Direito Constitucional
Português. Vol I: Identidade Constitucional. Almedina: Lisboa, 2017, pp.51-53.
10 A República Portuguesa é baseada na dignidade da pessoa humana, na forma consagrada pelo artigo 1.ºda
CONSTITUIÇÃO da República Portuguesa.
racionalidade e do desprezo para com a dig-
nidade humana.
A crítica elaborada à teoria de Günther
Jakobs, tecida por Manuel Monteiro Guedes
Valente
7
, é um alerta sobre a transformação
que as bases do Direito Penal têm sofrido,
sobre a resistência que se deve impor ao auto-
ritarismo penal, em face da caracterização do
delinquente que se torna o “inimigo” da socie-
dade e do Estado. O que ocorre é um verda-
deiro ataque às normas penais e processuais,
de constitucionalidade duvidosa. É que, sob o
pálio da segurança pública, está-se a ver uma
inversão do Direito Penal garantista, postu-
lado desde o iluminismo penal de Cesare Bec-
caria
8
, cujas bases estão assentadas nos prin-
cípios do Estado de Direito Democrático
9
, nos
valores e garantias humanistas, na liberdade
e na dignidade da pessoa humana
10
.
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Nesse contexto, impende analisar a teo-
ria sistémica-funcional formulada por Niklas
Luhmann, cujos traçados fundamentais e
suas implicações no universo jurídico, evi-
denciados por António Manuel de Almeida
Costa
11
, demonstram como essa corrente fun-
cionalista sustentada por Günther Jakobs, em
que o juízo de antijuridicidade recai sobre o
autor, e a culpabilidade cede lugar à perigo-
sidade e à previsibilidade de sua conduta, faz
com que o Direito penal tenha como função
a proteção de suas próprias normas. Em face
disso, há de se perguntar se a teoria sistêmica
luhmanniana se aplica ao Direito Penal, se o
Direito se comporta como um sistema auto-
poiético
12
ou autorreferencial. A conclusão
é pela negativa de aplicação da teoria, por-
quanto a “neutralidade axiológica e ideoló-
gico-política
13
e a funcionalização da pessoa
que desveste o homem de sua individualidade
permitem a indiferença ao autoritarismo e,
consequentemente, permitem que a confec-
ção de normas penais fiquem ao sabor de
decisão política do legislador, sem que haja,
no organismo social, instâncias de críticas a
esse positivismo. Portanto, o Direito Penal,
11 COSTA, António Manuel de Almeida – O Funcionalismo Sistémico de N. Luhmann …, pp.42 e ss.
12 Niklas Luhmann desenvolveu a teoria dos sistemas, sob o conceito de autopoiese, ao argumento de que a
comunicação é a base operacional de uma sociedade (funcionalismo sistémico). O autor compreende o Direito
como um sistema autopoiético. Autopoiesis é um termo grego adaptado à sociologia, por Luhmann, inspirado em
dois biólogos chilenos, Umberto Maturana e Francisco Varela, conforme esclarece HESPANHA, António Manuel
O Caleidoscópio do Direito – O Direito e a Justiça nos dias e no mundo de hoje. 2.ªed. Coimbra: Almedina, 2019, p.216.
13 COSTA, António Manuel de Almeida – O Funcionalismo Sistémico de N. Luhmann …, p.76.
14 Nessa obra clássica da Sociologia, o autor chama a atenção para a percepção que se tem do mundo atual, das
sociedades, percepção essa moldada pelos perigos e riscos que nos cercam, tanto os naturais como os gerados
pelo próprio homem, a exemplo das alterações ambientais e climáticas, do terrorismo, das crises financeiras,
dos crimes transnacionais, que nos fazem buscar a segurança a qualquer preço, mesmo que em detrimento
das liberdades. BECK, Ulrich – Sociedade de risco mundial – em busca da segurança perdida. Lisboa: Edições 70, 2016.
pp.22-56.
que sabidamente sofre influências políti-
cas e econômicas, não pode ser entendido
como um sistema fechado, pois sua função
garantista está, dentre outras, em restringir
o âmbito de incidência de imposições penais
despropositadas, injustas e antidemocráticas.
Tem-se que a função essencial do Direito
penal é a de limitar o poder soberano de punir
e o excesso de ação punitiva estatal. Entre-
tanto, a percepção de risco e da “sociedade
de risco”
14
, nos tempos atuais, tem levado a
uma hipertrofia legislativa e vulgarização
das normas penais, ao aparecimento de tipos
penais de perigo abstrato que prescindem
da ocorrência de dano material efetivo, a um
recrudescimento da criminalização, com inci-
dência de penas que justificam a prevenção
geral positiva e o controle social. O delin-
quente passa a ser visto como um inimigo
da sociedade, não como um Ser Humano que
deve ser tratado dignamente, mas como uma
coisa, uma não-pessoa, em total discordância
com os direitos e garantias fundamentais do
cidadão. O Direito penal é a ultima et extrema
ratio e, como tal, a ele se aplica o princípio da
subsidiariedade, e não o da prima solo et unica
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ratio, como está a se ver. A percepção é que a
imperiosidade de se combater outros crimes
e organizações criminosas, nomeadamente o
terrorismo, o tráfico de pessoas, de drogas e
de armas, homicídios e roubos qualificados,
levou o legislador a violar nomeadamente
o princípio da subsidiariedade, e a conceder
uma tal envergadura ao Direito penal, a ponto
de elevá-lo à condição de única solução de
combate ao crime.
O que deveria ser tratado tão somente
no plano ou dimensão do ser (a exemplo, ser
negro, ser homossexual, ser judeu ou mulçu-
mano, ser pobre etc.), passou a ser dimensio-
nado no âmbito do dever-ser, em que o Direito
penal passou a centralizar-se no autor e não
no facto. A ameaça de terrorismo é apontada
como uma das causas da demanda exces-
siva por segurança e consequentemente por
legislação descomedida, dando lugar a uma
intervenção penal mais adequada à guerra
(jus bélico) e à prevenção policial
15
(mesmo
diante da prática de atos preparatórios), do
que à retribuição ética da ofensa ao bem jurí-
dico lesado.
A política criminal
16
não pode ter como
objetivo a guerra ao terror, disseminando
mais terror, sob pena de se proceder a um ver-
15 Sobre a atuação e função da Polícia, sobre os princípios regentes e a conduta policial na prossecução de suas
atividades, conferir VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Teoria Geral do Direito Policial. 5.ª Ed. Coimbra:
Almedina, 2017.
16 O Estado de Direito material social democrático assenta suas bases na dignidade da pessoa humana, sendo a
dignidade “fundamento, razão, fim e limite dos operadores judiciários na materialização da política criminal
e do direito penal material, processual e penitenciário. VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal –
Fundamentos Político-Criminais. Lisboa: Manuel Monteiro Guedes Valente, 2017, p.24.
17 GRASS, Günter – Escrever Depois de Auschwitz. 2.ªEd. , pp.11-52.
18 GRASS, Günter – Escrever Depois de Auschwitz. 2.ªEd., p.51.
19 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal do Inimigo …. 3.ªEd. Portuguesa,
pp.147-148.
dadeiro retrocesso jurídico e sócio-político.
Esse problema não pode ser subtraído à refle-
xão, não pode ser olvidado pelos operadores
do Direito.
O regime ditatorial de Hitler cometeu os
maiores excessos, fomentou a raiva e o ódio
contra os judeus, personificou a sanha puni-
tiva do Estado, por meio da concretização da
máxima de que os fins justificam os meios,
pois no ideal de purificar a raça ariana elege-
ram-se como verdadeiros inimigos do Estado,
não somente os judeus, mas os homosse-
xuais, os deficientes e todos aqueles que
supostamente eram contra o regime nazista.
Como bem diz Günter Grass
17
, em sua obra de
valor e beleza literários e de apropriada refle-
xão sobre esse passado da Alemanha nazista:
Auschwitz nos pertence, está gravado a ferro
e fogo na nossa história
18
. Esse passado de
genocídio organizado e de monstruosida-
des não pode ser esquecido, passado a largo,
muito menos significar um fim. Esse passado
serve de lição e demostra como o homem é
capaz de se autodestruir.
Concordamos com Manuel Monteiro
Guedes Valente
19
, quando nos exorta sobre
necessidade de repensar o Direito Penal, sob
a ótica do garantismo ou do humanismo,
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repensar a sua função de garantia que res-
tringe o âmbito de sua incidência e confere
uma visão mais crítica ao operador e aplica-
dor do direito, nomeadamente quanto à comi-
nação da sanção penal, que deve ser legítima
e se dar sobre uma lesão ou perigo concreto
20
de lesão.
Nesse contexto, impõe-se o questiona-
mento sobre o conteúdo das estruturas siste-
máticas e sobre a produção de leis e normas
penais, porquanto leis e normas devem ser
produzidas de acordo com critérios que jus-
tifiquem sua aplicação. Portanto, necessário
impor resistência àquela norma que não recai
sobre a ofensa a bem jurídico relevante, que
viola a dignidade da pessoa humana, prin-
cípio tão caro ao Direito Penal garantista ou
humanista.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BECK, Ulrich – Sociedade de Risco Mundial – em Busca
da Segurança Perdida. Lisboa: Edições 70, 2018.
ISBN 978-972-40-7608-9.
COSTA, António Manuel de Almeida – O
Funcionalismo Sistémico de N. Luhmann e os seus
Reflexos no Universo Jurídico. Coimbra: Almedina,
2018. ISBN 978-972-40-7608-9.
GRASS, Günter – Escrever Depois de Auschwitz. 2.ªEd.
Português. Alfragide: Dom Quixote, 2008.
ISBN 978-972-20-3651-1.
HESPANHA, António Manuel – O Caleidoscópio do
Direito – O Direito e a Justiça nos dias e no mundo
de hoje. 2.ªed. Coimbra: Almedina, 2019. ISBN
978-972-40-3814-8.
JAKOBS, Günther e CANCIO MELIÁ, Manuel –
Derecho Penal del Enemigo. Tradução do alemão
20 Uma das críticas que se faz à teoria de G. Jakobs está na defesa que ele faz dos tipos penais de perigo abstrato, os
quais prescindem da ocorrência do dano material efetivo a um bem jurídico.
Bürgerstrafrecht und Feindstrafrecht de Manuel
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Do Inimigo do Direito Penal ao Inimigo do Estado Penal
1
From the Enemy of Criminal Law to the Enemy of the Criminal State
1 Este artigo corresponde ao comentário científico da Unidade Curricular de Doutoramento em Direito – Direito:
da norma ao procedimento e à fase aplicativa –, lecionada pelo Professor Doutor Manuel Monteiro Guedes
Valente.
2 Doutoranda em Direito na Universidade Autónoma de Lisboa.
MARINA CERQUEIRA
2
marinacerqueira61@gmail.com
GALILEU–REVISTA DE DIREITO E ECONOMIA · eISSN 2184‑1845
Volume XXI · 1
st
January Janeiro–30
TH
June Junho 2020 · pp. 197‑200
DOI: http://doi.org./10.26619/2184‑1845.XXI.1.1.02
Submitted on March 23
th
, 2020 · Accepted on June 4
th
, 2020
Submetido em 23 de março, 2020 · Aceite a 4 de junho, 2020
RESUMO o presente texto tem como
escopo refletir criticamente sobre o
Direito Penal do inimigo. Nesse sentido,
inicialmente, apresenta-se a função do
Direito Penal no Estado Democrático,
bem como os seus principais princípios
norteadores, a fim de afirmá-lo como
instrumento de proteção do sujeito frente
ao poder punitivo do Estado. Realizadas
tais considerações, premissas básicas para
se alcançar a crítica que o trabalho objetiva
oferecer, aborda-se a construção do Direito
Penal do inimigo e as suas consequências
no âmbito da dogmática penal e processual
penal. Por fim, pretende-se responder
à seguinte questão-problema: o Direito
Penal do inimigo possui assento no Estado
Democrático?
PALAVRASCHAVE Direito Penal – Direito
Penal do Inimigo – Estado Democrático.
ABSTRACT this text aims to critically
reflect on the enemys criminal law. In this
sense, initially, the function of Criminal
Law in the Democratic State is presented,
as well as its main guiding principles,
in order to affirm it as an instrument
of protection of the subject against the
punitive power of the State. Having made
these considerations, basic premises for
achieving the criticism that the work aims
to offer, the construction of the enemys
Criminal Law and its consequences within
the scope of criminal and procedural
dogma are addressed. Finally, it is intended
to answer the following problem question:
does the enemys criminal law have a seat
in the Democratic State?
KEYWORDS Criminal Law – Criminal Law
of the Enemy – Democratic State.
Pode-se afirmar, de acordo com Claus
Roxin, que a função do Direito penal é a pro-
teção subsidiária de bens jurídicos, assim
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compreendidos como conjunto de valores
relevantes para a convivência em uma socie-
dade plural e Democrática
3
. Nesse mesmo
horizonte, como bem sustenta Manuel
valente, o Direito penal deve exercer a fun-
ção de equilíbrio consistente em tutelar bens
jurídicos, mas, também, proteger o sujeito,
acusado da prática de um delito, do violento e
arbitrário poder punitivo do Estado
4
.
Nesse sentido, Eugênio Raul Zaffaroni
afirma que o Direito penal representa o dis-
curso dos juristas que propõe às agências
judiciais um sistema orientado de decisões
para impulsionar o progresso do Estado
Democrático de Direito
5
.
Dessa forma, o Direito penal tem a sua atu-
ação orientada por normas princípios, dentre
os quais, destacam-se, apenas a título de ilus-
tração, os princípios da legalidade, da culpabili-
dade, da ofensividade e, por fim, pode-se desta-
car, ainda, o princípio da intervenção mínima,
também compreendido como ultima ratio
6
.
Pode-se constatar, portanto, que o Direito
penal só pode ser concebido como instru-
mento de proteção do sujeito, tratando-o
como titular de Direitos humanos. Impor-
tante notar, nesse contexto, ainda que sucin-
3 R, Claus – Novos estudos de direito penal. Organização: Alaor Leite; tradução: Luís Greco, 1.ªEdição, Marcial
Pons, São Paulo, 2014, pp.41-66.
4 V, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal do Inimigo e o Terrorismo: O «Progresso ao retrocesso». 3.ªEdição,
Editora Almedina, 2019, p.130.
5 Z, Eugênio Raúl – Estructura Básica Del Derecho Penal. 1ªEdição, Editora Ediar, Buenos Aires, 2009, pp.14-16.
6 S, Marcelo – Princípios Penais no Estado Democrático – Col. Para Entender Direito. Editora Estúdio Editores.
com, 2014, p.33.
7 R M e H Z apud V, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal: Fundamentos Político-
Criminais.Lisboa: Edição de Autor, 2017, p.91.
8 V, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal: Fundamentos ..., p.105.
9 C, António Manuel de Almeida – O Funcionalismo Sistémico de N. Luhmann e os seus reflexos no Universo Jurídico.
Editora Almedina, 2018, p.81.
tamente, que o Direito penal deve assumir
com a política criminal uma relação de “uni-
dade cooperativa”
7
, haja vista que a política cri-
minal é a ciência que subordinada aos vetores da
legitimidade e da eficácia e aos princípios ético-filó-
sofico-jurídicos da legalidade, da culpabilidade, da
ressocialização e da humanidade, deve debruçar-se
sobre as causas do crime, sobre a correta redação
dos tipos legais de crime (...) sobre o limite de exten-
são da aplicação do Direito penal de que dispõe o
legislador penal face à liberdade do cidadão
8
.
Pois bem. Realizadas tais breves, mas
relevantes, considerações, cumpre-se indagar
por que a formulação teórica do Direito penal
do inimigo subverte toda o edifício Democrá-
tico que deve sustentar o Direito penal (?).
O funcionalismo sistêmico construído e
defendido por Günther Jakobs possui como
marco teórico Niklas Luhmann e a sua teoria
dos sistemas sociais. De acordo com Antó-
nio Manuel de Almeida Costa, verifica-se
que Luhmann, na segunda fase da sua obra,
aplica as ideias de auto-referência e da auto-
-reprodução ou auto-poiese, próprias de H.
Maturana e F. Varela, no âmbito da biologia,
aos sistemas sociais
9
.
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De acordo com essa perspectiva, pode-se
afirmar que o Direito, enquanto sub-sistema
social, é também um sistema auto-referente,
cujo desempenho ocorre em auto-contacto, subor-
dinando-se ao esquema da recursividade autopoié-
tica
10
”, que possui como função a estabilização
das expectativas normativas, e é compreen-
dido, sob o prisma normativo, como um sis-
tema fechado que, de acordo com o seu código
(justo/injusto) estabelece comunicações com
outros subsistemas sem que, contudo, inter-
firam na sua própria lógica de operacionali-
dade
11
. Assim, se ocorre a violação da norma,
por meio da prática de um crime, a pena, que
representa uma aplicação contra-fática da
sanção, torna-se necessária para restabele-
cer a vigência da norma e a estabilidade sis-
têmica: teoria da prevenção geral positiva.
Com efeito, o Direito penal do inimigo esta-
belece uma separação entre a categoria ‘pes-
soa´- aquele cidadão que respeita o comando
normativo – e, por outro lado, ‘não pessoa´,
ou seja, aqueles ‘não cidadãos´ que violam
as normas instituídas pelo Estado e que, por-
tanto, não devem merecer sua proteção
12
.
10 C, António Manuel de Almeida – O Funcionalismo Sistémico de N. Luhmann ..., p.85.
11 C, António Manuel de Almeida – O Funcionalismo Sistémico de N. Luhmann ..., p.85.
12 J, Günther; C M, Manuel – Direito Penal do Inimigo: Noções e críticas. Organização e Tradução:
André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli, 6.ªedição, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2012, p.47.
13 V, Manuel Monteiro Guedes – «Os Direitos Humanos e o Direito Penal: uma (re) humanização
emergente». In: Estudo em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade. Vol. II, Direito Processual Penal.
Organizadores: José de Faria Costa, Anabela Miranda Rodrigues, Maria João Antunes, Helena Moniz, Nuno
Brandão e Sónia Fidalgo, 2017, pp.285-292
14 B, Ulrich – Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução: Sebastião Nascimento, Editora 34, São
Paulo, 2010, pp.23-28.
15 S S, Jesús María – La expansión del Derecho penal: Aspectos de la Política criminal en las sociedades
postindustriales. 3.ªedição, Editora Edisofer S.l, Libros Juridicos, 2011, p.11.
Nessa perspectiva, ao dito inimigo, seria
legítimo afirmar que o Estado pode lançar
mão de práticas antidemocráticas e, pois,
antigarantistas, como por exemplo, a ante-
cipação da tutela penal, impulsionando um
– odioso – direito penal do autor, a criação
desenfreada de novo crimes, a despeito de
não haver nenhum bem jurídico a proteger,
bem como a adoção de mecanismos proces-
suais que não respeitam o duo process of law,
pois, o único objetivo reside na estabilização
das expectativas normativas e, pois, a perfeita
vigência da norma e o funcionamento do sis-
tema jurídico. Dito mais claramente, protege-
-se a sociedade daquele inimigo
13
.
Não se pode deixar de notar, ainda nesse
contexto, que as características da sociedade
atual servem para fortalecer a adoção do
Direito penal do inimigo. Ulrich Beck define a
sociedade contemporânea como “sociedade de
risco”
14
que, por sua vez, impulsiona o que Jesus
Maria Silva Sánchez denomina de “La expan-
sión del Derecho penal”
15
, pois, com o apoio da
cultura do terror midiático, a sociedade clama,
a cada dia, por mais rigor na intervenção
penal, ainda que implique em tratar o sujeito,
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acusado da prática de crime, como coisa, acre-
ditando na equação: segurança + justiça = liber-
dade”
16
. Observa-se, portanto, nos dias atuais, a
existência de um verdadeiro Estado Penal que,
em prol da segurança nacional, está disposto
a aniquilar direitos, constitucionalmente asse-
gurados, na guerra do combate ao inimigo,
ainda que, verdadeiramente, acredite que não
é isso que se está a fazer.
Conforme sinaliza Günther Grass, as
atrocidades praticadas durante o período
Nazista na Alemanha nunca tinham sido con-
sideradas, pelos próprios alemães, como pos-
síveis: “(...) nunca. Eu dizia para mim próprio e a
outros, eles diziam para si próprios e a mim: nunca
os Alemães fariam uma coisa destas”
17
.
Nesse sentido, diante de tudo que foi
brevemente abordado, é possível concluir
que, a sociedade moderna deve assumir um
compromisso democrático de resistência
às mudanças que pretendam transformar o
Direito penal em Direito penal belicista, pois,
consoante bem sustenta Manuel Valente, do
contrário, o que há é a(...) inversão da conceção
de Estado que passa a ser um fim em si mesmo e
não um fim de proteção do Ser Humano e da huma-
nidade”
18
.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
B, Ulrich – Sociedade de risco: rumo a uma outra
modernidade. Tradução: Sebastião Nascimento,
São Paulo: Editora 34, 2010.
16 V, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal do Inimigo …, p.124.
17 G, Günter – Escrever depois de Auschwitz. Tradução de Helena Topa, 3.ªedição, Editora Dom Quixote, p.13.
18 V, Manuel Monteiro Guedes – Direito Penal do Inimigo e ..., p.112.
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las sociedades postindustriales. 3.ªedição, Editora
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V, Manuel Monteiro Guedes – «Os
Direitos Humanos e o Direito Penal: uma
(re) humanização emergente». In: Estudo
em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da
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Organizadores: José de Faria Costa, Anabela
Miranda Rodrigues, Maria João Antunes,
Helena Moniz, Nuno Brandão e Sónia Fidalgo,
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